FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA (IV)
Por João de Almeida Santos

“O Desejo”, 2022. JAS. 12-2023
I.
ALGUÉM, UM DIA, SUGERIU ao poeta que ele estaria a afastar-se da musa, ao que ele respondeu que não, pois sem musa não haveria poeta. Seria como afastar-se de si próprio. Porque ele nasceu de uma sua visita e, a partir daí, ela passou a fazer parte do seu mundo, suscitando-lhe sentimentos, expressos em palavras, que resultam da dialéctica da (sua) presença-ausência ou do silêncio-diálogo entre ambos, poeta e musa. É um universo ondulante onde o poeta se move ao sabor das suas pulsões reprimidas no confronto com um real agreste, opaco, crespo. Mas um universo iluminado pela figura da musa, que está sempre em transfiguração controlada pela sua fantasia. A perda da musa seria uma perda fatal. E até os fantasmas iriam para outros lugares à procura de alimento espiritual.
II.
A poesia mata saudades. Ela chama a si o ausente e dá voz ao silêncio. A felicidade possível de um poeta em tensão. Os olhos dela pode vê-los com os sentidos interiores ou, felizardo, através do pincel do pintor. Epifania. Mas sempre se trata de um “delicioso pungir de acerbo espinho”, diria um amigo e companheiro de viagem poética, citando o Garrett. Sim, o prazer de um fruto amargo. Sofre, o poeta, no canto feliz da dor estilizada. Tem saudades, ele, mas, ao cantá-las, converte a dor da ausência em alegre ritual celebrativo de catedral. Assim parece ser. Longe desse real hostil, transfigura-o e dá-lhe nova e ritualizada vida. E assim o supera, o conserva e o nega (como perecível contingência). Uma dialéctica reconstrutiva para uma alegria dolorosa.
III.
Mas “não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram”, lembrou-me, um dia, uma amiga. Pois é. Tinha razão o Bernardo Soares. Saudades do que só aconteceu em sonho ou simplesmente como desejo. Essas é que são saudades dolorosas. Do que foi não é tão doloroso porque, de algum modo, foi, aconteceu. Mas do desejo que se ficou pelo desejo ou do sonho de que se acordou já noutro lugar qualquer, ah, isso sim, é dor. Porque o desejo desejado ou o sonho sonhado são mais intensos do que o desejo ou o sonho cumpridos, em parte. É essa intensidade interior que torna a saudade mais dolorosa. Tudo se passa nos sentidos interiores, que são mais intensos do que as relações sensoriais com o exterior. E mais duradouros. Porque persistem como desejo. Era este o mundo do Bernardo Soares. O mundo, para ele, era uma galeria de arte que ele desenhava e reconstruía com a sua imaginação. No real não gostava de tocar sequer com as pontas dos dedos. Por isso, a dor para ele não tinha uma dimensão sensorial, corpórea. Os rostos eram, afinal, retratos que ele apreciava na galeria da vida. E não se ajeitava com a poesia. Imaginemos, então, o que não seria se se ajeitasse… São dolorosas, essas saudades… porque isso nunca aconteceu a não ser em sonho ou como desejo. É como reencontrar-se no tempo perdido. Uma impossibilidade, a não ser em poesia. O desejo agiganta a vontade, mas o resultado é nada, só restando a fantasia. O Cioran falava de uma poética do fracasso. A celebração dorida do irrealizado, do falhado. As coisas que nunca foram são mais reais do que as que foram. Porque aquelas nunca morrem, persistem como desejo (sempre) inacabado. É a poética da perda: a elevação da perda a ritual poético no processo de redenção pela arte.
IV.
