O DISCURSO DOS POPULISTAS
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 12-2022
É UMA PALAVRA muito gasta, esta – populismo. Como a palavra “neoliberal” ou a palavra “resiliência”. Já cansa ouvi-las. Não há conversa que as não use. A dúvida é se quem as usa sabe exactamente o que está a dizer. Hoje é da palavra populismo que me ocupo. Não para fins historiográficos, mas para fins de análise política e comunicacional. Um contributo para pensar melhor a política, nos dias de hoje.
I.
O POPULISMO nasceu na Rússia, à esquerda, na segunda metade do século XIX, e procurava dar voz ao campesinato e às suas formas organizacionais, os muziks e a obshina. Achavam eles que a Rússia não tinha de seguir a via da industrialização e que o progresso poderia acontecer com a civilização rural, desde que se suprimissem as formas de dominação imperial e se criasse novas formas de organização social e de legitimação política. O que se seguiu na Rússia, a seguir à segunda “Terra e Liberdade” (1876), é conhecido – a social-democracia russa, a Grande Guerra e a revolução da Outubro, com a instalação no poder do sistema soviético, afinal, mais poder do Estado do que poder dos sovietes (1). Entretanto, e fruto da Guerra e da revolução de Outubro, nasceram na Europa movimentos populares de direita e de esquerda com forte capacidade política, uns contra a revolução soviética e os seus efeitos na geografia política europeia, outros a favor. Os partidos comunistas, por exemplo, o português e o italiano, nasceram em 1921. Todos eles reivindicando-se do povo contra as elites no poder, designadamente as elites liberais. De facto, o populismo é antiliberal, seja ele de esquerda ou de direita.
II.
MAS QUE POVO É ESTE? De que povo se reivindicavam uns e outros? Uma coisa é certa e tem razão François Furet, no seu belíssimo livro O Passado de uma Ilusão, quando diz que a Grande Guerra deu origem à entrada das massas na política. Ortega e Gasset, em “A Rebelião das Massas”, na segunda metade dos anos vinte, vai no mesmo sentido (2). E, em geral, os partidos radicais de direita e de esquerda é também dessa realidade que se ocupam – organizar as massas em torno de uma grande narrativa mobilizadora (a classe, a raça, a nação). Na verdade, a maioria dos regimes que tinham, até então, a responsabilidade de governar a Europa em crise eram regimes liberais, monarquias constitucionais, regimes de elite, onde poucos eram os que votavam e muito menos os que chegavam ao poder. Ou seja, eram regimes censitários, tendo o sufrágio universal sido lentamente adoptado ao longo no século XX. Havia sistemas representativos, não havia democracias representativas.
III.
O MUNDO posterior à Grande Guerra inaugura uma nova era política, dando origem a dois populismos, um de direita e o outro de esquerda. Ambos falavam em nome do povo e contra as elites. Ambos eram anti-liberais. Mas, repito, que povo era este? À esquerda, o povo dos oprimidos, “les damnés de la terre”, para usar a feliz expressão do Frantz Fanon (título da sua famosa obra de 1961), os proletários e os camponeses. À direita, o povo-nação a quem as elites, diziam, tinham subtraído o poder soberano. Só que, na verdade, a ideia de povo nunca está muito bem definida. Para a esquerda, há sempre os dominadores, que não são considerados povo, e há também outras faixas que não o são, mas que também são consideradas como não sendo propriamente povo. Aqui o povo está identificado com o conjunto das classes subalternas, com os explorados, os oprimidos. Em geral, o povo é um conjunto indeterminado de indivíduos (plêthos, um dos significados de dêmos) num determinado território, dentro de determinadas fronteiras. Mas, em sentido político, a noção estreita-se. Na Grécia antiga, fora da ideia de povo (dêmos, -ou), no seu sentido político, enquanto conjunto de cidadãos (polítai), estavam as mulheres, os escravos e os estrangeiros, embora a palavra grega tenha, em geral, uma ampla extensão semântica: país, comunidade, território, povo, em contraposição a notáveis, multidão (Dicionário grego-italiano Gemoll). Na verdade, o povo confundia-se com os membros da cidade com direito de pronúncia sobre os assuntos comuns – a Ecclêsía -, mas não era propriamente um conceito jurídico, como, segundo algumas interpretações, viria a acontecer em Roma com o termo “populus” (populus, plebs, plethos, multitudo – palavras usadas para designar os membros da cidade), mas um conjunto de pessoas físicas. Na verdade, o que em Roma parece ter existido como populus era uma colectividade de cidadãos titulares de direitos. Populus romano, cives romanos, os que possuem cidadania romana, com os respectivos direitos. A questão que se põe reside em saber se populus é o conjunto dos cidadãos titulares individuais de direitos (Jhering) ou é já uma entidade colectiva abstracta (como o Estado, sujeito de direito em si), titular de direito (e lugar de soberania) superior aos cidadãos singulares. Como quer que seja parece haver um real avanço na integração política do populus, do povo, entendido, na maior parte das interpretações, como o conjunto dos cidadãos titulares de direitos (a pluralidade dos cives), independentemente de também poder ser considerado ou interpretado como parte do sistema de poder romano (os magistrados, o Senado e o povo), de ser lugar de soberania e de se identificar com a própria ideia de Estado. A verdade é que a noção de povo, no sentido político, continuou a ser muito indeterminada.
