Artigo

A AFRONTA

Por João de Almeida Santos

MRS2023_08Sepia

“S/Título”. JAS. 08-2023

TENHO VISTO por aí posições e comentários políticos considerando a declaração do líder do Grupo Parlamentar do PS acerca do veto do PR ao diploma sobre a habitação – a de que a maioria parlamentar o devolverá tal como está – como uma afronta ao Presidente e, portanto, aos portugueses. E até já vi considerar esta posição (por exemplo, Marques Mendes) como uma “declaração de guerra” ao Presidente. Nada menos: guerra.

Esta mesma ideia de afronta também já fora propagandeada quando o PM, instado pelo PR, se recusou a demitir o Ministro das Infraestruturas, João Galamba. Temos, pois, em circulação, uma nova categoria política: a da afronta. Uma categoria (moral) somente válida para o governo ou a maioria parlamentar, não para o PR. Não, o PR nunca afronta, exerce simplesmente as suas competências e a sua magistratura de influência. Muito bem. Mas, se o governo ou a maioria exercerem as suas, então temos afronta. Ou mesmo uma declaração de guerra. Não é, pois, uma categoria qualquer, esta, a da afronta. É mais, muito mais do que uma categoria política.  É a captura moral da análise política. O que diz o dicionário da Porto Editora? “Injúria lançada em rosto; ultraje; desprezo; violência”. Nada menos. O Governo ou a maioria parlamentar, ao exercerem simplesmente as suas competências, cometem violência, ultraje, desprezo em relação ao PR e aos portugueses. Pelo contrário, este, ao exercer as suas competências, não ultraja, não despreza, não violenta ninguém. Um raciocínio em linha com essa subtil  e estranha redução da representação política à figura presidencial, como se o órgão legislativo não fosse ele próprio (até pela sua diversidade e riqueza, em especial quando constituído através de sistemas eleitorais proporcionais, como é o caso) a mais genuína e ampla instância de representação política, aquela que verdadeiramente dá a qualificação de representativa à democracia.

I

É claro que o uso desta categoria moral é inadequado se aplicada, como tantos vêm fazendo, à política, ainda por cima quando referida ao regular exercício de competências por parte dos órgãos de soberania. E se a categoria for utilizada sistematicamente, como vem sendo, isso representa um claro abuso de linguagem, uma evidente distorção do significado de um acto político, mas, sobretudo, uma evidente e tendenciosa tomada de posição a favor de um órgão (o PR, o afrontado) e contra o outro (o Governo e a maioria parlamentar, os afrontadores). Tratando-se de maioria absoluta, a afronta ganha densidade: afronta absoluta.

No caso da demissão do ministro: a competência de propor a demissão de um ministro é do PM. Assim sendo, não há afronta. Haveria, sim, desrespeito pelo próprio cargo se o titular abdicasse de exercer as funções que lhe estão cometidas constitucionalmente. No caso da lei da habitação: o Presidente tem poder de veto, sim, mas também o parlamento tem a prerrogativa constitucional de reenviar o diploma intacto, implicando, nos termos constitucionais, que o PR o promulgue (e não está aqui em causa o mérito ou demérito do diploma, que analisarei noutra ocasião). Este dispositivo constitucional dá, assim, primazia, e bem, ao poder decisional do Parlamento. O que, neste caso, há, pois, que evidenciar é o seguinte: não compete ao PR entrar no mérito político de uma decisão do Parlamento se esta não apresentar problemas evidentes de constitucionalidade ou puser em causa o equilíbrio do sistema político. A avaliação do mérito político das decisões do governo ou da maioria parlamentar cabe à oposição e à cidadania, não ao Presidente. O Presidente em nenhum caso, excepto quando esteja em causa o regular funcionamento das instituições, a constitucionalidade ou o sistema político (por exemplo, a separação de poderes), deve assumir-se seja como opositor seja como promotor político das acções e decisões do Governo ou do Parlamento. O instrumento da promulgação não pode ser transformado em arma política de arremesso, de combate aos actos do governo e da maioria parlamentar. Se o fizer distorce o sistema político, onde o papel do PR é sobretudo o de moderador, não parte activa da dialéctica política. Sendo parte, deixa de poder ser moderador. Mas, no caso em apreço, a palavra afronta, a ser utilizada (e não deve), talvez pudesse ser aplicada, não ao Governo, mas ao Presidente, por exceder claramente as suas competências no modo como as vem exercendo. E, todavia, na minha opinião, nem aqui a palavra afronta deve servir para identificar um acto político, seja do PR, do PM ou do Parlamento. Por uma simples razão: as relações entre o PR, o Governo e o Parlamento não são de natureza moral e, por isso, o acto deveria ser qualificado de outro modo: governo rejeita pressão do PR para demitir o ministro; Assembleia discorda do veto do Presidente e reapresenta integralmente o mesmo diploma para promulgação. Normal dialéctica interinstitucional. Não há, pois, fundamento para a condenação moral de qualquer uma das partes no legítimo exercício das suas funções. Isso só acontece nas ditaduras, onde a moral é invocada para a proscrição política e cívica.

II.

Na verdade, a utilização dessa categoria converte a dialéctica política e institucional numa relação moral. A minha convicção é a de que o Presidente, esse sim, tem vindo a extravasar claramente aquelas que são as suas funções institucionais com as suas permanentes injunções (positivas e negativas) em matéria política (sobre o mérito das decisões políticas de outros órgãos de soberania), seja para defender o governo seja para o criticar publicamente, chegando mesmo a substituir-se à oposição ou ao próprio governo, tornando-se um autêntico porta-voz. Por isso, mais parece que estamos perante um novo tipo de populismo, o logopopulismo, sob a forma dominante de telepopulismo – exercício do poder, em nome do povo, através do uso permanente e público da palavra, directo ou por via electrónica (televisiva). A regularidade e a frequência deste exercício presidencial dá ideia de que, embora numa acepção diferente dos restantes populismos, é intencional: ser intérprete explícito do “Volksgeist”, consciência política permanente do sentimento popular, sua voz, vox populi. Parece tratar-se, pois, de uma orientação conscientemente assumida ou, pelo menos, como irresistível pulsão e idiossincrasia pessoal, mas politicamente enquadrada, até pelas características do cargo. E, até certo ponto, tratar-se-ia de uma posição interessante e bastante original, não fosse ela interferir com a dialéctica política entre os principais agentes do sistema – os partidos e os grupos parlamentares. E é aqui que bate o ponto. O logopopulismo do Presidente não é realmente compatível com a democracia parlamentar que temos. Porque a distorce, alterando-lhe a matriz.

III.

Populismos há muitos. Até há o plutopopulismo de Donald Trump. Mas este é novo: um exercício do poder através da palavra presidencial, em nome do povo, sobretudo por via electrónica (televisão, não Twitter), que, contrariamente à generalidade dos populismos, não procura substituir-se, no plano executivo, aos outros poderes, mas tão-só condicioná-los suavemente, através do exercício público permanente do poder da palavra e da própria imagem presidencial (note-se que MRS se refere frequentemente a si próprio, enquanto Presidente, na terceira pessoa). Um populismo soft, bem à medida dos brandos costumes dos portugueses. Tudo, mas mesmo tudo, é por ele descodificado, permanentemente, em público, em linguagem simples e com suporte de imagem, devolvendo, deste modo, a política ao povo, através da sua figura e do seu carisma, e partilhando-a com as instâncias de intermediação (executivo e legislativo). O que encontra uma justificação reforçada quando se trate de maiorias absolutas, como é o caso. Uma virtuosa partilha do poder entre o povo (através do Presidente) e os órgãos de intermediação política. Este exercício tem directos efeitos sobre a opinião pública, por várias razões: 1) o prestígio do cargo presidencial; 2) a presença pública permanente através do púlpito televisivo, em prime time; 3) a plena sintonia com a idiossincrasia mediática (que vê o PR como um dos seus), que se assume tendencialmente (e erradamente) como saudável e legítimo contra-poder; 4) o conforto da oposição política que vê a iniciativa presidencial como reforço argumentativo e de prestígio dela própria, no processo de limitação do poder da maioria absoluta (como se a regra comum não seja a de os governos serem suportados por maiorias absolutas, de um partido ou em coligação).  Algo a merecer estudo, não se desse o caso de esta reiterada prática acabar por fragilizar a autoridade dos outros órgãos de soberania (os órgãos de intermediação), num sistema tão delicado como é o da democracia representativa de dominante parlamentar. E é aqui que, no meu entendimento, reside o principal problema. O risco é o de cairmos numa espécie presidencialismo mitigado (interpretado através do logopopulismo), onde nem o presidente (o povo sublimado) tem os instrumentos executivos necessários à acção política nem o executivo e o legislativo conseguem preservar a necessária legitimidade, autonomia, autoridade e estabilidade, sujeitos que estão a uma sistemática e disruptiva intrusão política por parte de um órgão de soberania com o valor simbólico da Presidência (precisamente, o povo sublimado). Quem acaba por pagar um alto preço será a própria democracia representativa e a própria autoridade do Estado. O que é particularmente grave num período em que se vive uma grave crise de representação.

IV.

