UMA VIAGEM IMAGINÁRIA
DA PRAIA DA MEIA-LUA
À CASA DAS HISTÓRIAS
Em Dez Andamentos
Por João de Almeida Santos

“Azul no Parque”. Jas. 12-2021
I.
PARA PINTAR um lugar que me inspira, imaginei uma curta viagem a partir da Azarujinha, a praia da meia-lua, talvez a mais íntima das praias portuguesas, acompanhado de uma mulher-neblina de olhos turquesa, até à “Casa das Histórias”, lugar sempre associado a esses estranhos e disformes corpos, sobretudo femininos, que povoam o imaginário de quem, por imperativos estéticos, o visita, ali em frente do Parque e da casa dos pavões, em Cascais. Uma estranha viagem pela linha do horizonte sobre um arco-íris preguiçoso, derreado pelo peso do sal nas gotículas do seu corpo, que pousa espraiado no mar, abraçando, num longo semi-círculo, a praia da meia-lua e a casa das histórias e tendo consigo, no regaço, azul, muito azul, murmurejos, areia alva e fina e silhuetas de figuras que se diluem na neblina matinal do oceano e no perfume a maresia.
II.
Uma viagem curta entre a terra e o mar sobre arco-íris e ao alcance de um rápido olhar que o percorra de um lugar ao outro sob o murmúrio cadenciado das ondas em mar sereno e um azul que brilha sob os raios de luz que o sol ou a lua projectam, indicando-lhe o caminho, em direcção ao génio da arte que habita aquela casa. Porque o génio se recolheu, pensativo, na casa das histórias, transfigurando-se em esculturas disformes e grotescas, sobretudo de mulheres, que parece contrastarem a beleza dos corpos lisos, bronzeados e esculpidos pelo sol e pela água do mar, mesmo ali ao lado, nessa imensidão líquida que nos beija insistentemente o olhar com o seu azul murmurejante… E que contraste, meu Deus!
III.
Ali perto, em frente, antes do choque pela contemplação dos estranhos, disformes e grotescos corpos que já nos fizeram esquecer as esculturas bronzeadas e vivas da praia, o grito de um pavão de plumagem multicolor, um caleidoscópio em tons de turquesa intensa ou azul petróleo, verde vivo e textura cromática mista, tigrada, que faz ponte entre o colo e a cauda de surpreendente beleza, mesmo quando não aberta em leque, em pose deslumbrantemente erótica. Na sua lentidão narcísica, o vaidoso e exuberante personagem faz questão de, sempre em pose, anunciar, com o grito e a sua fascinante presença, a arte que se oferece do outro lado da rua.
IV.
Viajo para lá com a fantasia, ainda meio aturdido pela intensa energia do mar e do sol que, na viagem, dispara sobre a minha pele, os meus sentidos, e penso numa mulher, dissimulada em riscos e ondulações cromáticas, voando baixinho desde as rochas agrestes e o azul líquido do mar da Azarujinha para o ocre liso da casa e das chaminés sempre anunciado pelo grito do pavão vizinho.
V.
Quem sabe se essa mulher não é, afinal, uma das que dançam ali na praia, ao luar, num espaço imaginário entre a Azarujinha e a Poça, sob os auspícios do velho e abandonado Forte da Cadaveira, lá no alto a apontar a lua-cheia que dá luz ao baile da meia-lua numa noite de luar. Sozinha, sem par, aprumada, escapuliu-se, agarrando-se, já pela manhã, a uma ténue linha que atravessava, discreta, o azul-marinho do céu, e foi pousar na ponta do pincel mágico da dona da casa, uma senhora de nome Paula, para ali ficar aninhada, sob o som estridente do grito anunciador desse pavão timorato que nunca ousa atravessar a rua para não ficar embalsamado no interior de uma moldura, podendo sair dela já só como fantasma.

“O Baile”. Paula Rego. 1988. Tate.
VI.
Mas o contrário também pode acontecer. Os da dança fugirem, como fantasmas, da casa das histórias e irem dançar sob o Forte da Cadaveira, numa noite de luar. Fartos da frieza da casa e da moldura que lhes servia de apartamento, foram animar a praia, tão triste desde que falhados estrategas mandaram o velho Bino para o Campo Santo, fazer tijolo, deixando ao abandono e com lágrimas salgadas essa meia-lua da sua vida.
VII.
Só regressaram pela madrugada e o pavão do parque deu conta, assinalando, com o grito, a chegada das figuras do baile à casa das histórias. E, solene, logo levantou a plumagem da cauda em honra dos vizinhos, acrescentando cor à cor dos bonecos animados sob a forma de fantasmas iluminados pela lua ou pelo sol e levados pela melodia sedutora desse mar tão caseiro que beija a praia da Azarujinha.
VIII.
Que tráfego este! Voa-se na neblina, em silêncio, da praia da meia-lua para as chaminés ocres da casa, reentrando nela como se fosse Natal. Mas a viagem preferida é a que fazem pé-ante-pé, caminhado sobre aquele arco-íris preguiçoso que está espraiado sobre o mar, passando pela linha do horizonte e indo apoiar-se no reduto mais íntimo do Paredão para, depois, já no regresso, se aninharem nesse reduto ainda mais íntimo da casa das histórias. Errâncias de arte viva.
IX.
A cor é a âncora do tráfego, da pedra para o tijolo, da meia-lua para as chaminés, do azul para o ocre – e vice-versa – sobre as sete cores do preguiçoso arco-íris que faz do mar a sua cama enquanto houver neblina. Animação na casa e baile na praia da meia-lua. É um dia de festa, assinalado pelo grito do pavão e pela girândola de cores, com a turquesa a abrir caminho, que brota da cauda em leque desse especioso e feliz porteiro da casa das histórias.
X.
A vida é um baile ou é um sonho? Bom, bom é ser as duas coisas. Dançar em sonho e sonhar dançando, desde que o percurso seja feito sobre o caleidoscópico arco-íris como percurso possível para uma visita aos lugares onde habita o belo.
Belo e indecifrável..