IV.
NA ÉPOCA LIBERAL, dessa noção política continuavam excluídas as mulheres e os que não podiam exibir determinados rendimentos – veja-se, por exemplo, a 19.ª Emenda da Constituição americana, de 1920, e a distinção entre cidadãos activos e cidadãos passivos na Constituição francesa de 1791. Na óptica marxista e dos partidos comunistas, o povo está identificado com as classes subalternas, por oposição à classe dominante, a detentora do capital e dos meios de produção. No meio estava a indefinida pequena burguesia. Nos movimentos de massas do pós-Grande Guerra a ideia de povo é mais indiferenciada, mas em geral identifica-se, por um lado, com as massas e, por outro, com a ideia de nação. Nas democracias de matriz liberal que se regem pelo sufrágio universal o povo é constituído por todos aqueles que votam, excluindo apenas os que, afinal, são tutelados por estes, isto é, os menores de idade, que não votam. A noção política de povo tem variado, pois, na história e é entendida diferentemente pelas diferentes ideologias políticas. Na verdade, o correlato político, o outro lado do povo, mais definido, é o próprio Estado. Poder-se-ia dizer que é a condição de configuração como Estado que identifica o povo como entidade política. O povo político, a cidadania. Mas a verdade é que, enquanto tal, e mesmo no sentido político, a noção de povo não pode ser considerada unívoca e, assim, ser elevada a conceito. Quando muito é uma noção ou uma ideia um pouco vaga. E, todavia, tem sido uma ideia generalizadamente utilizada no discurso político, à direita e à esquerda. É uma ideia genérica que tem servido para muitos e diferentes fins políticos. Designadamente para o populismo.
V.
O QUE É, POIS, O POPULISMO, lá onde o povo é simultaneamente fonte de legitimidade e destinatário do discurso e da respectiva política? Em qualquer caso, o populismo postula um regresso à fonte primária da legitimidade e promove a crítica das instâncias de intermediação na gestão do poder. É um retorno às origens através de uma recondução mais directa do poder ao soberano primário, esse povo, feita mais através da personalização do que de mecanismos quantitativos de medida do consenso e da própria representação política. Back to the basics. Por isso, o seu modelo ideal é mais a democracia directa do que a democracia representativa. Nele, a soberania reside no povo e não tanto, como quer a generalidade das constituições liberais, na nação. No essencial, o que esta posição critica é a separação de quem exerce o poder da fonte originária da sua própria legitimidade, ou seja, o domínio da burocracia e a prática generalizada da reprodução no poder por via endogâmica. As duas faces de uma mesma moeda. A personalização classicamente assumiu a forma do carisma num chefe oracular capaz de interpretar não só o sentimento popular, mas também os desígnios da história, quer seja por inspiração oracular quer seja por interpretação (científica) da verdade histórica. Isto aconteceu na era das grandes narrativas, que teve a sua época de ouro no período entre-guerras: fascismo, nacional-socialismo, comunismo – Duce, Caudillo, Fuehrer, Secretário-Geral. Em Portugal o líder, Oliveira Salazar, não tinha uma designação específica, era simplesmente conhecido como “O Botas”.