É para mim evidente que este logopopulismo alimenta um clima de desafeição da opinião pública em relação à dialéctica política do sistema, desviando para a Presidência a sua atenção/afeição e a sua cumplicidade (crítica), em desfavor das instâncias de intermediação, que se tornam ainda mais fungíveis. Prova disso é precisamente esta tendência de desvio da lógica política para a esfera moral:  têm sido insistentes e reiteradas as leituras políticas centradas na afronta (ou mesmo como “declaração de guerra”) como categoria central das relações institucionais sobretudo entre o executivo e a Presidência. Afrontar o Presidente é afrontar o povo, é este o sentido que daqui resulta. Uma condenação moral, sem apelo nem agravo. Um desvio que agrava ainda mais a situação, provocando, isso sim, um crescente desgaste de um sistema que já não goza de boa saúde. Este populismo soft à portuguesa, parecendo dar voz à soberania confiscada do povo, o que faz, como, aliás, todos os populismos, é minar os alicerces da democracia parlamentar, designadamente a autoridade dos principais órgãos de soberania, ainda que de forma aparentemente suave ou doce e até original. O que é muito estranho por ser interpretado por alguém que se doutorou com uma tese sobre direito constitucional. E não creio que o problema possa ser resolvido somente com a alteração constitucional do figurino presidencial, designadamente com a eleição do Presidente por um colégio eleitoral. Do que se trata é mesmo de uma concepção de política que, de certo modo, põe em causa a matriz do sistema político. Mas, ao que parece, esta é uma tendência que tem vindo a tomar conta da agenda política, dos identitários aos populistas.

MRS2023_08SepiaRec

Poesia-Pintura

PERGUNTA O POETA À MUSA…

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Perfil de uma Musa”.
Original de minha autoria.
Agosto de 2023.
JAS_Perfil2023COR

“Perfil de uma Musa”. JAS. 08-2023

POEMA – “PERGUNTA O POETA À MUSA…”

PERGUNTOU O POETA
À sua musa
Amada:
- O que sabes tu
Fazer?
Ao que ela
Respondeu:
- Nada,
Foi meu destino,
Ao nascer.

ENTÃO, COMO É
O teu viver?
E ela, serena,
Lhe respondeu:
- Eu deixo a vida
Correr...

- E NÃO CORRES,
Com a vida?
Perguntou, de novo,
O poeta.
- Não, porque é sempre
Em subida...

O POETA
Lembrou-se,
Então,
Da cantora
Da suave
Melodia,
Da pintora
De cores quentes
E da bela
Bailarina,
Lembrou-se
Da emoção
Que sentia
Quando em surdina
Ouvia
As quentes
Tonalidades
Que o faziam
Vibrar
Ou do palco
Onde via,
Como riscos
Numa tela,
Aqueles corpos
Voar...

INCONFORMADO,
Logo o poeta
Insistiu:
- Porque vibro eu
Com elas,
Mas só a ti
Posso amar?
Ao que ela
Respondeu:
- Porque o amor
Não se aprende
Nem se pode
Ensinar,
É simplesmente
Mistério
Ou incerto navegar
Entre vagas
Altaneiras
Em pleno alto mar
Onde há sempre
Tempestades
E risco de
Naufragar.

JAS_Perfil2023CORRec

Artigo

QUINZE FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO

Sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

Jas_AutoR2022

“O Poeta”. JAS. 08-2023

NOTA PRÉVIA

Retomo e reescrevo, numa série de textos que irei publicar, e de que este é o primeiro, as respostas mais significativas que dei aos meus leitores digitais de poesia. Estes textos valem por si, não necessitando de apoio nem de referentes, pois foram reescritos precisamente com este fim de compreensão autónoma.  Publicarei, sim, aqueles comentários que considero mais relevantes e necessários para que se compreenda melhor as minhas respostas em próxima publicação (que acontecerá ainda este ano): o meu “Poesia II” (pelas Edições ACA).

I.

UM POEMA É UM OÁSIS ou um sonho no deserto. O sonho, que é sempre incerto e codificado, convertido em obra de arte, também ela codificada na sua linguagem e segundo as suas regras. Um sonho que resgata outro sonho. Duplo resgate: da vida vivida e do sonho sonhado. O poema dá-lhes voz. “La vida es sueño”, dizia o Calderón de la Barca. E o outro poeta dizia que o sonho comanda a vida. A vida é sonho e o sonho comanda a vida. Um círculo virtuoso num mundo de sinais. E é bom sonhar de olhos abertos, quando há alguma areia no caminho. E há sempre areia. Impossível não haver. Sonhar é criar oásis no caminho algo desértico e arenoso da vida. É ser livre. É beber numa fonte de água fresca depois de uma dura caminhada. É pelo sonho que o mundo pula e avança (tem razão o poeta), embora seja verdade que, como diz o Bernardo Soares, no “Livro do Desassossego”, “o que há de mais reles nos sonhos é que todos os têm”.  Mas estes, os que fazem avançar o mundo, não se têm a dormir – são sonhos a olhos abertos e que vêem para além do circunstante, vão ao fundo da existência, antecipam e constroem futuro. Não, não são sonhos banais ao alcance de um qualquer adormecido da vida.

II.

Sonho redentor do poeta: aquele que comanda a vida e com o qual se confunde. Sim, se o sonho é o oásis onde se redime e onde encontra a feiticeira, a sua feiticeira, as palavras são o veículo que o conduz na travessia do deserto arenoso até ao oásis poético. Na travessia há sempre essa melancolia que não o larga, mesmo que o veículo poético o leve a essas regiões sobrenaturais onde se conforta e se aninha. A melancolia anda sempre colada às palavras, não desaparece quando elas são ditas. A poesia é como o divã do psicanalista e, como nele, ela precisa de interpretação, de descodificação. Ele, o paciente poético, acredita no sonho, sem ser sonâmbulo (embora às vezes pareça), e, graças ao poder palavra, até o identifica com a vida ao sonhar de olhos abertos, mesmo quando os fecha para que a alma veja melhor. É com a alma que o poeta vê.  Então, chove-lhe na alta fantasia e molha-se, mas, em tempo de seca existencial e de areia, a chuva faz germinar a sensibilidade e nascer o canto. “La vida es sueño”.

III.

A poesia é um “pulsar de alma”. Pulsação anímica, o batimento poético, quando as palavras correm nas veias. E quando o sonho teima em não acontecer, o poeta inventa-o. Sonha com palavras, cantando, levado pela inspiração. Levado pela musa. Se te sonhar, canto-te. E se o sonho teimar em não despontar, nasce o poema onírico. Sonho induzido. O que não pode acontecer ao poeta é ficar num doloroso vazio. Onde o silêncio é só silêncio. Mudo. Não, ele existe para converter o vazio em pleno, a ausência em presença, a perda em descoberta, o silêncio em melodia, o peso em leveza. É esta a beleza da poesia.

IV.

Todos os sonhos têm um fim… até ao próximo. Até os sonhos inventados como poemas. Privilégio dos poetas que fazem dos poemas sonhos e dos sonhos poemas. E chove-lhes na fantasia, como dizia o Dante Alighieri. Chove-lhes na alma, germinam poemas e renova-se a vida. A primavera poética, depois do inverno da alma. Os poetas olham de frente a dor, a perda, a melancolia e metabolizam, digerem os sentimentos, transformando-os em linfa. Em arte. É assim que nasce a poesia. Um estremecimento, a dor como propulsão e, depois, a levitação num território habitado por musas e fantasmas. Os poetas levitam nele, já sem obstáculos, embora sujeitos a poços de ar e a repentinas perdas de altitude. Lá no alto procedem à transfiguração dos sentimentos em palavras com sonoridade e toada melódicas. As palavras têm asas. Mas só quando o processo criativo atinge a velocidade de cruzeiro a levitação se pode aproximar do sublime, esse destino inatingível. É então que o poeta se sente como se atingisse o Nirvana. Mas sem deixar de sentir a dor, só que a sente e a vive transfigurada e poeticamente metabolizada. Por exemplo, como feliz melancolia. Em toda esta viagem há sempre um risco: os versos serem bebidos pelos fantasmas durante o percurso (Kafka). É que os fantasmas alimentam-se deles para sobreviverem. Riscos, como tudo na vida. Mas desconfio que os poetas enviam mensagens ou mesmo beijos com o vento para que os fantasmas os bebam… Não sei. Mas que exista uma enorme cumplicidade entre os fantasmas e os poetas disso não tenho dúvidas. Os fantasmas animam a relação difícil e delicada entre o poeta e a musa. A musa visita-o e os fantasmas aparecem… Eliot dixit. E eu confirmo.

V.

No “fio da navalha” é onde está permanentemente o poeta. E a navalha faz sangrar. Está-lhe na natureza. Melhor: está-lhe no sangue. Se não fizer sangrar, nega-se como navalha.  Mas aqui é um sangrar fininho, lento, que só a poesia pode estancar… por momentos. É este estado que mantém o poeta ligado à vida (através da dor e do sangue). Como se fosse o prolongamento (na memória viva) de um “estado de facto” realmente vivido. O poeta sangra-se e obriga o organismo a reagir. Os poetas não têm pudor do que viveram, exploram-no, com fins poéticos. Exploram, sim, para sobreviverem. Isto dizia o Nietzsche. E bem. É legítimo? Sim, é. É imoral? Não propriamente, porque é desejo de redenção ou mesmo de sobrevivência e, assim, acabam por se expor, arriscam e conservam a dor sob forma de arte. E reavivam-na. E dói. Dói mesmo. Se não doer não sai poema que valha. Nem as palavras se ajeitam. As palavras precisam de dor para se sentirem vivas. E sangram sempre um pouco, mas assim o corpo e a alma regeneram-se. É coisa homeostática.

VI.

