E DEPOIS DO ADEUS
Por João de Almeida Santos
I.
Rui Rio derrotou o establishment mediático, os inflacionados notáveis do partido (incluídos Cavaco Silva, Passos Coelho e Carlos Moedas), um número significativo de dirigentes distritais e a nova redentora promessa, Paulo Rangel, claro. Derrotou a direita neoliberal do PSD. Isso é evidente. Mas, ao contrário do que ele dizia, estas eleições internas a) levaram o PSD ao topo da agenda mediática durante um mês, o que não é de somenos; b) reforçaram a sua imagem de reiterado vencedor perante o eleitorado (e não só perante os militantes do PSD). Às vezes, ele parece um anti-político (e de certo modo é-o, se por político entendermos o paladino da palavra conveniente e do politicamente correcto), mas a verdade é que soma vitórias sobre vitórias, confrontando-se com poderosos lobbies (antes, fora o FCP e o lobby portuense da cultura). E talvez seja isso mesmo que faz dele um vencedor, sobretudo nos tempos que correm, com o establishment convencional em crise de credibilidade e uma personalização da política cada vez mais em alta. Falta-lhe agora a vitória em legislativas, depois de ter melhorado substancialmente os resultados nas autárquicas e de, contra todas as expectativas, ter averbado a vitória de Lisboa e ter derrotado o seu adversário por uma confortável margem.
II.
A verdade é que, embora possa não parecer, estas disputas renhidas entre candidatos à liderança de um partido são bem melhores, mais eficazes e mais interessantes do que as missas cantadas em torno de líderes pré-consagrados. E não só porque ocupam o topo das agendas pública e mediática, como se viu, mas também porque dão sinais de vitalidade democrática e de capacidade de assumir o risco. Por isso, e ao contrário do que parecia, antes deste desfecho, o PS de António Costa que se cuide, depois da recuperação do governo dos Açores para o PSD, da vitória de Moedas em Lisboa (contra todas as sondagens e a opinião publicada), do significativo reforço do PSD nas autárquicas e desta vitória de Rui Rio sobre Rangel e a direita neoliberal do PSD. São sinais que não devem ser desvalorizados pelo PS.
III.
Assistiremos, pois, em Janeiro, certamente a uma forte polarização eleitoral entre o PS e o PSD, resultado de agora se ter tornado mais plausível a possibilidade de Rui Rio vencer, ainda que por maioria relativa, estas eleições. A direita mostra-se impaciente para chegar ao poder e isso vai beneficiá-lo, reduzindo ao máximo a base eleitoral dos extremos e beneficiando o PSD com o voto útil. Rui Rio precisa da bipolarização deste combate como de pão para a boca. Precisa de recuperar o eleitorado perdido para o Chega e para a Iniciativa Liberal. E até a direita que não se revê nele acabará por concentrar os seus esforços em Rui Rio, convencida que, depois, com a gestão do poder, tudo acabará por se ajustar. O mesmo discurso vale para o PS em relação ao PCP e ao Bloco. A tensão bipolar da competição eleitoral favorece estes partidos. E a atenção vai concentrar-se no centro eleitoral onde o social-democrata Rui Rio se coloca também.
IV.
É claro que, depois de seis anos de governo, o PS e António Costa estão um pouco desgastados, quer pelo natural desgaste resultante do exercício do poder quer por falta de comparência do partido enquanto tal (um pouco ideológica e organicamente à deriva), já para não falar de um governo que só sobrevive simbolicamente graças à ainda positiva imagem do Primeiro-Ministro. Entretanto, cumpriram-se os fatídicos seis anos da gestão socialista, que mais parecem ser um destino do que uma trajectória política. Gestão que, desde 1995, já conta com quase dezanove anos de governo contra sete do PSD. Não sei até que ponto a variável pandemia irá contaminar também a competição eleitoral, mas certamente contaminará.
V.
De qualquer modo, falar de maiorias absolutas parece ser um pouco irrealista, vista a natureza do sistema eleitoral que temos, apetecendo até dizer que, se quiserem tê-las, alterem o sistema eleitoral, o que, afinal, só depende destes dois partidos. Mas, com este sistema, e por isso mesmo, será sempre conveniente adoptar, em competição e fora dela, um discurso politicamente tolerante ou mesmo amigável que possa permitir fazer alianças pré-eleitorais ou, então, alianças de governo pós-eleitorais, em vez de empurrar a solução governativa para uma lógica de bloco central, explícito ou implícito. Mais do que uma mera manifestação de sensibilidade democrática este discurso parece ser uma exigência estrutural, a que melhor garante a viabilidade e a estabilidade governativa, além de contribuir para aperfeiçoar o clima político e as relações entre agentes políticos em dura competição. E permite até evitar deslizes mais radicais das forças políticas que representam a ala extrema do leque eleitoral. Isto é, para que o sistema político, tal como é, funcione bem convém não diabolizar as forças políticas do arco constitucional porque todas elas podem ser necessárias para uma solução governativa em regime de sistema eleitoral proporcional.
VI.
E também é claro que o actual sistema eleitoral é mais integrativo e, por isso, politicamente mais estabilizador porque traz para a instituição parlamentar as forças políticas com alguma relevância eleitoral, o que leva a que a luta política se desloque para o parlamento em vez de acontecer na rua ou em indesejáveis subterrâneos. Mas também é verdade que outros sistemas eleitorais, por exemplo, o maioritário com círculos uninominais ou o proporcional com prémio de maioria, permitem uma maior estabilidade e uma maior coerência e profundidade dos programas de governo para as necessárias reformas de fundo do sistema. Ambos têm vantagens e desvantagens, como se sabe, só faltando decidir qual será mais vantajoso para o sistema com o actual estado da arte.
VII.
Mas é claro que os sistemas eleitorais, sendo importantes, não determinam o essencial da política, porque o eixo central está a montante, no sistema de selecção dos dirigentes no interior dos partidos (o pessoal político que ocupará os lugares no Estado) e na sua relação com a cidadania e, a jusante, na capacidade de bem gerir o que está, mas também de preparar e projectar programaticamente a sociedade para o futuro. Ou seja, a centralidade está mais aqui do que nos sistemas eleitorais, sendo, todavia, certo que estes podem dificultar a consecução dos três itens que enunciei.
VIII.
Veremos o que acontece relativamente aos candidatos a deputados nos dois grandes partidos, com listas fechadas e em grande parte decididas pelas direcções nacionais, como, de resto, se viu nas autárquicas. Ou seja com a omnipotência da marca ou sigla partidária ancorada exclusivamente na figura do líder. Será, pois, interessante ver o processo de constituição das listas de deputados, o grau de renovação e o tipo de candidatos que estes partidos irão propor à cidadania. Nem é preciso muito. Basta escolher bem uma amostra significativa do que irá ser proposto aos eleitores por estes partidos.
Uma coisa é certa: a política está a mudar estruturalmente e a conjuntura também. Um pouco por todo o lado, e também nosso País. O sistema de partidos também entre nós se fragmentou. A cidadania está a mudar estruturalmente e sobretudo no seu grau de informação e de exigência, tornando cada vez mais o “sentimento de pertença” insuficiente. Por isso, torna-se necessário mudar de registo político, regressando à sociedade civil e activando políticas que permitam convergências virtuosas em vez da reconstrução de muros que foram já derrubados ou mesmo de novos muros que afastarão faixas decisivas da cidadania da participação política. O que temos não é lá muito exaltante, mas mesmo assim é sempre possível melhorar. #Jas@12-2021.