ANTÓNIO DE CASTRO GUERRA
UMA VIAGEM NO TEMPO Romance
Por João de Almeida Santos

Foto da Capa, de António de Castro Guerra
Texto completo da minha intervenção na Sessão de apresentação de "Uma Viagem no Tempo" (Lisboa, Rosa de Porcelana, 2022, 218 pág.s) no Grémio Literário de Lisboa, ao Chiado, no dia 17 de Novembro de 2022.

Imagem da minha intervenção na sessão de apresentação de “Uma Viagem no Tempo”
1.
ANTES DE ENTRAR directamente no tema, permitam-me uma nota de carácter pessoal. Tenho conversado muito com o António de Castro Guerra e, frequentemente, no mesmo registo que nos tem, nos últimos tempos, levado a escrever fora da nossa zona de conforto profissional (no autor, a economia, na minha a filosofia e a comunicação política), entrando directamente na esfera do exercício estético (a narrativa literária, a fotografia, a poesia e a pintura), que é ao mesmo tempo uma nova e diferente forma de olhar para o mundo, mas também de se relacionar com ele. Ou seja, agora, que não estamos dependentes do trabalho profissional, da captação dos recursos financeiros necessários à sobrevivência (sempre necessários, mas agora não tão prementes) e das exigências formais da vida social ligada à profissão ou às funções que fomos desempenhando ao longo da vida, e foram muitas e diversificadas (e até partilhadas), ocorre um livre reencontro connosco próprios, com o nosso tempo de vida, seja ele passado, presente ou futuro. O tempo, o destino e as incontornáveis contingências da vida – é o que está em causa. Tudo, para além da vontade com que a enfrentámos e da representação que dela fizemos, porque este, o de hoje, é um tempo diferente em que o passado e o futuro ganham maior acuidade e urgência (como julgo que está escrito, e bem, no livro). Aqui, como se compreende, o que do passado persiste como presente é decisivo até porque o futuro, no fundo, já é mais tempo de balanço do que de um programa estratégico. Mas não se trata de algo que tenha a ver com uma espécie de relatório. Não. Trata-se de arte, ou seja, de “viagens no tempo” recriadas e revividas com as categorias da arte. Viagens, pois, esteticamente comprometidas, que acrescentam algo, tornando, afinal, o “balanço” mais uma nova forma de vida, de vida bela, de vontade e de representação do que de um frio relatório de contas, de sucessos ou de fracassos. Melhor, a arte permite-nos reconstruir o tempo vivido em formas esteticamente partilháveis e fruíveis, tornando esse exercício uma revivescência, sim, mas num plano superior, o da beleza sensível. E o que é mais interessante é que do passado vivido e sofrido o que tende a ser reconstruído não são os sucessos, mas sim os insucessos, o inacabado, o imperfeito, o inconcluso, o ausente, a perda. A arte como solução do inacabado e como redenção. Espelho do imperfeito (com as refracções próprias da arte), sim, porque este é o lado mais humano e contingente. É esse inacabado que nos motiva, quase como imperativo, exigência incontornável. E eu creio que é este o sentido deste romance autobiográfico. Porque é, sim, um romance autobiográfico assumido. E, naturalmente, ficcionado. Ma non troppo. Di-lo ele, na Nota do Autor. E digo eu, que julgo conhecê-lo um pouco e que também me encontro nestas andanças de procura e de recriação estética do tempo perdido no tempo.
2.
NAS NOSSAS CONVERSAS, temos relembrado, frequentemente, a Marguerite Yourcenar e o monólogo do Michelangelo Buonarroti com o seu amante Gherardo Perini no seu livro “Le Temps ce Grand Sculpteur”: “Gherardo”, diz Michelangelo, “maintenant tu es plus beau que toi-même”. Queria ele dizer que, por um lado, a partida do amante e, por outro, num momento em que ainda podia chorar a sua partida, seriam as condições imprescindíveis para lhe poder imortalizar a alma pela arte. Mais uma vez, a arte como solução ou resolução superior do inacabado. Ausência, sim, mas também pulsão que resistiu à partida, algo que lhe sobrou daquilo que perdeu – condições fundamentais para o exercício estético, com as categorias da arte. Como se se tratasse de uma forte pulsão dionisíaca que permaneceu e que, depois, alimentou, como energia, o voo apolíneo da arte. Para o dizer com o Nietzsche de “A Origem da Tragédia”.
