Ensaio

AFINAL, O QUE É O SOCIALISMO LIBERAL?

Por João de Almeida Santos

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A RECENTE DECLARAÇÃO do Presidente da SEDES, Álvaro Beleza, na CNN-P, de que se filia no socialismo liberal, parece ter suscitado algumas perplexidades acerca desta doutrina, considerada até contraditória nos seus próprios termos – socialismo não rimaria com liberalismo; ou mesmo revelado desconhecimento relativamente à existência de uma tal doutrina ou orientação política.  Decidi, por isso, publicar um pequeno ensaio sobre o Socialismo Liberal, de resto, retomando um capítulo do meu livro Paradoxos da Democracia (Santos, 1998: 65-68).

I.

“Não obstante a boa vontade e o talento que nela têm sido largamente investidos, a síntese de liberalismo e socialismo não conseguiu até agora realizar-se”, diz Perry Anderson, no seu ensaio sobre Norberto Bobbio (Anderson, Bobbio, Bosetti e Cerroni, 1989: 60). O socialismo liberal parece ser, pois, interessante para uma reflexão construtiva sobre a esquerda e a democracia, especialmente se considerarmos que esta última foi jogando sempre o seu destino entre liberalismo e socialismo, entre liberdade e igualdade, sobretudo nas suas versões mais radicais. Ouso até dizer que esta reflexão urge dada a clara crise que a social-democracia (ou o socialismo democrático) está a viver.

As razões para tal são abundantes e profundas. E notórias. A começar pela crise política e ideal que investiu o socialismo com a crise ou, pelo menos, as dificuldades do Estado Social e, sobretudo, a do socialismo de Estado. Ou, ainda, pela crise do modelo social e político fundado no industrialismo clássico sobre o qual se construiu essencialmente o pensamento socialista. Modelo inadequado funcionalmente às profundas mutações do sistema produtivo e das relações sociais provocadas pela emergência do pós-industrial e pela revolução da microelectrónica, a que se seguiu a actual revolução tecnológica que estamos a viver. Mas não só por estas razões faz sentido questionar o espaço ideal do socialismo liberal. Também o próprio neoliberalismo começou há muito a perder o seu fascínio  e a sua tão apregoada eficácia económico-social, sendo evidentes os perniciosos efeitos económicos e sociais, por exemplo, da reaganomics ou do thatcherismo (veja-se Perry Anderson, 1995). De resto, um liberal como Ralf Dahrendorf sublinhara, há muito, a importância da questão social na perspectiva liberal. Outro liberal, Robert Dahl, escreveu mesmo um livro intitulado A Preface to Economic Democracy (1985). O livro A Theory of Justice, de Rawls, chegou mesmo a ser, por alguns, considerado como a “versão anglo-saxónica do liberal-socialismo”. Tudo isto não é pouco para justificar uma incursão pelo património ideal deste híbrido, ou “ircocervo”, de que se ocupa a polémica de Guido Calogero com Benedetto Croce, nos anos quarenta, em Itália. Liberal-socialismo ou socialismo liberal – a opção depende da orientação de origem, liberal o socialista.

II.

O conceito não é nem recente. De liberal-socialismo já falava Leonard Hobhouse, em 1911, no livro Liberalism, e de modo articulado e propositivo. O próprio liberal Croce, em Etica e Politica, chegou a afirmar que “bem se poderá, com a mais sincera e viva consciência liberal defender providências e ordenamentos que os teóricos da abstracta economia classificam como socialistas e, com paradoxo de expressão, falar mesmo (como recordo que se faz numa bela eulógia e apologia inglesa do liberalismo, a de Hobhouse) de um socialismo liberal” (Croce, 1973: 266). E, bem mais recentemente, Perry Anderson, num belo ensaio, The Affinities of Norberto Bobbio, de 1988, chega mesmo a encontrar a presença, no próprio filão clássico e no interior da obra de cada um dos seus expoentes, de uma passagem progressiva que conduziria do liberalismo estrito ao socialismo liberal: John Stuart Mill, Bertrand Russell (originariamente autodefinido “liberal ortodoxo”), J. A. Hobson e John Dewey (a “mente filosófica mais eminente” dos USA, como o define Anderson). O caso de Bobbio é complexo e de difícil definição. Certo, é que ele se assume como liberal, entendendo como liberalismo “a teoria que defende que os direitos de liberdade são a condição necessária (mesmo se não suficiente) de cada possível democracia, mesmo da socialista (se por acaso for possível”); e como liberal-socialista, e não só pelas razões históricas que o levaram a ligar-se com profundidade ao movimento liberal-socialista italiano liderado por Aldo Capitini e Guido Calogero e ao Partito d’Azione. Talvez também porque, como ele próprio afirmou, “pessoalmente considero o ideal socialista superior ao liberal”: “enquanto não se pode definir a igualdade através da liberdade, há pelo menos um caso em que se pode definir a liberdade através da igualdade”, isto é, “aquela condição em que todos os membros da sociedade se consideram livres porque têm poder igual”. Ou a igualdade perante a lei, que nos torna livres; ou, ainda, diria eu, seguindo a máxima de Cícero: “si aequa non est, ne libertas quidem est”.

III.

O liberal-socialismo pretendeu superar criativamente quer a tradição liberal quer a tradição socialista.  Calogero dizia-o claramente, e com rigor morfolófico, na sua obra de 1945, Difesa del liberal-socialismo: “nem o liberalismo era substantivo, nem o socialismo era adjectivo, nem vice-versa, não havia díade de substantivo e adjectivo, mas um substantivo único… um só e novo conceito”. O primeiro Manifesto Liberal-Socialista, de 1940, declarava a indissociabilidade dos dois elementos: “não é possível ser seriamente liberal sem ser socialista, nem ser seriamente socialista sem ser liberal. Quem chegou a esta convicção e se persuadiu que a civilização procede tanto melhor quanto mais a consciência e as instituições do liberalismo trabalharem para inventar e para instaurar ordens sociais cada vez mais justas, e a consciência e as instituições do socialismo tornarem cada vez mais possível, intensa e difusa tal obra de liberdade, atingiu o plano do liberal-socialismo”. Durante o vinténio fascista italiano desenvolveu-se teoricamente uma área político-ideal bastante original quer em relação à tradição marxista e comunista quer em relação ao socialismo clássico. Intelectuais como Piero Gobetti ou Carlo Rosselli produziram obra original neste campo. O democratismo radical de Gobetti, tão em sintonia com as posições de Gramsci, viria a influenciar a criação de uma tendência bem mais curiosa do que o próprio liberal-socialismo: o liberal-comunismo, de Silvio Trentin e Augusto Monti, que aliava a ideia de Estado federativo anti-autoritário com a de uma forte socialização da propriedade. Rosselli, que, em 1928, escreveu um livro intitulado Socialismo Liberal, tentava, como diz Anderson, “expurgar o socialismo da sua herança marxista e da sua versão soviética e recuperava no seu interior as tradições da democracia liberal que ele considerava serem a síntese das conquistas fundamentais da civilização moderna” (1989: 29). Se o socialismo liberal de Rosselli estava mais perto da elaboração política de Calogero, de Gobetti aproximava-se talvez mais Capitini. No essencial, o liberal-socialismo traduzia precisamente esta oscilação de sensibilidades político-ideais, mas exprimia certamente uma inequívoca matriz liberal. Como disse lapidarmente Mario delle Piane: “o socialismo liberal de Rosselli (o qual, no fundo, entronca no revisionismo de Bernstein) é uma das heresias do liberalismo”. Heresia ou não, esta posição encontra-se claramente assumida no famoso livro de Eduard Bernstein, talvez o mais relevante e pioneiro intelectual e político que se situa nas origens do socialismo democrático. Falo da sua obra Os Pressupostos do Socialismo e as Tarefas da Social-Democracia, publicado pelo Editor Dietz, em 1899, em Stuttgart. Os partidos socialistas podem encontrar nele a sua grande inspiração, muito em particular depois do corte com o domínio do património marxista sobre a sua orientação ideal e política. E o que diz Bernstein? Vejamos algumas passagens deste livro a propósito do liberalismo, que é o que neste artigo me move: “Enfim, seria aconselhável uma certa moderação nas declarações de guerra ao ‘liberalismo’. De acordo: o grande movimento liberal da história moderna desenvolveu-se, antes de mais, a favor da burguesia capitalista; e os partidos que se definiam com o termo ‘liberal’ eram ou tornaram-se paulatinamente puros e simples guarda-costas do capitalismo. Entre estes partidos e a social-democracia não pode existir, naturalmente, senão antagonismo. Mas no que diz respeito ao liberalismo como movimento histórico universal, o socialismo é o seu herdeiro legítimo não só do ponto de vista cronológico, mas também do ponto de vista do seu conteúdo ideal”; ou “a democracia é somente a forma política do liberalismo” (“die Democratie ist nur die politische Form des Liberalismus”); ou ainda “na realidade, não existe ideia liberal que não pertença também ao conteúdo ideal do socialismo”  (Bernstein, 1974: 191-192). Se dúvidas houvesse, bastaria o que diz Bernstein para que elas desaparecessem. Mas se não desaparecessem, conviria ir ler o Grundsatzprogramm do Congresso de Bad Godesberg, de 1959, ou o de Berlim, de 1989, para ficar clara a adopção do princípio da liberdade como centro da orientação ideal do SPD e do iluminismo como uma das raízes históricas deste influente partido no universo da social-democracia europeia. O Iluminismo é, como se sabe, a expressão filosófica do liberalismo político. Mas convém também lembrar que o socialismo democrático e a social-democracia têm, de facto, mais afinidades com o liberalismo do que com o marxismo (na génese, a afinidade ou mesmo a identidade com este último era total, ou dominante) ou, naturalmente, com o romantismo.