Sim, o Bernardo Soares é frequente companheiro de infortúnio. Se não posso ou devo tocar a realidade sequer com a ponta dos dedos, então olho para ela como para uma galeria de arte. Ele, que nem filósofo se considerava, não se ajeitava lá muito com a poesia, mas a verdade é que tinha irmãos que eram excelentes poetas. Mas este, o que escreve, felizmente lá se vai ajeitando e assim pode salvar-se do infortúnio. Ainda por cima vive irmanado com um pintor que o vai confortando e animando com riscos e cores que vão dando mais vida e cor às suas palavras. E curando o seu infortúnio. Perdido, perdido, anda sempre e, por isso, tem que se reinventar para se ir reencontrando noutros territórios que não naquele em que pecou e se condenou. Gosta de voar sobre pétalas de rosa. E de sentir o perfume da rosa com a alma, uma dádiva do Olimpo. O poeta é passageiro permanente nos voos da rosa. As pétalas são as suas asas. E o perfume o combustível. O seu jardim encantado é o seu aeroporto espiritual. E gosta dele porque gosta cada vez mais de viajar deste modo. Se o destino leva o poeta por aí, só lhe resta cantar. Voar. E melhor será se voar em direcção ao infinito. Parte de um lugar concreto, o do desassossego, e eleva-se para falar com os deuses, pedindo-lhes a bênção. Neste caso, a Athena. Salvação pela arte. Pela beleza.
V.
O “Voo da Rosa”, um quadro do poeta-pintor, é “dança da solidão”, disse dele uma habitual frequentadora dos meus poemas. Sim, “dança da solidão”. E o poeta está condenado a executá-la, a dançar até cair exausto. Karma. Na dança, o poeta vagabundo passeia-se por outras almas, que assim alimenta e que o ajudam a reencontrar-se. Na partilha reencontra-se. Cumplicidade poética. Ele é, sim, um ser perdido, em constante viagem, depois da visita da musa, que, implacável, logo o abandonou. Restou-lhe o estro, a marca da sua passagem e o estímulo para a procurar constantemente. A poesia é filha da musa e da dor. Do silêncio e da ausência. Depois chegam os fantasmas, que se alimentam dos beijos que ele sopra ao vento que passa para que cheguem até ela. À musa. Um destino marcado, este, o do poeta. Que se cumpre no canto.
VI.
E há sempre saudades. Cantá-las, as saudades, ajuda a metabolizá-las e a conservá-las como feliz melancolia. Sim, ficam as saudades quando o essencial perdura no tempo. Senti-las é uma coisa, cantá-las é outra coisa. É dar um passo em frente. Este passo depende apenas de quem as sente e, de certo modo, significa ritualizá-las, revivendo o passado sob outra forma mais livre, mais estilizada. É já um tempo próprio, independente do contexto em que se viveu. Mesmo na pintura, ainda que ela possa evocar, com minúcia, algum realismo e sem fingimento, nos traços, esse passado que o poeta canta.
VII.
Um dia, uma persistente leitora e habitual comentadora dos meus poemas falou da poesia como “música crepuscular”. Bela definição. Ao cair ou ao nascer do dia levanta-se o poema para o recordar e o (re)viver, o dia, como sonho a olhos abertos e como fantasia. A poesia é toda ela crepuscular, porque acontece sempre num intervalo entre o que foi e o que está para ser, onde as formas mais parecem sombras indefinidas que solicitam a fantasia para as identificar. É como um ambiente de neblina a que é preciso acrescentar luminosidade e definição. Ou traz consigo ainda as figuras do sonho sonhado ou ainda esbatidas as formas que encontrará à luz do sol. Mas a definição acrescentada nunca provém do exterior, ela resulta da música interior que anima o poeta e do seu cinzel poético. O crepúsculo é o ambiente favorável da poesia porque está entre o real e a fantasia. Convida a desenhar com maior nitidez o que se apresenta um pouco sombrio. O poeta encontra aqui a posição privilegiada para poetar, entre a vida e o sonho, entre a realidade e a imaginação. Neste intervalo nem é uma coisa nem a outra, sendo, ao mesmo tempo, as duas. É aqui que a linguagem poética melhor se exprime.
VIII.
O destino do poeta é chorar em palavras. Chovem palavras do seu melancólico olhar. Mas não espera que lhe enxuguem essas lágrimas. Ele sente prazer nelas. Chorando assim, redime-se. Nada mais espera. Um dia. o pintor embelezou o choro com uma rosa em voo. E a cor da rosa era ditada exclusivamente pela beleza a que o poeta aspirava no seu voo redentor… voando sobre pétalas deitava palavras ao vento sobre o vale da vida.
