Poesia-Pintura

CANETA DE CRISTAL

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: "Parousía"
Original de minha autoria.
31 de Dezembro de 2023
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“Parousía”. JAS. 31.12.2023

POEMA – “CANETA DE CRISTAL”

E COM CANETA
De cristal
E a dádiva
De Athena
Pôs-se a compor
Com palavras
Para cumprir
Sua pena.

VALEU-LHE
A poesia,
A lamparina
Acendeu
E com o mais
Puro azeite
Em versos
Tudo ardeu.

SOZINHO
Na biblioteca,
Arrasado
De paixão,
Entregou-se
À poesia,
Libertou
A sua alma
Das grades
Dessa prisão.

NO TEAR
Ele teceu
Um manto
Com sua pena
E voou lá
Pràs alturas
Bafejado
Por Athena.

FOI COMO PRECE
Cantada
No altar
Da emoção,
Acendeu-se-lhe
A alma,
Toldada ficou
A razão.

NÃO É ASSIM
O amor,
Um foco intenso
Que cega?
Ardem palavras
Em dor
Porque é total
A entrega.

E FOI ASSIM
Que venceu
Uma dor
Que o oprimia,
Sem versos
E sem a deusa
Era templo
Que ruía.

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Artigo

FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA (IV)

Por João de Almeida Santos

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“O Desejo”, 2022. JAS. 12-2023

I.

ALGUÉM, UM DIA, SUGERIU ao poeta que ele estaria a afastar-se da musa, ao que ele respondeu que não, pois sem musa não haveria poeta. Seria como afastar-se de si próprio. Porque ele nasceu de uma sua visita e, a partir daí, ela passou a fazer parte do seu mundo, suscitando-lhe sentimentos, expressos em palavras, que resultam da dialéctica da (sua) presença-ausência ou do silêncio-diálogo entre ambos, poeta e musa. É um universo ondulante onde o poeta se move ao sabor das suas pulsões reprimidas no confronto com um real agreste, opaco, crespo. Mas um universo iluminado pela figura da musa, que está sempre em transfiguração controlada pela sua fantasia. A perda da musa seria uma perda fatal. E até os fantasmas iriam para outros lugares à procura de alimento espiritual.

II.

A poesia mata saudades. Ela chama a si o ausente e dá voz ao silêncio. A felicidade possível de um poeta em tensão. Os olhos dela pode vê-los com os sentidos interiores ou, felizardo, através do pincel do pintor. Epifania. Mas sempre se trata de um “delicioso pungir de acerbo espinho”, diria um amigo e companheiro de viagem poética, citando o Garrett. Sim, o prazer de um fruto amargo. Sofre, o poeta, no canto feliz da dor estilizada. Tem saudades, ele, mas, ao cantá-las, converte a dor da ausência em alegre ritual celebrativo de catedral. Assim parece ser. Longe desse real hostil, transfigura-o e dá-lhe nova e ritualizada vida. E assim o supera, o conserva e o nega (como perecível contingência). Uma dialéctica reconstrutiva para uma alegria dolorosa.

III.

Mas “não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram”, lembrou-me, um dia, uma amiga. Pois é. Tinha razão o Bernardo Soares. Saudades do que só aconteceu em sonho ou simplesmente como desejo. Essas é que são saudades dolorosas. Do que foi não é tão doloroso porque, de algum modo, foi, aconteceu. Mas do desejo que se ficou pelo desejo ou do sonho de que se acordou já noutro lugar qualquer, ah, isso sim, é dor. Porque o desejo desejado ou o sonho sonhado são mais intensos do que o desejo ou o sonho cumpridos, em parte. É essa intensidade interior que torna a saudade mais dolorosa. Tudo se passa nos sentidos interiores, que são mais intensos do que as relações sensoriais com o exterior. E mais duradouros. Porque persistem como desejo. Era este o mundo do Bernardo Soares. O mundo, para ele, era uma galeria de arte que ele desenhava e reconstruía com a sua imaginação. No real não gostava de tocar sequer com as pontas dos dedos. Por isso, a dor para ele não tinha uma dimensão sensorial, corpórea. Os rostos eram, afinal, retratos que ele apreciava na galeria da vida. E não se ajeitava com a poesia. Imaginemos, então, o que não seria se se ajeitasse… São dolorosas, essas saudades… porque isso nunca aconteceu a não ser em sonho ou como desejo. É como reencontrar-se no tempo perdido. Uma impossibilidade, a não ser em poesia. O desejo agiganta a vontade, mas o resultado é nada, só restando a fantasia. O Cioran falava de uma poética do fracasso. A celebração dorida do irrealizado, do falhado. As coisas que nunca foram são mais reais do que as que foram. Porque aquelas nunca morrem, persistem como desejo (sempre) inacabado. É a poética da perda: a elevação da perda a ritual poético no processo de redenção pela arte.

IV.

Sim, o Bernardo Soares é frequente companheiro de infortúnio. Se não posso ou devo tocar a realidade sequer com a ponta dos dedos, então olho para ela como para uma galeria de arte. Ele, que nem filósofo se considerava, não se ajeitava lá muito com a poesia, mas a verdade é que tinha irmãos que eram excelentes poetas. Mas este, o que escreve, felizmente lá se vai ajeitando e assim pode salvar-se do infortúnio. Ainda por cima vive irmanado com um pintor que o vai confortando e animando com riscos e cores que vão dando mais vida e cor às suas palavras. E curando o seu infortúnio. Perdido, perdido, anda sempre e, por isso, tem que se reinventar para se ir reencontrando noutros territórios que não naquele em que pecou e se condenou. Gosta de voar sobre pétalas de rosa. E  de sentir o perfume da rosa com a alma, uma dádiva do Olimpo. O poeta é passageiro permanente nos voos da rosa. As pétalas são as suas asas. E o perfume o combustível. O seu jardim encantado é o seu aeroporto espiritual. E gosta dele porque gosta cada vez mais de viajar deste modo. Se o destino leva o poeta por aí, só lhe resta cantar. Voar. E melhor será se voar em direcção ao infinito. Parte de um lugar concreto, o do desassossego, e eleva-se para falar com os deuses, pedindo-lhes a bênção. Neste caso, a Athena. Salvação pela arte. Pela beleza.

V.

O “Voo da Rosa”, um quadro do poeta-pintor, é “dança da solidão”, disse dele uma habitual frequentadora dos meus poemas. Sim, “dança da solidão”. E o poeta está condenado a executá-la, a dançar até cair exausto. Karma. Na dança, o poeta vagabundo passeia-se por outras almas, que assim alimenta e que o ajudam a reencontrar-se. Na partilha reencontra-se. Cumplicidade poética. Ele é, sim, um ser perdido, em constante viagem, depois da visita da musa, que, implacável, logo o abandonou. Restou-lhe o estro, a marca da sua passagem e o estímulo para a procurar constantemente. A poesia é filha da musa e da dor. Do silêncio e da ausência. Depois chegam os fantasmas, que se alimentam dos beijos que ele sopra ao vento que passa para que cheguem até ela. À musa. Um destino marcado, este, o do poeta. Que se cumpre no canto.

VI.

E há sempre saudades. Cantá-las, as saudades, ajuda a metabolizá-las e a conservá-las como feliz melancolia. Sim, ficam as saudades quando o essencial perdura no tempo. Senti-las é uma coisa, cantá-las é outra coisa. É dar um passo em frente. Este passo depende apenas de quem as sente e, de certo modo, significa ritualizá-las, revivendo o passado sob outra forma mais livre, mais estilizada. É já um tempo próprio, independente do contexto em que se viveu. Mesmo na pintura, ainda que ela possa evocar, com minúcia, algum realismo e sem fingimento, nos traços, esse passado que o poeta canta.

VII.

Um dia, uma persistente leitora e habitual comentadora dos meus poemas falou da poesia como “música crepuscular”. Bela definição. Ao cair ou ao nascer do dia levanta-se o poema para o recordar e o (re)viver, o dia, como sonho a olhos abertos e como fantasia. A poesia é toda ela crepuscular, porque acontece sempre num intervalo entre o que foi e o que está para ser, onde as formas mais parecem sombras indefinidas que solicitam a fantasia para as identificar. É como um ambiente de neblina a que é preciso acrescentar luminosidade e definição. Ou traz consigo ainda as figuras do sonho sonhado ou ainda esbatidas as formas que encontrará à luz do sol. Mas a definição acrescentada nunca provém do exterior, ela resulta da música interior que anima o poeta e do seu cinzel poético. O crepúsculo é o ambiente favorável da poesia porque está entre o real e a fantasia. Convida a desenhar com maior nitidez o que se apresenta um pouco sombrio. O poeta encontra aqui a posição privilegiada para poetar, entre a vida e o sonho, entre a realidade e a imaginação. Neste intervalo nem é uma coisa nem a outra, sendo, ao mesmo tempo, as duas. É aqui que a linguagem poética melhor se exprime.