VI.
DURANTE MAIS DE SETE DÉCADAS, no pós-Segunda Guerra, assistimos, primeiro, a um mundo bipolar (político, ideológico, estratégico e económico) e, depois, ao aparente triunfo universal da democracia representativa (o chamado fim da história, de Fukuyama), com a queda do sistema socialista, à excepção do sistema chinês, que, mantendo o seu sistema político intacto, todavia, iniciou um percurso de superação da economia de plano a caminho de uma economia de mercado, com expansão mundial. O que, entretanto, se começou a verificar do lado de cá, com a crise da representação e dos partidos da alternância, foi a irrupção de tendências nacional-populistas (sobretudo de direita) com forte capacidade de afirmação política institucional, quer nos Estados Unidos (com a vitória e a presidência de Donald Trump) quer na Europa, com Viktor Orbán, na Hungria, Jaroslaw Kaczynski, na Polónia, Marine Le Pen, na França, os Brexiters, na Inglaterra, Giorgia Meloni, Matteo Salvini e Beppe Grillo, em Itália. Este último representante de um populismo de novo tipo, mas que se distanciava ostensivamente da clássica tópica esquerda-direita. Sim, o fracassado M5S (pelo menos na sua forma original, uma vez que está a recuperar com uma nova identidade sob a liderança de Giuseppe Conte: 16,7%) inaugurou, de forma bastante exuberante, uma nova era no populismo sob a forma de neopopulismo digital (3). Mas neopopulismo digital é também aquele que, silenciosamente, praticam, na rede, os nacional-populistas de Steve Bannon, como já se viu.
VII.
O QUE NO POPULISMO MUDOU em relação à sua forma original, foi não só a sua base de apoio (deixou de ser rural), mas também a forma política que os movimentos populistas adoptaram, aceitando a democracia representativa, mas transformando-a internamente para instalar o seu sistema de poder (4). No caso do M5S tratou-se de um neopopulismo cujo povo se identificava com os users da plataforma digital Rousseau e, mais em geral, com o povo da rede. Nos outros casos, a base foi o soberanismo, o que mais se identificava com o sentimento nacionalista e, em particular, o que, em nome da segurança física e da segurança dos postos de trabalho, se manifestava intensamente contra a ameaçadora imigração, contra o outro, contra o invasor. Este sentimento parece ter prevalecido, por exemplo, no BREXIT. Um povo que cresceu muito com a onda gigante dos fenómenos migratórios resultantes da crise do grande Médio Oriente (Iraque e Síria). Mas é evidente que, com este fenómeno, com a crise da representação e com o gigantesco crescimento do povo da rede e, em particular, o povo das redes sociais, algo mudou em profundidade e está a mudar neste panorama. É certo que a ideia de “democracia do público”, centrada no império dos media na formatação da opinião pública, continua a manter a sua validade, mas também é verdade que, como diz Castells, com a rede está a emergir uma nova democracia de cidadãos centrada naquilo que ele designa por “mass-self communication”, comunicação individual de massas (Castells, 2007), também ela sujeita ao perigo de um processo de instrumentalização personalizada, como se viu nos casos do Brexit e da candidatura de Donald Trump, onde a Cambridge Analytica orientada pelo seu vice-presidente, Steve Bannon, condicionou fortemente e com sucesso o eleitorado em ambos os países (veja a este respeito o ensaio de Cadwalladr & Graham-Harrison, 2018). Se este terreno torna possível evoluir da democracia representativa para a democracia deliberativa, ele também é terreno muito favorável à intervenção do nacional-populismo através da injunção directa sobre os eleitores singulares nesse imenso campo silencioso, ou espaço intermédio, da rede. E isto não é futurologia, porque já foi feito com sucesso, continua e continuará a ser feito.
VIII.