IX.
E quando perguntam ao poeta como aconteceu esse encontro primordial com a musa, ele responde sempre: tudo começou quando uma videira cardinal trepou pela pernada acima e fez o loureiro do seu jardim encantado dar uvas. O poeta registou o momento, recorrendo a fragmentos de memória afectiva. Aconteceu ali uma transfiguração, um encontro sensual e germinal. Claro, seria melhor perguntar-lhe se a transfiguração é também evocação e invocação de algo bem concreto. Mas ele certamente responderia em verso, dizendo que o poeta é um fingidor que até finge o que deveras sente. E ficaríamos ali nesse intervalo entre a realidade e a ficção. De resto, nem a poesia tem como função descrever o que acontece no real, porque ela é tão-só um expressivo, estilizado e sofisticado grito de alma. É um veículo onde o poeta viaja sem destino. E viagem é libertação.
X.
Num quadro que pintei, “Epifania”, tudo se passou como se de uma aparição se tratasse: a aparição de um anjo em forma de mulher, mas numa visão sensorial interior. Sim, esta aparição terá uma sua exterioridade, algo que impressionou sensorialmente o poeta, que o tocou fisicamente, mas, depois de esculpida pelo tempo no terreno da memória, ganhou uma nova dimensão. É aí que a aparição se torna ambígua, ente anjo e mulher, provocando alguma indecisão no poeta e até no pintor, quando este lhe propôs uma figura de mulher (também ela um pouco anjo e um pouco mulher). É nesta nebulosidade sensorial que reside o mistério, mas é também ela que alimenta o poeta. Sim, o problema reside na palavra “ver”. Ver com os olhos ou ver com a alma? Ou ver com ambos? É aqui, nesta tentativa simbiótica que o poeta se move, entre os olhos e a alma, entre a dimensão sensorial e os sentidos internos. Sim, é aqui que a poesia se move. Há sempre o perigo de uma idealização extrema e de uma excessiva desrealização. Um perigo de que o poeta se dá conta e do qual tenta sempre fugir. Porquê? Porque sempre sente que tem de dar fisicidade, materialidade ao poema. E não só através da sua musicalidade, altamente performativa, mas também na semântica, na alusão, ainda que equívoca e até perigosa, à realidade.
XI.
A poesia é sedução, fantasia, desejo, engano, realidade…, dizia-me um amigo depois de ter lido um poema meu. Sim, poesia é tudo isso porque é movida pela paixão e pela dor… reinventadas. Quanto maior for a perda ou a dor, maior será a recriação. Reconstrói o que perdeu, o poeta. E reinventa diálogos e seduções como se tivesse perante si esse ser que se ausentou e que lhe fala, o interpela, com silêncio reiterado. Ou até como castigo. E o poeta, sentindo-se punido, procura resgatar-se com a perfeição. Com a sedução estética como forma de reapropriação do que perdeu. Assim se redime e reencontra. A poesia esculpe com um cinzel afectivo. Tal como o tempo no fluxo da memória. E eleva e faz perdurar o que estaria condenado a esgotar-se, a cair no poço fundo do esquecimento. E, depois, o pintor, solidário, até chega a dar forma ao rosto dessa paixão cantada, completando a recriação e (quase) suplantando a realidade invocada poeticamente.
XII.
“As palavras do poeta dançam-me na alma”… Que mais pode querer um poeta? Ver os seus versos dançar na alma de quem os frui é a maior das recompensas para quem arrisca a sua intimidade num poema ou numa pintura. A poesia requer alguma sintonia interior para ser compreendida, porque ela própria é experiência interior convertida em palavras. Quando ela dança na alma é porque foi compreendida e partilhada. Ela não alude a algo exterior e palpável. Quanto à rima, todos os poemas procuram funcionar com musicalidade, ritmo, toada. Tempos houve em que a poesia era em rima interpolada. Hoje responde a outras exigências melódicas e rimáticas um pouco mais delicadas. Não fica tão presa a uma toada regular e repetida. É mais subtil e fala mais à alma do que aos sentidos. A melodia é mais espiritual.
