Ensaio

“A DEMOCRACIA ILIBERAL”

Por João de Almeida Santos

Totem&Tabu2022

“S/Título”. JAS. 12-2022

TALVEZ O CONCEITO de “democracia iliberal” não seja, como parece, um oxímoro, porque há uma democracia que não é liberal: a democracia directa. Por exemplo, a que se exprime através dos referendos. De resto, ela até começou como democracia de assembleia, na Grécia – democracia não representativa, muito restrita nos direitos políticos (só os polítai participavam, excluindo mulheres, escravos e estrangeiros) e onde a comunidade subsumia os indivíduos singulares, ao contrário do sistema representativo liberal que aponta para a centralidade do indivíduo singular: “um homem (literalmente), um voto” (veja a diferença no famoso discurso de Benjamin Constant no Ateneu Real de Paris, em 1819). Como diz Sartori, em “Elementos de Teoria Política”: para os gregos o homem identificava-se com o cidadão, e a cidade precedia-o: “era o polítes quem devia servir a polis, não a polis o polítes”. Pelo contrário, na moderna democracia representativa é o Estado que está ao serviço dos cidadãos, não os cidadãos ao serviço do Estado (2008, p. 40).  Mas, verdadeiramente, não é esta a questão. A “democracia iliberal” mantém-se representativa, não propondo propriamente uma democracia directa, mas promove profundas distorções no sistema institucional.  Por exemplo, lá onde o poder executivo se agiganta e sai fora das margens da separação dos poderes e dos princípios que animam a visão liberal do sistema representativo. Bom, o regime liberal no início nem era democrático e, portanto, não se identificava com a democracia, uma vez que era censitário e até proibia, com pena de prisão, a publicitação dos actos do poder legislativo, restringindo a liberdade e os direitos. É ver, por exemplo, o crime de breach of privilege para quem, no século XVIII, na Inglaterra, publicasse os debates parlamentares (veja o que diz Habermas no seu livro Strukturwandel der Oeffentlichkeit, de 1962). O que tínhamos no início da nossa modernidade era, na verdade, um sistema representativo, isso, sim, mas não uma democracia representativa, porque não havia sufrágio universal, mantendo-se muito limitado o número de cidadãos com direitos políticos e muito restrita a circulação de informação. Mas o sistema representativo e o Estado de direito, contra o regime do privilégio, foi um passo de gigante que haveria de ser completado com o sufrágio universal e com as cartas universais de direitos, uma logo em 1789, em França, e a outra em 1948.

I.

MAS QUEM VIU bem o problema que se insinua no conceito de “democracia iliberal”, já na primeira metade do século XIX, e previu esta possível evolução, foi Alexis de Tocqueville na sua magnífica obra “Da Democracia na América” (1835-1840), quando falou de “tirania da maioria” (Tocqueville, 2001). E é precisamente num sentido muito próximo do que, a este respeito, escreveu Tocqueville que se estão a desenvolver algumas experiências na própria União Europeia, por exemplo, na Hungria ou na Polónia. Por enquanto, não ainda em Itália. Só que o nome, agora, já não é o de “tirania da maioria”, mas o de “democracia iliberal”, a que alguns, seguindo mais de perto o caminho traçado por Tocqueville, também já designam por “autoritarismo maioritário” ou “maioritarismo extremo” (Thierry Chopin, Nadia Urbinati). Nadia Urbinati: “Il populismo al potere rende la democrazia un maggioritarismo estremo”  (Anselmi, Blokker, Urbinati, 2018: 31). Não está em causa o sistema representativo, mas, sim, outras variáveis do sistema. E o pano de fundo é o “populismo de governo” (Pierre Rosanvallon) ou, mais em geral, o populismo ou o neopopulismo, devidamente mitigados ou acomodados à democracia representativa. Neopopulismo porque, em boa verdade, o populismo original nasce, à esquerda, na Rússia rural, precisamente como socialismo rural e tendo como seus primeiros inspiradores Herzen e Chernyshevski e como seus primeiros núcleos organizativos a primeira e a segunda “Terra e Liberdade” (constituídas, respectivamente, em 1861 e em 1876). Os seus referentes eram os camponeses pobres, os muziks, e a obschina (sobre este assunto veja o belo livro de Umberto Cerroni, Le origini del socialismo in Russia – Cerroni, 1965). Uma matriz bem diferente da que hoje inspira os novos populismos. Há experiências neopopulistas cujo “povo”, eminentemente urbano e economicamente confortável, é possuidor de uma boa literacia digital. O primeiro M5S, em Itália, de Beppe Crillo e Gianroberto Casaleggio, representava precisamente esse neopopulismo e dizia-se nem de direita nem de esquerda (o M5S actual, de Giuseppe Conte, já é outro). E há o plutopopulismo, o populismo dos ricos, de que Trump é o ícone máximo (“I am your voice”, terá dito, referindo-se aos americanos). O populismo moderno ganhou um rosto diferente daquele que era o seu nas origens. E este, o que anima a “democracia iliberal” ou o “autoritarismo maioritário”, também mudou de rosto ou mesmo de pele.