No altar poético às vezes está uma magnólia branca para ser celebrada, apesar de no palco do Jardim Encantado haver outra, a magnólia cor-de-rosa/lilás. A branca sobrevive como pintura e poesia, depois de as pétalas brancas se terem despedido… com Março. Canto a uma magnólia, poderia ser o título de um poema que a cante. O “Reencontro” é sempre em Março, mês fatal, tal o fascínio desta magnólia, com aqueles farrapos brancos sobre a nudez dos seus ramos. Só depois chegam as folhas. Vão-se os farrapos brancos e chega a folhagem verde. Mistérios de Março. A neve que dá lugar ao verde da primavera? Acho mesmo que sim – por que razão haveriam estes farrapos brancos (como os da neve) de aparecer ali, em meados de Março, para logo desaparecerem e darem lugar ao verde da sua folhagem? Viagem do tempo que se anuncia numa magnólia. Toda uma filosofia, a narrativa desta magnólia. Tinha mesmo de a cantar com versos e com pintura. Há uma musa que fala através dela? Não ouso perguntar ao poeta. Nem ele responderia. Melhor, diria: está lá tudo, no poema, e nem eu sei falar de outro modo. Sou mudo em prosa e isso também me provoca uma prosaica surdez. Perguntas, mas eu não ouço. É a alma que ouve, mas ela é surda para certas perguntas.

VII.

O poeta voa sempre lá para o alto da montanha – a levitação é o seu destino -, levado por uma magnólia voadora. Descola sempre da sua pista preferida, que é o Jardim Encantado. E aí regressa sempre. Lá no alto, respira fundo e vê o mundo com maior nitidez, apesar de nunca conseguir vislumbrar a musa, que se mantém oculta e silenciosa. O ar é mais rarefeito e a distância é grande. Por isso, a sua fala é sempre interior. Só comunica com a alma. “Telegrafia sem fios”, lá em cima, dir-se-ia antigamente. Por artes mágicas (vai lá ao fundo da memória) ele recria a musa, interpela-a e torna-a mais bela do que ela é ou era. “Muse, maintenant tu es plus belle que toi-même”. É assim que a vê, com a alma e com grande nitidez. O reino do intangível. A aura. Recriei de ti o que mais ninguém conseguirá ver, porque só os olhos da alma o podem enxergar. Desnudei-te com um olhar de alma para te eternizar. É, pois, uma apropriação não abusiva, legítima, livre, bela. Mas é uma apropriação. A única forma de posse possível, e até legítima, como dizem o Pessoa e a Yourcenar. A que atinge a alma, a recria e a devolve mais bela e mais rica. E universal. Para fruição dos amantes de poesia. De todos. O poeta entrega a musa à eternidade. E, assim, não a perde.

VIII.

A poesia é metabolização e viagem para a Primavera e seus aromas, suas cores, seu céu azul. Isto só acontece porque houve inverno, frio, chuva, nevoeiro e neve. É um veículo que nos transporta mais alto, para além das nuvens, mas sem sairmos donde estamos, sem fuga ou salvação. É mover-se sem sair do lugar onde nos encontramos. É uma espécie de libertação sem deixar de estar prisioneiro. É pintar o real com cores mais intensas do que as que ele tem. É libertá-lo da sua inevitável transitoriedade. Aquele pôr-do-sol termina no fim do dia, mas as palavras que o descreveram continuam e mantêm-no presente. Até é possível oferecer um pôr-do-sol. O poeta é useiro e vezeiro nisso. E o pintor também.

IX.

Os poetas habitam a Casa da Inquietude. E os italianos traduzem desassossego por “inquietudine”. E bem. Também lá vive o gémeo pintor. De forma diferente, mas vive. E ambos pintam a mesma inquietação: um, com palavras, o outro, com riscos e cores. Normalmente quem dá o primeiro passo é o poeta, o que tem a sensibilidade sempre à flor da pele porque a vida o castigou. Experimentou esse estremecimento criativo. Abalo telúrico. Nasceu assim como poeta. Sob o signo do estremecimento e da dor. O que, em parte, não foi o caso do pintor. Se com as palavras o poeta levita sobre o vale da vida, o pintor, com riscos e cores, constrói-lhe pontes de arcos-íris, criando um ambiente de luz e cor que tempera as palavras com que o poeta levita, se “confessa”, se liberta, se redime. É um autêntico bailado. “Pas de deux”. No fim, creio que a sinestesia dá origem a uma feliz melancolia ou a uma alegre nostalgia. O poeta fica pronto para recomeçar.  Mas é como Sísifo, a tarefa nunca acaba, porque a moinha permanece. Uma espécie de eterno retorno, já que vive irremediavelmente na Casa da Inquietude e de lá não pode sair, não pode mandar o passarinho embora da janela porque seja feliz. Porque não é. Se mandasse, seria eutanásia poética. Sem dor não há poesia. E a dor não passa e a poesia já é um modo de vida. Os poetas não se reformam. E a felicidade não consta dos anais da poesia. No Jardim Encantado haverá sempre passarinhos. Eles ajudam a suportar melhor a dor. São amigos dos poetas.

X.

“Corpo transformado”- pela luz e pela fantasia. É essa a beleza da poesia. Esculpir corpos e almas com palavras. Mas a beleza é ainda maior quando se projecta numa pintura, criando-se um duplo reflexo cintilante. Talvez o poeta, ao falar, num poema, de “catedral de palavras” (o poema que motivou esta reflexão chamava-se “Teu Corpo numa Catedral de Palavras”; a pintura chamava-se “Luz”), estivesse a pensar na Mesquita de Córdova, nesse magnífico colunado, nesses espaços vazios iluminados pela penumbra, quando ouviu o silêncio da musa, induzido por esse corpo atravessado por raios de luz (na pintura: um corpo nu, de mulher), e a cantou. O pintor lembrara-se de uma obra do Man Ray, de 1931, inspirando-se nela. O silêncio que se desprende dele, desse corpo, pode ser pleno e vazio, ao mesmo tempo. Silêncio-ausência e silêncio-linguagem. Como uma Catedral. Vazia fisicamente e plena espiritualmente. Uma dialéctica superior. Essa luz que incide sobre o corpo nu também pode ser feita de palavras que dão voz ao seu silêncio. É essa voz do silêncio que o poeta ouve e canta. Corpo em catedral de palavras. Poeta-Arquitecto que constrói uma catedral para esse corpo silencioso. Sim, é um hino à pulsão de vida, ao Eros. O pano de fundo é o espaço interior de uma catedral e o eco do silêncio que atinge a alma do poeta. O poema é uma resposta a este eco. O vazio que gera o pleno. É esse o destino da poesia, gerar o pleno através do vazio.

XI.

No vazio do silêncio se constroem os sonhos de um poeta. O vazio que, assim, se torna pleno. A ideia de catedral está para simbolizar isto mesmo. A Mesquita de Córdova, que nos deslumbra, física e mentalmente, é uma inspiração. Também nela, no seu interior, sentimos esta presença do vazio e do pleno, em simultâneo (Yourcernar). Uma espiritualidade intensa que se desprende do sofisticado colunado em penumbra. Este corpo é atravessado por raios de luz que também podem ser palavras, versos de um poema que lhe dão vida e o espiritualizam. Sim, é verdade. A pintura é o modo de dar o máximo de fisicidade e até de vericidade ou referencialidade ao poema. Creio ter conseguido o que sempre vou perseguindo: a sinestesia. Silêncio, palavras, corpo nu, catedral – o pleno e o vazio.

XII.

Esse raio de luz que dá origem a tantos outros gera uma penumbra difusa no interior da qual é possível dar vida e transfigurar essas sombras que nos visitam durante uma vida. A poesia nasce dessas sombras que assumem a forma de melancolia, uma espécie de tristeza sem concreto objecto e mais leve. Melhor: onde o referente já não tem a intensidade que antes possuía. Já só é penumbra, “sfumato”. Por força do tempo e da persistente catarse poética. Cristalização. Espiritualização quase indiferente à rugosidade do corpo real que fez estremecer o poeta. Isso acontece nas catedrais (a luz é filtrada pelos vitrais). Penumbra.

XIII.

Por ali andam fantasmas à solta, não tivesse o poeta sido visitado pela musa. Fantasmas nas catedrais de palavras, onde o murmúrio é a linguagem. Um poema é sempre um murmúrio. Há fantasmas na catedral, pois há. Os poetas vão para lá suspirar de tão melancólica vida viverem. Protegem-se assim do ruído do mundo e inventam um tempo que é só seu. E criam cânticos com ecos de catedral. A poesia propaga-se como eco. Os poetas vivem em catedrais porque nelas tudo se conjuga para a perfeita levitação, o som, a luz filtrada, a penumbra, o vazio, o silêncio, a grandiosidade das colunas e das abóbadas… o pleno. Poética religiosidade onde a invocação é à musa. Musa e fantasmas são por isso os habitantes da poética catedral. E ali está o poeta a cantar o seu trágico destino como oficiante do ritual em que se transformou a sua vida. É lá que ele constrói as suas pontes entre o desejo e o impossível, sobre um imenso espaço vazio. Felizmente que há arcos-íris sobre o vale da vida por onde o poeta pode caminhar…

XIV.

Maravilhas da rede, diz o poeta a um Amigo que o interpelou a propósito de um poema: tu, aí, no meio do vasto oceano a receberes esta poética mensagem, este sonho poeticamente induzido, e a devolveres o teu agrado pelo sonho e pela pintura. As tuas palavras trazem, como gotículas invisíveis, a frescura oceânica que refresca o poema e acalma os calores que a musa sempre provoca no poeta . “Flâneur” oceânico, condição mais bela do que a humana errância nesse mar ondulante da multidão que vagueia sob o olhar distraído do “flâneur” citadino (diria o Baudelaire). Sinto aqui essa frescura do areal desse mar onde sempre repouso o meu inquieto olhar. Mas não ouso atravessá-lo, tal como a poesia (não) atravessa a vida.