VIII.

O destino do poeta é chorar em palavras. Chovem palavras do seu melancólico olhar. Mas não espera que lhe enxuguem essas lágrimas. Ele sente prazer nelas. Chorando assim, redime-se. Nada mais espera. Um dia. o pintor embelezou o choro com uma rosa em voo. E a cor da rosa era ditada exclusivamente pela beleza a que o poeta aspirava no seu voo redentor… voando sobre pétalas deitava palavras ao vento sobre o vale da vida.

IX.

E quando perguntam ao poeta como aconteceu esse encontro primordial com a musa, ele responde sempre: tudo começou quando uma videira cardinal trepou pela pernada acima e fez o loureiro do seu jardim encantado dar uvas. O poeta registou o momento, recorrendo a fragmentos de memória afectiva. Aconteceu ali uma transfiguração, um encontro sensual e germinal. Claro, seria melhor perguntar-lhe se a transfiguração é também evocação e invocação de algo bem concreto. Mas ele certamente responderia em verso, dizendo que o poeta é um fingidor que até finge o que deveras sente. E ficaríamos ali nesse intervalo entre a realidade e a ficção. De resto, nem a poesia tem como função descrever o que acontece no real, porque ela é tão-só um expressivo, estilizado e sofisticado grito de alma. É um veículo onde o poeta viaja sem destino. E viagem é libertação.

X.

Num quadro que pintei, “Epifania”, tudo se passou como se de uma aparição se tratasse: a aparição de um anjo em forma de mulher, mas numa visão sensorial interior. Sim, esta aparição terá uma sua exterioridade, algo que impressionou sensorialmente o poeta, que o tocou fisicamente, mas, depois de esculpida pelo tempo no terreno da memória, ganhou uma nova dimensão. É aí que a aparição se torna ambígua, ente anjo e mulher, provocando alguma indecisão no poeta e até no pintor, quando este lhe propôs uma figura de mulher (também ela um pouco anjo e um pouco mulher). É nesta nebulosidade sensorial que reside o mistério, mas é também ela que alimenta o poeta. Sim, o problema reside na palavra “ver”. Ver com os olhos ou ver com a alma? Ou ver com ambos? É aqui, nesta tentativa simbiótica que o poeta se move, entre os olhos e a alma, entre a dimensão sensorial e os sentidos internos. Sim, é aqui que a poesia se move. Há sempre o perigo de uma idealização extrema e de uma excessiva desrealização. Um perigo de que o poeta se dá conta e do qual tenta sempre fugir. Porquê? Porque sempre sente que tem de dar fisicidade, materialidade ao poema. E não só através da sua musicalidade, altamente performativa, mas também na semântica, na alusão, ainda que equívoca e até perigosa, à realidade.

XI.

A poesia é sedução, fantasia, desejo, engano, realidade…, dizia-me um amigo depois de ter lido um poema meu. Sim, poesia é tudo isso porque é movida pela paixão e pela dor… reinventadas. Quanto maior for a perda ou a dor, maior será a recriação. Reconstrói o que perdeu, o poeta. E reinventa diálogos e seduções como se tivesse perante si esse ser que se ausentou e que lhe fala, o interpela, com silêncio reiterado. Ou até como castigo. E o poeta, sentindo-se punido, procura resgatar-se com a perfeição. Com a sedução estética como forma de reapropriação do que perdeu. Assim se redime e reencontra. A poesia esculpe com um cinzel afectivo. Tal como o tempo no fluxo da memória. E eleva e faz perdurar o que estaria condenado a esgotar-se, a cair no poço fundo do esquecimento. E, depois, o pintor, solidário, até chega a dar forma ao rosto dessa paixão cantada, completando a recriação e (quase) suplantando a realidade invocada poeticamente.

XII.

“As palavras do poeta dançam-me na alma”… Que mais pode querer um poeta? Ver os seus versos dançar na alma de quem os frui é a maior das recompensas para quem arrisca a sua intimidade num poema ou numa pintura. A poesia requer alguma sintonia interior para ser compreendida, porque ela própria é experiência interior convertida em palavras. Quando ela dança na alma é porque foi compreendida e partilhada. Ela não alude a algo exterior e palpável. Quanto à rima, todos os poemas procuram funcionar com musicalidade, ritmo, toada. Tempos houve em que a poesia era em rima interpolada. Hoje responde a outras exigências melódicas e rimáticas um pouco mais delicadas. Não fica tão presa a uma toada regular e repetida. É mais subtil e fala mais à alma do que aos sentidos. A melodia é mais espiritual.

XIII.

A poesia é libertação. Uma forma muito especial de libertação de quem se sente refém. A experiência do amor-paixão é densa e acontece para além das fronteiras da razão, por isso captura-nos e, de certo modo, aprisiona-nos. É uma pulsão profunda que tem um lado extraordinário e o seu reverso. A poesia não é uma tentativa de compreensão. É uma acção libertadora que lhe retira peso, elevando o amante à esfera da sensibilidade estilizada. É a verbalização de uma “opressão” interior que equivale a libertação. Coisa parecida com as livres associações da psicanálise. É remédio para essa “maladie de l’âme”, “Remedia Amoris” (Ovídio). Mas torna-se também mais do que isso porque é movimento em direção à beleza, que é a própria condição da cura. Quanto mais poder de sedução tiver mais eficaz será no processo de libertação. Não estamos, claro, na esfera da pragmática, porque o que estimula o poeta é uma exigência interior, a necessidade de lhe dar voz para não “implodir”. É uma poderosa tensão interior que ele decompõe através de palavras com forte dimensão musical, a dimensão que lhe confere maior performatividade. Sim, é uma viagem interiormente imposta, mas sem destino à vista. O processo é tudo e por isso nunca acaba. O poeta é um transeunte incansável e sem destino, mas que tem sempre o vento a favor. E é isso que faz dele poeta.

XIV.

A poesia tem o poder de curar e de salvar do desespero. E se se projectar na pintura, então cumprirá melhor a sua função (não utilitária). A alma pode adoecer: o amor como “maladie de l’âme” (Stendhal”). A poesia como remédio para os infortúnios de alma.  Ovídio:  “tristia, quo possum, carmine fata levo” (Tristia, IV). A poesia adoça o triste destino. E gosto da frase “amor sufocado (e) embainhado no silêncio”. O silêncio como arma do amor sufocado.  Arma poderosa, embainhada. Mas a que a poesia pode responder, dando-lhe voz. Como se fosse o seu eco, devolvido não como arma, mas como canto.

XV.

O silêncio é a mais profunda das linguagens quando ancorado numa pulsão profunda, numa demorada e focada contemplação, numa escuta atenta ou na intenção de dar, por uma insistente e intencional redundância, a conhecer a outrem o seu peso e o seu significado (o do silêncio). Muito se pode dizer pelo silêncio. A contemplação é silenciosa e permite a mais perfeita das sintonias. Os paradoxos permitem-nos dizer com maior intensidade o que pretendemos dizer. E são estilisticamente belos. Um silêncio ensurdecedor, por exemplo. Não há melhor forma de traduzir o poder de um silêncio que se torna insistentemente redundante e teimoso quase até à agressão (dos sentidos e da alma). O silêncio intensifica-se quando estamos cercados pelo ruído da multidão, anulando-o, enquanto silêncio físico, mas expondo brutalmente a alma ao seu som ensurdecedor. Ficamos mais sós no meio da multidão e então ouvimos interiormente mais o silêncio. Outro silêncio é o da montanha para onde se evade o eremita-poeta para ouvir, em solidão, o som silencioso da majestade das alturas. Este silêncio é mais pacificador. Não agressivo, como o da cidade, que nos faz sentir perdidos e abandonados na selva urbana, à mercê da crueza das memórias mais duras. No ermo, lá no alto, a solidão é sideral. O silêncio, tenha ele que cor tenha, é reconduzido à dimensão natural da existência, à dialéctica da natureza a que pertencemos e à sua lei. Lá do alto podemos observar o vale da vida com maior elevação (espiritual) e maior distância. Podemos relativizar, mas também podemos redesenhar a vida com a nitidez do olhar das águias reais, olhando lá de cima a vida como nosso alimento espiritual. Essa nitidez é dada pelo olhar interior do poeta ou do pintor. Nesta condição, o silêncio pode ouvir-se como melodia da alma. E partir com serenidade para uma nova etapa. Som e silêncio, o som do silêncio que, por vezes, demasiadas, até, é, sim, ensurdecedor. Só a poesia o pode reconduzir à sua forma original. Dando-lhe voz, transforma esse som em melodia. E pacifica e amacia a alma do poeta. Não se conforma, o poeta, e retoma sempre o diálogo, dando forma à voz do silêncio, como se este tivesse um sujeito-autor e fosse a sua fala. Terá? Será? Não sei, mas é provável que sim. Só o poeta estaria em condições de responder. Mas é claro que responderia em verso, dizendo que o poeta é um fingidor.