Por que razão falo disto?
Falo disto porque creio que o movimento em que se inscreve a actual vida (literária) do António Castro Guerra (e a minha) também é este. Elevar o seu passado mais remoto, aquilo que dele ficou por concluir e que, com intensidade subsistente, lhe sobrou, à sua máxima expressão estética, neste caso através de um romance ou, simplesmente, no caso do outro livro (Quase memórias de um lugar e de outras andanças, Lisboa, Rosa de Porcelana, 2020), de uma concreta narrativa literária centrada em Valezim, essa bela aldeia situada nas margens do rio Zezerim. Mas não como ajuste de contas. Não. Nem ele é homem para perder tempo com isso. Como recriação do vivido, sim, e com desejo de universalidade, a que a arte torna possível, mas também de partilha e, digamo-lo sem rodeios, de redenção. A arte existe para ser comunicada, dizia, se não erro, o Bernardo Soares, e, ao sê-lo, muitas vezes sob a forma de directa interpelação e até de dádiva, desencadeia um processo que até pode ser de redenção. Sim, de redenção. Pela arte. Que melhor do que isto?
3.
TOMEMOS O FIO CONDUTOR do romance, a relação entre António Baltazar com a jovem francesa Ariel, aqui identificada, na dedicatória, com a pequena sereia de Hans Christian Andersen. Não quero nem devo antecipar o que acontece no romance (isso seria maldade para com o editor), mas tão-só a minha impressão de que essa história foi de tal modo inacabada (de tão “perfeita” ter sido) que o obrigou a recriá-la e a ficcioná-la com as categorias da literatura. A perfeição nunca se atinge e obriga sempre a ulteriores aproximações. E talvez também por isso ele se tenha obrigado a uma “viagem no tempo”, a uma improvável revivescência. Como impulso ou pulsão incontornável.
Não direi que o tenha feito com as seis categorias que o Italo Calvino considerava serem as categorias literárias deste milénio que já estamos a viver, mas com algumas, das quais sublinho a leveza, a rapidez e a visibilidade. Categorias que julgo atravessarem toda a narrativa. A história é um exercício de leveza sobre a relação entre os dois personagens (António e Ariel), mediada pelos ambientes naturais em que os encontros ocorrem, mas é também uma rápida visualização de um tempo (o deles) em que o peso insustentável da existência quotidiana e profissional fica de fora, sem interferir na relação, nas vivências partilhadas que acontecem quase em modo de levitação. Leveza da narrativa, portanto. O autor até parece ter um imenso pudor em se concentrar sobre as intensidades subjectivas de cada um, preferindo, pelo contrário, gerá-las indirectamente através da descrição da beleza natural e da exuberância algo dionisíaca dos ambientes em que os encontros ocorrem. Isso parece ter a ver com a própria paixão física do autor (de resto, o narrador parece confundir-se mesmo com o próprio autor) pelos ambientes naturais, tendo sido na infância muito influenciado pelo belíssimo vale – uma confluência de três vales banhada por um rio de água cristalina – onde nasceu e cresceu e da montanha mais alta que o enquadra. Essa paixão física mantém-se e até pode levar-nos a pensar que ela funcionou ex post como excesso que cobre e periferiza literariamente as próprias atmosferas mais íntimas ou sensuais. Mas não sei. O que sei é que a suspeita deriva da intensidade narrativa sobre os ambientes em que ocorrem os encontros.
4.
NA VERDADE, esta, que parece – digo parece com alguma ênfase – ser uma história de amor contido ou de fronteira, é exposta com leveza, expressa num pudor que vai desde a dimensão sexual (quase oculta ou apenas indirectamente aludida) até à partilha afectiva e sensual, quase inexistente (na narrativa explícita), porque fundida ou confundida com as intensities dos ambientes naturais. Tudo parece acontecer numa espécie de exaltação dionisíaca da vida e da natureza, num certo paganismo ou imanentismo, no poder telúrico da vida simples e natural, que me faz lembrar, até pelas várias descrições que se encontram no romance, quando acampam nos mais variados lugares (da Costa Alentejana ao Gerês), o canto de Liolà para o Zio Simone, na belíssima peça homónima (“Liolà”), de Luigi Pirandello:
Io, questa notte, ho dormito al sereno; /solo le stelle m’han fatto riparo: /il mio lettuccio, un palmo di terreno; /il mio guanciale, un cardoncello amaro. /Angustie, fame, sete, crepacuore? /non m’importa di nulla: so cantare! /canto e di gioja mi s’allarga il cuore, /è mia tutta la terra e tutto il mare. /Voglio per tutti il sole e la salute; /voglio per me le ragazze leggiadre, /teste di bimbi bionde e ricciolute /e una vecchietta qua come mia madre.