XIII.
A poesia é libertação. Uma forma muito especial de libertação de quem se sente refém. A experiência do amor-paixão é densa e acontece para além das fronteiras da razão, por isso captura-nos e, de certo modo, aprisiona-nos. É uma pulsão profunda que tem um lado extraordinário e o seu reverso. A poesia não é uma tentativa de compreensão. É uma acção libertadora que lhe retira peso, elevando o amante à esfera da sensibilidade estilizada. É a verbalização de uma “opressão” interior que equivale a libertação. Coisa parecida com as livres associações da psicanálise. É remédio para essa “maladie de l’âme”, “Remedia Amoris” (Ovídio). Mas torna-se também mais do que isso porque é movimento em direção à beleza, que é a própria condição da cura. Quanto mais poder de sedução tiver mais eficaz será no processo de libertação. Não estamos, claro, na esfera da pragmática, porque o que estimula o poeta é uma exigência interior, a necessidade de lhe dar voz para não “implodir”. É uma poderosa tensão interior que ele decompõe através de palavras com forte dimensão musical, a dimensão que lhe confere maior performatividade. Sim, é uma viagem interiormente imposta, mas sem destino à vista. O processo é tudo e por isso nunca acaba. O poeta é um transeunte incansável e sem destino, mas que tem sempre o vento a favor. E é isso que faz dele poeta.
XIV.
A poesia tem o poder de curar e de salvar do desespero. E se se projectar na pintura, então cumprirá melhor a sua função (não utilitária). A alma pode adoecer: o amor como “maladie de l’âme” (Stendhal”). A poesia como remédio para os infortúnios de alma. Ovídio: “tristia, quo possum, carmine fata levo” (Tristia, IV). A poesia adoça o triste destino. E gosto da frase “amor sufocado (e) embainhado no silêncio”. O silêncio como arma do amor sufocado. Arma poderosa, embainhada. Mas a que a poesia pode responder, dando-lhe voz. Como se fosse o seu eco, devolvido não como arma, mas como canto.
XV.
O silêncio é a mais profunda das linguagens quando ancorado numa pulsão profunda, numa demorada e focada contemplação, numa escuta atenta ou na intenção de dar, por uma insistente e intencional redundância, a conhecer a outrem o seu peso e o seu significado (o do silêncio). Muito se pode dizer pelo silêncio. A contemplação é silenciosa e permite a mais perfeita das sintonias. Os paradoxos permitem-nos dizer com maior intensidade o que pretendemos dizer. E são estilisticamente belos. Um silêncio ensurdecedor, por exemplo. Não há melhor forma de traduzir o poder de um silêncio que se torna insistentemente redundante e teimoso quase até à agressão (dos sentidos e da alma). O silêncio intensifica-se quando estamos cercados pelo ruído da multidão, anulando-o, enquanto silêncio físico, mas expondo brutalmente a alma ao seu som ensurdecedor. Ficamos mais sós no meio da multidão e então ouvimos interiormente mais o silêncio. Outro silêncio é o da montanha para onde se evade o eremita-poeta para ouvir, em solidão, o som silencioso da majestade das alturas. Este silêncio é mais pacificador. Não agressivo, como o da cidade, que nos faz sentir perdidos e abandonados na selva urbana, à mercê da crueza das memórias mais duras. No ermo, lá no alto, a solidão é sideral. O silêncio, tenha ele que cor tenha, é reconduzido à dimensão natural da existência, à dialéctica da natureza a que pertencemos e à sua lei. Lá do alto podemos observar o vale da vida com maior elevação (espiritual) e maior distância. Podemos relativizar, mas também podemos redesenhar a vida com a nitidez do olhar das águias reais, olhando lá de cima a vida como nosso alimento espiritual. Essa nitidez é dada pelo olhar interior do poeta ou do pintor. Nesta condição, o silêncio pode ouvir-se como melodia da alma. E partir com serenidade para uma nova etapa. Som e silêncio, o som do silêncio que, por vezes, demasiadas, até, é, sim, ensurdecedor. Só a poesia o pode reconduzir à sua forma original. Dando-lhe voz, transforma esse som em melodia. E pacifica e amacia a alma do poeta. Não se conforma, o poeta, e retoma sempre o diálogo, dando forma à voz do silêncio, como se este tivesse um sujeito-autor e fosse a sua fala. Terá? Será? Não sei, mas é provável que sim. Só o poeta estaria em condições de responder. Mas é claro que responderia em verso, dizendo que o poeta é um fingidor.