IV.

Este movimento político-ideal (a que se juntava “Giustizia e Libertà”, fundado pelos irmãos Rosselli) viria a exprimir-se politicamente como Partito D’Azione, de curtíssima vida, esmagado pelos partidos políticos tradicionais. Bobbio participou na fundação de tal partido, precisamente enquanto elemento ligado ao liberal-socialismo. O rápido fim do Partito D’Azione não o levou, contudo, a pôr em causa as suas convicções liberal-progressistas; tão progressistas que acabariam por o tornar o grande e polémico interlocutor da mundividência teórica do comunismo italiano, talvez a mundividência hegemónica na Itália daqueles tempos (na filosofia, na teoria política e nas artes). E sempre e cada vez mais, apesar de o seu progressismo ser talvez mais de matriz liberal do que de matriz socialista ou, então, por o seu progressismo ser liberal-democrático, onde a democracia surge, e em Bobbio talvez seja mesmo assim, como a força polarizadora que relativiza e torna complexa a relação entre os elementos de extracção liberal e os de extracção socialista. Ou seja, para Bobbio a solução talvez esteja na convergência da tradição liberal e da tradição socialista na democracia representativa, bem mais subversiva do que a própria tradição socialista. A democracia representativa como síntese destas duas tradições.

V.

Poder-se-ia, então dizer que o socialismo liberal é aquele que melhor exprime e traduz a própria democracia, que integra ambas as tradições, ou seja, que combina de forma harmoniosa os princípios da liberdade e da igualdade. E se Bernstein tiver razão ao dizer que é indissolúvel a relação entre socialismo e democracia tudo fica dito, sobretudo quando ele também considera que a democracia é a forma política do liberalismo. Fica assim demonstrada a lógica do socialismo liberal ou até mesmo a ideia de que esta é a fórmula que melhor distingue o socialismo democrático do socialismo de Estado. Na verdade, não se compreende que socialistas considerem estranho este filão do socialismo liberal quando é ele que procura promover o que de melhor têm a tradição liberal e a tradição socialista, o que constitui a sua verdadeira marca distintiva. É verdade que os partidos liberais sempre se colocaram à direita e que há uma sua tendência, designada por neoliberalismo, que exprime de forma clara uma visão de direita. O que não se pode esquecer é que a carta que funda as nossa modernidade e o sistema representativo é a liberal “Declaração dos Direitos e do Homem e do Cidadão”, de 1789. E que foram os liberais que inauguraram a nossa modernidade política, derrubando o Antigo Regime. E, finalmente, que os partidos socialistas e sociais-democratas sempre procuraram harmonizar em igual medida os princípios da liberdade e da igualdade, como aspiração máxima da democracia representativa.

Não há, pois, razão alguma para considerar estranha esta “fórmula” do socialismo liberal, porque, como diz Norberto Bobbio, “O liberal-socialismo”, sendo somente uma fórmula(…), ela, todavia, “indica uma direcção” (1989: 82 – na resposta a Anderson). Nem mais.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Perry (1989). “Norberto Bobbio e il Socialismo Liberale”. In Anderson, Bobbio, Bosetti e Cerroni, Socialismo Liberale, Roma: L’Unità.

ANDERSON, Perry (1995): “Balanço do Neoliberalismo”. In Sader, Emir & Gentili, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, pp. 9-23.

BERNSTEIN, Eduard (1899; 1974). I Pressuposti del Socialismo e i Compiti della Socialdemocrazia. Bari: Laterza.

CROCE, Benedetto (1973). Etica e Politica. Roma/Bari: Laterza.

SANTOS, João de Almeida (1988). Paradoxos da Democracia. Lisboa: Fenda.

JAS@09-2023

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Poesia-Pintura

LAMENTO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Palácio das Artes
no Monte Parnaso”.
Original de minha autoria.
Setembro de 2023.
PalacioArtes2023_09jpg

“Palácio das Artes no Monte Parnaso”. JAS. 09-2023

POEMA – “LAMENTO”

SINTO-ME SÍSIFO,
Cansado
De carregar
Palavras
De evasão
Lá para o cimo
Do Monte,
O lugar
Da redenção.

PALAVRAS
Com gravitas, 
O meu abrigo,
Palavras com
Com peso,
Sofridas,
O meu castigo.

SINTO-ME CONDENADO
A transportar
Sentimentos
Lá para o alto,
Agarrados
Às palavras
E agarrados a mim,
E logo trazidos
De volta
Neste processo
Sem fim.

REGRESSO
Com menos peso,
É verdade,
Alguns ficam
Por lá
(Talvez metade),
Disfarçados
De palavras,
Outros levados
Pelo vento.

LÁ NO ALTO
(E no meu peito),
O silêncio
Ouve-se mais
Porque o ar é
Rarefeito
E não há outros
Sinais
Nem há som
Que o sustenha...
..............
Procuro, então,
Libertar-me
E canto,
Canto
Com o ar puro
Da Montanha.

CANSA-ME
Este ir e voltar,
Mas nunca
Desespero
Porque nada mais
Eu espero
Ou sequer
Posso fazer...
................
Estou condenado
À viagem
Para nunca
A perder.

CAMINHO
Numa estrada
De luz,
É verdade,
E os meus pés
São asas
De fantasia
Que voam
Ao seu encontro
Por um golpe
De magia...

EU SINTO, SIM,
O cansaço
De tanto assim
Caminhar,
Mas sei muito bem
O que faço
Simplesmente
Por amar.

QUEM ME MARCOU 
Tal destino,
Quem o marcou
Afinal?
Foram os deuses
Do Olimpo
Ou foi 
A visita da musa
Naquele dia 
Fatal?

PalacioArtes2023_09jpgRec

Artigo

FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA (III)

Confissões de um Poeta

Por João de Almeida Santos

RUBOR2023

“Rubor”. JAS. 09-2023

OLHOS DE ÁGUIA

ELAS, AS MUSAS, fazem parte da identidade dos poetas? Talvez nem haja poetas sem musas, digo eu. Uma ligação indissolúvel. Estro, inspiração. Condenados a viver no mesmo lar. Que é imenso, tão vasto como o universo da fantasia. Estas musas, as que também a mim inspiram e com as quais vou convivendo no ondear da minha vida de poeta já têm fundas raízes no meu Jardim Encantado, lá na Montanha, no meu Parnaso. No meu lar. Aí o poeta tem olhos de águia, porque voa alto sobre o vale da vida. E quando atravessa um arco-íris, apoiado nos flancos montanhosos do vale, bem precisa deles, desses olhos, porque a sua sensibilidade se fragmenta em mil gotículas de água luminosas e em coloridas refracções, vendo o vale da vida a sete cores, lá do alto. São olhos de águia e de água. Da montanha e do mar. Ah, sim, quando atravessa os arcos-íris ele nunca resiste a sentar-se num deles para observar o que se passa lá em baixo, nesse vale. Vê tudo a cores em mil refracções. E ao pormenor, com esse olhos. Os olhos de águia.

REFRACÇÃO

Não há perigo de, um dia, as musas partirem de vez, cortando as raízes, porque elas regressam sempre com a chuva. No céu da fantasia há nuvens e chove lá, dizia o Dante Alighieri. Há azul, mas há também chuva. Na fantasia também há sempre muitos arcos-íris. Se não chove, pelo menos há milhões de gotículas no ar. E o poeta gosta de andar à chuva, de se molhar e de refrescar a alma, de a pôr em refracção com raios de sol, iluminando as palavras. Aquele lugar lá no alto, no topo de um arco-íris, é o melhor ponto de observação do vale da vida – a visão é caleidoscópica. E melhora a vida cá em baixo.

A POESIA É EXCESSO

Salvo-me porque me excedo, respondi um dia a quem me dizia que a poesia é excesso. O que me falta no real abunda-me na fantasia. Levito para me conceder o que me faltou. “Privação sofrida”. A fantasia puxa pela forma e obriga-me a formatar essas pulsões profundas que ameaçam fundir, liquefazer, a minha identidade. Porque ficaram lá nas profundezas da alma, não resolvidas, em ebulição. Mas eu preservo-a, a identidade e as suas deambulações pela vida vivida, criando. E a criação é excesso. Duas horas em poesia podem parecer uma eternidade ou um instante absoluto na dialéctica dos excessos de presença/ausência. Os fragmentos de memória afectiva são para mim como um rio que flui, com rápidos perigosos e aluviões que transbordam para as margens, e onde me atrevo a mergulhar para chegar à foz. Que é perigosa, por causa do choque ondulatório e do encontro de águas diferentes (doce e salgada). Felizmente, acabo por nunca lá chegar e por me ficar pelas margens do rio, levado pelos aluviões. É nas margens que eu crio. Aliás, o problema reside precisamente em nunca lá chegar… a essa desejada foz. Criar é transbordar para as margens da vida vivida.