XV.

“A poesia arrasa as fronteiras do real” – gosto desta formulação proposta por um Amigo. Mas não creio que seja convertível, porque ela precisa da ausência que provoca dor, vazio. E é resposta a este vazio. E tem poder sedutor? Tem. Mas só perante almas sensíveis e num plano superior ao da fria rotina do dia-a-dia. Ela exige uma saída da rotina que invade e ocupa a alma. “Ausgang”, diriam o Kant ou o Foucault (“O que são as Luzes?”). Porque de certo modo a rotina é um estado de menoridade e de preconceito. Sublima, sim. E é por isso que ela pode arrasar as fronteiras do real. Mas não sai de si. Não é convertível. Arrasa as fronteiras porque cria uma ponte sobre o vazio. Mas não sai de si, porque não pode, sob pena de se anular por efeito de desilusão e da contingência do real. Sim, o poema é o voo do desejo impossível no horizonte infinito. Mas se me perguntarem se esse desejo existe, respondo que sim, que existe ou existiu. E continua a existir, mas transfigurado, poeticamente transfigurado. Não me canso de repetir a Yourcenar/Michelangelo: “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”. O que ficou foi o mais belo dele,  de Gherardo, ainda por cima tocado pelas divinas mãos de Michelangelo. Tocado pelo sublime. Também a musa, tocada pelas mãos do poeta, agora é mais bela do que ela própria. Só que não sabe.

Jas_AutoR2022Rec

Poesia-Pintura

É ESTRANHO, NÃO É?

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Um Arbusto no Jardim”.
Original de minha autoria.
Agosto de 2023
JAS_UmArbusto no Jardim

“Um Arbusto no Jardim”. JAS. 08-2023

POEMA – “É ESTRANHO, NÃO É?”

É FREQUENTE
Sonhar-te
Em ambiente idílico,
Natural,
Mas se nada tens
De romântico
E te cobres
De mistério,
Porque te sonho,
Assim,
Deste modo
Tão banal?

MAS É AQUI
Que te vejo,
Onde o céu
Parece um lago
E as grades
Do terraço são,
À vista
Do casario
Que me veste
O olhar,
A minha libertação,
As janelas
Sobranceiras
Onde gosto
De cantar.

É AQUI QUE
Eu te tenho,
É aqui que eu
Te sonho,
Que te canto
E me demoro,
Nas palavras,
A pintar,
É aqui que
Sobrevivo,
Onde mais eu
Me liberto
Do castigo,
Navegando
Em alto mar.

PINTO E CANTO
O lugar
Onde te vejo,
O lugar
Onde te quero,
O lugar onde
Te sinto,
Mesmo quando
Desespero.

ESTRANHO, NÃO É?
É um sítio
Onde só vives
Sob forma
De arbusto,
Onde te respiro
O perfume
Quando adormeço
Ao relento,
Te sonho
Com as estrelas
E viajo
Com o vento...

SINTO-TE PERTO
Quando te canto
E me liberto,
Me aninho
Na ideia que
De ti
Eu consigo figurar
E onde mais
Me abandono
Pra, depois,
Te procurar...

PERCO-ME, SIM,
Nestas cores,
Nestas palavras,
Nesta minha
Fantasia,
Enquanto tu
Te perdes
Num silêncio
Programado,
Tal como eu,
Afinal,
Nesta minha
Teimosia,
Meu destino
E meu fado,
Tão sofrida
Nostalgia.

JAS_UmArbusto no JardimRec

Artigo

CONSIDERAÇÕES SOBRE A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 08-2023

SIM, TODOS FALAM DELA, DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (IA). A propósito e a despropósito. Mas o facto é que já todos a usam, embora muitos, a maior parte, não saibam. As tecnologias já a incorporam. Sobre ela há, como sempre, optimistas e pessimistas. Estes, são os que alertam para os perigos da inteligência artificial. Sobretudo, agora, que o perverso algoritmo nos estuda, nos desenha o perfil e nos comanda a partir da e na rede. Agora, que nos vigia e nos vende ao marketing 4.0 e às grandes companhias para nos transformarem em compradores involuntários, porque sabem quem somos, o que fazemos e do que gostamos. Porque conhecem os nossos perfis individuais, fornecidos pelas grandes plataformas digitais e criados a partir da nossa vida na rede. Um serviço que vai dos produtos industriais à política. Alguns até já falam, a propósito da troca de direitos por serviços e vantagens tecnológicas, de “mercantilização da cidadania”. E outros, também a propósito, falam de “engenheiros do caos” e de “política quântica”. Uma realidade que está ao alcance de todos, os que, de um modo ou de outro, armados de smartphone, já a frequentam, misturando o velho mundo com o novo mundo digital ao alcance de um clique. Há deslumbramento, mas também já há queixas. Por exemplo, a de perda de privacidade.

1.

É verdade. Mas o que é curioso é que são os que estão permanentemente a exibir-se nas redes sociais, publicando o que comem, o que bebem, o que vestem, onde vão, onde estão, com quem andam, o que fazem e o que não fazem, que se queixam, clamando pela protecção da privacidade violada e exigindo medidas duras contra o “capitalismo da vigilância”. Depois, há os que falam, entusiastas, da chamada arte robótica produzida pela IA, esquecendo o papel do sentimento na arte (veja-se o último livro de António Damásio, publicado recentemente em Portugal), designadamente do sentimento de perda, de melancolia, de paixão, de dor. Alguns, instalando-se nuns riscos feitos por uns bonecos movidos a pilhas, e a que chamam robots, não dão atenção à porcaria estética que daí  pode resultar, mas tão-só à importantíssima e robótica assinatura, a única coisa que interessa: coisa feita por “robot” vale por si, não importa a qualidade do produto (ou até a qualidade dos bonecos desenhadores). A coisa nem é tão estranha como parece, depois de um tal Maurizio Cattelan ter colocado, com adesivo, uma banana numa parede, chamando-lhe obra de arte e recebendo por isso 107 mil euros. E, tão importante como isso, seguido logo pela crítica, inclusivamente portuguesa, a confirmar  que o importante, o que conta, é a assinatura. Se para uns “l’important c’est la rose”, para outros, sim, o importante é a assinatura. Não importa de quê ou em quê. Mas, na verdade, o que resulta desta posição é uma transferência do valor da obra de arte para o autor, transformando a autoria em autoridade. Mas autoridade baseada em quê? Numa banana colada numa parede ou numa sanita feita em ouro de 18 quilates? Se o que vale é a assinatura, trate-se de uma banana, de uma sanita de ouro ou de uns riscos feitos ao calha por uns bonecos que se movem no interior de uma caixa, então, no limite, até se poderia prescindir da própria obra de arte. Bastaria, para tal, simplesmente uma assinatura numa folha em branco. Como o filme do outro, “Branca de Neve”, só que em vez de ser o negro do ecrã seria o branco. “Tive uma branca”, dirá alguém depois de visitar uma exposição de assinaturas. Nada. Uma exposição de nada. Fossem, ao menos, as assinaturas bonitas. Mas nem a forma da assinatura conta. Esta questão também se põe para a chamada arte robótica, onde o que nela vale é a autoria, é o processo de execução e não o produto final. A coisa vale logo pela adopção do próprio nome. Arte robótica, mesmo que não se trate sequer de robots, mas simplesmente de uns coisos alimentados a pilhas. Como no outro caso da avaliação da obra, a banana, somente pela assinatura. Ou até pelo material de que a obra é feita: a sanita de ouro de 18 quilates  (“America”) da autoria de Maurizio Cattelan, entretanto roubada do Palácio Bleinheim, não certamente pela beleza, mas pelo valor do material, cerca de 5,5 milões de euros. A coisa não é muito nova desde que o Duchamp, em 1917, apresentou como obra de arte um mictório, um urinol, um “vespasiano”, como se diz em Roma. Coisas de escatologia. Como o livro da outra, que está cheio de narrativas fecais.

O nome do artista, seja ele humano ou robot, é que decide do valor e até do significado da obra. A aura transmigrou da obra para a singularidade irrepetível do autor. E a autoria transformou-se em autoridade. A autoridade do nome, conhecido e reconhecido, é o selo de reconhecimento do que quer que seja. Ou até do que quer que não seja. Levando isto à suas consequências, seríamos levados a concluir por mais uma transmigração: da arte para a publicidade. Não interessa o produto, mas a marca, a autoridade reconhecida da marca. Sim, vivemos no mundo do branding e isso é que conta. O mesmo vale para os autores, que são, afinal, marcas. A obra de arte reconhecida como pertencendo à comunidade da marca. United Colors of Benetton (veja o meu Homo Zappiens – Santos, 2019: 100-114). Se for um desconhecido a produzir essa obra, apontam-lhe o dedo e dizem: este gajo é tonto. A marca é sinal de garantia, de qualidade e de sentido. E a publicidade faz a marca.

2.

Mas regressemos à IA.

GPT-4 is more creative and collaborative than ever before. It can generate, edit, and iterate with users on creative and technical writing tasks, such as composing songs, writing screenplays, or learning a user’s writing style”.

A IA faz música, escreve guiões, aprende estilos de escrita dos utilizadores, edita e desenvolve tarefas de escrita técnica e criativa, interagindo com os usuários. Estamos, pois, no plano sofisticado da inteligência e da criatividade. Algo verdadeiramente novo. Sim, mas daí a mudar o paradigma vai uma longa distância. Deixou a tecnologia de ser um meio, um instrumento do ser humano para passar a substituir-se-lhe e a ser ele a ditar os próprios fins? Não creio.