XVI.
É na dor e na melancolia que a arte começa. Nada a fazer. Pedras no caminho, sim. Muitas pedras. E vamos tropeçando nelas. E o poeta vai tropeçando nelas. E as quedas fazem feridas e as feridas têm de ser curadas. Pela poesia. Mas a pintura ajuda. Dá forma visível à melancolia. Então tudo se torna possível.
XVII.
A ida a sul com as palavras é o recurso do poeta que, a norte, sente todo o frio quente da montanha. No sul há flocos… não de neve, mas de palavras. É a maneira de, a sul, nos aquecermos do frio da ausência e do silêncio. Com flocos de palavras. No norte montanhoso não se sente tanto essa falta. A neve tudo cobre e aquece com o seu manto. Frio na pele, calor na alma. A imaginação viaja a sul à procura de palavras que substituam a neve e o frio quente da montanha. Uma outra forma de aquecer a alma. E também o granito se instalou em nós para nos condicionar o destino. Ah, eu acho mesmo que sim. Aliás, eu sinto-o na pele, o granito amarelo. É ele que me faz resistir. Ainda por cima ele tem cristais que refractam a luz e que nos acendem a alma. A sul, o granito converte-se em palavras. Como os flocos de neve. E as palavras enrobustecem a alma de quem as sente. Que a poesia nos permita atingir o cume da montanha e nos provoque a vertigem das alturas, é o meu desejo. É diferente a temperatura física lá no alto, mas a da alma aumenta à medida das vertigens, do olhar comprometido sobre o vale onde acontece a nossa vida.
XVIII.
“O amor parece ser a estação adiada”, diz-me um leitor e amigo. Adiada sem prazo. É esse o problema. Persistência dos afectos? Sim. É essa a razão da poesia. Sempre em trânsito na direcção da “estação adiada”. Mas deixem-me que vos diga: a musicalidade de um poema intensifica a melancolia a ponto de lhe atribuir um forte poder de contaminação, na partilha. É mais intenso o poder de chamamento. A vida flui como tem de ser. E se for com música tanto melhor. A poesia é música para as almas sensíveis. E ajuda a vida a fluir melhor. E distende-se entre uma dor que se pode ter tornado matricial e a busca de uma beleza redentora em forma de melodia poética.
XIX.
“Inquietação persistente”? Se for, então o destino é ser poeta. Dizer tudo, talvez não. Ir dizendo, sim, mas de forma cifrada, só compreensível pelos “iniciados”.
XX.
Sobre a contradição (o poeta é refém, mas em processo de libertação?) de que me falou um amigo, digo o seguinte: a cicatriz está lá, mas a poesia eleva-o, liberta-o. Refém do corpo, liberta a alma. A cicatriz é o sinal da ferida, que permanece. Como ferida corporal. Por isso, a cada olhar (interior) sobre a ferida ele, poeta, deve responder com um poema. Um eterno retorno. Pecado original. Diria que o poeta está condenado a ser livre. Condenado-refém que se vai libertando pela poesia. O corpo de Gramsci esteve cerca de 20 anos na cadeia (até à morte), mas a sua alma não. Cada fragmento dos “Cadernos do Cárcere” era um grito de libertação. Da prisão e do tempo. Também o poeta é refém de uma ferida-dor corporal (ainda que cicatrizada), mas a sua alma pode entregar-se livremente a um processo de permanente libertação. Da prisão e do tempo. É a condição de refém que o leva a esse desejo de libertação superior. Mas, claro, há ali uma permanente instabilidade existencial. É sobre ela que ele constrói e se constrói.