XVI.

É na dor e na melancolia que a arte começa. Nada a fazer. Pedras no caminho, sim. Muitas pedras. E vamos tropeçando nelas. E o poeta vai tropeçando nelas. E as quedas fazem feridas e as feridas têm de ser curadas. Pela poesia. Mas a pintura ajuda. Dá forma visível à melancolia. Então tudo se torna possível.

XVII.

A ida a sul com as palavras é o recurso do poeta que, a norte, sente todo o frio  quente da montanha. No sul há flocos… não de neve, mas de palavras. É a maneira de, a sul, nos aquecermos do frio da ausência e do silêncio. Com flocos de palavras. No norte montanhoso não se sente tanto essa falta. A neve tudo cobre e aquece com o seu manto. Frio na pele, calor na alma. A imaginação viaja a sul à procura de palavras que substituam a neve e o frio quente da montanha. Uma outra forma de aquecer a alma. E também o granito se instalou em nós para nos condicionar o destino. Ah, eu acho mesmo que sim. Aliás, eu sinto-o na pele, o granito amarelo. É ele que me faz resistir. Ainda por cima ele tem cristais que refractam a luz e que nos acendem a alma. A sul, o granito converte-se em palavras. Como os flocos de neve. E as palavras enrobustecem a alma de quem as sente. Que a poesia nos permita atingir o cume da montanha e nos provoque a vertigem das alturas, é o meu desejo. É diferente a temperatura física lá no alto, mas a da alma aumenta à medida das vertigens, do olhar comprometido sobre o vale onde acontece a nossa vida.

XVIII.

“O amor parece ser a estação adiada”, diz-me um leitor e amigo. Adiada sem prazo. É esse o problema. Persistência dos afectos? Sim. É essa a razão da poesia. Sempre em trânsito na direcção da “estação adiada”. Mas deixem-me que vos diga: a musicalidade de um poema intensifica a melancolia a ponto de lhe atribuir um forte poder de contaminação, na partilha. É mais intenso o poder de chamamento. A vida flui como tem de ser. E se for com música tanto melhor. A poesia é música para as almas sensíveis. E ajuda a vida a fluir melhor. E distende-se entre uma dor que se pode ter tornado matricial e a busca de uma beleza redentora em forma de melodia poética.

XIX.

“Inquietação persistente”? Se for, então o destino é ser poeta. Dizer tudo, talvez não. Ir dizendo, sim, mas de forma cifrada, só compreensível pelos “iniciados”.

XX.

Sobre a contradição (o poeta é refém, mas em processo de libertação?) de que me falou um amigo, digo o seguinte: a cicatriz está lá, mas a poesia eleva-o, liberta-o. Refém do corpo, liberta a alma. A cicatriz é o sinal da ferida, que permanece. Como ferida corporal. Por isso, a cada olhar (interior) sobre a ferida ele, poeta, deve responder com um poema. Um eterno retorno. Pecado original. Diria que o poeta está condenado a ser livre. Condenado-refém que se vai libertando pela poesia. O corpo de Gramsci esteve cerca de 20 anos na cadeia (até à morte), mas a sua alma não. Cada fragmento dos “Cadernos do Cárcere” era um grito de libertação. Da prisão e do tempo. Também o poeta é refém de uma ferida-dor corporal (ainda que cicatrizada), mas a sua alma pode entregar-se livremente a um processo de permanente libertação. Da prisão e do tempo. É a condição de refém que o leva a esse desejo de libertação superior. Mas, claro, há ali uma permanente instabilidade existencial. É sobre ela que ele constrói e se constrói.

JAS1_O Desejo052020REC

Poesia-Pintura

REFLEXOS

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “A Montanha Encantada”,
JAS, 2022 - Impressão Giclée em papel
de algodão (100% - 310gr) e verniz
Hahnemuehle, 94x119, Artglass
em moldura de madeira.
Dezembro de 2023.
Jas36AMontanhaEncantada2022

“A Montanha Encantada”, 2022. JAS. 12-2023

“Tu prima m’inviasti verso Parnaso
a ber ne le sue grotte, e prima
appresso Dio m’alluminasti”.

Dante Alighieri, Purgatorio.
Canto XXII.

POEMA – “REFLEXOS”

PERDI-TE
Porque nunca
Te encontrei...
Numa rua,
Numa praça,
Num café.
Em lado nenhum.
Não sei.

AH, MAS ENCONTREI-TE
No Parnaso
(Agora me recordo),
Lá em cima,
Intangível,
Sem poder
Tocar-te
A não ser com
Palavras
Em forma de poema
Sensível às cores
Vivas
Da tua alma.

DE REPENTE,
Vestiste-me
Com elas,
As palavras,
E eu senti-me
Quente,
Afagado,
No meu canto.

SIM, ENCONTREI-TE
No Parnaso,
Lá em cima,
No Monte.
Através de ti
Eu vi a costa
E vi o mar
E o meu mundo
Interior,
Com nitidez,
Num sonho
Em azul...
.........
A tua cor.

DEPOIS VEIO
A neblina
Cintilante...
Cobria-te
Para te revestir
E refrescar
A alma
Com chuva
Miudinha...
...........
De palavras
Húmidas
Caídas do céu
Da minha fantasia.

EU NÃO ERA MAIS
Do que espelho
Que te devolvia
A imagem
Contra a
Petrificação
Que espreita sempre
Nos olhares
Indiscretos.
Mas tu não me vias.
Em mim,
Especulavas,
Dizias...

E DE TANTO TE
Veres
E dizeres
Decidiste declinar
O espelho que
Começava
A embaciar
A tua imagem.

E NÃO ERA DA
Neblina
Que te envolvia,
Mas dos desenhos
Que tuas mãos
Esboçavam
Timidamente
Nesse espelho
Já húmido
De ti.

E DESPEDISTE-TE
Do Monte.
Desceste para ti
Vertiginosamente,
Em desconforto,
Sob os olhares
Das mil górgones
Que sempre ameaçam
Petrificar-te.
E sucumbiste.
Ou talvez não...

NO MONTE,
O espelho disse,
De si para si:
“De tanto te veres
Em mim,
Ficou-me, de ti,
O repetido reflexo;
E sabes o que
Brotava
Quando te olhavas
Com palavras
Na minha superfície?
Beleza.
Toda a que 
Me sobrou
Quando, triste,
Desceste o Monte.”

“MAS ESTA NÃO
Petrificará,
Porque ficou
Guardada
No meu corpo
Vítreo
Onde todos
Se revêem
Sem saber
Que no reflexo
Levam, gravada
Em transparência,
A tua imagem...
..........
Um pouco
Embaciada.”

“E EU POR CÁ
Fiquei,
Espelho do mundo,
A olhar para
O escuro espaço
Sideral
À espera 
Que um cometa
Me alumie o caminho
Pra te devolver
A imagem 
Como teu reflexo
Original...”

Jas36AMontanhaEncantada2022Rec

Artigo

E AGORA, PEDRO?

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 12-2023

NESTAS ELEIÇÕES INTERNAS DO PS, em que participaram, com voto válido, quase 40 mil militantes, ficou demonstrado que a dinâmica de escolha entre candidaturas alternativas com peso mobiliza e dignifica a política. Os resultados espelham bem o peso interno das candidaturas. Vejamos: total de votos – 39.492; Pedro Nuno Santos – 24.219 (61,3%); José Luís Carneiro – 14.891 (37,7%); Daniel Adrião – 382 (cerca de 1%). Quanto a delegados: PNS – 909; JLC – 407; e DA – 5.

