AFINAL, O QUE É O SOCIALISMO LIBERAL?
Por João de Almeida Santos

A RECENTE DECLARAÇÃO do Presidente da SEDES, Álvaro Beleza, na CNN-P, de que se filia no socialismo liberal, parece ter suscitado algumas perplexidades acerca desta doutrina, considerada até contraditória nos seus próprios termos – socialismo não rimaria com liberalismo; ou mesmo revelado desconhecimento relativamente à existência de uma tal doutrina ou orientação política. Decidi, por isso, publicar um pequeno ensaio sobre o Socialismo Liberal, de resto, retomando um capítulo do meu livro Paradoxos da Democracia (Santos, 1998: 65-68).
I.
“Não obstante a boa vontade e o talento que nela têm sido largamente investidos, a síntese de liberalismo e socialismo não conseguiu até agora realizar-se”, diz Perry Anderson, no seu ensaio sobre Norberto Bobbio (Anderson, Bobbio, Bosetti e Cerroni, 1989: 60). O socialismo liberal parece ser, pois, interessante para uma reflexão construtiva sobre a esquerda e a democracia, especialmente se considerarmos que esta última foi jogando sempre o seu destino entre liberalismo e socialismo, entre liberdade e igualdade, sobretudo nas suas versões mais radicais. Ouso até dizer que esta reflexão urge dada a clara crise que a social-democracia (ou o socialismo democrático) está a viver.
As razões para tal são abundantes e profundas. E notórias. A começar pela crise política e ideal que investiu o socialismo com a crise ou, pelo menos, as dificuldades do Estado Social e, sobretudo, a do socialismo de Estado. Ou, ainda, pela crise do modelo social e político fundado no industrialismo clássico sobre o qual se construiu essencialmente o pensamento socialista. Modelo inadequado funcionalmente às profundas mutações do sistema produtivo e das relações sociais provocadas pela emergência do pós-industrial e pela revolução da microelectrónica, a que se seguiu a actual revolução tecnológica que estamos a viver. Mas não só por estas razões faz sentido questionar o espaço ideal do socialismo liberal. Também o próprio neoliberalismo começou há muito a perder o seu fascínio e a sua tão apregoada eficácia económico-social, sendo evidentes os perniciosos efeitos económicos e sociais, por exemplo, da reaganomics ou do thatcherismo (veja-se Perry Anderson, 1995). De resto, um liberal como Ralf Dahrendorf sublinhara, há muito, a importância da questão social na perspectiva liberal. Outro liberal, Robert Dahl, escreveu mesmo um livro intitulado A Preface to Economic Democracy (1985). O livro A Theory of Justice, de Rawls, chegou mesmo a ser, por alguns, considerado como a “versão anglo-saxónica do liberal-socialismo”. Tudo isto não é pouco para justificar uma incursão pelo património ideal deste híbrido, ou “ircocervo”, de que se ocupa a polémica de Guido Calogero com Benedetto Croce, nos anos quarenta, em Itália. Liberal-socialismo ou socialismo liberal – a opção depende da orientação de origem, liberal o socialista.
II.
O conceito não é nem recente. De liberal-socialismo já falava Leonard Hobhouse, em 1911, no livro Liberalism, e de modo articulado e propositivo. O próprio liberal Croce, em Etica e Politica, chegou a afirmar que “bem se poderá, com a mais sincera e viva consciência liberal defender providências e ordenamentos que os teóricos da abstracta economia classificam como socialistas e, com paradoxo de expressão, falar mesmo (como recordo que se faz numa bela eulógia e apologia inglesa do liberalismo, a de Hobhouse) de um socialismo liberal” (Croce, 1973: 266). E, bem mais recentemente, Perry Anderson, num belo ensaio, The Affinities of Norberto Bobbio, de 1988, chega mesmo a encontrar a presença, no próprio filão clássico e no interior da obra de cada um dos seus expoentes, de uma passagem progressiva que conduziria do liberalismo estrito ao socialismo liberal: John Stuart Mill, Bertrand Russell (originariamente autodefinido “liberal ortodoxo”), J. A. Hobson e John Dewey (a “mente filosófica mais eminente” dos USA, como o define Anderson). O caso de Bobbio é complexo e de difícil definição. Certo, é que ele se assume como liberal, entendendo como liberalismo “a teoria que defende que os direitos de liberdade são a condição necessária (mesmo se não suficiente) de cada possível democracia, mesmo da socialista (se por acaso for possível”); e como liberal-socialista, e não só pelas razões históricas que o levaram a ligar-se com profundidade ao movimento liberal-socialista italiano liderado por Aldo Capitini e Guido Calogero e ao Partito d’Azione. Talvez também porque, como ele próprio afirmou, “pessoalmente considero o ideal socialista superior ao liberal”: “enquanto não se pode definir a igualdade através da liberdade, há pelo menos um caso em que se pode definir a liberdade através da igualdade”, isto é, “aquela condição em que todos os membros da sociedade se consideram livres porque têm poder igual”. Ou a igualdade perante a lei, que nos torna livres; ou, ainda, diria eu, seguindo a máxima de Cícero: “si aequa non est, ne libertas quidem est”.
