Artigo

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTE

Por João de Almeida Santos

Jas18Espanto2021

“Espanto”. JAS. 2021. Pintura que integra a Exposição “Luz na Montanha” (n.º18 do Catálogo, 91×115), aberta ao público no Centro Cultural de Cascais até 25 de Setembro.

QUANDO PUBLIQUEI o meu livro Os Intelectuais e o Poder (Lisboa, Fenda, 1999) pus-me a questão do estatuto do filósofo. Quem se pode considerar filósofo? Licenciado em Filosofia, Professor de Filosofia ou Filósofo? Não é, de facto, a mesma coisa. Saber sobre filosofia não é a mesma coisa que filosofar. E acabava dizendo que a condição de filósofo só pode ser atribuída por outros, não pelo próprio. Não é como nos casos do economista, do médico, do sociólogo ou do jurista. É coisa mais grave porque toca algo de difícil comprovação: não através de um diploma, mas da sabedoria sobre os nexos essenciais ou constituintes da existência, da vida, da história. Numa palavra: ver para além dos particularismos ou especialismos. Mover-se numa ontologia do ser. O mesmo poderia ser aplicado ao poeta. Não basta fazer versos ou boa rima. É preciso sentir, exprimir e tocar as almas por dentro, em palavras com poder performativo. Mas talvez menos ao pintor, embora o passo que leva a esta condição só possa ser dado quando se verificar a condição referida pelo fundador da história da arte, Johann Winckelmann: um desenhador não é um pintor porque imita o belo, não o cria. Artista é o que cria beleza, não o que a copia. O mesmo vale, em geral, para a condição do artista, o que cria o belo, mesmo que seja o belo horrível.

I.

Os gregos diziam que a filosofia nascia com o espanto, que dava origem à interrogação sobre as causas primeiras do ser (em particular os chamados pré-socráticos, Parménides ou Heráclito, por exemplo). E a arte, a que não procura reproduzir o real, simplesmente descontaminando-o das imperfeições próprias da vida, mas recriá-lo a partir de uma visão interior do mundo e da vida? A música, a poesia, a pintura, o romance? Cada artista dará certamente a sua resposta, com a própria obra ou mesmo com palavras sobre ela. E já se sabe que as respostas são inúmeras, sobretudo nesta época de relativismo universal, de pós-modernismo, onde não há lugar para as grandes narrativas e para a profundidade temporal, de civilização da imagem e de triunfo do simulacro e de perda de aura da obra de arte, onde até uma banana colada com adesivo vale milhões pela sua qualidade estética ou onde o crítico, explicando o absurdo, acha que o que vale mesmo é a assinatura e nada mais. A assinatura como arte, onde o conteúdo nada importa. Uma visão notarial da obra de arte. Pois é. Se em tudo já é assim, relativo, na arte ainda é mais. Cada um parece ter a sua bússola estética com diferentes localizações para um mesmo lugar, seja ele o norte ou o sul. Um relativismo que desorienta e desresponsabiliza.

II.

Pois também eu tenho a minha ideia sobre o assunto, procurando cruzar a estética com a própria experiência de produção de arte (do romance à poesia, à pintura). E, a partir daqui, desenvolver uma reflexão que tenha um único sentido e um único valor: dar testemunho de como nasce a obra de arte (se for mesmo obra de arte, assim considerada, que não seja pelo próprio ou pelo que considera que a assinatura é tudo, seja uma banana, seja um mictório). O risco é grande, mas acho que vale a pena.

Digo muitas vezes que a poesia nasce de um estremecimento e desenvolve-se como solução para a própria vida, até pela sua altíssima performatividade, o seu valor como acção existencial com valor metalinguístico ou meta-semântico. Como acto sublime do viver. Fixei bem a ideia do Nietszche e do carácter primordial da experiência dionisíaca na criação estética. Uma espécie de libação existencial, de onde a poesia nasce quase como imperativo e como solução para resolver a “ressaca”, também ela existencial. Em palavras triviais, para concretizar melhor a ideia, diria que a poesia (ou a arte) funciona como uma espécie de remédio, um guronsan espiritual de fabrico próprio, de design sofisticado, prolongado no tempo e proposto aos outros que de algum modo também vivem em “ressaca”. Um remédio para a alma feito de palavras em composição melódica. O García Lorca dizia que a poesia não quer adeptos, mas sim amantes. Não se entra nela como se olha para uma montra ou para uma disputa desportiva. Entra-se nela como numa oficina onde se lapidam minerais. Alquimia, sim, alquimia. A arte quer envolvimento, sofrimento, dor, paixão, amor, pulsões, vibração existencial. E elevação. Não quer mãos limpas, distância, medo, relação puramente analítica com a realidade ou puro pragmatismo. A arte é um em-si (sich selbst) que prescinde do seu próprio exterior, embora nasça para ser comunicada, sim, mas de forma desinteressada. Desinteressada, sim, mas não para o próprio artista que a cria, porque algo interior lhe impôs a criação, requerendo-a mesmo como solução para a sua inquietação, o desassossego, capturando e resolvendo o estremecimento com a beleza das formas.