Mas o debate sobre o papel da tecnologia na história já é antigo. Houve sempre quem defendesse a centralidade da tecnologia na história e a fizesse mesmo depender dela. Por exemplo, em campo marxista, Bukhárine, o mais sofisticado dos marxistas ortodoxos, que Lukács, outro marxista, viria a criticar por ele atribuir à “tecnologia uma posição demasiado determinante”.  O mesmo vale para a posição crítica de Gramsci, também em relação a Bukhárine, em relação ao papel da tecnologia na história (Santos, 1986: 40-55). A verdade é que a tecnologia, mesmo na era do algoritmo, da inteligência artificial, é resultado da obra humana e está subordinada à finalidade humana, por mais sofisticada que aquela seja. Marx, sobre a sociedade industrial emergente em Inglaterra, colocou o problema no plano da contradição entre a crescente e concentrada propriedade privada dos meios de produção e a crescente e alargada socialização do trabalho. Não era na tecnologia que residia a contradição que haveria de mover a história, mas a apropriação privada dos resultados do trabalho socializado. Mas não há dúvida de que a tecnologia é muito importante e pode ser progressiva ou regressiva. Exemplo: a energia atómica – a da bomba ou a que nos fornece energia. Os fins são postos pelo homem. E o mesmo vale para a arte. E numa escala de muito maior intensidade. Quem viu o filme de Stanley Kubrick, “2002 – Odisseia no Espaço” teve nele uma amostra deste tema, com o que aconteceu com a rebelião do supercomputador Hal e com o triunfo dos humanos, ao conseguirem desligá-lo, revelando-se, todavia, neste final, uma sua qualidade emergente que nos deve pôr a pensar e de sobreaviso: o sentimento (medo) que acabou por se revelar quando Hal já estava a sentir os efeitos da sua morte, por desconexão. Mas também o filme “AI – Inteligência Artificial”, de Spielberg, é um filme sobre robots e sentimentos: David, o robot, decide morrer com a amada mãe. Mas são filmes feitos por seres humanos que se projectam nas máquinas como antes se projectavam nos deuses, pondo neles as suas próprias qualidades, positivas e negativas.

3.

É, pois, um pouco estranho que um artista possa identificar-se com uma arte que não seja sua, nem por si assinada, reduzindo-se a simples capataz da fábrica robótica de arte, vivendo disso, enquanto artista, ou seja, vivendo do trabalho artístico dos chamados “robots”, os novos “gorilas amaestrados” da arte. Sim, claro, ele é o proprietário dos meios de produção estética.  Então, é proprietário, não artista. Este (aparente) retirar-se do processo, entregando-o a uns bonecos movidos a pilhas, significa que retira a essa arte aquilo que o Nietzsche chamava “espírito apolíneo”, o sentimento, a libido, a emoção, o instinto, a perda, o fracasso, a nostalgia, a melancolia, tudo aquilo que move o ser humano a procurar uma resposta superior para o desajustamento existencial sofrido nas circunstâncias de vida. Se visitarmos as vidas dos maiores poetas e pintores de sempre é isso que encontraremos. Emil Cioran propunha uma poética do fracasso, coisa que os robots não conhecem. Não foi o Hal que atribuiu o erro, não a ele, mas aos humanos?  É claro que a tecnologia tem hoje um papel fantástico na arte, na música ou na pintura, por exemplo. É cada vez mais frequente grandes pintores trabalharem com o IPad. Por exemplo, David Hockney. E muito mais na música, que pode ser gerada por computador ou pelo já mencionado GPT-4. Outra coisa é retirar-se do processo deixando que sejam as máquinas a conceber e a executar a obra de arte. Arte não humana. Mas talvez isso seja um oxímoro. Talvez seja mesmo a negação da própria ideia de arte quer no sentido etimológico quer no sentido histórico. A questão pode pôr-se, por exemplo, em relação à poesia. Um robot que faz poesia. Sim, faz, mas recorrendo à base de dados e recombinando poesia já existente. Faltar-lhe-á sempre o húmus onde a poesia germina, nasce, e que é sempre do foro humano. A poesia não é simples artifício, um exercício simplesmente retórico cuja eficácia dependa da beleza das suas formas. Não, ela responde a imperativos existenciais do poeta. Imperativos que não existem numa máquina por mais sofisticada que ela seja. A não ser que comecem a aparecer por aí outros Hal ou outros David. E aí o caso muda de figura.

4.

Mas é verdade que a inteligência artificial hoje já constitui uma gigantesca frente de atenção social. O ChaGPT ao alcance de analfabetos que se transferem para esta realidade e que julgam já estar a viver no século XXII. Escrevem textos como os outros produzem obras de arte. A lógica é a mesma. Só falta, uns e outros, assumirem-se também como intelectuais, escritores, artistas e produzirem arte por “outsourcing”. O ChatGPT faz e eles exibem as obras como se fossem eles  os autores, dizendo que a parte da execução é não humana, escrita não humana. A IA liberta-nos de tudo, até de pensar e de fazer. Estes são os integrados. Mas há também os apocalípticos, que vêem na IA a catástrofe, o fim do mundo e uma nova escravatura onde os senhores serão as máquinas.  Uma nova dialéctica senhor-escravo. Pelo caminho já vão detetando um progressivo domínio do algoritmo na chamada “sociedade algorítmica”, o que determina, desenha e controla comportamentos. Chamam-lhe “capitalismo da vigilância” e nele só vêm o negativo, a exploração, o domínio e a manipulação. São os novos apocalíticos, os sucessores dos que viam nas tecnologias uma ameaça mortal para o mundo humano. Aconteceu com a industrialização, aconteceu com a televisão e acontece agora com a inteligência artificial.

Qualquer destas reacções são negativas, embora ambas chamem a atenção para aspectos que há que ponderar. Arte não humana? Sim, mas não é para levar muito a sério. Arte com uma importante componente digital e de novas tecnologias? Sim. E é para levar a sério. Integrados? Sim, mas é preciso dizer-lhes que têm de aprender muito, até a usar as novas tecnologias, a controlar o seu uso e a posicionar-se em relação a elas. Apocalípticos? Sim, muito do que dizem é real e é necessário proceder a um “constitucionalismo digital” que estabeleça fronteiras ao uso das tecnologias digitais pelas grandes plataformas. Mas também é preciso dizer aos queixosos digitais que não podem lamentar-se de as plataformas digitais tomarem conhecimento e desenharem perfis com base no que eles exibem permanentemente e sem qualquer pudor nas redes sociais. Exibicionismo digital nas redes sociais e que tem um preço.

5.

Posto isto, que viva o progresso científico e tecnológico e que se reconheça que a tecnologia se verifica hoje numa esfera altamente sofisticada como é a da inteligência, do tratamento e do processamento de dados a um nível que nunca se viu. A rede e as TIC talvez representem a mais extraordinária revolução tecnológica que se verificou na história da humanidade. Mas do que se trata é de tecnologia ao serviço do homem. Como todas as tecnologias, também esta pode ser utilizada para fins bons ou para fins maus. Pelos humanos. E é preciso lembrar que as TIC nasceram como tecnologias da libertação, mas que, depois, tiveram um desenvolvimento que, sim, poderá ter aspectos negativos ao transformar aqueles que eram os clientes originários em pura matéria-prima que, depois de trabalhada, é vendida às grandes companhias que colocam produtos nos mercados mundiais e até às forças políticas que aspiram a governar os respectivos países. Já há exemplos disso, como se sabe.

A questão que agora se põe, e que o filme de Kubrick suscita, é se as máquinas poderão um dia ser elas a pôr-se os fins, eventualmente por exigências existenciais, prescindindo da vontade dos humanos. E aí, sim, teríamos o apocalipse e a confirmação dos receios dos apocalípticos numa dimensão que, nos anos ’60, nunca Umberto Eco poderia prever. Sim, então, poderia haver arte não humana e o mundo seria mesmo outro – um mundo não humano, sim, mas onde os robots não aceitariam trabalhar em “outsourcing”. Até lá não me parece.

Referências

SANTOS, J. A. (1986). O Princípio da Hegemonia em Gramsci. Lisboa: Vega.

SANTOS, J. A. (2019). Homo Zappiens. O Feitiço da Televisão. 2.ª Ed. Lisboa: Parsifal.

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Poesia-Pintura

OS SEIOS 
Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Corpo”.
Original de minha autoria
sobre fotografia em contraluz,
de anónimo, da minha colecção
privada. Agosto de 2023.
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“Corpo”. JAS. 08-2023

POEMA - "OS SEIOS"
ERAM OS SEIOS
Dessa mulher
A sua atracção
Fatal,
O que ela lhe dizia
Para ele
Era banal,
Mas a forma
Do seu peito
Era desenho
Perfeito
De um corpo
Sensual.

CONTOU-ME,
Em tarde
De melancolia,
Da arrebatada
Paixão,
Quando nesse dia
A perdera
E ali mesmo
Morrera
Essa fatal
Atracção.

ERAM SEIOS
Generosos
(Disse-me,
Com certo brilho
Nos olhos,
Mas serena
Amargura)
Os desta linda
Mulher,
Uma imensa
Alvura
Em formas tão
Sensuais...
............
Era a física
Dos corpos
Que se atraem
Em seus embates
Fatais.

CONFESSOU,
Com olhar
Um pouco vago,
Que o seu corpo,
Insistente,
O convidava
A olhar,
Bem de frente,
Com a libido
A ferver...
........
E, então,
Estremecia,
Ficava paralisado,
Não sabia
O que fazer.