III.
O liberal-socialismo pretendeu superar criativamente quer a tradição liberal quer a tradição socialista. Calogero dizia-o claramente, e com rigor morfolófico, na sua obra de 1945, Difesa del liberal-socialismo: “nem o liberalismo era substantivo, nem o socialismo era adjectivo, nem vice-versa, não havia díade de substantivo e adjectivo, mas um substantivo único… um só e novo conceito”. O primeiro Manifesto Liberal-Socialista, de 1940, declarava a indissociabilidade dos dois elementos: “não é possível ser seriamente liberal sem ser socialista, nem ser seriamente socialista sem ser liberal. Quem chegou a esta convicção e se persuadiu que a civilização procede tanto melhor quanto mais a consciência e as instituições do liberalismo trabalharem para inventar e para instaurar ordens sociais cada vez mais justas, e a consciência e as instituições do socialismo tornarem cada vez mais possível, intensa e difusa tal obra de liberdade, atingiu o plano do liberal-socialismo”. Durante o vinténio fascista italiano desenvolveu-se teoricamente uma área político-ideal bastante original quer em relação à tradição marxista e comunista quer em relação ao socialismo clássico. Intelectuais como Piero Gobetti ou Carlo Rosselli produziram obra original neste campo. O democratismo radical de Gobetti, tão em sintonia com as posições de Gramsci, viria a influenciar a criação de uma tendência bem mais curiosa do que o próprio liberal-socialismo: o liberal-comunismo, de Silvio Trentin e Augusto Monti, que aliava a ideia de Estado federativo anti-autoritário com a de uma forte socialização da propriedade. Rosselli, que, em 1928, escreveu um livro intitulado Socialismo Liberal, tentava, como diz Anderson, “expurgar o socialismo da sua herança marxista e da sua versão soviética e recuperava no seu interior as tradições da democracia liberal que ele considerava serem a síntese das conquistas fundamentais da civilização moderna” (1989: 29). Se o socialismo liberal de Rosselli estava mais perto da elaboração política de Calogero, de Gobetti aproximava-se talvez mais Capitini. No essencial, o liberal-socialismo traduzia precisamente esta oscilação de sensibilidades político-ideais, mas exprimia certamente uma inequívoca matriz liberal. Como disse lapidarmente Mario delle Piane: “o socialismo liberal de Rosselli (o qual, no fundo, entronca no revisionismo de Bernstein) é uma das heresias do liberalismo”. Heresia ou não, esta posição encontra-se claramente assumida no famoso livro de Eduard Bernstein, talvez o mais relevante e pioneiro intelectual e político que se situa nas origens do socialismo democrático. Falo da sua obra Os Pressupostos do Socialismo e as Tarefas da Social-Democracia, publicado pelo Editor Dietz, em 1899, em Stuttgart. Os partidos socialistas podem encontrar nele a sua grande inspiração, muito em particular depois do corte com o domínio do património marxista sobre a sua orientação ideal e política. E o que diz Bernstein? Vejamos algumas passagens deste livro a propósito do liberalismo, que é o que neste artigo me move: “Enfim, seria aconselhável uma certa moderação nas declarações de guerra ao ‘liberalismo’. De acordo: o grande movimento liberal da história moderna desenvolveu-se, antes de mais, a favor da burguesia capitalista; e os partidos que se definiam com o termo ‘liberal’ eram ou tornaram-se paulatinamente puros e simples guarda-costas do capitalismo. Entre estes partidos e a social-democracia não pode existir, naturalmente, senão antagonismo. Mas no que diz respeito ao liberalismo como movimento histórico universal, o socialismo é o seu herdeiro legítimo não só do ponto de vista cronológico, mas também do ponto de vista do seu conteúdo ideal”; ou “a democracia é somente a forma política do liberalismo” (“die Democratie ist nur die politische Form des Liberalismus”); ou ainda “na realidade, não existe ideia liberal que não pertença também ao conteúdo ideal do socialismo” (Bernstein, 1974: 191-192). Se dúvidas houvesse, bastaria o que diz Bernstein para que elas desaparecessem. Mas se não desaparecessem, conviria ir ler o Grundsatzprogramm do Congresso de Bad Godesberg, de 1959, ou o de Berlim, de 1989, para ficar clara a adopção do princípio da liberdade como centro da orientação ideal do SPD e do iluminismo como uma das raízes históricas deste influente partido no universo da social-democracia europeia. O Iluminismo é, como se sabe, a expressão filosófica do liberalismo político. Mas convém também lembrar que o socialismo democrático e a social-democracia têm, de facto, mais afinidades com o liberalismo do que com o marxismo (na génese, a afinidade ou mesmo a identidade com este último era total, ou dominante) ou, naturalmente, com o romantismo.