O novo secretário-geral tem, pois, total legitimidade para gerir o PS, tendo obtido a maioria absoluta dos votos e sendo certo que irá gerir o partido respeitando os equilíbrios internos. Mas a figura do secretário-geral é muito importante, considerando a actual personalização (ou mesmo hiperpersonalizaçao) da política. A minoria pronunciar-se-á nos órgãos próprios e certamente será tomada na devida consideração, sem desvirtuar, todavia, aquela que será a orientação de fundo que o secretário-geral imprimirá legitimamente ao PS. Isto para não referir a necessidade de reconstituir integralmente o, lamentavelmente, extinto jornal do partido, de se decidir em qual das duas redundantes revistas (Finisterra ou Res Publica) irá apostar ou de reconstruir um dinâmico Gabinete de Estudos. Mas sobretudo há que clarificar questões de fundo que remetem para a identidade política e ideal do próprio partido e que podem e devem inspirar o programa de governo. Vejamos.

I.

Em artigos anteriores referi a pouca atenção dada, durante a campanha, às questões especificamente partidárias, tendo sido esmagadoras as propostas de natureza programática para um futuro programa de governo. Mas a verdade é que os programas de governo devem ter, a montante, linhas de orientação que entroncam na identidade dos partidos que os propõem, expressas, sem mediações, como ética da convicção. Esta clareza permite evitar ondulações e ambiguidades no plano programático, mas permite também saber o que, sendo assumido, mas não se inscrevendo na identidade do partido, foi objecto de negociação, de compromisso e de assunção em função de uma exigente ética da responsabilidade pública. É desta conjunção que resulta uma boa práxis política. Nenhuma delas deve ser menorizada, nem a ética da convicção nem a ética da responsabilidade pública. Lembro que se durante quatro anos a maioria de esquerda se manteve firme isso também se deveu à livre assunção e expressão pública da ética da convicção por cada partido, sempre reafirmada quando, em nome da ética da responsabilidade pública, eram adoptadas medidas que exigiram negociação e compromisso.

II.

É, pois, minha convicção de que só uma clara delimitação do que é ética da convicção e do que é ética da responsabilidade pode evitar confusões e neblina política e programática.

Assim, eu julgo que o PS, nesta nova fase da sua vida, ganharia em clarificar, antes de avançar para as concretas propostas programáticas, algumas orientações de fundo que não têm sido muito claras:

  1. A sua relação com o liberalismo clássico, tendo em consideração que existe há muito uma tradição conhecida como “socialismo liberal” ou “liberal-socialismo”, mas sendo claro que os partidos liberais têm assumido regularmente posições de direita, até em versão de direita radical, como acontece com o neoliberalismo. Mas o liberalismo clássico tem um significado histórico que não pode ser confundido com a prática dos partidos liberais. É disto que se trata, por exemplo, quando o Programa que emancipou a social-democracia alemã do marxismo (o Grundsatzprogramm de Bad Godesberg, de 1959) remete os valores centrais do socialismo democrático para a filosofia clássica (além do humanismo e da ética cristã) e para o binómio liberdade-justiça.
  2. A posição crítica do PS em relação ao wokismo, ao revisionismo histórico e às políticas identitárias, sobretudo atendendo a que estas posições contrastam com a matriz universalista da nossa modernidade política e da nossa própria civilização.
  3. Têm acontecido no nosso país várias incursões imprudentes ou infelizes de procuradores e juízes na política com graves sequelas não só sobre o sistema, mas também sobre concretas personalidades públicas que, de uma forma ou de outra, o representavam, sofrendo, com isso, graves e irreversíveis danos reputacionais. Como pensa o PS de Pedro Nuno Santos agir para evitar que incursões desta natureza deixem de se verificar, tendo em consideração que este partido tem no seu código genético a defesa dos direitos individuais como primeira prioridade?
  4. É conhecida a diferença da social-democracia relativamente à economia de plano, assumindo, sem reservas, como sua a ideia de uma economia (não de uma sociedade) de mercado, regulada pelo Estado, em defesa do cidadão e do consumidor, presas fáceis dos oligopólios. Como exprime, e com que intensidade, o PS esta ideia de protecção do consumidor relativamente à prepotência dos oligopólios instalados em Portugal? Esta centralidade do consumidor já era também apontada claramente no programa de Bad Godesberg.
  5. É velha a discussão em torno da justiça fiscal a partir da gestão dos impostos directos, sendo certo que os impostos indirectos atingem indiscriminadamente ricos e pobres. Como pensa o PS dosear a relação entre impostos directos e impostos indirectos para uma aceitável equidade fiscal, tendo em consideração que o bolo dos impostos directos (IRS) recai somente sobre três milhões num universo de 5,4 milhões de agregados? Uma coisa é certa: não é legítimo nem justo praticar um autêntico saque fiscal em nome do Estado Social e muito menos em nome de um assistencialismo caritativo, excessivo e paralisante. A prevalência da ideia de comunidade não deve significar esmagamento dos direitos individuais e anulação das responsabilidade individuais.
  6. De que modo o PS pretende melhorar a eficiência do aparelho de Estado que não seja exclusivamente no plano da cobrança de impostos e de receitas?
  7. Que papel o PS atribui ao mercado de arrendamento como principal factor de resolução não só do problema da habitação em geral, mas também do custo excessivo das casas para venda? Na relação entre oferta pública e oferta privada para uma eficaz política de arrendamento qual considera o PS que deva ser prioritária e dominante?
  8. Qual é para o PS a principal causa da actual crise do SNS? A remuneração e o excesso de trabalho dos agentes das prestações do SNS ou o excesso de procura das urgências no serviço público prestado pelos hospitais, enquanto os centros de saúde se estruturam quase exclusivamente como escritórios de prestação de serviços e não como centros operativos de cuidados primários (de primeiro nível)? Que valor atribui à oferta privada para uma melhoria das prestações do serviço público de saúde?
  9. Pretende o PS acabar com a actual distinção entre cidadãos de primeira e cidadãos de segunda, repondo a igualdade de tratamento dos trabalhadores do sector público e do sector privado em matéria de tempo semanal de trabalho e equidade contratual entre o público e o privado?
  10. Pretende o PS, no plano da ciência e da investigação científica, manter a actual política de delegação exclusiva, pela FCT, em equipas estrangeiras da avaliação dos centros de I&D e, depois, dos projectos de investigação, alienando, na prática, o próprio dever de decisão e mostrando não confiar na isenção dos avaliadores portugueses?
  11. Qual a posição do PS em relação à evolução institucional da União Europeia? Adopta uma posição constitucionalista (uma constituição para a União) ou uma posição funcionalista (uma lógica simplesmente intergovernamental). Na verdade, não é conhecida a posição do PS sobre esta alternativa (que já tem uma longa história, desde 1984, com a aprovação do projecto de constituição pelo PE, promovido por Altiero Spinelli). Não deveria o PS construir e divulgar uma doutrina muito clara acerca da filosofia evolutiva da União Europeia?
III.

Poderia continuar, mas creio que chega. A resposta clara a estas questões permite identificar a actual identidade do PS, fundamentando as opções programáticas que serão propostas ao eleitorado, além, naturalmente, da qualidade dos representantes que as saibam naturalmente interpretar. Não me parece que seja muito útil e significativo apresentar um volumoso e minucioso cardápio de propostas para todos os sectores em que o novo governo se verá necessariamente envolvido. Até porque o que verdadeiramente estará em causa será a escolha dos representantes e não a aprovação de um programa de governo (os representantes não levam consigo um caderno de encargos, porque não se trata de um mandato imperativo).  O importante é ir ao essencial e com sólidos fundamentos, que só poderão ser realmente certificados se se inscreverem numa robusta e clara identidade ético-política do PS e forem assumidos com coragem e sem tibiezas. A clareza ajuda à decisão não só porque as propostas são mais compreensíveis, mas também porque ficam politicamente melhor identificadas. Como quer que seja, desejo sinceramente os maiores sucessos ao novo secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos. O seu sucesso será também um sucesso da nossa democracia, visto o papel central que nela desempenha o PS. JAS@12-2023

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Poesia-Pintura

EU TENHO SAUDADES

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Teus Olhos”, 2022.
Original de minha autoria -
Impressão Giclée, papel de algodão,
100% de 310gr, e verniz
Hahnemuehle, Artglass AR70,
em moldura de madeira - 67X89.
Dezembro de 2023.
Jas14TeusOlhos2022_2023

“Teus Olhos”. JAS. 2022. Impressão Giclée, papel de algodão (100% e de 310gr) e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em moldura de madeira – 67X89.