MUSAS

Quando há perfumes no ar e há música, eu gosto de coreografar, não com o corpo, mas com a alma. Convoco o poeta e o pintor, vou com eles até ao jardim (tenho lá o tal imenso jasmim que me embriaga com aquele aroma acre e intenso) e dali partimos para uma coreografia de palavras e cores. Olhando para a montanha e invocando as musas. E elas vêm até mim, desafiando o estro. Às vezes, o pintor retrata-as, mas o poeta não se cansa de as cantar. São três (ou talvez quatro, não sei), como as Graças do Botticelli. E pousam na vasta ramagem do loureiro e do jasmim. Talvez por causa dos aromas e do significado destas plantas. Uma vez o loureiro “deu” uvas, imensas uvas, e tive de o cantar. Onde é que já se viu um loureiro dar uvas? Só mesmo o meu. Mas eu acho que foi obra de uma das musas. Talvez da Erato. Mas não tenho a certeza. O que sei é que por ali anda feitiço. Com essas uvas fiz vinho. E com ele oficio nos rituais de Domingo. Às vezes, quando pinto o jardim, parece-me ver umas misteriosas sombras, mas cativantes, que se assemelham às musas, mas, quando tento fixá-las, elas desaparecem. Sobra-me a poesia para as evocar e invocar. E, depois, inspirado num poema, dou-lhes forma. Reinvento-as. As musas são rápidas como o vento (são como as fadas) e é por isso que o poeta se queixa de tantas saudades sentir. Já estão a partir quase antes de chegarem.  Neste caso, a rapidez delas cega-o a ele. E não as vê… mas pressente-as. E são silenciosas até doer, o que o leva a provar o “gosto amargo… de acerbo espinho” e a dar-lhes forma poética para resolver a sua saudade de “vago amante” (Almeida Garrett). Vinga-se delas, pintando-as, e não só com palavras.

BAILADO

Eu procuro sempre um bailado de palavras com ritmo próprio. Faz parte da minha poética esta coreografia musical. Com palavras. É sempre a última parte do meu processo criativo. E até sacrifico a semântica, se tiver de escolher. A sonoridade é intensamente sensorial e decisiva para a performatividade da poesia. Para a sua vitalidade. E para a sedução, a que o poeta sempre aspira. Mas é difícil. É um bailado a solo numa coreografia interior que se inspira em fragmentos da memória afectiva. Inatingível, a musa? Sim, como todas as musas. Só a ausência permite a recriação artística. “Maintenant tu es plus beau que toi-même, Gherardo” – dizia a Yourcenar/Michelangelo a um Gherardo ausente, em “O Tempo, Esse Grande Escultor”. E será mais intensa e bela se for sofrida. Levitação desejada, privação sofrida, dizia o Calvino, nas fabulosas “Lições Americanas”. Nas musas ganha intensidade a dialéctica entre a ausência e a presença. É neste intervalo que o poeta se situa.

A POESIA, A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL

A resposta ao “até quando” te encontrarás, poeta, neste estado de privação é: sempre! Na temporalidade poética, digo, uma temporalidade superior não compatível com a circularidade efémera da rotina e do fungível quotidiano. Renúncia, dizia o Bernardo Soares. Mas é uma renúncia sofisticada, criativa, alimentada por fragmentos de memória, acarinhada por uma delicadeza extrema, como se fosse para seduzir a musa e trazê-la de volta. O que, sendo impossível, obriga o poeta a superar-se para transpor essa barreira da impossibilidade, procurando a perfeição. O poder arrebatador da perfeição. Só a perfeição pode resolver a impossibilidade. Porque nada é exterior à perfeição. Nela o impossível torna-se possível. A verdade é que em cada poema o poeta atinge a musa com a delicadeza e a subtileza das palavras que compõem a sua pauta poética. O Kant chamou a isto o “transcendental”: agir poeticamente como se a musa estivesse em frente e o poeta fosse um “diseur” em carne e osso para a seduzir fisicamente. Com o poder da palavra e a força da sonoridade poética, da música, da melodia, da toada. Até às lágrimas. Atinge-a assim. Só assim. O real pouco importa se ele já existir sob forma de registo em fragmentos de intensa memória afectiva. Os sentidos, depois, estão “representados” pela pintura que prolonga o poema e que é uma linguagem complementar do processo de sedução pela arte. A pintura como prótese da poesia, o que não acontece com a música, que lhe pertence, faz parte de si, lhe é interior. Verdadeiramente, não há impossíveis para o poeta que ouse atingir a perfeição. Tudo o que é poético é real, mas nem tudo o que é real é poético.

VIDA DE POETA CANSA

Eu creio que as paixões dos poetas são sempre labirínticas e jogadas entre a luz mais intensa e a sombra mais sombria. As musas são leves e rápidas como o vento, mas o poeta traz consigo o insustentável peso do viver agarrado às suas palavras e à sua melodia. Tem  leveza e tem “gravitas”. O seu discurso tem densidade e não é isento de consequências, apesar de valer por si. E por isso talvez ele sofra de fadiga. E, também por isso, procure vitaminas poéticas para repor energia. Não é fácil descer constantemente às profundezas da memória e do tempo perdido para depois se elevar até ao azul celeste, voando sobre a linha do horizonte e espreitando o mundo da vida lá de cima com as lentes riscadas de uma vida vivida (nem sempre há arcos-íris de onde observar a vida em refracção de cores). É um esforço tremendo, este. E cansa, sim, mas também anima e liberta. Cansado, sim, mas ele tem sempre de levitar. E, sempre que pode, descansa sentado num arco-íris.

O POETA E O PECADO

Para o poeta nunca as suas aventuras são inúteis. E nunca padece de pudor. Ele explora-as, com fins poéticos, claro. Isto era o que o Nietzsche dizia, no aforismo 161 da obra “Para Além do Bem e do Mal”. E eu concordo. Talvez ele seja mesmo de paixão fácil, sim, mas nunca é leviano no sentir. Procura estar sempre no limbo, na fronteira, quase a cair nesse poço fundo da paixão… Sim, mas quando está a cair agarra-se às palavras e levita sobre o perigo, sobre o abismo. Nunca cai no poço. O poeta é um aventureiro interior, deixa-se logo ir ao primeiro jogo de sedução… Mas, depois, recua, resiste e renuncia. Não por pudor, mas para permanecer livre da circularidade efémera e redundante da circunstância. Como se o seu destino fosse viver em celibato num mundo de tentações e pleno de pecado. Sempre atraído pelo pecado. O poeta vive, sim, permanentemente em pecado… para depois se poder confessar (poeticamente) e se sentir absolvido. Paga o preço em poemas e redime-se. Sem pecado não há poesia. É preciso alguma coragem para viver assim. Em permanente pecado. Mas se não viver assim perde-se e cai na rotina, no supérfluo, no circunstancial. Nega-se. É assim, em geral, na arte, que não se entrega aos burocratas da vida, aos rotineiros, aos ritualistas da vida, que se perdem nas celebrações sociais. Aos que se deslumbram perante os espelhos que lhes põem diante. O poeta e o seu reverso, diz-me um amigo. Pois é. E isso vê-se nas contradições do seu próprio discurso. Estas contradições só podem subsistir porque acontecem no interior do discurso poético, mas espelhando as que, lá fora, devoram a alma dos amantes incondicionais.

ESCULPIR

Esse tempo, o da poesia, o dos seus fragmentos de memória, é, sim, o maior escultor. O tempo só conserva os fragmentos com densidade e intensidade existencial. Tinha razão a Yourcenar. Esculpir esses fragmentos é o destino do poeta, sempre em linha com o tempo, o seu tempo interior. O poeta é um aliado do tempo, esse escultor. Lamenta-se, esculpindo. É a sua fala. Cada golpe é dado em delicado sofrimento, palavra a palavra, como se estivesse a caminho de um êxtase redentor. Há mais fases? Não sei. Vai chovendo na fantasia e bem sei que não tenho o poder de produzir nuvens. Umas são mais carregadas do que as outras. Outras vezes desaparecem e nasce o azul inspirador. O poeta é súbdito da fantasia e esta move-se com o vento… como as nuvens.