É mais ou menos também este o ambiente que António Baltazar oferece a Ariel e é este o ambiente que ela ama. Ou em que ela o ama. E é neste ambiente que cresce e se reproduz a ligação entre ambos, a ponto de António Baltazar começar a notar o semblante tristonho de Ariel quando o ambiente natural que lhe oferece não corresponde às suas expectativas, mudando de imediato quando a riqueza exuberante da natureza ressurge, regressa. Sim, a mediação da exuberância natural era decisiva ou até mesmo constitutiva da própria relação. Quase um certo paganismo sedutor que os envolvia e que surge aludido pelo fascínio que lhe suscitaram as histórias do famoso padre de Vilar de Perdizes, que, por isso, quis encontrar, embora sem sucesso. Idílio pastoral – é expressão que, exagerando um pouco, se poderia aplicar aos momentos de êxtase ambiental e natural que lhes aconteciam sempre que iam de encontro à simplicidade e à exuberância natural dos lugares que os acolheriam. Repito as palavras de Liolà: “Io, questa notte, ho dormito al sereno; / solo le stelle m’han fatto riparo”. Pirandello, Sicília, o jovem Liolà que dormia, como eles, ao relento, tendo ele as estrelas como “riparo” e eles uma tenda como abrigo.
5.
E, TODAVIA, ao leitor não é, de facto, oferecida uma panorâmica aprofundada do universo interior dos personagens nos seus longos, repetidos e diversificados encontros e nas intimidades partilhadas, digamos. Diria mesmo: nas pulsões sensuais, dionisíacas. Da terra natal de António Baltazar ela reteve sobretudo o rio, a vontade de acampar ali ao lado para nadar, possivelmente nua, e ali adormecer ao som do murmúrio das suas águas cristalinas, nos braços de António Baltazar, digo eu (que o narrador não fala disso). Era assim que eles melhor se encontravam e se reconheciam. Era assim que os seus universos interiores se conjugavam, induzidos pela força telúrica da natureza. Pois bem, quando isto não acontecia as relações tendiam a esmorecer e talvez tenha sido por isso mesmo que a relação ficou inacabada, à espera que o destino marcasse um futuro que talvez nunca fosse acontecer e que, de resto, nem eles programariam. Ou à espera da sua conversão literária, digo eu, agora. O que for, há-de ser, dizia sempre, de si para si, António Baltazar. Como se conscientemente tivesse deixado ao destino decidir do futuro da relação, lembrando-se do desfecho da relação da pequena sereia com o príncipe, no conto de Andersen?
Na verdade, parece-me legítimo suspeitar que esse pudor extremo de António Baltazar e, já agora, do autor, em manter velado o universo sentimental de ambos, não o dissecando na narrativa, não o expondo mais do que o necessário para dar vida à relação, não o revelando até para resolver com palavras o que a existência não resolveu, fosse sinal de que tudo foi obra do destino, mais do que de intencionalidade ou de racionalidade estratégica de qualquer um deles. E o destino exige pudor, respeito, silêncio, porque nunca se sabe o que nos reserva. Porque é nele que habitam os deuses e o arbítrio divino. Ao que se juntava ainda, neste caso, a expressividade, a intensidade e a exuberância da natureza que os acolhia e com a qual procuravam identificar-se ao ponto de quase se anularem, imergindo nela com todos os sentidos em alerta. Um destino, pois, marcado, mais uma vez, pela força telúrica da natureza. Ou pelos deuses que o habitam, o destino. Vá lá saber-se.
6.