É ESTE O TERRENO em que os novos populistas têm estado a intervir com maior sucesso do que as forças políticas moderadas. E é este o campo do seu discurso. A democracia clássica ainda não evoluiu para a democracia deliberativa porque os que mais deviam fazer por ela estão como que paralisados numa gestão asséptica do poder. Esta, de resto, é a única que pode resolver os problemas estruturais do modelo clássico da democracia representativa, mas a direita radical compreendeu melhor a nova configuração das sociedades contemporâneas e os seus temas fracturantes, incluídos os que hoje são representados pela ideologia woke (5), estando a gerir com inteligência o seu discurso e a adaptar com grande eficácia os mecanismos centrais do sistema representativo aos seus desígnios, alterando os seus equilíbrios internos. O caso de Viktor Orbán é exemplar. O caso da Cambridge Analytica também. Mas exemplar foi também a experiência do M5S quando, em menos de dez anos (entre 2009 e 2018), consegue elevar o seu score eleitoral a quase 33 por cento do eleitorado italiano. A que acresce ainda a experiência da LEGA de Matteo Salvini, que, explorando à exaustão o tema da imigração, chegou a atingir, nas europeias de 2019, cerca de 34 por cento do eleitorado. E ainda os Fratelli d’Italia que, em quatro anos, passam de pouco mais de 4 por cento para cerca de 26 por cento, estando hoje, já no governo, a crescer (média nas seis sondagens mais recentes: 28,5 por cento), enquanto o centro-esquerda e o centro-direita definham a olhos vistos (PD: 17 por cento).
IX.
ESTA É A REALIDADE que o centro-esquerda e o centro-direita teimam em não ver, pondo em risco uma conquista da civilização ocidental que, por entre avanços e recuos, levou mais de dois séculos a amadurecer para chegar a níveis de desenvolvimento civilizacional verdadeiramente notáveis. O populismo está na ordem do dia, tem como adversário histórico o liberalismo e como adversário político conjuntural e directo a ideologia e a política woke, que, de resto, para efeitos de combate identifica instrumentalmente com aquela doutrina, apesar da diferença matricial que as separa. Os italianos têm um expressão que se aplica eficazmente a este truque da direita radical: “fare di tutta l’erba un fascio”, meter tudo no mesmo saco para tornar o combate mais eficaz e aceitável, conhecendo muito bem o laxismo das forças moderadas, que se estão a deixar vergonhosamente infiltrar ou mesmo dominar por esta pretensa “nova esquerda” progressista e revisionista de largo espectro. Cabe, pois, aos defensores da democracia representativa e da matriz da nossa própria civilização acordarem, sim, acordarem para uma realidade que é por demais evidente, procurando repor uma hegemonia que está a ser tão tristemente perdida pelas piores razões. Mas não tenho grandes ilusões acerca de um combate para o qual parece não estarem realmente preparados.
X.
1. REFERÊNCIAS
CADWALLADR, C., & GRAHAM-HARRISON, E. (2018). “The Cambridge Analytica Files”. In The Guardian. Consultado a 17 de março de 2019, em https:// http://www.theguardian.com/news/series/cambridge-analytica-files.
CASTELLS, Manuel (2007). “Communication, Power and Counter-power in the Network Society”, in International Journal of Communication, n. º1 (2007), pp. 238-266.
CERRONI, U. (1965). Le Origini del Socialismo in Russia. Roma: Riuniti.
FURET, F. (1995). Le Passé d’une Illusion: Essai sur l’idée communiste au XXème Siècle. Paris: Éditions Robert Laffont/Calmann Lévy.
ORTEGA Y GASSET (1930). La Rebelión de las Masas. Ciudad del México: La Guillotina.
SARTORI, G. (2009). La Democracia em 30 Lecciones. Madrid: Taurus.
2. NOTAS
(1). Há um livro belíssimo de Umberto Cerroni sobre As Origens do Socialismo na Rússia que desenvolve este tema (Roma, Riuniti, 1965).
(2). Veja, para ambas as referências, neste site, o meu artigo de 15.11.2022 sobre o PCP (“PCP – O Nome e a Coisa”), em particular as citações de Ortega y Gasset.
(3). Para uma melhor compreensão do MoVimento5Stelle veja o meu ensaio em ResPublica, 17/2017, pp. 51-78.
(4). Veja aqui, neste site, o meu recente artigo sobre “A Democracia Iliberal”, de 07.11.2022
(5). Veja aqui, neste site, o meu recente ensaio “WOKE”, de 14.12.2022, sobre esta ideologia.