MAS NADA MAIS
Ele queria
(Foi o que sempre
Lhe disse)
Do que vê-la
Em pose
De maternal
Sedução,
Alimento
Dessa sede
Tão faminta,
Dessa irresistível
Pulsão...

SENTIA-OS
Como fetiche,
Como se a vida
Lhe pedisse
Apenas um seu
Olhar,
Criança perdida
No mundo,
Náufrago
Em alto mar...

MAS, AGORA,
Já sem a visão
Que desde sempre
O atraíra
(Foi o que logo
Me disse),
Só sentia
Melancolia
E uma doce nostalgia
Desse corpo
Sedutor
Onde naufragara
Um dia
Em busca de
Salvação
Ou talvez mesmo
De amor.

MULHER-MÃE
Era destino
Que só nela
Se cumpria,
Fruto de uma longa
Solidão
Que se consumou
Nesse dia,
Como se tudo
Só fosse
Uma doce ilusão,
Fruto da fantasia.

Corpo2022_10_15LUZRec

Artigo

APRENDIZES DE FEITICEIRO

O que eles ainda não entenderam

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 08-2023

SINTO, CADA VEZ COM MAIS INTENSIDADE, que os protagonistas, no activo, da política de centro-esquerda e de centro-direita, lá fora e entre nós, parece não terem ainda entendido que ela, a política da era do algoritmo e dos “engenheiros do caos”, está cada vez mais capturada por duas perigosas tendências que ameaçam promover um desvio que pouco ou nada tem a ver com o que de melhor a democracia representativa nos deu até hoje. Chamo-lhes “aprendizes de feiticeiro” (que me perdoem, pois o que digo não é por puro gosto de malhar neles) pela auto-satisfação que se lhes nota no rosto quando fazem pungentes declarações públicas ou sentidas profissões de fé, enfeitiçados por um poder que, no fundo, não controlam realmente.  Chegaram lá montados no veículo partidário, cada vez mais ultraligeiro (uma boa parte proveniente das juventudes partidárias), que, infelizmente, já pouco mais transporta do que simples kits de sobrevivência política e pessoal e o sonho de uma rápida carreira de sucesso no aparelho de Estado. Muitos sem vida fora da bolha partidária, mas com o feitiço do poder ao alcance das suas mãos. Chegados lá, os aprendizes de feiticeiro podem, então, exibir toda a sua frescura, coadjuvados pelos jornalistas de serviço. Que me desculpem, mas a política, no seu sentido mais nobre, está a milhas disto.

TRAJECTOS

Mas quais são essas duas tendências?  São a da direita radical populista e a da esquerda identitária dos novos direitos. Estas duas tendências atraem-se mortalmente e arrastam consigo a franciscana pobreza ideológica do centro-esquerda e do centro-direita. Pobreza em afinidades electivas: uns, por amor à tradição e à defesa do statu quo, outros, atraídos pelo desejo irreprimível de mascarar a indigência ideológica com os insinuantes derivados da ideologia dos novos direitos. Ouvem, ambos, deliciados, as novas sereias, sem que ninguém lhes tape os ouvidos para que não sejam seduzidos e arrastados para a ilha promissora do novo apostolado civilizacional ou para o insidioso e perigoso alto mar dos interesses e da regressão civilizacional. E, assim, na prática, acabam por ocupar a vida numa longa correria, a gerir interesses, orçamentos de Estado e expectativas, mas, sobretudo, as próprias carreiras, num afã que não deixa espaço para a compreensão do que está em curso de mudança e em grande velocidade perante os seus distraídos e venais olhos. Pensar demais atrapalha e nem há tempo para isso. Ocupam-se, pois, da carreira e fazem política por inércia. Os mais maldosos dizem que vai para a política quem não sabe fazer mais nada. Talvez seja exagerado, reconheço, mas colhe uma parte da verdade. Depois, como na trajectória partidária até há sempre algum património ideal que vem do passado (do tempo em que os animais falavam), isso basta-lhes, desde que, digo à esquerda, o apostolado civilizacional dos novos direitos lhes permita completar, sem grande dispêndio de energia intelectual, esse património ideal, dando-lhes, deste modo, ares de progressismo e de modernidade ou mesmo de pós-modernidade. E também aparente gravitas, derivada da nova moralidade. Assim, podem instalar-se despreocupadamente na tecnogestão do poder, na governance, no management, para os quais, muitas vezes, e devido aos manhosos processos de selecção da classe dirigente, muitos nem sequer podem exibir competência técnica ou até mesmo evidenciar alguma preocupação com as normas básicas da ética pública. Os casos de promiscuidade financeira que vão acontecendo dão conta disso. A competência que poderiam exibir esgota-se, como se sabe, na gestão interna das próprias carreiras e nos alinhamentos com os ventos que sopram na direcção do poder interno, ou seja, daquele que os pode levar à administração pública, às grandes empresas públicas ou até a cargos governativos. E é isto, para não falar dos que, chegados ao Parlamento, o único fito das suas vidas passa a ser o de nunca mais de lá saírem, garantindo a sobrevivência através de umas escapatórias até ao espaço mediático em busca de notoriedade, seguro de permanência nos cargos. E se for preciso dizer umas “verdades” disruptivas até dizem. Assim, terão mais audiência e mais peso na opinião pública. Logo, também na política. Que me desculpem os que não se enquadram nesta moldura, e são muitos, mas ela é realista. E se o digo é porque o sinto, não porque o tenha lido num qualquer livro certificado por um qualquer referee. Mas, adiante, que se faz tarde e que o desabafo está consignado, pelo menos para memória futura.

O PANORAMA POLÍTICO

De certo modo, o panorama político global não é complexo e pode muito bem ser, de facto, descrito de forma simples, dizendo que, enquanto estamos perante duas tendências que se confrontam abertamente, à (extrema-)direita e à (extrema-)esquerda, em claro antagonismo, as forças que aspiram a governar democraticamente a actual complexidade encontram-se em graves dificuldades não só doutrinárias e de competência (note-se que até os processos de conquista do consenso passaram a ser entregues a agências especializadas de comunicação, de marketing e de estudos de opinião, substituindo as competências partidárias), mas também em relação à própria ideia de política, sobre o que ela é e para que serve. E já nem sequer é suficiente dizer que, apesar de tudo, elas ainda se mantêm no poder, somando, em conjunto, valores que se encontram claramente acima dos 50% do eleitorado, bastando, para tal, dar o exemplo de Portugal, da Espanha ou do Reino Unido. Na verdade, são cada vez menos, pois o que se vê são as forças dos extremos do leque ideológico, em particular a direita radical e populista (mas, à esquerda, o Syrisa, que foi de Tsypras, já governou e, em França, é, na oposição, o partido de Mélenchon que conta, e não o partido socialista), a governarem alguns países (por exemplo, a Polónia, a Hungria e a Itália) e a crescerem significativamente noutros tantos – na Alemanha, o Alternative fuer Deutschland já é o segundo partido com mais de 20% em duas sondagens recentes (YouGov e Insa, com cerca de 20% e 21%, respectivamente, contra 19% do SPD, em ambas) e, na Suécia, os “Democratas Suecos” já exibem cerca de 20% do eleitorado (nas últimas eleições de 2022). Isto para não falar da França, de Espanha ou de Portugal, onde a direita radical apresenta resultados muito significativos, temendo-se que, nas próximas eleições presidenciais, o Rassemblement National de Jordan Bardella veja eleita Marine Le Pen, hoje à frente nas sondagens para as presidenciais. O efeito Giorgia Meloni poderá vir a sentir-se rapidamente também em França. A mesma Meloni que, ao contrário do que acontece em Portugal em relação à banca, acaba de impor uma taxa de 40% sobre os lucros extraordinários da banca, quando eles tenham ultrapassado em 2022 mais do que 5% em relação a 2021 e do que 10 % em 2023 em relação a 2021 (em causa, se bem entendi, os lucros extraordinários, nestes termos, são calculados com base na diferença entre o que os bancos cobram em juros e os que pagam aos depositantes).

Sendo a linha de combate da direita radical e populista no essencial representada, por um lado, pela imigração(com abundantes e seguros resultados eleitorais) e, por outro, por esta esquerda identitária dos novos direitos, a dialéctica política parece estar a deslocar-se para aqui, com resultados verdadeiramente preocupantes. Sem dúvida, mas eles não são apenas explicáveis pela competência política e pelo poder de atracção destas forças. Além destas duas razões, existe uma terceira e essa está centrada na desorientação e na incapacidade de os clássicos partidos da alternância alterarem profundamente o seu modelo de acção e a sua própria identidade política, mostrando estar à altura dos tempos e dos desafios. Em Portugal, o centro-esquerda e o centro-direita ainda representará cerca de 60% (baseio-me nas sondagens actuais), mas outros partidos, em particular o CHEGA, estão em tendência de subida e ameaçam cada vez mais a lógica da alternância bipartidária. E creio que o fenómeno não é tão passageiro como alguns apregoam.