E ASSIM NASCE o romance escrito. A reposição ficcionada, a recriação de uma história vivida, como se o acto de a reviver permitisse resolvê-la. Mas parece que não a resolveu e disso mesmo há o testemunho do narrador e também de Daisy, a mulher de António Baltazar, que, mais tarde, o incentivaria a que fosse encontrá-la lá onde ela vivia, como se, mulher, bem compreendesse que sem esse passo nem o melhor dos romances conseguiria fechar, concluir a relação. Uma pedra no sapato era o que talvez Daisy sentisse. “Vai, vai lá e resolve isso de uma vez por todas. Por ti e, já agora, também por mim”. Isto, digo eu. Mas é o próprio romance que prevê isso mesmo, o que nos deixa entender que o assunto não ficou mesmo resolvido com esta ficção literária. Mas, pergunto, algum dia ficará? O passado poderá ser cabalmente reconstruído através da literatura para ser livre e confortavelmente habitado, sem ponta de inquietação? Não será também aqui o destino a decidir? Ou os deuses? E, de qualquer forma, o estro passar a ser a medida da própria eficácia existencial do romance, da obra de arte? A beleza esteticamente construída como fonte de sedução…
7.
ESTE ROMANCE será lido pela própria (supondo que ela seja mais do que uma versão romanceada da pequena sereia de Andersen), partilhando assim a revivescência, sabe-se lá com que sentimentos interiores? O pudor extremo da narrativa é devido a essa eventualidade? Há esta intenção originária na escrita? Um diálogo à distância? Uma espécie de interpelação? Ou o autor mantém-se numa pura posição transcendental, ou seja, age literariamente “como se”? Talvez o que reste sejam apenas modulações de intensidade desses fragmentos de memória viva, muito viva. À procura do tempo perdido… Mas será possível reencontrá-lo e revivê-lo? Acho que sim, em parte. E se for através da poesia talvez a revivescência seja ainda mais intensa e reparadora, pela sua alta performatividade. Em qualquer caso, ficará, todavia, sempre um sentimento de perda e de ausência. Tem razão a Yourcenar. Ou o Michelangelo. O mesmo sentimento que, afinal, anima, energiza a pulsão da arte. Sim, uma perda irreparável que é compensada ou relativizada pela beleza a que o autor a eleva, universalizando-a e possibilitando a sua partilha com os amantes do belo e dos segredos mais profundos da alma humana. Verbalizar a perda para a relativizar, sem ser psicanálise, mas arte. E até com alguém que poderá compreender agora melhor o que ele sentiu então, nesse passado ao mesmo tempo luminoso e inocente. Sim, porque só por isso esse sentir se pôde projectar como momento de uma narrativa romanesca futura. Talvez seja esta a solução. E aquilo que na origem era perda talvez se tenha transformado, com o acto da escrita, em dádiva esteticamente oferecida, quadro pintado com palavras para que conste da galeria de arte das suas vidas. Pintura com o que lhe sobrou, porque foi (e continuou a ser) verdadeiramente intenso. Sobrou-me algo de ti (aquilo que outros nunca em ti encontrarão, diria Michelangelo Buonarroti) e com esse algo imobilizo-te a alma numa obra de arte. A escrita acontece assim como acto sublime de viver e de reviver. Mesmo assim, estou convencido de que o António Baltazar vai continuar a dizer: o que for, há-de ser. Talvez seja esse o seu ADN. Se a encontrar, claro, apesar de o breve encontro de Paris nos dar bem conta dos embaraços que o tempo sempre produz nas relações temporalmente interrompidas ou suspensas. Encontro futuro que não é uma certeza, porque, na verdade, os seus encontros com ela passaram a ser a um outro nível, digamos, encontros aproximados de “terceiro grau”, o da arte (depois dos reais e dos da memória). Mas tenho a certeza de que este encontro, agora mediado não pela natureza, mas pela arte, vai acontecer. Passa-se assim da exuberância natural à exuberância estética da palavra escrita, que é a versão decifrável da alma, onde o encontro agora ocorrerá. Mais: já está a ocorrer. Quase me apetecia perguntar ao autor: você vai enviar-lhe o livro? Ela até fala português… Supondo que ela exista fora do romance. Mas não sei. E nunca perguntaria ao autor… O que sei, e já não é pouco, é que o romance é também (ou sobretudo) dedicado a essa “pequena sereia que viveu muitas vidas” e que tem por nome Ariel.
8.
MAS A NARRATIVA não se esgota nesta história (de amor?). Ela desenvolve-se em descrições concretas, variadas e demoradas acerca dos ambientes que serviram de fundo aos seus encontros e reencontros. A América (New York, Newark, Washington e Filadélfia), Paris, a costa alentejana, o Buçaco, o Gerês, Terras de Basto, Valezim, na Beira Interior. Uma preocupação que o autor teve em dar ao leitor informações acerca destes locais que ambos frequentaram e fruíram. Sim, sempre eles e as suas circunstâncias. Às vezes (quase sempre) mais as circunstâncias do que eles. Na narrativa, claro.