O TEMPO DA POESIA

Fechar um processo com arte é como não o fechar. Cantar a despedida é como não se despedir. A arte abre, não fecha. Cada poema talvez seja apenas um lamento. Pronto a repetir-se. Lamenta-se, mas fica sempre por ali, à espera de nova oportunidade interior para se lamentar de novo. Um profissional do lamento. O revolucionário utópico lamenta-se do mundo que não consegue transformar e desenha utopias. O poeta lamenta-se da privação sofrida, levita e reconstrói o sentimento com palavras e sonoridade melódica e rítmica. A musa está ali para lhe lembrar que ele está em permanente dívida para com a vida, a quem deve um tributo. Não tivesse ele fracassado! Como poderia, pois, o poeta abandonar a musa que o inspira e o ajuda a pagar essa dívida? Seria como despedir-se de si próprio. O poeta bem sabe que o lamento não romperá o silêncio, mas também sabe que esse silêncio é o seu próprio alimento. No silêncio cresce o estro, no silêncio cresce o sentir, no silêncio cresce a vontade de comunicar poeticamente. O tempo resolve, dir-se-á. Mas a resolução poética é de outra índole. É outro tempo. Resolver poeticamente é sublimar, elevar. E a sublimação só acontece em estado de ausência, de perda, de silêncio. De despedida. Sim, por isso há sempre um recomeçar em cada despedida. Haverá sempre um novo sonho, mas não sabemos como será composto. Até porque as musas são imprevisíveis.

RUBOR

A figura branca (do quadro “Rubor”, aqui reproduzido) alude à neve que ainda subsiste quando Março já se anuncia sob a forma de flor, por exemplo, através das magnólias. Este rosto de flor/mulher, “a querer saltar da tela para se oferecer”, cromaticamente intenso e luminoso alude a uma musa que convoca o poeta-pintor a sair da gruta das sombras para a luz do céu, onde ficará encandeado e fascinado pelo seu olhar cintilante até que ela, rápida como o vento, regresse, num instante, ao Parnaso. Lembra a alegoria da caverna de Platão (há, no quadro, a entrada de uma gruta). É fugaz, como todos, este encontro e no regresso à gruta “sombria” da vida, carregando o peso da nostalgia e o insustentável peso do efémero, o poeta refugia-se na poesia para poder resolver esta perda, por levitação poética. A poesia, pela levitação, liberta-o dos grilhões que o prendem ao mundo sombrio da caverna e condu-lo de novo ao lugar do encontro, evocando e invocando a musa inspiradora. Um reencontro reparador, em ausência. O quadro representa o chamamento sedutor e a poesia, a que alude, o reencontro criativo, em ausência. Assim se completam, a pintura e o poema. No fim, quem fica feliz sou eu próprio, fiel guardião da casa onde habitam o poeta e o pintor.

ENCANTAMENTO

É encantamento, o que anima o poeta. Tem três musas (talvez quatro, sim). Mas elas são rápidas como o vento e o poeta vive o encantamento como raio que o fulmina e logo desaparece no ar. É a moira, o destino, o fado, o seu lado trágico. Vive em permanente contingência  sujeito ao encantamento arrebatador, seu alimento. O que acontece presencialmente ou em diferido.  É verdade que ele o experimentou directamente, o encantamento, que ficou aninhado lá no fundo da sua alma. Mas agora falta-lhe aquele olhar castigador, misterioso e físico que o submetia, o fazia estremecer. O estremecimento originário, que fez nascer o poeta. Um acontecimento que agora se manifesta através do silêncio e de uma ausência expressiva e sublinhada por um concreto gesto de vontade. Por isso, ele está sempre em perda (ou em dor), mesmo quando em maré-cheia, mais perto das musas. Das outras. É por isso que só lhe resta cantar. A sua vida é, sim, como as marés: maré-cheia, baixa-mar. Altas vagas a alternarem com mar calmo. Vive ao sabor das musas e dos ventos. Sem rotinas, mesmo quando o mar está calmo, porque as musas são exigentes, implacáveis e imprevisíveis. Quando o mar está calmo o poeta sente-se inquieto e fica em alerta. Ele sabe que está condenado a cantar… para ser feliz. Relativamente feliz, até porque sabe que tem de estar continuamente a conquistar a felicidade. A felicidade dá-lhe trabalho. Mas está condenado a ser (assim) feliz. A esperança convive nele paredes-meias com a desilusão e a dor. Entre uma e as outras só há o canto. E o canto repara a dor e anuncia uma nova esperança… Eterno retorno.

TRANSFIGURAÇÃO

Um dia escrevi um poema onde procurei aludir às interpretações demasiado literais da poesia levando o sujeito poético a reagir, voando sempre lá mais para cima, para o azul do céu. Há sempre quem esteja pronto a identificar o referente dos poemas, a identificar o sujeito poético (o actante) com o próprio poeta, a musa com alguém concreto e o estímulo real com o próprio poema. Já aconteceu e com consequências para o poeta ou, se quisermos, para o autor. É claro que o poeta engravida para dar à luz um poema, mas a gestação é solitária e segue o seu próprio percurso com os recursos de que dispõe. É o parteiro de si próprio. É por isso que estou sempre a citar o Pessoa e o poeta fingidor. Porque diz tudo acerca da poesia. Ainda por cima, como acontece neste caso, muitas vezes a musa é retratada também em pintura pelo poeta-pintor. Mas mesmo que nela haja traços de uma pessoa concreta o referente é a obra de arte e não essa pessoa. Ou seja, a arte descola do real e a ele regressa somente como transfiguração. Entre um momento e o outro há séculos de história da arte, de poesia ou de pintura. Séculos mediados pela sensibilidade e pela técnica do artista. A sua é uma leitura empenhada por dentro do sujeito poético e pelas suas motivações, tal como há muito se vem expondo nas suas narrativas poéticas. Sim, é verdade, a arte é devolução do real transfigurado. O virtuosismo é dança a solo, sem partner. No mínimo, requer-se um pas de deux e música para o executar. Mesmo quando convocado para um solo, a partner (a musa) também dança. Só que não se vê.

FANTASMAS NA CATEDRAL

Também creio que andam por aí fantasmas à solta, não tivesse o poeta sido visitado por uma musa (Eliot). Aliás, foi assim que ele nasceu. Fantasmas nas catedrais de palavras, onde o murmúrio é a linguagem. Sim, a poesia é murmúrio. Há fantasmas na catedral, pois há. Os poetas vão para lá suspirar de tão melancólica vida viverem. Protegem-se assim do ruído do mundo e inventam um tempo que é só seu. E criam cânticos com ecos de catedral. Os poetas vivem em catedrais porque nelas tudo se conjuga para a perfeita levitação, o som, a luz filtrada, a penumbra, o pleno e o vazio, o silêncio, a grandiosidade das colunas e das abóbadas. Poética religiosidade onde a invocação é à musa. Musa e fantasmas são por isso os habitantes da poética catedral. E ali está o poeta a cantar o seu trágico destino como oficiante do ritual em que se transformou a sua vida. É lá que ele constrói as suas pontes entre o desejo e o impossível.

A CASA DA INQUIETUDE

Apetece-me dizer que o poeta habita a Casa da Inquietude. Também lá vive o gémeo pintor. E ambos pintam a mesma inquietação, um, com palavras, o outro, com riscos e cores. Normalmente quem dá o primeiro passo é o poeta, o que tem a sensibilidade sempre à flor da pele porque a vida o castigou. Nasceu assim como poeta. Sísifo alado que carrega consigo um imenso fardo de palavras. Fardo? Talvez não porque elas são leves como as nuvens do céu. O que talvez não seja o caso do pintor – ser como Sísifo. Mas não sei, não quero ser injusto com ele, libertando-o do tormento criativo. O que sei é que, depois, o pintor alivia-o da dor com a pintura. Se com as palavras o poeta levita sobre o vale da vida, com riscos e cores o pintor ainda se eleva mais, criando um ambiente de luz e cor que aquece as palavras com que o poeta se “confessa”, se liberta, se redime. É um autêntico bailado. No fim, creio que a sinestesia dá origem à feliz melancolia ou à alegre nostalgia. O poeta fica pronto a recomeçar. Uma espécie de eterno retorno, já que vive irremediavelmente na Casa da Inquietude e de lá não pode sair, não pode mandar o passarinho embora porque seja feliz (e não é). Seria eutanásia poética. Quase um oxímoro. Porque sem dor não há poesia. A felicidade não consta dos anais da poesia. Bom, se constar será como que uma felicidade dorida. JAS@09-2023

RUBOR2023Rec

Poesia-Pintura

REMINISCÊNCIAS

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Epifania”.
Original de minha autoria.
Setembro de 2023.
JAS_Epifania2023_1

“Epifania”. JAS. 09-2023

POEMA – “REMINISCÊNCIAS”

OLHANDO-TE,
O teu rosto
Lembra-me
A Primavera
De Botticelli.
Reminiscências
Da Galleria,
Em tempos
De alegre 
E toscana
Epifania.

MAS AGORA
Sinto-me
Como vela
Que te alumia
O caminho,
Com candor,
Que arde
Por dentro
Em palavras,
Sozinho,
Pra preservar
O efémero
Desse teu olhar
Sedutor.

ALUMIO-TE
Enquanto esvaeço
Até mais não ser
Que resíduo
De palavras
Do poema
Que te ofereço:
Luminoso 
Renascer.

MAS NÃO SEI
Se vês esta luz
Ou se apenas
A imagino,
Se tens caminho
Ou sendeiro
Pra trilhar
Ou se é meu 
Desejo
Derradeiro
De, assim,
Te preservar.