POEMA – “EU TENHO SAUDADES”

EU TENHO SAUDADES
Dos teus belos olhos,
Viajo com eles
Nestes meus poemas
Pra te alcançar
Quando fico só
E com nostalgia
Desse nosso mar
Onde o afecto cabia
Sem se esgotar.

EU TENHO SAUDADES
Quando te encontro
Nestes meus sonhos
A olhos abertos,
Porque eu já sei
Que tens de partir
E que o nosso tempo
É sempre escasso
Para te sorrir.

EU TENHO SAUDADES,
Saudades de ti,
Quando te digo,
Com certas palavras, 
O que já pressinto...
..................
Que fico sozinho
Mesmo que a sonhar.

EU TENHO SAUDADES
Quando caminho
Junto a teu lado
Horas a fio
Neste meu jardim,
Te digo o que penso
Acerca de nós...
.................
Que o desencontro
Nunca terá fim...

EU TENHO SAUDADES,
Saudades de ti,
Quando te canto
Nestes meus poemas
Ou então gracejo
Pra te ver sorrir
Quando eu suspiro
Pela falta que fazes
Se não te olhar
Ou não te ouvir.

EU TENHO SAUDADES,
Saudades de ti,
Nem sei como vivo
Aqui a teu lado
Que quase te sinto
Quando tu respiras
O ar que me sopra
Cá dentro de mim
Onde tu existes
Como densa bruma
Deste meu jardim.

EU TENHIO SAUDADES,
Saudades de ti,
E sei o porquê
Deste meu sufoco...
...................
Porque sempre me foges
E não me nomeias
Por qualquer razão,
Mesmo que te diga
E que te repita
Que se o fizeres
Não será em vão.

COM TANTA SAUDADE,
Sou, afinal, feliz
Em cada momento,
Mesmo longe de ti,
A alma em tormento
Levada pelo vento
Pra longe daqui.

MAS TENHO SAUDADES
Desses teus olhos
Que vejo assim,
Porque me dizem que, 
Longe que estejas,
Estás perto de mim.

Jas14TeusOlhos2022_2023-cópia

Artigo

CONFISSÕES DE UM MILITANTE

Em Sete Andamentos

Por João de Almeida Santos

JAS_Talisma2022Pub

“Talismã”. JAS. 12-2023

HÁ MUITAS COISAS ERRADAS na política portuguesa. Por exemplo, personagens inconsequentes que desempenham funções para as quais não têm vocação nem atitude, podendo provocar, em certos momentos, situações de grave crise institucional. Também não creio que os nossos media desempenhem convenientemente a sua função essencial: influenciam mais do que esclarecem. Pecado mortal. Certas funções institucionais exigem “gravitas”, mas o que constatamos é que, em vez de “gravitas”, temos ligeireza, não leveza. Mas esta seria conversa que não teria fim, se o objectivo do artigo não fosse outro.

1.

Como já aqui tive ocasião de afirmar, e enaltecendo a vivacidade da campanha em curso, lamento insistir que há um grave equívoco nestas eleições internas do PS: estarmos a votar candidatos a primeiro-ministro quando do que se trata é de eleger o secretário-geral (e eu até preferia que a designação fosse outra, pois esta ainda me sabe a património marxista-leninista) de um importante partido. Basta contar as páginas a isso dedicadas nas três moções para confirmar o que digo. A mim isso parece ser errado e desviante, apesar de, pelos vistos, não incomodar ninguém. Que interessa o partido, se o que conta é o governo? Pois a mim interessa, e muito, porque não vou votar em legislativas, apesar de saber quais as consequências previsíveis do meu voto, nessa matéria, não se tratando, sequer, neste acto, de uma simples questão de método, mas de muito mais. E de muito mais porque significa menorização de uma importante organização política que, assim, se vê transformada em mero veículo para chegar ao poder. E ainda porque estas eleições acabam por transformar a eleição do secretário-geral em primárias (fechadas) para eleger o próximo candidato da área socialista a primeiro-ministro, desfigurando a eleição que, neste momento, conta. Eu não voto, nestas eleições, num candidato a primeiro-ministro, mas num candidato a secretário-geral. Figuras que não se confundem nem se devem confundir. Esta confusão indicia que não é necessário tratar do partido, designadamente dos processos de escolha dos dirigentes e candidatos a altas funções políticas e na própria Administração Pública. Depois, ganhas as eleições, o que interessa é apoiar o governo (ou combatê-lo, perdendo-as). Repensar o partido fica sempre para depois. Só que a reforma da política começa mesmo nos partidos.

2.

E quando se ouve dizer a algumas figuras proeminentes (politicamente, entenda-se) que não declaram apoio a um candidato para não dividirem o eleitorado militante, fica muito clara a ideia que têm de um partido democrático que se dota de dirigentes através de um processo deliberativo aberto e transparente. Tomar posição publicamente é o mínimo que se pede a um militante de um partido como o PS. E muito mais se ocupar posições de relevo no seu interior. A vivacidade e a transparência do debate só ganhará com isso. Depois, quando se assiste à colonização do partido por membros do governo que foram escolhidos livremente pelo primeiro-ministro (e secretário-geral), sem nunca terem passado por processos de selecção ou de afirmação interna, está-se a construir uma estranha concepção de partido: top-down e apenas sujeito à vontade do líder. Estes membros do governo são catapultados para o interior do partido exibindo o selo governamental como virtude a ser reconhecida e respeitada pelos militantes e até pelas direcções das estruturas. Ora acontece que o movimento deve ser exactamente na direcção oposta.

3.

Esta é uma eleição para o líder de um grande partido que deveria, nesta fase, mais do que um programa para o país, pôr à prova as propostas para o partido, evidenciando os grandes princípios que o animarão na gestão da causa pública,  propondo soluções para melhorar os processos de selecção dos seus dirigentes e candidatos a altas funções políticas, para lhe dar robustez doutrinária e ideológica e consolidar a sua identidade ético-política e ideológica, para reforçar a sua ligação orgânica com a sociedade civil, para o dotar de estruturas de tratamento documental (designadamente do património político adquirido ao longo da sua história) e de reflexão de fundo sobre a sociedade, para romper com as tendências endogâmicas que sempre ameaçam o são funcionamento partidário. Tudo isto, porquê? Porque são os partidos políticos que estruturam a vida política de um país. Maus partidos políticos fazem mal à democracia. As insuficiências partidárias projectar-se-ão no aparelho de Estado. Não é difícil compreender isto.

4.

Posto isto, por que razão considero que o partido deveria merecer, mesmo nestas circunstâncias excepcionais, mais atenção discursiva e propositiva? Porque os partidos têm o monopólio de propositura dos representantes à escala nacional e, já não existindo este monopólio à escala local, eles continuam a ser extremamente importantes na democracia local, tendo perdido, isso sim, alguma importância por manifesto mau desempenho; porque os partidos, à escala nacional, quando obtêm uma maioria (sozinhos ou coligados) têm liberdade para formar governos, nomear inúmeras figuras institucionalmente relevantes e desenhar e executar concretos programas de governo; e, ainda, porque os partidos dão expressão política e ideológica à pluralidade das sensibilidades políticas presentes na sociedade. Só estas razões já seriam suficientes para darem lugar a uma maior atenção quando se trate de eleger o líder de um partido – neste caso, do PS.

5.

É claro que, reflectindo sobre a identidade ético-política e ideológica do partido, ipso facto se está a dar indicações ao eleitorado sobre as opções de fundo que serão traduzidas em programas de governo. Traduzidas. É aqui que o essencial fica definido. As linhas de força que hão-de inspirar os programas a propor ao eleitorado, sendo natural que, em via  subordinada, se possa, no presente caso, também já avançar com algumas ideias sobre as principais clivagens que determinam a vida do país, antecipando algumas propostas programáticas. Mas a verdade é que haverá um tempo dilatado para isso mesmo e esse tempo começará no dia 17 de Dezembro, quase três meses antes das eleições legislativas e quase seis meses antes das eleições para o Parlamento europeu. O partido é único e deve ter uma filosofia de fundo que inspire os programas (de governo, europeus e locais). É disso que se trata, não de programas de governo. Para ser mais claro: este é o tempo de afirmar uma “ética da convicção”, mais do que uma “ética da responsabilidade”, esta sim, obrigatória na fase de candidatura com vista a conquistar uma maioria de governo. Enquanto partido, deve afirmar livremente os seus valores sem os subsumir num programa de governo. Os partidos políticos são organizações privadas (que propõem uma sua visão de sociedade) que perseguem fins públicos. Depois, a “ética da convicção” acabará por ser sempre “temperada” pela “ética da responsabilidade” quando se tratar de governar a sociedade no seu todo. A “ética da convicção” conhecerá uma sua conversão institucional (como “ética da responsabilidade”) através de um efeito de sobredeterminação pelo complexo institucional político-jurídico do sistema social. É assim que funciona o sistema em democracia.