A MUDANÇA NECESSÁRIA

A verdade é que a política hoje não está a ser entendida pelas forças do centro-esquerda e do centro-direita como uma realidade dinâmica que já escapa ao modelo tradicional e que deve ser assumida como realidade que se situa entre a necessária autonomia soberana e funcional dos Estados-Nação, com especial valorização da constituency originária dos cidadãos/contribuintes/consumidores, e o mais vasto horizonte dos poderes executivos transnacionais ou multinacionais, ou seja, as grandes plataformas financeiras e as grandes plataformas digitais. Elas também deveriam ajustar o seu discurso e a sua organização às profundas mudanças que vêm acontecendo na sociedade civil, e em especial na identidade e nas expectativas da cidadania, confrontando-se produtivamente com outras grandes organizações da sociedade civil que funcionam por causas, ou seja, com os movimentos-plataforma digitais (ou mesmo não digitais), e, em geral, com as novas dinâmicas que estão a emergir no plano da sociedade civil. Na verdade, as sociedades contemporâneas já são designadas como “sociedades digitais e em rede” ou mesmo “sociedades algorítmicas”, tal o poder das novas tecnologias digitais, mas também, por um lado, pela nova centralidade que o indivíduo singular nelas ocupa e, por outro, pelo poder que as grandes plataformas podem exercer directa e individualmente sobre ele. Positiva e negativamente. Depois, não é possível continuar a iludir a relação entre o velho conceito de “sentimento de pertença” e a realidade da informação que hoje chega aos cidadãos através de uma enorme variedade de plataformas de comunicação, alterando profundamente a natureza do vínculo com os próprios militantes, simpatizantes e eleitores e reduzindo drasticamente o papel da pertença ideológica e/ou organizacional na decisão político-eleitoral e na própria militância. Mas, por isso mesmo, eles não podem continuar a adoptar critérios de selecção da “classe dirigente” através de fórmulas organicistas que só servem para alimentar a lógica endogâmica que tem alimentado a crise da representação e o seu afastamento da sociedade civil. Este é um aspecto importante porquanto ele exprime a tendência (que já referi) da militância activa a preservar a sua esfera de influência interna, obstaculizando a entrada de “estranhos”, com vista à futura ocupação de cargos no aparelho de Estado. Sendo partidos que sobrevivem cada vez mais da sua regular relação com o Estado (através do financiamento e de cargos para os dirigentes), eles deveriam integrar no seu ideário uma clara concepção do funcionamento, da natureza e das funções do Estado moderno, até tendo em atenção que aqueles que o irão dirigir terão a responsabilidade de gerir orçamentos de Estado que provêm dos impostos cobrados à cidadania. Assunto, pois, de uma enorme delicadeza e responsabilidade. Uma responsabilidade que nunca poderá prescindir da competência técnica e política, de uma robusta ética pública e de uma claríssima ideia acerca do que é o Estado. Não é possível manter a actual indefinição acerca do papel do Estado na sociedade, funcionando simplesmente por inércia, eventualmente pondo leis sobre leis, de forma aleatória e ao sabor de agendas que muitas vezes nem sequer controlam, e descurando a eficácia da máquina pública (que não seja na cobrança de impostos) na implementação das políticas, mas sobretudo sem definir com rigor as suas próprias fronteiras de intervenção. Tal como, com Bismarck, o Estado (as funções do Estado) mudou em relação ao clássico Estado liberal, hoje o Estado tem de ser repensado globalmente à luz da nova configuração da sociedade civil, da nova identidade da cidadania e dos efeitos internos da globalização (financeira, comunicacional e migratória).

TRÊS EXEMPLOS

Três exemplos, em Portugal, de uma visão que, na minha opinião, revela uma certa imprecisão acerca das funções do Estado:

1) O da questão da habitação em Portugal é bastante significativo: não se vê uma clara definição do pilar central de onde deva decorrer o essencial da resolução do problema, continuando a esquerda a insistir fortemente na sua (impossível) resolução através da oferta de habitação pelo Estado (que, reconheço, também é parte da solução) em vez de promover políticas que promovam uma robusta expansão do mercado privado de habitação, o único que pode mesmo resolver o problema, quer em relação aos preços do arrendamento quer em relação ao preço da habitação para venda. Aos dois travões que, na minha opinião, impedem esta solução, ou seja, por um lado, a incapacidade de abdicar de uma parte considerável de impostos para favorecer a colocação em mercado das habitações em condições de atractividade financeira e, por outro, um resistente preconceito sobre a própria ideia de mercado, junta-se ainda uma indefinição grosseira sobre as próprias funções do Estado, muitas vezes subordinadas a uma retórica puramente demagógica, mas irresponsável. Isso vê-se bem na confusão instalada entre o direito à propriedade privada e o direito à habitação, vinda até, pasme-se, de doutorados em direito e anteriores governantes. É um mero exemplo de sobredeterminação da nebulosa ideológica num sector social extremamente relevante e delicado.

2) Mas também poderia aqui acrescentar algo que já referi mais detalhadamente noutro artigo, “Confissões de um Aforrador”, e que, no meu entendimento, ilustra (https://joaodealmeidasantos.com/2023/06/06/artigo-105/ ) muito bem toda uma concepção de política, pela importância que nela têm as finanças públicas: a composição da dívida pública e a promoção da poupança nacional. Não sei mesmo se este tema está bem presente na cabeça de alguns governantes e dirigentes partidários do centro-esquerda, mas esta é uma questão-chave que identifica muito bem e de forma cabal uma orientação política de fundo – prioridade aos investidores internacionais e à banca em detrimento daqueles que, sendo aforradores, são, afinal, os efectivos contribuintes (em impostos directos), a classe média, com um incompreensível desincentivo à própria poupança. Prioridade, portanto, à nova constituency dos credores financeiros internacionais em detrimento da constituency originária dos cidadão/contribuintes. A recente decisão do ministro das finanças em relação aos Certificados de Aforro é, pois, no meu entendimento, uma clara demonstração de uma opção política errada por parte de um governo de inspiração socialista. Uma decisão que, sendo contrária à doutrina, até é esteticamente feia. Que pode ser lida quase como um castigo aos cidadãos aforradores/contribuintes. Peço desculpa, mas é assim que a vejo.

3) Mas poderia ainda acrescentar um outro tema extremamente relevante e delicado para a cidadania: a da relação dos cidadãos/consumidores com os oligopólios que dominam o essencial da economia do país (telecomunicações, cadeias de distribuição de bens alimentares, banca, o sector da energia, da electricidade aos combustíveis, sistema mediático). Ou seja, está aqui em causa a atenção muito especial que o Estado deve dar a esta relação, sendo certo que, singularmente, os cidadãos têm um poder muito reduzido de impedir o funcionamento incorrecto desta relação. Exemplo: o cartel das gasolineiras; o cartel dos bancos em relação aos juros praticados; o domínio total, a montante, das cadeias de distribuição (três ou quatro) sobre os fornecedores e os consumidores, etc., etc., a “circulação circular” (Bourdieu) da informação, com doses pornográficas de tabloidismo em todos os seus géneros, pelo cartel televisivo, sem que se veja intervenção dessa inutilidade chamada ERC. Isto e muito mais.

O que vejo nestes três casos? No primeiro, uma evidente confusão relativamente à solução por preconceito ideológico (em largo espectro, relativamente ao mercado, ao direito à habitação e ao conceito de propriedade), mas também por comodidade fiscal. No segundo, uma clara inversão daquele que deveria ser o valor fundamental do partido socialista: o cidadão/contribuinte/consumidor, em especial o que paga impostos (directos) e alimenta o Estado, sobre os credores internacionais. No terceiro, alheamento relativamente a uma interacção que é decisiva na sociedade contemporânea: a protecção do cidadão consumidor (e dos fornecedores, a montante) perante os oligopólios que dominam, em cartel, a economia do país.

FINALMENTE

São aspectos extremamente relevantes que não podem deixar de merecer a atenção constante das formações políticas que aspiram à suprema responsabilidade de gerir o Estado. Em particular das que se reivindicam de esquerda. Mas, como disse, isso implica um diagóstico de fundo sobre a política, sobre o papel dos partidos políticos, sobre as funções e as fronteiras do Estado, sobre a gestão das finanças públicas e dos impostos, sobre os direitos e os deveres da cidadania, sobre a dinâmica da sociedade civil no plano político. Mas implica também um claro reconhecimento das forças políticas em movimento no terreno, o que elas representam e a respectiva dialéctica política. E implica ainda que estas formações estejam em condições de se apresentar como alternativas a essas forças radicais e a si próprias, ao modelo que vêm seguindo, invertendo o declive político que se está a verificar no sentido dos extremos, fazendo o que devem, depois de uma séria reflexão sobre o seu papel na sociedade moderna. Mas não é isso que se vê. E ao ler o Manifesto do novo think tank que aí vem, também nesta área, confirmo o que tenho vindo a dizer, pois o que nele encontramos são banalidades de esquerda que pouco ou nada significam. Aliás, muitos dos que têm contribuído para a confusão ideológica instalada já lá estão, firmes, para continuar a barafunda. Fica-se com a sensação de que o que temos perante nós é, dentro e fora da bolha, uma vasta fileira de “aprendizes de feiticeiro” com os quais não iremos muito longe. Nem sequer a Madrid, incapazes que são de programarem um simples TGV que nos ligue à Europa (pelo menos através da capital espanhola). Não se trata propriamente de inovar ou de criar algo de novo, de inventar um mundo novo e mais justo, mas sim de se adaptar e responder a um mundo que já mudou. JAS@08-2023

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Poesia-Pintura

O SILÊNCIO E O TEMPO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Renascer”.
Original de minha autoria.
Agosto de 2023.

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“Renascer”. JAS. 08-2023

POEMA – “O SILÊNCIO E O TEMPO”

O QUE, É, AFINAL,
O silêncio?
É nada,
Por ausência
Da palavra,
Do corpo e do olhar
Na memória
E no espaço
Onde não têm
Lugar?

É INDIFERENÇA?
É castigo
Ressentido?
É a alma
Em negação
Do que lhe foi
Proibido?
É retiro
Ideal
Ou o nada
Em gestação
Com a perda
De sentido?
O que é ele
Afinal?