EFÉMERO
Sou eu
Porque vou ardendo
Por dentro
E te atraio
De mansinho,
Qual borboleta
Perdida,
Porque não quero
Que ardas
Na chama
Da minha vida
Pra que não
Fique sozinho.

É PERIGOSA
A luz da vela
Quando na noite
Escura
O seu clarão
Sobressai,
Liberta calor
Em chama ardente,
Brilho intenso
E fulgente,
Esse brilho
Que atrai.

MAS A MINHA
Canção
Preserva
O efémero
Do teu sedutor
Olhar,
Enquanto ardo
Por dentro
Animado
Pelo desejo
De teu rosto
Iluminar.

POETA, 
Sou como fénix
Renascida,
Regresso sempre
À vida
Em cada verso
Que crio
E com ele
E com palavras
Retomo 
O meu caminho. 
E é, então, 
Que sorrio...

O POETA
Faz versos
Como quem morre,
Mas renasce
Em cada dia
Nas vidas
Que, em palavras
Sofridas,
Ele com arte
Recria...

REMINISCÊNCIAS...
...............
Se perguntasses
Por que razão
Eu te canto
E te ilumino
Era o que eu
Te diria,
Quentes 
Recordações 
Dos tempos 
De vibrante 
Epifania.

JAS_Musa2023_09_1.jpgSepiaRec

Artigo

FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA (II)

Por João de Almeida Santos

Jas13ANeveEaPrimavera2022

“A Neve e a Primavera”. JAS. 2022 (Impressão Giclée em papel de algodão – 100%; 310gr – e verniz Hahnemuehle, 68×93, Artglass AR70 em mold. de madeira)

1.

PALAVRAS BORDADAS… Alguém se referiu a um poema meu com estas palavras. Sim, a poesia é tarefa meticulosa parecida com os bordados. Os fios são palavras. O poeta, o bordador.  E um bordado é sempre uma dádiva executada com carinho. Não é somente virtuosismo técnico. Não, é mais. É como a poesia, também ela uma dádiva, a nós próprios e aos outros. Uma acção verbal perante outrem. Como exigência interior. E como partilha. Palavras bordadas, cantadas para que os outros sentidos possam ouvi-las e quase tacteá-las nas vibrações… Sim, e para isso há “diseurs” e cantores que as fazem chegar aos nossos outros sentidos. Música, comunicação sensorial delicada e intensa. A Natália Correia dizia que a poesia também se oferecia ao paladar (e, por isso, também ao olfacto): a poesia é para comer. Um dia, alguém me disse que só gostava de poesia se outros a dissessem para si. Que precisava sempre de um “diseur” ou de uma “diseuse”. Som, sonoridade, mas sobretudo oferta, alguém que interpela através da poesia, que fala poesia em modo musical. Oferta, sim. Gostei do que ouvi. Arte total se, depois, for acompanhada pela pintura e pelo movimento. Dançar poesia talvez seja possível (ela tem música dentro, tem melodia e ritmo) e valha a pena.  Dançar com a alma em palavras. “Ballon”, visto o processo de levitação que anima a poesia. Tal como a dança ela retira peso ao real.  E até se poderia criar uma notação especial para a dança poética – definir com rigor determinados passos e movimentos para cada verso e cada estrofe, como acontece na dança clássica ou na moderna. Tal como se pode “ilustrar” (projectar ou pôr em diálogo) com pintura um poema (é o que faço todos os Domingos), também se pode dançar um poema, mesmo sem música ou, melhor, somente com um poema dito por quem sabe dizer poesia, dando forma musical à que ele já tem dentro de si. Ou dançá-lo com a alma, que é o que frequentemente acontece a quem sintoniza com um poema. Levitar. “Ballon”. Mas eu digo: dançá-lo mesmo, com passos de dança. Num pas de deux, por exemplo.  Com a musa. Ah, como gostaria de ver um poema meu musicado, cantado e… dançado. Nem exigiria que fosse com a musa. O palco poderia ser o Jardim Encantado e a época aquela em que Perséfone regressa. Renascer com um poema. Talvez um dia isso venha a acontecer.

2.

Gosto, como o poeta, de Março. Anuncia beleza, cor, aromas, sol, vida que desponta e renasce, o regresso de Kore, sim. Março é uma fronteira aberta entre a neve e a primavera. Acontecem coisas em Março. Acontece aquela magnólia com farrapos brancos que parece testemunhar em diferido a neve que já se foi. O poeta fala delas e canta-as. Ouçamos a extraordinária Milva que, interpretando o poeta napolitano Salvatore di Giacomo (“Marzo”), canta aquele passarinho friorento que aguarda que o sol desponte e as violetas suspirem. Março é Catarina e todos os nomes que neste nome estão inscritos. Nomes de musas. Que, afinal, são mais do que nove, embora Erato esteja sempre à espreita. E é rico em contrastes, mas sobretudo na ternura do poeta-passarinho que os canta, dando-lhes um nome de mulher. Um nome por todos os nomes. A mulher e a natureza, tão parecidas em Março. Março é vida que regressa nesse eterno retorno da natureza e nos interpela, convidando-nos a renascer com ele, com ela. Proserpina, Perséfone ou Kore lá estão a insuflar de vida a natureza, incluída a humana, logo, a vida e a alma do poeta. Não há Hades que resista. Esse há-de voltar… lá para o Outono.

3.

Com Março também chega a cor que se acrescenta à palavra. Um diálogo, interpretado pelo poeta-pintor, entre a poesia e a pintura. O que ele pensa de ambas como expressões vividas do que lhe vai na alma, já em modo de levitação. Um poeta-pintor que se realiza mais na poesia (vai mais a fundo no “páthos”) do que na pintura e que vê a (sua) pintura como visualização, intensificação e extensão da (sua) poesia. Mesmo quando parte da pintura, ele vai à procura do poema que lhe ferve na alma. A matriz está na poesia, apesar da autonomia das linguagens. Ou, pelo menos, o seu é um processo de associação íntima e intensa de ambas. É claro que a cor que está inscrita num poema tem de ser visualizada com a mente e não com os olhos, estando as tonalidades associadas ao sentido profundo e global do poema. O pintor ajuda, ao propor uma tradução plástica do poema. Num poema melancólico a melancolia invade e coloniza as tonalidades. Numa pintura, o poeta-pintor procura dar vida à cor que o poema pede, como súplica, procurando libertá-la das amarras dessa súplica e levá-la ao azul do céu até à linha do horizonte, a perder de vista. Procura estilhaçar a dor através de um poderoso caleidoscópio. Um cromatismo que se desprende do poema e se autonomiza, a caminho, sim, das duas primaveras: a que esteja a chegar, em Março, e a que chegará quando, pela arte, ficar livre da prisão que o amarra à rugosidade e aspereza da vida quotidiana. À dor primordial, física, sofrida corporalmente. Estas duas artes completam-se e ajudam a transformar a dor em festa, com girândolas de cor.

4.

Na poesia e na pintura acontece uma dialéctica entre as duas faces expressivas da sensibilidade: uma, interior, a dos olhos da alma; a outra, exterior, solar, sensorial, luminosa. Uma, que sai de uma intensa pulsão interior e que se exprime através de um código linguístico estético-expressivo; outra, como ilustração luminosa e animada desse desejo irreprimível de cor revelado pelo poeta… num poema. Sim, o fundo é um desejo profundo de primavera e de luz. O poeta e a musa – como poderia ser de outro modo? O poeta fala sempre a alguém, interpela, dando, assim, sentido à sua voz. Mas, depois, é o exercício poético que universaliza esse discurso dirigido. E esse exercício ganha asas e liberta-se do referente, sem nunca o abandonar, o esquecer, o recalcar. Leva-o consigo no voo e espiritualiza-o, retirando-lhe peso: privação sofrida, levitação desejada. Uma inspiração remota que o poema renova, faz renascer, como se se tratasse de um ritual existencialmente imperativo, obrigatório. O poeta tem vida própria e também tem de se alimentar para que a poesia se renove. Os poetas são como os pássaros. Têm asas e o seu ambiente é o da leveza. E como é bom vê-los voar no céu luminoso e azul, vibrante… pintado pelo pintor nas suas fugas para o infinito através do olhar. Palavras coloridas.

5.

Concerto. Gosto da palavra porque alude a uma melodia interpretada por dois solistas: um poeta e um pintor, em consonância musical, semântica e cromática. Arrogo-me o direito de ser eu o compositor e o director de orquestra. Espero sempre que os acordes sejam conseguidos, em harmonia. Sim, são como fúchsias do meu jardim, brincos oferecidos à princesa, que é também musa dos cânticos poéticos. Oferecidos pelo pintor que nasceu do poeta “à la recherche de la couleur perdue”… encontrando-a assim, tão exuberante, luminosa e animada no regresso de Proserpina. Uma oferta generosa ao poeta que a suplicava, receoso que as primaveras não chegassem em toda a sua plenitude. Mas uma chegou e ele ficou, feliz, à espera das outras. Sim, do renascer luminoso da natureza e também de outras cores mais auspiciosas do que as cores tão cinzentas da rotina. Concerto: quando os dois solistas, poeta e pintor, se afinam sob a batuta do director de orquestra soa a liberdade e a azul infinito do céu. Pas de deux, no palco da vida. Com arte. Não há tristeza que resista.