6.

A tese de que o que importa são as eleições legislativas esconde uma real desvalorização do problema que está a afectar a social-democracia um pouco por todo o lado e já também entre nós. Um dos argumentos recorrentes nos partidos para não se discutirem é o de que nunca é oportuno ou de que, fazendo-o, se dá armas aos adversários: ou porque se está na oposição ou porque se está no governo. O tacticismo nunca deve ser elevado a filosofia de um partido, sob pena de os seus princípios ficarem sujeitos à ética do Groucho Marx. Sobretudo se for um partido de esquerda. Mas tem sido isto que tem fragilizado o centro-esquerda e o centro-direita, dando o flanco à direita radical ou à esquerda radical, como, por exemplo, acontece na Itália e na França, respectivamente. Além disso, a sociedade tem mudado muito em todas as frentes, ao contrário da política, que teima em manter as velhas e já gastas fórmulas. Quanto a mim, estes partidos comprometeram-se ao subordinarem a sua identidade à dependência do Estado, financeiramente, em termos de emprego dos seus quadros e militantes, dando cada vez mais voz a essa tendência autofágica da endogamia e privilegiando os seus núcleos duros eleitorais nas opções políticas. Esta tendência leva a que o novo perfil da cidadania tenda a não ser suficientemente reconhecido e, consequentemente, ao desvio inoperante do discurso político. Se virmos as recentíssimas sondagens feitas em Portugal, o que nelas se verifica é um significativo encolhimento da base eleitoral destes dois partidos em cerca de 15 pontos relativamente às últimas eleições legislativas de 2022.  Encolhimento que está a alimentar os extremos, provocando um ulterior aprofundamento da fragmentação do sistema de partidos.

7.

Nas eleições que terão lugar nos próximos dias 15 e 16 de Dezembro o que se está a eleger é, no essencial, o próximo secretário-geral do PS, ou seja, a figura que, antes de mais, será responsável pelo bom desempenho do partido enquanto organismo vivo e não enquanto mero partido-veículo, ou partido eleitoral, que existe exclusivamente para ganhar eleições. Não me sentindo confortável, pelas razões que expus (aqui e em artigo anterior), com qualquer uma das moções, a minha opção, como já aqui tive ocasião de afirmar, vai para Pedro Nuno Santos (PNS), por me parecer que será o líder em melhores condições para reanimar o partido e para o dotar de uma sólida “ética da convicção”, de uma identidade capaz de ser reconhecida pelos seus militantes, pelos simpatizantes e pelos portugueses como a organização política que se situa num espaço político virtuoso, movido por valores que conjugam a liberdade com a igualdade, a esfera pública com a esfera privada e que defende uma visão para o nosso país enquadrada num cosmopolitismo progressista capaz de resistir às novas pulsões ditatoriais que estão a emergir com violência um pouco por todo o lado. Creio mesmo que será com ele que a “ética da convicção” poderá ser assumida sem tibiezas nem sujeição à lógica do compromisso e da negociação a todo o custo. Ou de uma ideia de política como mera tecnogestão dos processos sociais, management ou governance. Ideia que, afinal, tem consignado a política pura e dura aos extremos. A personalidade do líder é muito importante numa era de forte personalização da política em especial se ela se conjugar com a valorização de uma organização viva que se estruture politicamente como embrião do Estado, antecipando pelo trabalho, pelas boas práticas, pela determinação, pela coragem e por clareza estratégica a futura gestão do poder de Estado. Esta combinação virtuosa pode mudar o que tem de ser mudado, em vez de prosseguir como se o PS vivesse no melhor dos mundos. Mas não vive e, de facto, muito terá de mudar se se quiser inverter o processo que já está em marcha também no nosso país. E acredito que com PNS seja mais viável a mudança interna e necessária no partido. E, já agora, claro, no País. JAS@12-2023

JAS_Talisma2022PubRec

Poesia-Pintura

DESTINO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “O Voo da Rosa”.
Original de minha autoria.
Dezembro de 2023.
OVoodaRosa2023Pub

“O Voo da Rosa”. JAS. 12-2023

POEMA – “DESTINO”

RENUNCIEI
Para nunca
Te perder,
Mas neste
Silêncio sofrido
Vai declinando,
Traído,
O que pra sempre
Eu quis ter.

VÊS, BERNARDO,
Que destino?
Que desassossego,
O meu?
Quis seguir
O teu caminho
E, de tanto
Caminhar,
Perdi-me...
..............
Já não sou eu.

QUE DESENCONTRO
Foi esse
Desde o dia
Em que a vi?
Dei-lhe errados
Sinais,
Cavando
Cada vez mais
Esta funda 
Solidão
Que nasceu
Quando a perdi...

VÁ, DIZ-ME
Tudo o que
Não sabes
(É a ela
Que eu peço),
Eu quero
Mesmo saber
Pra te cantar
Em poemas
E assim não
Te perder.

TU AMAS
A poesia?
Senti-la é
Doce sofrer,
Ela diz tudo
Com nada
E seu canto
É prazer,
É como o voo
Da rosa,
É melodia
De fada
Mesmo quando
Faz doer.

NO POEMA
Eu até finjo,
É poeta
Quem o diz,
Mesmo que sinta
O que digo
Nunca sou,
Sem ti,
Feliz.

MAS POEMA
É como a vida,
Posso ouvir
A tua alma
Em desejos
Com palavras...
........
É o modo
De te ter,
É remédio
Que me salva
De na solidão
Me perder.

ESTE CANTO
É, pois, meu,
Nem tu
Mo podes
Roubar,
Se dizem
Que é só pra ti...
..........
É verdade
De enganar.

MAS O VERSO
É o meu beijo
Nesse rosto
Que perdi,
É quente
Como o desejo
E resiste
A quem te diz
Que o poeta
Não te ama,
Porque desenha
As palavras
Com um pedaço
De giz...

O AMOR
Em poesia
Não é, afinal,
Deste mundo,
Quem o ler
Como utopia
Vai mais longe,
Vai mais fundo,
Nem vê
O pobre poeta
Como simples
Vagabundo...

EU NÃO GOSTO
Da renúncia,
Mas que posso
Eu fazer?
Se não cantar
O que sinto
É mais profunda
A perda,
Não há modo
De te ter...

OVoodaRosa2023PubRec

Artigo

AS ELEIÇÕES PARA SECRETÁRIO-GERAL DO PS

Manual para uma Boa Decisão

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 12-2023

SÃO TRÊS OS CANDIDATOS a Secretário-Geral do PS: Pedro Nuno Santos (PNS), José Luís Carneiro (JLC) e Daniel Adrião (DA). A campanha está no terreno junto dos militantes do partido. Desta vez não houve primárias, como seria desejável, e nem sequer foram reivindicadas, mesmo pelos que as defendem. O tempo escasseia e, de certo modo, compreende-se que seja assim. Também já são públicas as moções das candidaturas e os candidatos são suficientemente conhecidos dos militantes. E é claro que a competição essencial será entre PNS e JLC, não por qualquer razão discriminatória em relação ao outro candidato, num partido que tem a não discriminação como bandeira e valor central, mas porque no partido ambos recolhem um apoio mais significativo. O peso político dos dois é muito maior, até pelas importantes funções políticas que ambos já desempenharam.

1.

Há um aspecto crítico que deve ser sublinhado nestas eleições: todos os candidatos dão uma importância residual às questões internas do PS, colocando-se mais como candidatos a primeiro-ministro do que como candidatos a secretário-geral do PS. O que no meu modesto entendimento é um erro grosseiro que parece reforçar a ideia de que: 1) o PS é sobretudo um partido eleitoral, ou seja, um partido-veículo para o acesso ao poder de Estado e à sua vastíssima máquina, da qual se alimenta; 2) tudo está bem na sua organização interna, no seu funcionamento e até no modo como se concebe como partido de esquerda, embora a insistência de que se vive no melhor dos mundos enfraqueça mais do que enrobustece; 3) o secretário-geral se tornou essencialmente um candidato a primeiro-ministro, pouco importando o que faça ou não faça no e do partido; 4) as eleições legislativas são essencialmente eleições para primeiro-ministro e menos eleições para os representantes da nação.