II.

O QUE DIZIA realmente Tocqueville? Vejamos algumas das formulações sobre o “despotismo da maioria”, a “tirania da maioria” ou a “omnipotência da maioria”, que constam da obra acima referida:

  1. «A omnipotência da maioria, nos Estados Unidos, ao mesmo tempo que favorece o despotismo legal do legislador, favorece também a arbitrariedade do magistrado», porque trata os cidadãos como seus súbditos (2001: 302-303; itálico meu).
  2. «Actualmente, e assim será ainda durante muitos anos, o perigo mais temível é a tirania dos legisladores» (2001: 309-310; itálico meu).
  3. «Não há monarca tão absoluto que consiga reunir nas suas mãos todas as forças da sociedade, eliminando resistências, como o pode fazer uma maioria revestida do direito de redigir as leis e de as pôr em prática». «A maioria (…) possui uma força a um tempo material e moral, que tanto age sobre as acções como sobre as vontades, e que impede a acção e, ao mesmo tempo, o desejo de a realizar» (2001: 303-304).
  4. «Na América, a maioria encerra o pensamento dentro de um círculo de ferro» e «a tirania(…) nas repúblicas democráticas (…) já não se ocupa do corpo; vai directamente à alma» (itálico meu).
  5. «Quando eclodiu a revolução americana (…) a opinião pública dirigia as vontades e não as tiranizava» (2001: 306; itálico meu).
  6. «Se algum dia se perder a liberdade na América, deveremos atribuí-lo à omnipotência da maioria, que terá conduzido as minorias ao desespero, obrigando-as a apelarem à força material. Encontraremos então a anarquia, mas ela chegará como consequência do despotismo» (2001: 309; itálico meu).

Tudo isto poderia ser resumido numa só formulação:

«quando sinto a mão do poder pesar-me na cabeça, pouco me interessa saber quem me oprime e não me sinto mais disposto a submeter-me ao jugo só pelo facto de ele me ser apresentado por um milhão de braços» (2001: 498).

Separação de poderes; forte afirmação do corpo de juristas, das leis e do poder judicial; comunidades locais fortes, com as suas associações, e uma imprensa local livre; igualdade de condições num território ilimitado, rico e pleno de oportunidades individuais; Estado federal, que conjuga e harmoniza a grande dimensão com a pequena; hábitos e costumes dos americanos, destacando-se dentre eles a religião.

São estes, para Tocqueville, os ingredientes cujo desenvolvimento pode impedir que venha a afirmar-se uma efectiva «tirania da maioria”.

Na verdade, é disto que se trata nas chamadas “democracias iliberais”: a criação de condições que possam permitir o domínio absoluto do executivo sobre todos os outros poderes, mantendo o sistema representativo (ainda que deformado).

III.

COMO PODEREMOS FORMULAR hoje a questão da «tirania da maioria»? Vejamos, com Giovanni Sartori, em Democrazia: Cosa è (2000: 93-96). Segundo ele, a «tirania da maioria» pode ser entendida em três sentidos: a) no sentido constitucional; b) no sentido eleitoral; e c) no sentido social.