6.

Precisamos de primaveras e de cor. Precisamos sempre. Cor por fora, mas sobretudo cor por dentro. E é verdade que o amor ilumina, tem uma força de tracção inacreditável. Mas não só. Também inspira e ajuda à descoberta de dimensões que julgamos não ter. É magia e encanto. E está para além do ser amado, transcendendo-o. O poder por ele desencadeado deixa de pertencer ao ser amado e, de certo modo, ao amante. Como uma força que nos possui e nos engravida, dando origem a novos seres. É por isso que eu acho que o amor é um privilégio, sobretudo para quem ama. Como na doutrina da predestinação: tocados pela graça. Mas muitos nascem e morrem sem saber o que é isso. Ficam em pecado, porque pecado é não amar. Outros mal se apercebem do que isso é – pelos livros é apenas uma compreensão mutilada do pathos. Logo, de certo modo inconsequente. “Primum vivere deinde philosophari”. Pronto, acho que é isto. Mas também acho que só a poesia o pode dizer em plenitude. E por um poeta atingido irremediavelmente por esta irresistível pulsão. A excepção virtuosa. Uma linguagem altamente performativa.

7.

A arte ajuda a superar as fases tristonhas e delicadas da vida. Para quem a faz e para quem dela usufrui. Não a sinto como missão, porque me liberta e me dá prazer, mas sei que, partilhando-a, de algum modo também partilho alguma (in)felicidade interior, em forma de beleza construída. A arte também é comunicação, partilha e encontro. E, por isso, sim, faz ricochete, tanto maior quanto mais profunda for a sua autenticidade. É como partilhar a “aura” de uma obra de arte. E há também conversão da dor, a tal que segundo o poeta, enobrece. Mas essa é dor de poeta. Uma dor especial. Entre a pulsão e o fingimento. Do “espírito dionisíaco” ao “espírito apolíneo”.  Do conteúdo à forma.  Também se pode chamar impossibilidade, algo que se tem à mão, mas que na realidade fica tão longe que nunca lá se há-de chegar e que, por isso, gera melancolia e saudades de um futuro que nunca chegará. Está ali, mas não lhe podes tocar. E, se chegar até ti, será somente sob forma poética. Por isso, o poeta se lança na sua aventura impossível e vai por aí adiante sem nunca parar, sabendo que é no caminhar (poético) que vai tocando ao de leve o que nunca atingirá completamente… Eu acho que amar também é dizer (que se ama). Os poemas são beijos. Que podem não chegar ao destino, porque dependem do vento e dos fantasmas. Mas, de certa forma, eles chegam sempre. Nem que seja como eco, como ressonância ou como reflexo de luz. Quando digo que a poesia é altamente performativa é isto mesmo que quero dizer.

8.

Fantasia. Que bom é sentir a chuva, fria, na fantasia. Fria, mas que aquece a alma. Nunca me resguardo, desde que, um dia, “ouvi” o Dante Alighieri dizer, no Purgatório, “poi piovve dentro a l’alta fantasia”. Só me “resguardo” com o chapéu poético. Mas isso não é resguardar-se. É expor-se ainda mais à chuva. Numa pintura que fiz para um poema, desenhei uma cascata a jorrar cor sobre um poema, entre a dor e a (vã) utopia. Chove abundantemente no poema, até ficar encharcado. Chove na alta fantasia. Dar vida e forma à voz de Dante inspirado nos versos sanguíneos do poeta nordestino Manuel Bandeira é desafio estimulante – a dor que cai gota a gota do coração (“Desencanto”):

“Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
Eu faço versos como quem morre."

“Como quem morre”, sim, mas para renascer através da transmigração poética. É a fantasia que torna sublime a dor, quando chovem lá dentro lágrimas em forma de palavras. Gota a gota, vindas do coração. Volúpia ardente. Sim, na cascata que pintei também há palavras que jorram sob a forma de gotas compactas como rios de cor sob um fundo vermelho, a cor da paixão. E do sangue. Por isso, “dói-me nas veias”.

Sim, há sempre marcas existenciais, recentes ou remotas, na poesia ou na pintura. “Dói-me”, sempre, “nas veias”. A conversão estética dessas marcas profundas dissimula-as, umas vezes mais, outras menos. Mas a dor permanece, como se vê no poeta Bandeira. É próprio da poesia, o tal fingimento, mas também procuro que esteja na minha pintura numa medida equivalente à da poesia: finge que é dor “a dor que deveras sentes”. Só que a cor absorve quase integralmente a dor. Pelo menos, parece. Esta, aqui, é como que uma dor residual. Não é como a do poeta, que sofre mais, muito mais. Mas a verdade é que em ambas as artes há levitação. E, por isso, libertação. Liberdade. Tenho navegado muito pelos rostos, que é arte muito difícil, porque durante muito tempo me habituei a escrever sobre eles, olhando para eles. É no rosto que se lê a alma. E, se houver dor (e há sempre), ela estará lá espelhada, como sinal. Mas nele, no rosto, há também mistério, além da dor (se houver). E este, o rosto, é uma poderosa fonte de amor. Porque é ele que atrai. O mistério. O rosto talvez seja a chave que abre as portas do amor. E da poesia. “E nestes versos de angústia rouca, /Assim dos lábios a vida corre, /Deixando um acre sabor na boca. /Eu faço versos como quem morre.”

9.

“Le malheur et la mélancolie sont des interprètes les plus éloquents de l’amour”.  Esta frase do Balzac, se não erro, cito-a no meu romance “Via dei Portoghesi”. É do livro “La Femme de Trente Ans” (1842; Paris, Ed. Nilsson, 1930, pág. 44). E até poderia complementá-la com uma referência constante do “Sottisier” do Gustave Flaubert, atribuída aqui a Stendhal, nas suas “Promenades dans Rome”: “Para as artes são precisas pessoas um pouco melancólicas e infelizes”. Tudo bate certo. As categorias do amor plasmadas também na arte. A melancolia e a infelicidade (“le malheur intérieur”) como molas propulsoras de arte, de superação pelo belo, de cristalização, expiação, resgate… Por exemplo, infelicidade por amor falhado, como no caso do Stendhal com a Matilde Viscontini. Não pintei um rosto melancólico por acaso num quadro que se chama “Melancolia”. “Infelicidade interior”. Os sentimentos presentes na personagem feminina daquele meu romance: Paola Valenzi. A dialéctica entre encanto e desencanto. Também ao personagem masculino do romance, Gianni della Rovere, lhe doía nas veias. Amargo e quente – era assim que se sentia. Mas é este também o destino do poeta: vive entre o amargo da dor e o quente das palavras que o fazem levitar.

10.

A exaltação nasce do impossível. Como um contraponto. A poesia como partitura onde a palavra é a outra face do silêncio e da ausência. Do impossível. Num diálogo implícito e teatral. Com autor e encenador. Onde os personagens sobem ao palco por exclusiva vontade do encenador. À procura de autor e de enredo. De um novo enredo. Mais belo. E onde a plateia é universal. É uma peça com evocação e invocação do ausente silencioso. Chamamento. A arte alimenta-se disso. Interpela. Torna-se ela mesma superação do impossível. Torna acessível e universal a impossibilidade. Torna verosímil, plausível e possível o impossível, na medida em que faz dele o tema central da narrativa. Melhor: não há impossíveis quando visitamos ou vivemos o real com a arte. Porque na arte há vida e também há partilha. A arte é intensamente inclusiva. E, sim, a “sorte” acontece quando somos escolhidos como inspiração para o voo da fantasia. E é possível escolher o impossível como matéria da arte. É tarefa hercúlea subir essa montanha abissal da impossibilidade e, no fim, sentir-se como se a tivéssemos atingido em cheio. Há sempre uma razão. Um contacto, ainda que tangencial, mas interiormente sentido, que dá vida à fantasia. A estimula. Ou a arte como contraponto do impossível numa sinfonia de palavras. A poesia é como uma rua onde há encontros e desencontros, sol e sombra, luz e escuridão, frio e calor, onde corro ou simplesmente passeio, onde compro coisas ou simplesmente olho para as montras…

11.