2.

Ora acontece que esta é uma eleição para líder de uma grande organização e, naturalmente, o seu discurso deveria centrar-se na estratégia que pretende desenvolver para governar o partido com vista ao futuro, tendo em consideração que a área da social-democracia em que se inscreve sofre hoje um profundo desgaste que urge resolver, antes de mais intervindo sobre a sua identidade e os seus referentes sociais, sobre a sua organização e sobre a sua relação com a sociedade civil. Depois, acontece que, como partido de esquerda que é e pretende ser, o PS não deve confinar a sua identidade a partido eleitoral ou a partido-veículo, totalmente dependente do Estado, devendo promover-se, bem pelo contrário, como organismo vivo capaz de gerar dentro de si não só bons dirigentes políticos, bons critérios de selecção dos seus quadros para altas responsabilidades e uma dialéctica interna democraticamente virtuosa, mas também desenvolver uma cartografia cognitiva em linha com os desafios históricos que se lhe põem, uma relação orgânica robusta com a sociedade civil e valores civilizacionais avançados correspondentes à sua identidade enquanto partido de esquerda. O secretário-geral de um partido como o PS é antes de mais o líder de uma poderosa e vasta organização que exige dele uma atenção total, à semelhança de uma grande empresa ou de outras grandes organizações que ocupam lugares relevantes na sociedade portuguesa. Ele não pode, pois, limitar-se a olhar para a gestão do Estado, descurando a gestão do próprio partido, deixando-o entregue aos “caciques” e às “bolsas de quotas” e permitindo que se transforme numa gigantesca federação de interesses pessoais. E tem sido isto que, de algum modo, tem acontecido. Nunca me esqueço de uma afirmação de Antonio Gramsci acerca do partido político: ele é um embrião do Estado, devendo no seu interior antecipar de forma virtuosa aquela que será a futura gestão do Estado ( Quaderni del Carcere, 7, 1930-32, § (90) ). É nisto que um partido de esquerda difere de um partido de direita, mais vocacionado para gerir os poderes e os interesses instalados. Depois, ainda, as eleições legislativas não são eleições para primeiro-ministro, mas para o Parlamento, de onde, isso sim, sairá uma maioria que há-de gerar um governo. Foi esta colagem das legislativas à figura do PM que levaram Marcelo Rebelo de Sousa a convocar eleições e a não tornar possível uma solução alternativa no actual quadro parlamentar de maioria socialista. Aprofundo ainda mais. Recentemente, a senhora Giorgia Meloni propôs a eleição directa do PM (o já famoso “Premierato”), num só boletim de voto onde constassem também as opções relativamente às duas câmaras do Parlamento italiano. Puro decisionismo que colhe na tendência actual para a hiperpersonalização da política e na desvalorização da matriz originária do sistema representativo. Por isso, é necessário ter muita atenção quando se envereda por certas orientações e opções políticas.

3.

Li as três moções, com alguma fadiga, confesso, e, no total das 202 páginas (48, a de PNS, 94, a de JLC, e 60, a de DA), são escassas as páginas e as propostas dedicadas ao partido por qualquer um dos candidatos. São nove ou dez páginas no total e com vagas alusões a uma estratégia de gestão do PS no futuro. Não mais. Tudo o resto, em qualquer das moções, é dedicado a percorrer os inúmeros sectores da governação – como se já estivéssemos em plena campanha para as legislativas – com pequenas modulações ideológicas: maior ou menor intensidade nas propostas de assistência ou prestação social à cidadania, mas todas no quadro de um fortíssimo Estado Social. Discurso que, afinal, bem poderia ser desenvolvido, não nesta campanha interna, mas, sim, ao longo dos cerca de três meses de pré-campanha e campanha eleitoral. Ainda assim, e sobre estes discursos estratégicos para um futuro governo do PS, mais do que uma exaustiva lista de medidas muito marcadas por um excessivo  assistencialismo estatal e por uma obsessiva ideia de sustentabilidade (palavra que já enjoa) transversal (na moção de JLC), teria sido interessante ter encontrado sobretudo opções prioritárias e selectivas, analiticamente argumentadas, em relação aos grandes problemas que nos afligem (habitação, SNS, investimento e produtividade, reorganização do aparelho de Estado, política fiscal, imigração, futuro da União Europeia, entre outros). Clarifico: nestas questões nucleares do que se trata é sobretudo de detectar a causa causans, ou a causa eficiente, a que permite construir uma efectiva solução estrutural. Por exemplo, na questão da habitação – a expansão do mercado de arrendamento (que tem efeitos decisivos também sobre o preço das casas para venda). Ou na questão do SNS – o acesso massivo e injustificado às urgências dos hospitais, que urge estancar. Mas não, o que encontramos é um vasto cardápio de medidas mais centrado numa visão assistencialista do que numa analítica reconstrutiva argumentada capaz de enfrentar com eficiência os dossiers fundamentais.

4.

Na verdade, o texto das moções que acompanha as candidaturas a secretário-geral não parece ser de grande utilidade para decidir acerca do candidato preferido. Pode ser um auxiliar, mas o conteúdo sobre o partido é absolutamente minimalista e não permite antever a natureza das respectivas lideranças. Então, em que se pode fundamentar a decisão do militante para optar por um ou por outro candidato? É claro que a opção não é dissociável do facto de o secretário-geral vir a ser o futuro candidato do PS, a referência da maioria para chefiar um governo, mas a verdade é que não é isso que aqui está em causa. O que está em causa é, sim, saber quem poderá vir a ser o melhor secretário-geral do PS, que o mesmo é perguntar quem melhor poderá conduzir o PS neste período de mudança e de grave crise da social-democracia. Há um tempo para tudo e este é tempo para falar do PS, enquanto partido. E não me parece que seja muito instrutivo dizer que os portugueses preferem este ou aquele candidato para primeiro-ministro, porque, nestas eleições, não são os portugueses que votam, mas os militantes com quotas pagas.

5.

Assim sendo, o militante, não se podendo orientar pelas (quase nulas) medidas propostas para o partido, deverá centrar-se na figura, na personalidade do futuro líder e sobre ele fazer uma reflexão que o leve a decidir. Contará o seu trajecto, a experiência política, as posições que foi assumindo ao longo da sua vida política, a qualidade das suas intervenções, a frontalidade e a clareza das suas posições perante os temas mais quentes da agenda política, a liberdade de discurso quando o PS se jogava em delicadas e polémicas decisões, a sua independência relativamente às relações de força em determinados momentos. Tudo no plano da avaliação política. Há nesta disputa mais uma forte personalização da competição eleitoral do que uma exibição de programas convincentes dirigidos à racionalidade do militante. E, como disse, a textura das moções pouco ajuda à decisão, não só pela sua extensão, mas porque não se vê a determinação de prioridades selectivas essenciais analiticamente argumentadas e em linha com o património ideal do PS, que, de resto, continua nebuloso em certos aspectos. Por exemplo, na sua relação com o património liberal clássico e com o iluminismo. Lembro, a mero título de exemplo, que as moções (nenhuma delas) não tomam na devida consideração a centralidade do cidadão-consumidor no sistema social e a necessidade de o proteger activamente do arbítrio dos oligopólios em matérias de importância vital para as suas vidas (banca, centrais de consumo, energia, operadoras de telecomunicações, etc., etc.). É um mero exemplo de uma questão que é central e que mereceria uma atenção especial na hierarquia selectiva das prioridades. Mas a verdade é que a personalização, ou mesmo a hiperpersonalização, tem determinado a evolução da política desde que a televisão entrou prepotentemente no jogo político, nos anos cinquenta do século passado. E, por isso, deverão também contar as características comportamentais e psicológicas dos candidatos, tendo em consideração a necessidade de tomar decisões duras sobre alguns dossiers e assumir posições de independência e mesmo de confronto em relação aos, recorrentemente insidiosos, poderes fortes da sociedade civil.  Também, mas em menor escala, poderá contar como ajuda para a decisão uma avaliação do entourage do respectivo candidato, sendo certo que, em alguns casos, o círculo restrito dos apoiantes pode influenciar decisivamente as suas decisões ou até mesmo capturá-lo. A personalidade do líder pode dar alguma garantia acerca das escolhas, da sua liberdade, independência e autonomia de acção, que deverá ser sempre guiada, no quadro da ética pública, por um único princípio: o do interesse público ou interesse geral, que não seja excessivamente centrado numa visão caritativa da acção política e que garanta inequivocamente os direitos individuais, sem os subsumir numa visão comunitarista da vida social. Não se pode dizer, como é dito numa das moções (a de PNS, pág. 23), por exemplo, que baixar o IRS não é muito eficaz, do ponto de vista da justiça fiscal, porque a medida não atinge quase metade dos agregados portugueses (precisamente os que não pagam IRS). No mínimo, esta afirmação revela pouco respeito pelos cidadãos-contribuintes que pagam impostos directos.