É UM NADA
Que tudo
Te quer dizer,
Uma mensagem
Cifrada
Que te convida
A sofrer?

COMO TODAS
As mensagens,
O silêncio
É sofrido
Quando for
Interpretado,
Mas se não
Acontecer
Será somente
Vivido
Como pura
Negação,
Como acto
Fracassado.

EXPRESSÃO
Pelo silêncio,
O que quer isso
Dizer?
Que alguém
Já não existe,
Que nada há
A fazer
Quando a ausência
Persiste?

IR EM FRENTE
Sem passado
Como tempo
Não vivido,
Ver na vida
O pecado
Que é preciso
Esquecer
Para não ficar
Refém
De um falhado
Acontecer?

DIGAS SIM
Ou digas não
Ficou tudo lá
Gravado
Pois foi tempo
Partilhado,
Um tempo
De comunhão,
Ainda que
Fracassado
Quando alguém
Ficou cansado
E decidiu
Dizer não.

MAS O MEU
(Quero que saibas)
Vou buscá-lo
Com palavras,
Entrego-me
À poesia
Para o levar
Ao futuro,
Aos que sentem
Nesta arte
O tempo
Da utopia,
Onde o passado
É mais puro.

NÃO O ENJEITO,
Portanto,
Não pratico
Exorcismo
Que avive
A negação,
Ficando assim
Como está,
Um tempo
Sem solução...

O TEMPO
É escultor
Do que houve
No passado,
Mas também ele
É moldado
Por desejo
E vontade
De o sentir
Recriado
Como dom
De liberdade.

NÃO SE CONSTRÓI
Uma vida
Com silêncio
Ressentido,
Mas com palavras
Que acolham
O tempo
Que já se foi,
Pra que seja
Revivido
E deste modo
Fruído
Quando ele
Já menos dói.

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Artigo

O DESTINO DA DEMOCRACIA

Segundo o Arquitecto Saraiva

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 08-2023

LI, na passada Sexta-Feira, o artigo de José António Saraiva (JAS), “As Democracias têm os dias contados?” (Sol, 28.07.2023, pág. 4), que, ao contrário do que é habitual, desta vez me mereceu uma atenta reflexão. E também reconheço que há crise. Disso parece ninguém ter dúvidas. Mas que seja o fim, isso não me parece. De “Fim da História” foi o Fukuyama que falou, para dizer que as democracias representativas são os regimes mais perfeitos (comparados com os outros), onde o princípio é o do reconhecimento, não o da submissão. E que venha aí outra coisa equivalente, mas diferente, não me parece, até porque as democracias são muito jovens. Na prática, quase poderíamos dizer que elas só se consolidaram depois da segunda guerra mundial, há menos de oitenta anos, portanto. O que historicamente é muito pouco. Tempo de infância, diria. É verdade, a democracia só se verifica quando há sufrágio universal, o que não acontecia quando foi inventado o sistema representativo, porque os regimes eram censitários, pouquíssimos cidadãos  podendo votar (os chamados “cidadãos activos”) e ainda menos chegar ao poder. E o sufrágio universal só se foi implantando lentamente ao longo do século XX, verificando-se na Europa da primeira metade do séc. XX uma situação histórica excepcional, com duas guerras mundiais e com cerca de vinte anos de ditaduras por essa Europa fora. E se a democracia é jovem ela também é difícil, delicada e animada pela utopia do cidadão plenamente autodeterminado, o que deve agir de acordo com o imperativo categórico kantiano: “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre, e ao mesmo tempo, como princípio de uma legislação universal” (Crítica da Razão Prática, Cap. I, §7). Os princípios do conhecimento, da liberdade e da responsabilidade a comandarem a decisão política. Um longo caminho que a democracia representativa ainda tem pela frente, mesmo que por entre os inevitáveis “corsi e ricorsi” da história, de que falava Giambattista Vico. Sim, a democracia representativa é um regime frágil e difícil, sim, mas melhor do que todos os outros.

1.

Qual é a tese de JAS? Esta: as democracias foram inventadas (com a revolução liberal) num período histórico para condições que hoje já não se verificam, de todo. E enumera-as exaustivamente. E é verdade, essas condições já não se verificam (pelo menos em parte). Mas nesta descrição tão exaustiva ele esquece a condição fundamental que motivou o aparecimento, não da democracia, como ele diz, mas do sistema representativo (o que é diferente): a enorme dimensão dos Estados-Nação, que tornava impossível as democracias de assembleia, mesmo com uma cidadania reduzida, devido às condições legais para usufruir dela (veja por exemplo o art. 7, secção II, Cap. I do Título III, da Constituição francesa de 1791). Se virmos a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert verificamos que, aí, o conceito de democracia ainda é, de facto, algo confuso, entre a democracia directa e a representativa. Foi, portanto, necessário avançar para a representação política, para o sistema representativo como o conhecemos hoje. E esta condição mantém-se.  Em dificuldades, é certo, pois há muito que se fala de crise da representação.

A hipótese de JAS centra-se nesta mudança radical em relação às condições que estiveram associadas ao nascimento do sistema representativo – as que hoje lhe estão associadas ainda não existiam naquele tempo. E isso faz toda a diferença. Claro que faz. Por isso, o sistema representativo evoluiu, com o sufrágio universal, para a democracia representativa e esta também tem de evoluir. Para uma democracia pós-representativa? Para uma pós-democracia? Para uma “democracia iliberal”? Ou, como eu defendo, para uma democracia deliberativa, que mantém integralmente a matriz da democracia representativa, mas expandindo-a, legitimando-a e qualificando-a.

2.

Qual é, então, o seu diagnóstico e a cura que propõe? Feito o diagnóstico, tratar-se-á, então, de promover uma correcção no rumo (uma reinvenção da democracia, diz) que as democracias têm levado, através de : 1) acréscimo da autoridade do Estado; 2) diminuição da conflitualidade no seio do poder; 3) maior capacidade de decisão; 4) menos conflito interpartidário e menor instabilidade política (mas é preciso não esquecer que a democracia é o regime onde o conflito, não violento, claro, é necessário). Em síntese, sistemas mais “musculados”, executivo mais forte, legislativo mais fraco e reintrodução do bipolarismo partidário por blocos em alternância (o rotativismo, aquele que alguém caracterizou com a famosa fórmula: “ora agora comes tu – ora agora como eu – comes tu mais eu”), precisamente aquele mesmo que as transformações actuais estão a esboroar.

Ou seja: o que ele propõe como solução para se adequar a essa mudança radical que se verificou nas condições que estiveram na origem do sistema representativo (mas a que ele chama democracia) é remédio que se arrisca a fragilizá-la ainda mais. Entre o diagnóstico e a proposta de solução verifica-se, pois, um grande desfasamento.  E diz mais: se o remédio não for tomado virão aí modelos autocráticos, de que já são sinal os vários populismos de direita que grassam por essa Europa fora.

Sim, o que JAS está a propor como solução é precisamente aquilo que já se está a verificar, mas de modo mais radical, nas chamadas “democracia iliberais”, de que os senhores Viktor Orbán e Jaroslaw Kaczynski são grandes paladinos e executores.

3.

Ora acontece que o que mudou, e que ele refere minuciosamente, ou seja, as novas condições agora associadas às democracias de hoje (jornais, telefone, telégrafo, TV, internet, redes sociais, migrações, comboios, automóveis, aviões, economia global, como ele diz) parece exigir exactamente o contrário do que ele oferece como solução: não decisionismo e enfraquecimento da representação (“os debates parlamentares são coisa do passado), mas expansão e enriquecimento da esfera da deliberação (no espaço público deliberativo) para voltar a aproximar a cidadania dos representantes e dos sistemas de partidos e para aumentar a transparência e a própria qualidade da decisão (precisamente através do reforço da sua componente deliberativa). Porque a verdade é que a questão da autoridade do Estado deve identificar-se não com autoritarismo decisionista e com redução do papel da representação política (a que é suposto dar voz ao povo soberano), mas com “auctoritas”, com legitimidade renovada, virtuosa e reconhecida, com transparência e qualidade das decisões, ou seja, boas decisões e socialmente  justas. Sem esquecer a famosa definição de democracia de Lincoln no famoso discurso de Gettysburg, em 1863: “government of the people, by the people, for the people”.

4.

Vendo bem, a solução de JAS tem mais de “democracia iliberal” do que de democracia deliberativa, a única que poderá restaurar a representação, a  legitimidade e a qualidade e transparência da decisão. O que parece é que o que JAS tem para oferecer como cura da democracia é o seu próprio definhamento programado (sobretudo se for executado pela direita radical). O que ele propõe até já tem nomes que circulam nos ambientes da teoria política: maioritarismo extremo ou autoritarismo maioritário (Thierry Chopin, Nadia Urbinati).  Ou então aquele outro nome que ao tempo foi usado para designar o sistema de poder de Bettino Craxi, o decisionismo, que bem sabemos como acabou.  Mas se o destino for esse não serão precisos os remédios de JAS porque já há quem os esteja a tomar sistematicamente e de forma intensiva: os dois principais activistas do Grupo de Visegrad, Viktor e Jaroslaw. Na verdade, como se sabe, os populistas de direita souberam adaptar-se ao sistema representativo, mudando-lhe os seus equilíbrios internos (o sistema de checks and balances), precisamente no sentido proposto por JAS e ainda reforçando-o. Por exemplo, acrescentando-lhe também o controlo do poder judicial pelo executivo. Muito obrigado, Senhor Arquitecto, mas, a ver pelas amostras, não creio que os seus remédios augurem alguma coisa de bom. JdAS@08-2023

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