“O tempo corre sempre contra nós (…)” – disse alguém. A vida é uma luta contra o tempo, que é implacável, inexorável. Num certo poema, a alusão do poeta era à eternidade desejada num encontro de afectos e também aí o poeta respondia ao tempo que escasseava construindo futuro… num poema. Procurava subtrair-se à tenaz do tempo. Agarrava com palavras o tempo que lhe fugia por entre os dedos das mãos. Mas é verdade, em geral, o que alguém dizia: responde-se ao tempo que escasseia e foge, construindo futuros intemporais. Era também o que dizia o filósofo: “impotente e encerrado na melancolia sento-me ao estirador e desenho futuro e utopias. Faço a revolução quando me sinto impotente perante um real que se mostra indisponível e indiferente à minha vontade e ao meu desejo”. Há quem procure o tempo perdido revolvendo o passado (e não o encontrará, esse tempo esvaído) e há quem acrescente futuro ao tempo passado que construiu com as suas mãos. Constrói-se passado no presente a olhar para o futuro e, assim, no futuro pode-se recomeçar a partir do passado que já é património. Sem isto não haverá capacidade de construir futuros porque o futuro não se constrói sobre o vazio, tal como as utopias… a não ser como ponte entre as margens do vazio. Não há excesso de tempo, diz o poeta. E é verdade. O tempo é mais rápido do que nós e, às vezes, até nos atropela. Às vezes? Eu acho que nos atropela sempre. É a velocidade do tempo que o torna escasso. Mas a poesia consegue agarrá-lo, fixá-lo e projectá-lo para um plano liberto dos riscos da velocidade e da cegueira que ele produz. De facto, o tempo da poesia é outro. É o tempo da fantasia como exercício da vontade animada de desejo, de beleza e de eternidade. E de partilha universal. É a festa das palavras quando o poeta sente o “desencanto”… então, desprende-se, levita e dá asas ao desejo – chove-lhe na fantasia. JAS@09-2023

Jas13ANeveEaPrimavera2022Rec

Poesia-Pintura

O TEU ROSTO É UM POEMA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “O Rosto”.
Original de minha autoria.
Setembro de 2023.
Fascínio2023_4

“O Rosto”. JAS. 09-2023

POEMA – “O TEU ROSTO É UM POEMA”

O TEU ROSTO
É um poema,
Pintei-o
E nada mais.
As cores
Que te vestem
A alma
Brilham lá
Como corais...
...............
E eu, encerrado
Em palavras,
Ofereço-te
Uma moldura
Toda feita
De cristais.

ASSIM TE TENHO,
Te contemplo
E te desenho,
Assim te vejo
E te recrio
À medida
Do desejo.
Assim sorrio...
................
E assim te sonho
Com estas mãos
Que te deslizam
Na alma
Em busca
Do imortal,
Com estes riscos
Com estas cores
E com palavras
Na geometria
Do meu espaço
Vital.

CONSTRUO
Uma utopia
Levitando
No real,
Escolho bem
A minha via
Com asas
De fantasia
E pinto-te
Com luz divina
Coada
Por um vitral.

Fascínio2023_4Rec

Artigo

O BEIJO

Por João de Almeida Santos

Beijo09_2023

“O Beijo”. JAS. 09-2023

PENSEI E VOLTEI A PENSAR se deveria escrever sobre esta polémica mundial desencadeada por um beijo dado publicamente, perante as câmaras de televisão de todo o mundo, no final do campeonato mundial de futebol feminino, pelo Presidente da Federação Espanhola de Futebol, Luís Rubiales, a uma importante jogadora da selecção espanhola, Jenni Hermoso. Na verdade, há uma gigantesca desproporção entre o acto, o beijo, e a importância que lhe está a ser atribuída, mas a polémica tornou-se planetária e, por isso, vale a pena fazer algumas observações sobre o assunto, sem embarcar na conversa do “politicamente correcto” ou sucumbir à “espiral do silêncio”. Até porque o assunto se inscreve na esfera da conhecida ideologia gender, no wokismo e na lógica do movimento #MeToo. Para não dizer nas lutas internas da selecção. Talvez seja mesmo um beijo contaminado por um ambiente externo um pouco tóxico. Só assim se compreende que a extraordinária vitória da selecção espanhola tenha ficado encoberta pela guerra do beijo. Quase um oxímoro.

I.

A primeira observação é esta: um beijo é, em si, por definição, um gesto de ternura ou carinho, se entendido independentemente das circunstâncias em que aconteça, ou seja, sem as tomar em consideração. Mas, claro, pode ser violência em dois sentidos: física, quando houver coacção física e acontecer contra a vontade e a resistência explícitas de quem, neste caso, o sofre (é esta a palavra); simbólica, se, não havendo coacção, acontecer sem implícito ou explícito consentimento de quem o recebe. Neste segundo caso, o beijo pode acontecer em ambiente de normal convivência, podendo até ser traduzido pela expressão “um beijo roubado”. Sem aviso, inesperado. Acontecendo, pode dar lugar a agrado ou desagrado, mas não ser considerado ofensa por não haver intenção sexual. Ser simplesmente manifestação (imprudente ou não) de terna ou carinhosa cumplicidade. Numa situação de pacífica e amistosa convivência. Mas sendo considerado ofensa, embora considerado sem intenção, isso pode levar a um pedido de desculpa, que será ou não aceite. E o caso pode ficar por ali com implicações, positivas ou negativas, entre as pessoas envolvidas. O beijo (roubado) também pode acontecer em ambiente festivo, emotivo, de expressão de júbilo colectivo, onde a emoção se sobreponha à fria racionalidade dos gestos formais, tendo como significado simplesmente a expressão de alegria, de reconhecimento, de partilha, de forma mais ou menos intensa, espontânea, sem manifesta expressão de desejo sexual e muito menos de violência de qualquer tipo. Tudo isto pode acontecer sem drama. Trata-se, afinal, de um beijo em circunstâncias especiais. Pode-se acrescentar aqui a questão do respeito, a manter em qualquer circunstância.

O que não se pode é olhar para a relação homem-mulher, nem sequer já como pecaminosa ou concupiscente, mas como portadora de tendencial imposição de poder masculino gerada automaticamente, “por defeito”, pelo sistema, como já vi escrito por uma deputada do PS, radical-feminista, ou por um articulista profissional: “libertou instintos masculinos vindos de séculos de poder sobre os corpos das mulheres” (Daniel Oliveira, no “Expresso”). No caso em apreciação, o homem, doravante, terá o seu destino marcado, o dedo eternamente apontado, e em riste, pelo radical-feminismo como o inominável “abusador” que, movido pela euforia da vitória feminina, deu livre curso aos seus mais básicos e historicamente arreigados instintos de abuso sexual sobre a vítima de sempre: a mulher. Com um sabor especial: tratava-se de uma mulher vitoriosa. Numa relação, pois, que, afinal, continua a estar historicamente contaminada, desde tempos imemoriais, por uma tendencial pulsão de abuso masculinio de poder. Hoje e aqui, nas actuais sociedades democráticas dos países desenvolvidos… e à vista de todos. Um despudorado, mas irreprimível abuso de natureza instintiva que urge combater com todas as armas que houver à mão, diz-se. Vigiar o beijo de todos os ângulos possíveis (até a intenção de o dar) para que não seja desfigurado e se transforme em símbolo máximo de violência, de abuso e de dominação. Haverá sempre o perigo de um olhar mais intenso anunciar a possibilidade de um beijo não consentido…

II.

No caso do beijo de Rubiales a Jenni Hermoso, parece-me que ele poderia muito bem ser considerado, sim, como um gesto intenso de júbilo numa situação de grande emotividade, de grande euforia pela vitória num campeonato mundial. E até poderia ser considerado como “beijo roubado”, sem a gravidade que lhe foi atribuída. Vendo a coisa de outro modo, é claríssimo que não houve violência física, mas provavelmente também não houve sequer violência simbólica, porque não é natural nem lógico que naquela especial situação tenha havido premeditação, intenção de abuso de poder ou sexual, tendo o acto decorrido numa série de manifestações públicas espontâneas entre os vencedores no palco celebrativo. A não ser que a pulsão de poder (sexual), historicamente contaminada, se tenha apoderado do homem e o tenha coagido a beijar (instintivamente), como parece sugerir o articulista. Admito que a euforia da vitória (mas não o instinto) tenha levado Rubiales a um excesso (roubar um beijo publicamente a Jenni) que deveria ter sido evitado, até porque a presença da Rainha no palco deveria ter levado a uma certa contenção. Mais formalidade e menos emotividade pulsional. Sim. Posso admitir que tenha acontecido algum excesso de intimidade publicamente manifestada, a resolver de imediato com um pedido público de desculpa, se o autor se tivesse apercebido de ter causado incómodo à jogadora Jenni. Mas, observando o que aconteceu, ainda por cima em ambiente público, de festa e de júbilo pela vitória, acho sinceramente desajustado que esse gesto tenha sido interpretado como violência de género (se se tratasse de uma presidente e o caso acontecesse nos mesmos termos seria assim interpretado?). Numa situação destas, a rapidez da ocorrência e a alta emotividade com que as manifestações (em público, sublinho) ocorreram nem sequer parece ser normal um pedido explícito de consentimento: “desculpa, Jenni, estou tão feliz que gostaria de te dar um beijo de júbilo e de reconhecimento pelo teu papel no campeonato…”. Para mim, o excesso reside, sim, nas interpretações feitas pelo feminismo radical e pelo puritanismo pretensamente progressista a um gesto que visivelmente não exprime violência ou ofensa, pelo menos intencionais, quando o que realmente exprime é júbilo, alegria, emoção e até reconhecimento pelo papel de Jenni Hermoso na vitória. E até digo mais: a ter razão o articulista, ou seja, a ter sido a força do instinto, historicamente determinado e condicionado, a explicar o acto, então ainda deveria haver mais compreensão pelo carácter não consciente do gesto.