6.

Tendo em consideração todas estas variáveis parece-me que o PS beneficiaria de uma liderança que se mostrasse mais em linha com as necessidades de mudança no interior do próprio partido, cujas fragilidades eu tenho aqui vindo a analisar em várias ocasiões, e de uma atitude de maior combatividade do partido perante uma larga frente de adversários que aspiram (legitimamente) a formar um bloco de governo alternativo, de direita. e que as sondagens já apresentam como bloco maioritário. Não me parece que uma linha de tacticismo e de compromisso, quer interno quer externo, e uma orientação que reduz a política a mero management, a governance ou a pura tecno-gestão dos processos sociais, condimentada com caridade católica em doses abundantes, possam indiciar um real avanço nas posições do PS relativamente a tantas fragilidades que acabaram por deixar o partido à mercê de forças externas, inclusivamente à política, e que induziram a crise que estamos a viver. É por isso mesmo que o establishment, integrado pelos partidos da alternância governativa (PS e PSD), tem vindo a perder eleitorado. Por falta de alma, por não assumirem o conflito estratégico como natural na dialéctica política, por reduzirem a política a management e a gestão ideológica dos grandes números, àquilo que um psicanalista meu amigo chama “algebrose”, e por praticarem um discurso que “dá ao público o que o público quer”, os partidos da alternância ou do bloco central têm vindo a perder quotas significativas de eleitorado um pouco por todo o lado (e já também no nosso país, a crer nas sondagens disponíveis).  A situação já não era boa desde o início da maioria absoluta e piorou com as escolhas de António Costa para a constituição da equipa governativa. E o partido socialista, há que o reconhecer com frontalidade, também tem culpas na crise que se instalou a 7 de Novembro, pelo que a exibição acrítica e encomiástica do seu legado não me parece ser a melhor resposta à crise. Tendo o poder, enredou-se nele e não o soube usar, mudando o que há a mudar, no partido e no país. Por exemplo, na justiça. Na passada sexta-feira (01.12.2023), nas páginas do “Expresso”, Miguel Sousa Tavares pôs o dedo na ferida: o único poder que não conhece controlo de nenhuma espécie é o Ministério Público. Um qualquer procurador pode derrubar um governo legitimamente eleito, com maioria absoluta, baseando-se em coisa nenhuma, no momento do facto. Não é coisa nova, mas o PS nada fez, durante os governos de António Costa, no domínio da justiça, para mudar as coisas. A anterior ministra, a senhora Francisca Van Dunem, não era mais do que uma sindicalista encapotada do ministério público. E também a actual ministra nada fez.

7.

São estas as razões que me levam a apoiar e a votar em Pedro Nuno Santos e não em José Luís Carneiro (ou em Daniel Adrião). Reconheço no primeiro maior combatividade e independência, tendo mostrado nos últimos anos que nunca precisou da autorização do líder para dizer e fazer o que pensa. Fê-lo, por exemplo, nas eleições presidenciais, onde defendeu que o PS devia ter tido o seu próprio candidato. Na ocasião elogiei-o por isso. Bem sei que Daniel Adrião fez um bom serviço ao partido, candidatando-se contra António Costa e evitando um unanimismo sempre democraticamente pernicioso, mas isso não faz dele um candidato suficientemente ancorado no partido para o liderar. Conheço o percurso de José Luis Carneiro e reconheço-lhe qualidades políticas e pessoais, mas não me parece que tenha evidenciado no seu percurso independência suficiente e autonomia de pensamento e de acção. Esteve sempre colado às lideranças (primeiro a António José Seguro e, depois, a António Costa) e não me oferece garantias de que seja suficientemente ousado para mudar o que tem de ser mudado. Que me perdoe, mas é o que penso. A sua moção pouco ou nada me esclareceu (e sobretudo em matéria de partido) e o seu centrismo faz-me pensar que alinha no modelo de política que está a levar o centro-esquerda e o centro-direita a uma crise tão profunda que dá cada vez mais lugar a uma complexa fragmentação do sistema de partidos, com emergência de uma forte direita radical.  Pelo contrário, o que espero de Pedro Nuno Santos é ousadia política, ruptura com a ideia de acção política por inércia e com o centrismo inócuo e asséptico e a superação da ideia de partido como organização exclusivamente eleitoral, partido-veículo totalmente dependente do Estado; o que espero é que recupere o partido como organismo vivo e que o prepare para soluções de futuro, com dirigentes à altura dos desafios; que sobre os principais problemas do país faça escolhas fundamentadas e liberte o partido (e o país) da ganga ideológica da esquerda identitária (que tanto tem alimentado a direita radical); que melhore o sistema de eleição dos dirigentes e dos candidatos para altas funções políticas; que levante o partido do estado comatoso em que se encontra e que acabe com a endogamia partidária; que recupere o desaparecido (sem que os militantes se tenham apercebido disso) jornal do partido como instrumento de debate político e de coesão ideológica, e tantas outras coisas que uma verdadeira moção estratégica deveria conter, mas que, infelizmente, não contém. A personalidade de PNS dá-me mais garantias de que o PS possa enveredar por um novo rumo capaz de iniciar um processo de superação de uma crise que não é só sua, mas, em geral, de toda a social-democracia. Compreendo que faltou tempo para um programa mais estruturado e dedicado ao partido, mas sempre poderia ter sido dito mais do que duas ou três ideias vagas que se encontram em duas páginas e meia, das 48 que a moção tem. Há um tempo para tudo e esta é a eleição do secretário-geral, não dos representantes ao parlamento nem do primeiro-ministro. Como militante com quotas pagas, é isto que espero do PS, um partido que a democracia portuguesa tem no seu ADN e de cujo destino também depende o futuro de Portugal.

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Poesia-Pintura

APARIÇÃO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Epifania”.
Original de minha autoria.
Dezembro de 2023.
JAS_Epifania2023Pub3

“Epifania”. JAS. 12-2023

POEMA – “APARIÇÃO”

EU VI UM ANJO DESCER
Docemente
Sobre mim,
Era rosto
Imaculado
Em momento
Inesperado
Que parecia
Não ter fim...

VINHA ELE
Lá de tão alto
Que nem eu
O pressentia,
Tive então
Um sobressalto
Porque em mim,
Pobre mortal,
Esse anjo
Não cabia.

SUA LUZ 
Era intensa,
Ofuscava
O olhar,
O seu brilho
Deslumbrava, 
Arte pura, 
Sedução, 
Vontade 
De o cantar.

MAS NÃO SEI 
Se era anjo
Ou se era
Uma mulher,
O seu rosto
Era belo,
 Não era um
Rosto qualquer...

POR ISSO ME FASCINOU,
Porque ao vê-lo
Descer
Do trono
Onde reinava,
Quase, quase
Me cegou
Com a luz
Que emanava....
..........
Mas levou-me
Ao Parnaso
Onde a arte
Lhe sobrava.

FIXEI-O, ENTÃO,
Num quadro
De memória,
Traços leves,
Cores intensas
Que cativam
O olhar,
Pintei-lhe
O cabelo
De negro,
Dei-lhe rosto
De mulher,
Como se fosse
Avatar
Que tomou
Conta de mim
Para sempre
Me lembrar
Que não era
Querubim.

MAS QUE EU VI 
Um anjo,
Ah, eu vi
Entrar bem
Dentro de mim
Sob forma
De mulher,
Porque anjo
Imaculado
Não cabe
No meu jardim
Faça eu
O que fizer.

FOI MISTÉRIO
Nesse oráculo
Da vida
Onde eu o
Tento ler
Em sinais
Que não terminam
Num dia 
De despedida
Que eu não
Deseje ter.

EU VI UM ANJO DESCER
Neste vale
Da minha vida
E ele fez-me
Crescer,
Recomeçar
A partida,
Outra forma
De viver.

E COM POEMAS
Em viagem
Eu parti
Para com eles
Voar
Em cada palavra
Que digo,
Em cada verso
Que sinto
Na hora de celebrar.

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