III.

Pediram-me, numa entrevista para a RTP, para escolher uma frase que me tenha influenciado ou que tenha sido importante na minha caminhada estética. Escolhi uma frase de Marguerite Yourcenar/Michelangelo Buonarroti, em “Le Temps, Ce Grand Sculpteur” (1983), para sublinhar o registo em que me movo no plano artístico: “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”. 

Esta frase sintetiza toda uma teoria estética, em que me reconheço integralmente, exposta em poucas linhas pela grande escritora. Esta frase é atribuída a Michelangelo Buonarroti, no segundo capítulo do livro, “Sistina”, e tem-me acompanhado no processo de construção da minha poesia e da minha pintura. Como confirmação de uma intuição prévia e real sobre a vida. Claro, não é a frase em si, mas o que ela indicia e que, de resto, está bem explícito, e de forma certeira, neste curto e profundíssimo texto sobre Gherardo Perini. Resumo, pois, o que a Yourcenar, através do monólogo que Michelangelo dirige ao seu amante, propõe como variáveis essenciais da arte:

  1. A arte recria em ausência. A ausência do ser amado ou do objecto de atenção estética deve acontecer enquanto a relação ainda não se desgastou (que a partida aconteça enquanto ainda for possível chorá-la). O artista sublima o que lhe sobrou do que teve.
  2. O silêncio é o seu ambiente natural e as cores são como acordes sobre este silêncio. E eu acrescentaria que também as palavras o são, talvez mesmo de forma mais intensa, quando dão corpo à poesia e vibram como as notas de uma pauta.
  3. A recriação é uma imobilização da alma do ser que se tornou objecto de atenção estética. O Stendhal chamava-lhe, em relação ao amor, “cristalização”.
  4. A visão do artista não se confunde com a dos outros que observam a mesma figura exterior porque ele extrai dela o essencial, que é invisível e que os outros não poderão conhecer. O artista “mira più alto”, como diria Galileo Galilei, referindo-se à filosofia.
  5. A recriação é, por isso, algo semelhante ao processo alquímico, que separa o subtil da matéria em bruto, só sendo acessível aos iniciados, ou seja, aos artistas. O artista vê a nudez da alma para além das roupas e do próprio corpo, que é, afinal, como os santos vêem as almas. Mas o artista é mais um alquimista do que um santo.
  6. A recriação é uma eternização do objecto estético, precisamente porque extrai dele o que não é simplesmente acessível ao olhar distraído do ser humano comum.
  7. A beleza é, por isso, algo que é grave e solitário (e único), como a dor. Não há beleza quando não há gravitas, densidade existencial.
  8. A arte é a única forma de verdadeira posse. Isto também o dizia o Fernando Pessoa no “Livro do Desassossego”. Possuir (no sentido material) é perder porque, possuindo, também se é possuído. Outra coisa é sentir sem possuir e dar corpo ao sentir pela arte. Só a renúncia permite a posse total (pela arte). Se não te possuo, não te perco. “Sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero”, diria o Pessoa. A pergunta que fica é, pois, a seguinte: não tem porque não quis ou não tem porque não pôde ter? E que tipo de artista é: o que exprime o que não tem ou o que exprime o que sobrou do que teve? (Porto, Assírio e Alvim, 2015, 207-209). Pessoa é do tipo que não tem.
  9. A arte exige separação, diferença, um intervalo onde o artista se posiciona. Só ela permite a posse eterna: “só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos”. Para a Yourcenar o artista é o que exprime o que sobrou do que teve. É o que resulta da relação estética e de amor entre Michelangelo e Gherardo Perini.
IV.

Poderia quase dizer que estes são os princípios que me inspiram quer na poesia quer na pintura a partir de um momento fundacional: o estímulo sensorial sobre a sensibilidade que leva a uma inevitabilidade, a um imperativo: a sua conversão em arte.