III.

A verdade é que este beijo não foi dado às escondidas, na penumbra, numa rua escura, num quarto de hotel, num gabinete, mas resultou de um ambiente de festa pública, nada parecendo ter de ofensa sexual, de abuso intencional e, atrevo-me a dizer, sequer de falta de respeito. E, claro, também não me atrevo a considerar que tenha sido o histórico instinto masculino a apoderar-se de Rubiales para se materializar como exercício de poder e abuso. Deveria haver maior formalidade? Sim. Deveria. Mas daí a motivar uma guerra aberta e uma implacável cruzada puritana vai uma distância enorme. A questão, no meu entendimento, deve ser centrada no significado do acto e não no excesso, perfeitamente compreensível (mesmo que não aceite) depois de uma vitória mundial. No excesso vêem o mal, porque um beijo é uma manifestação de carinho, não podendo, numa circunstância destas, ser tomado por agressão. Foi o que eu vi. E vi todas as imagens que circularam. O Presidente da Federação agride uma jogadora depois desta ter ganho um campeonato mundial… Isto faz algum sentido? Rubiales tropeçou, de tão feliz estar pela vitória? Sim, tropeçou, até se pode admitir. Mas fazer uma guerra por isso parece ser totalmente desajustado. A não ser para desencadear um vasto processo de ajustes de contas no interior da Federação: a demissão do treinador Jorge Vilda, que venceu o mundial, é a confirmação de que é disso mesmo que se trata. E não só: também serviu de pasto aos apóstolos da ideologia de género, que encontraram no famoso beijo um belo pretexto para propagandear o seu radicalismo num sector de impacto mundial.

A verdade é que o beijo desencadeou uma guerra sem quartel e foi aproveitado pelos radicais do wokismo, pelos identitários e pelos puritanos de fachada progressista de vários matizes para imporem uma vez mais a sua doutrina e julgarem a história da masculinidade até às suas origens. O dogmatismo treslê.  Mas aos radicais que se dizem de esquerda aconselharia a lerem os “Manuscritos de 1844”, de Karl Marx, para verem o que ele diz acerca da relação homem-mulher, ou mulher-homem, se preferirem, remetendo a questão do poder para outra esfera bem mais profunda, ampla e transversal. Marx, sobre a relação homem-mulher, era muito mais clarividente do que estes progressistas de fachada do século XXI.

IV.

O que me preocupa em tudo isto é a situação a que chegámos, não como diz uma jornalista militante da causa, com um claro perfil de “Inquisidora-Geral”, a este “beijo roubado”, mas sim ao aproveitamento dos fanáticos da “luta de classes”, da luta pelo poder em que se inscreve, para eles, o processo de libertação das mulheres e de luta pela igualdade. Este radicalismo cobre as fracturas essenciais que continuam a verificar-se nas sociedades contemporâneas e que têm a ver com as promessas não cumpridas da democracia, com a relação do poder político e económico-financeiro com a cidadania em geral, com o poder voraz dos oligopólios sobre os consumidores (homens e mulheres), com as guerras injustas e devastadoras, com os dramáticos fenómenos migratórios dos que procuram sair da miséria, com a situação de miséria em que se encontram a viver povos inteiros. Estas, sim, são fracturas gravíssimas que acabam por ser ofuscadas pelos holofotes centrados nestas outras lutas que, sendo legítimas, afinal se inscrevem em sociedades onde os direitos estão amplamente consagrados, ainda que não integralmente cumpridos. Basta pensar no modo como as mulheres são tratadas, por exemplo, no Afeganistão dos talibãs. Aí, sim, a mulher inscreve-se, e de forma extremamente radical, na mais geral dominação absoluta de um povo pela subordinação violenta a uma moral retrógrada e a um dogmatismo religioso que tudo submete, servindo-se da ameaça e da violência física. Não, aquilo a que estamos a assistir é simplesmente deplorável pelo seu lado mais oportunista para desenvolver jogos de poder, para defender posições corporativas e de poder servindo-se de um caso que não deveria passar de mero reparo, seguindo em frente com os festejos pela excelente vitória da selecção feminina espanhola no mundial de futebol. O mais grave é que uma multidão de comentadores já embarcou no barco da guerra. E para ver na atitude de Rubiales a libertação do instinto masculino marcado pelo secular, ou  milenar, domínio sobre o corpo das mulheres é preciso não só muita imaginação hermenêutica, como também uma evidente cegueira idiossincrática perante o facto observado. Ver nele um inominável “abusador” que, carregando o peso de séculos de pecado e de usurpação de direitos, encontra o seu momento de apoteose perante as câmaras de televisão de todo o mundo e dá, por irreprimível instinto, o beijo fatal, símbolo do domínio e do demónio masculino sobre as mulheres até que chegue o arcanjo feminista e o trespasse (ao símbolo) com a sua lança protectora e salvífica – é pouco menos do que delírio ideológico.

V.

Este processo representa um excesso, um puritanismo escabroso e perigoso que se está a expandir em mancha de óleo e que um dia se converterá em policiamento não só do pensamento, mas até da sensibilidade e da livre expressão das emoções. Em totalitarismo. Já há por aí muitos exemplos disto. E está a banalizar-se. Este é só mais um deles, mas com uma inaudita amplitude vista a área em que aconteceu – a do desporto-rei. Chegados aqui, o wokismo, o radical-feminismo e o puritanismo de fachada progressista têm mais um palco universal ao seu dispor para continuar a sua intrépida luta até à conquista do poder, à inversão total do sistema que “por defeito” está programado para a imposição do poder masculino sobre as mulheres. Ou como um “beijo roubado” pode levar a uma revolução mundial. Que sensação de liberdade e de beleza é rever a foto do famoso “Baiser de l’Hôtel de Ville”!  Mesmo não se sabendo se foi roubado ou programado. Ou, então, a beleza contida na expressão “beijo roubado”, hoje já em grave perigo de ser banida do léxico politicamente correcto, a ser considerada como expressão de violência porque se trata de um beijo não previamente consentido… precisamente porque “roubado”. Mas, sinceramente, é a expressão que eu prefiro para qualificar o beijo entre o senhor Rubiales e a senhora Jenni Hermoso. Por uma simples razão: é mais bonito ler este beijo assim, sobretudo depois de ver o riso e a alegria expansiva de Jenni e das suas companheiras no autocarro. Que Aphrodite lhes perdoe. JAS@09-2023.

Beijo09_2023Rec

Poesia-Pintura

PERGUNTA O POETA À MUSA… (II)

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Perfil 
de uma Musa”(II). 
Original de minha autoria.
Setembro de 2023.
JAS_Perfil09_2023

“Perfil de uma Musa” (II). JAS. 09-2023

POEMA – “PERGUNTA O POETA À MUSA…” (II)

E O POETA PERGUNTOU:
- Mas se o amor
É mistério
(Como dizes),
É viagem em alto mar,
Se há sempre
Tempestades
E risco de naufragar,
Por onde andas,
Ó musa,
Que o poeta, 
Vagando
Nas “imperiosas
Ondas”
Do teu mar,
Te vai sempre
Procurando
Pra mais uma vez
Te cantar?

- NO MEU LONGO
Vaguear
Por roteiros
De poeta
(É essa a minha
Missão),
Sempre ouço
O seu cantar
Nesse inútil afã
(Qual piedosa
Ilusão)
De me querer
Encontrar.

- MAS QUE DESTINO
É o teu,
Ó musa do alto
Mar,
Não proteges
O meu barco
Neste infindo
E incerto
Navegar?

- EU DEIXO A VIDA
Correr
(Já uma vez
Eu to disse),
Mas sou fonte
D’inspiração,
Assim cumpro
O meu destino,
O que os deuses
Me marcaram
Em decreto
Que é divino
E regra da tua
Canção.

- PALAVRAS LEVA-AS
O vento,
Ó musa
Dos meus pecados,
Mas o vento
Sopra no barco
Que leva
Ao alto mar
Onde componho
O meu canto
E me sinto 
A naufragar.

- INSPIRA-TE
No meu silêncio,
No sussurro
Inaudível
Da minha velada
Voz
Se te encontrares
À deriva
Nas águas revoltas
Do mar
Sem bússola
Nem perspectiva
Na arte
De navegar.

- E É ESSA
A salvação?
Em teu silêncio
Cai a verdade,
A que ouves
Nas palavras
Que devolvem
O meu eco
Com sabor
A eternidade?

POIS “EU,
Uma reminiscência
Da terra”,
Naufrago
Sempre em ti
Nesse mar do teu
Silêncio
Onde navego à deriva
No meu “barco
Solitário”,
Que de palavras
É feito, 
As tábuas
Do meu calvário...

AH, SIM,
Mas feito 
Com remos
De fantasia
Que me resgatam
Do mar
Quando me ponho
A cantar
E encho todo
O meu peito
Com a tua maresia
Para assim me salvar...

JAS_Perfil09_2023Rec