IV.
Este movimento político-ideal (a que se juntava “Giustizia e Libertà”, fundado pelos irmãos Rosselli) viria a exprimir-se politicamente como Partito D’Azione, de curtíssima vida, esmagado pelos partidos políticos tradicionais. Bobbio participou na fundação de tal partido, precisamente enquanto elemento ligado ao liberal-socialismo. O rápido fim do Partito D’Azione não o levou, contudo, a pôr em causa as suas convicções liberal-progressistas; tão progressistas que acabariam por o tornar o grande e polémico interlocutor da mundividência teórica do comunismo italiano, talvez a mundividência hegemónica na Itália daqueles tempos (na filosofia, na teoria política e nas artes). E sempre e cada vez mais, apesar de o seu progressismo ser talvez mais de matriz liberal do que de matriz socialista ou, então, por o seu progressismo ser liberal-democrático, onde a democracia surge, e em Bobbio talvez seja mesmo assim, como a força polarizadora que relativiza e torna complexa a relação entre os elementos de extracção liberal e os de extracção socialista. Ou seja, para Bobbio a solução talvez esteja na convergência da tradição liberal e da tradição socialista na democracia representativa, bem mais subversiva do que a própria tradição socialista. A democracia representativa como síntese destas duas tradições.
V.
Poder-se-ia, então dizer que o socialismo liberal é aquele que melhor exprime e traduz a própria democracia, que integra ambas as tradições, ou seja, que combina de forma harmoniosa os princípios da liberdade e da igualdade. E se Bernstein tiver razão ao dizer que é indissolúvel a relação entre socialismo e democracia tudo fica dito, sobretudo quando ele também considera que a democracia é a forma política do liberalismo. Fica assim demonstrada a lógica do socialismo liberal ou até mesmo a ideia de que esta é a fórmula que melhor distingue o socialismo democrático do socialismo de Estado. Na verdade, não se compreende que socialistas considerem estranho este filão do socialismo liberal quando é ele que procura promover o que de melhor têm a tradição liberal e a tradição socialista, o que constitui a sua verdadeira marca distintiva. É verdade que os partidos liberais sempre se colocaram à direita e que há uma sua tendência, designada por neoliberalismo, que exprime de forma clara uma visão de direita. O que não se pode esquecer é que a carta que funda as nossa modernidade e o sistema representativo é a liberal “Declaração dos Direitos e do Homem e do Cidadão”, de 1789. E que foram os liberais que inauguraram a nossa modernidade política, derrubando o Antigo Regime. E, finalmente, que os partidos socialistas e sociais-democratas sempre procuraram harmonizar em igual medida os princípios da liberdade e da igualdade, como aspiração máxima da democracia representativa.
Não há, pois, razão alguma para considerar estranha esta “fórmula” do socialismo liberal, porque, como diz Norberto Bobbio, “O liberal-socialismo”, sendo somente uma fórmula(…), ela, todavia, “indica uma direcção” (1989: 82 – na resposta a Anderson). Nem mais.
REFERÊNCIAS
ANDERSON, Perry (1989). “Norberto Bobbio e il Socialismo Liberale”. In Anderson, Bobbio, Bosetti e Cerroni, Socialismo Liberale, Roma: L’Unità.
ANDERSON, Perry (1995): “Balanço do Neoliberalismo”. In Sader, Emir & Gentili, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, pp. 9-23.
BERNSTEIN, Eduard (1899; 1974). I Pressuposti del Socialismo e i Compiti della Socialdemocrazia. Bari: Laterza.
CROCE, Benedetto (1973). Etica e Politica. Roma/Bari: Laterza.
SANTOS, João de Almeida (1988). Paradoxos da Democracia. Lisboa: Fenda.
JAS@09-2023