Aqui, a pulsão do amor (de Michelangelo por Gherardo Perini) é evidentemente a que desencadeia o impulso estético, a (re)solução para a dolorosa partida, a necessidade de recriação estética do ser que ia partir como forma sublime de posse em ausência, a única possível. Posse de algo que é único porque não partilhável a não ser como contemplação já sob a forma de obra de arte.

A este momento pulsional e de partida Nietzsche chamava momento dionisíaco, libação existencial. Eu diria, então, da arte: no princípio (da arte) não é o verbo (como se diz na Bíblia: João 1:1) nem são sequer as coisas (como queria o Galileu: “prima furon le cose, e poi i nomi”), mas sim o estremecimento por via sensitiva. O que distingue o filósofo do ser humano comum é, segundo Galileo Galilei, a sua capacidade de ler o livro da natureza, de o decifrar (“il volgersi al gran libro della natura”, como diz logo no início do Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo – Torino, Einaudi, 1970, 2). E eu diria que o que distingue o poeta do ser humano comum é o seu (de “chi mira più alto”) poder de ler no livro das almas.  E que começa por ser um estremecimento com força propulsiva, que sintoniza o poeta com o universo do sentir e se constitui como mola que desencadeia a sua resposta e que instala o ambiente estético em que se desenvolverá ulteriormente a criação. Só depois vêm os nomes, as palavras, as cores e os traços e a sua colocação num intervalo entre si próprio e a realidade. Uma separação metodológica. Um espaço intermédio onde se inicia o momento apolíneo. A partir deste intervalo vem a sinestesia, a abordagem dupla, poética e plástica, em convergência para a expansão e o desenvolvimento formal que se segue ao estremecimento primordial, sensitivo. Aqui intervém a técnica e a racionalidade, a dimensão formal. O espírito apolíneo, sim. E a exigência de muito trabalho e muito estudo. E só então a obra de arte ganha vida, desprendendo-se do autor, seguindo o seu percurso, levada pelo vento para destinos imprevistos e até para junto de quem partiu e deixou um rasto intacto de si mesmo na memória sensitiva do poeta. A não ser que, como dizia Kafka, a obra seja bebida pelos fantasmas durante a viagem. Mas esses são os riscos naturais da arte viva e do voo poético.

V.

Para mim, não há arte sem estremecimento, sem abalo telúrico. O resto é somente profissão ou pura habilidade de quem não cria, mas simplesmente reproduz. É por isso que a arte é grave e é também por isso que ela é solitária. E livre. E autopoiética, obedecendo à sua própria dinâmica interna. Sim, mas sob uma remota pulsão que exige resposta e que o artista sente dever acolher como forma de relacionamento primordial com o mundo. A arte é alquímica porque extrai o subtil e o sublime da matéria bruta de que são feitas a vida e as coisas. Só assim ela pode eternizar, imobilizando e separando-se do que é simplesmente ôntico para o tornar ontológico. O resto é virtuosismo ou mera luta pela sobrevivência, não pela arte, mas pelo que de material um exercício sobre a arte pode dar. A arte é uma enorme fonte de pudor e o artista sente uma enorme timidez perante o mundo sobre o qual se pronuncia com as categorias da arte. Embora, em certos casos, pareça que não. Mas a razão de fundo, o que o trava, é a delicadeza da sua aproximação ao mundo. Enquanto depender dos frutos materiais que ela possa dar, ele não é livre e o seu exercício não atinge a essência da arte. A sobrevivência e a solução de vida pela arte não se confunde com os frutos materiais que ela pode permitir, mas sim com a realização interior que o artista consegue através dela. Tudo o resto vem por acréscimo.

Esta conversa tem mais sentido do que parece se assumirmos esse posicionamento em intervalo do artista, distante de si e do mundo e criando uma relação entre eles puramente estética, embora remota e pulsionalmente comprometida. Só a partir daqui procede o espírito apolíneo e a arte se desenvolve seguindo as suas próprias regras, a sua própria gramática.

VI.

Não pretendo, com estas considerações, fazer doutrina sobre a arte ou sequer ditar regras sobre o exercício estético, mas tão-só evidenciar uma das dimensões fundamentais do exercício artístico, referindo-me naturalmente a vultos da cultura mundial, mas sobretudo referindo-as à minha própria experiência, nos três campos em que me pus à prova: no romance, na poesia e na pintura. Não pretendo também que estas considerações tenham valor académico nem sequer qualificar outras experiências estéticas que se movam noutras direcções. E há muitas. A mim, serve-me, todavia, como conforto e consolidação do meu próprio percurso. Que tenciono prosseguir.

Jas18Espanto2021Rec

“Espanto”. Detalhe.

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