No primeiro sentido, constitucional, consiste em violar os direitos das minorias, aplicando de forma absoluta o princípio maioritário. Portanto, quando não se verifica um exercício moderado ou limitado do princípio maioritário, estamos perante uma «tirania da maioria».

No segundo sentido, eleitoral, o que se verifica é uma espécie de «tirania dos números», uma vez que, não conseguindo eleger representantes, a minoria é institucionalmente eliminada. Este caso tem muito a ver com os sistemas eleitorais, designadamente, com a sua capacidade de dar maiores ou menores possibilidades às minorias de conseguirem eleger seus representantes. Sabemos que um sistema proporcional é, por isso, mais limitativo desta possibilidade de «tirania da maioria», no sentido eleitoral, do que um sistema maioritário, uma vez que está configurado para facilitar uma integração institucional proporcional das minorias e uma menor perda de votos para efeitos de contagem de mandatos. Tem defeitos, mas esta é uma sua vantagem.

No terceiro sentido, social, que é certamente aquele em que pensava Tocqueville, estamos perante o esmagamento da liberdade individual de pensamento perante a força do pensamento social maioritário, ou seja, perante uma espécie de opressão simbólica societária sobre o indivíduo. Para resolver esta distorção, o esforço deveria, por isso, ser dirigido não só à separação e autonomia recíproca dos poderes, à garantia de representação política das minorias, mas também à sua defesa, designadamente através dos instrumentos, muito americanos, associativos e dos poderes locais. Não é por acaso que Tocqueville valoriza tanto o associativismo quer político quer civil ou social. De facto, se a igualdade de condições tende a atomizar os indivíduos, uma vez que anula as «ordens» e as classes, libertando os indivíduos singulares dos vínculos orgânicos, também é verdade que, atomizando-os, os isola e lhes retira força social. Ora, só o associativismo pode recuperar a força que perderam, sobretudo se ele tiver uma sua forte expressão na imprensa, como seu cimento imaterial, como instrumento de ligação associativa metaterritorial e metapessoal. De outro modo, o indivíduo encontrar-se-á subjugado pelos ditames e tendências da maioria.

IV.

SABEMOS, aliás, que estas tendências têm vindo a ser reconhecidas no âmbito das teorias da comunicação, das chamadas teorias dos efeitos. Já em fins do século XIX Gabriel Tarde incorporava esta tendência nas suas leis da imitação. Mas ainda hoje, por exemplo, a teoria da «Espiral do silêncio» mais não é do que o reconhecimento do poder condicionante da opinião maioritária sobre o indivíduo singular e dos seus efeitos políticos e sociais. Imaginemos, agora, que esta maioria absoluta é usada para expandir a um nível quase absoluto um dos três poderes, ou seja, o do executivo, e poderemos encontrar o melhor modo de elevar não só a opressão simbólica societária, mas também a própria configuração do poder, a níveis democraticamente insustentáveis. O regime português do Estado Novo tem características muito parecidas com estas. Mas os exemplos que são regularmente referidos são o da Hungria do senhor Viktor Orbán e o da Polónia do senhor Kaczynski (não o Unabomber, claro, mas o líder do partido “Lei e Justiça”).

A preocupação de um liberal e democrata como Tocqueville pela questão da liberdade individual de pensamento perante as tendências sociocráticas da opinião maioritária é compreensível. Como é compreensível que, por estas mesmas razões, se tenham verificado tendências liberais hostis ao próprio pensamento democrático, visando limitar a tendência para o igualitarismo.

V.

É CLARO que a «tirania da maioria» encontra hoje obstáculos difíceis de transpor, sobretudo nos actuais sistemas onde as sociedades civis são muito mais robustas e onde encontramos partidos de massas que se alternam em ritmo cada vez mais rápido no poder. Mas esta dificuldade parece estar a ser superada pelos partidos populistas e pelas chamadas “democracias iliberais”, inimigos declarados do liberalismo, tendo aprendido a conviver com a democracia representativa, usando os seus mecanismos centrais a seu favor, isto é, aceitando as eleições, mas condicionando-as e anulando o equilíbrio dos poderes a favor de um executivo todo-poderoso que interfere em todas áreas institucionais do poder com vista à sua reprodução, ou seja, reduzindo o poder judicial, o parlamento e as instâncias institucionais independentes a meras próteses do poder executivo e do respectivo líder, preferencialmente carismático, fonte máxima da legitimidade do poder, enquanto oráculo do povo. Thierry Chopin define assim a chamada “democracia iliberal”:

” Este tipo de regime político caracteriza-se, pelo menos, por três atributos: a referência à soberania do povo como fundamento exclusivo da legitimidade democrática do poder; com base na legitimidade conferida pelas eleições e pelo voto maioritário dos cidadãos, o reforço do poder executivo; e a intervenção deste último sobre os contra-poderes de modo a reduzir o seu papel à custa do Estado de Direito” (Chopin: 2; itálico meu).

É este o caminho do actual autoritarismo nacional-populista, mais concretamente, do “populismo de governo”: alteração profunda dos equilíbrios do sistema representativo, através de um forte reforço do poder executivo, o “povo” como fundamento exclusivo da legitimidade, forte condicionamento, pelo executivo, de todos os outros poderes institucionais e da opinião pública. Um caminho que Tocqueville já tinha premonitoriamente antecipado com enorme clarividência. Os nacional-populistas agitam sobretudo a questão da corrupção (das elites), da segurança e da imigração e o nacionalismo como instrumentos para reforçarem os seus poderes de condicionamento da vida democrática. Mas usam também o truque político-ideológico de identificação das forças moderadas (centro-direita e centro-esquerda) com a política identitária e a ideologia do politicamente correcto (generalizando indevidamente aquelas que são incompreensíveis cedências de muitos dos que, afinal, se identificam com a matriz do liberalismo clássico, que é a do nosso próprio sistema democrático), alargando a frente de um combate que reivindicam como exclusivamente seu. E, além disso, fazem da tradição liberal o seu adversário histórico, como já antes os românticos haviam feito.

VI.

TOCQUEVILLE foi, de facto, premonitório e, quem sabe, talvez os nacional-populistas tenham lido à sua maneira a sua análise, fazendo da democracia representativa um simulacro de democracia, não recusando o sistema representativo, mas promovendo a distorção interna dos seus mecanismos centrais (sobretudo a separação e o equilíbrio dos poderes institucionais e a tutela constitucional dos direitos individuais). Garantem, assim, um simulacro de democracia representativa. Neste processo tende a emergir sempre uma figura tutelar que interpreta, representa e enaltece directamente a voz popular (“I am your voice”) contra as elites que, dizem, ao longo dos tempos se apoderaram do poder e o usaram a seu favor. Digamos que é um populismo deslizante que se desenvolve no interior do próprio sistema representativo, mas que aspira a elevar-se sobre ele, anulando a sua própria matriz liberal, os seus pesos e contrapesos, e impondo um decisionismo autoritário e pretensamente moral… em nome do povo.

REFERÊNCIAS
  1. Anselmi, M., Blokker, P., Urbinati, N. (2018). La sfida populista. Milano: Fondazione Giangiacomo Feltrinelli.

  2. Cerroni, U. (1965). Le origini del socialismo in Russia. Roma: Riuniti.

  3. Chopin, T. (2019). “Democratie illibérale” ou “Autoritarisme majoritaire”. Contribution à l’analyse des populismes en Europe. In “Europe puissance des valeurs”. Policy Paper n. 235, 19.02.2019. #Démocratie. Institut Jacques Delors.

  4. Constant, B. (1819). “Discurso sobre a liberdade dos antigos comparada à dos modernos», pronunciado no «Ateneu Real de Paris», em 1819. In: http://www.panarchy.org/constant/liberte.1819.html.

  5. Habermas, J. (1962). Strukturwandel der Oeffentlichkeit. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp.

  6. Sartori, G. (2000) Democrazia: Cosa è. Milano: BUR.

  7. Sartori, G. (2008). Elementos de Teoría Política. Madrid: Alianza Editorial.

  8. Tarde, Gabriel (1890). Les Lois de l’Imitation. In: http://classiques.uqac.ca/classiques/tarde_gabriel/lois_imitation/lois_imitation.html

  9. Tocqueville, A. (2001). Da Democracia na América. S. João de Estoril: Principia.

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