9.
O ROMANCE também procura resolver uma dúvida existencial do personagem António Baltazar acerca da sua própria identidade remota. Vai às suas próprias origens tal como vai ao seu futuro, ao adoptar (enquanto personagem central do romance) o nome do seu próprio neto. Também aqui “uma viagem no tempo”: ao passado e ao futuro, consignando em plenitude a sua identidade passada e futura ao mundo da arte, expondo-a na sua galeria pessoal, a das suas memórias filtradas pela arte e com sinais de futuro (o nome do personagem). Mais uma vez a recriação da uma linha temporal através da chamada literária dos seus familiares à narrativa para resolver um assunto familiar existencialmente há muito pendente. Quase apetece dizer que também aqui a literatura é uma solução para a própria vida. E também que o companheiro de Ariel era esse mesmo cujas origens e identidade a narrativa também viria finalmente revelar… e a projectar. Milagres da arte!
10.
NÃO É, COMO SABEM, a primeira vez (nem será a última) que o António Castro Guerra vai às raízes e as projecta literariamente, recriando aquilo que lhe vai na alma, lá mais no fundo da alma, e que tem o seu contraponto (como o silêncio na música) no território que ele palmeia frequentemente com aquele prazer de quem gosta de sentir os perfumes da terra húmida, das árvores, das plantas, das flores, as vertigens da montanha, o sussurrar das águas desse rio que não lhe sai da alma, porque nasceu com ele, a ouvir-lhe os murmúrios líquidos, ali ao lado da sua casa. Este território físico e interior parece ser um dos pilares essenciais da sua vida vivida, algo que nunca o abandonou nas mil e uma andanças por este mundo. E faz-se sentir de forma poderosa até na relação com uma mulher, quase a dissolvendo na exuberante imanência natural como abrigo de almas e lugar de destino. Mas agora parece ter chegado o momento de pôr no devido lugar, um pouco mais acima, mais alto, a desordem dessa vida que sempre nos vai atropelando e até nos impede de seguir rumos diferentes daqueles que acabamos por seguir, por vontade ou por destino. Ah, foi assim? Pois agora sou eu que decido através deste instrumento extraordinário que está à minha disposição: a narrativa literária. A arte. Recrio a minha vida, mesmo aquela ou sobretudo aquela que teve uma solução de continuidade e dou a tudo a harmonia e a beleza que o poder da palavra escrita me conceder. Chamo a mim um tempo que sempre transbordava do leito por onde corria a minha própria vida. E dou asas ao desejo. Resolvo o que não teve solução? De certo modo, sim, porque elevo essa circunstância à universalidade da arte e até a posso partilhar com quem comigo viveu esse tempo existencial. E, assim, posso revivê-lo… em cumplicidade. Verbalizando-o ou ocultando-o (o tal pudor), digo eu, não só como narrativa, mas também como gesto, o gesto da escrita e da consignação desse tempo ao futuro. E não só, poderia ainda acrescentar. Ele, o autor, anda também às voltas, para além da escrita, com a recriação plástica de fragmentos da sua vida interior e dos ambientes que lhe servem de moldura viva. Um dia há-de fazer como eu e encontrar a sinestesia como rumo estético entre a pintura e a literatura. Ou talvez já o faça, em parte, através de uma conjunção entre a fotografia e a narrativa literária, onde aquela funciona para ele como suporte inspirador da escrita. Exercício plástico muito inspirado também na sua visão do mundo e da amada natureza, lá onde, tal como os deuses, também residem as cores que nos seduzem o olhar. Não era o Leonardo da Vinci que dizia, no “Tratado da Pintura”, que “la pittura è partorita da essa natura”, filha da natureza e parente de Deus, ou, diria eu, dos deuses? Fazendo arte, ele, o autor, está como que a ajudar o tempo a esculpir melhor a sua própria vida, chamando o futuro a um presente mais completo, promissor e, sobretudo, livre. Fazer do passado uma linfa que lhe alimente a veia artística e, assim, ir construindo livremente o seu próprio futuro com as asas do desejo. Mesmo, ou sobretudo, insisto, daquele que não se cumpriu integralmente por obra do destino. Mas que, por isso mesmo, aqui se projecta em forma de arte. Jas@11-2022