Artigo

ESFERA PÚBLICA, REDE E DEMOCRACIA

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 01-2024

PARA QUE NÃO HAJA DÚVIDAS: trata-se, neste artigo, da questão do espaço público, daquela esfera onde corre o fluxo comunicacional acerca do que acontece na sociedade. As plataformas tradicionais eram a imprensa, a rádio e a televisão. Entretanto, juntaram-se-lhe as plataformas digitais e, em particular, os social media, as redes sociais, alterando profundamente aquilo a que Habermas chama Öffentlichkeit, palavra geralmente traduzida por esfera pública. O acesso ao espaço público ganhou assim novos canais individualizados (aquilo que Castells identifica através do conceito de mass self-communication), não regulados por códigos éticos (como, pelo contrário, acontece com os mass media) e onde o receptor é também produtor e autor de mensagens, aquilo que hoje se designa por prosumer (produtor e consumidor de informação e opinião). As grandes plataformas de comunicação digital administram, mas, no essencial, não se pronunciam sobre os conteúdos, a não ser em casos extremos, funcionando apenas como ecrãs brancos onde cada indivíduo singular “imprime” as suas mensagens escritas e audiovisuais. Rompeu-se assim, com a comunicação digital, o monopólio de acesso ao espaço publico detido pelos mass media e instaurou-se um novo paradigma de comunicação e uma nova esfera pública deliberativa. Os próprios mass media migraram para este novo espaço intermédio constituído pelas plataformas digitais. Em síntese, estamos perante uma nova esfera pública, para usar a terminologia atribuída a Habermas, desde a publicação do seu livro de 1962.

1.

Esta nova realidade tem dado azo a debates e tomadas de posição fortes, umas defendendo a natureza e a estrutura da nova esfera pública que integra a comunicação digital, outras combatendo a nova comunicação digitalizada, em particular a dos social media. A defender esta última posição estão muitos dos que perderam o monopólio do controlo e do uso das vias de acesso à esfera pública, mas a verdade é que esta nova realidade veio para ficar e está a transformar todo o processo de comunicação social pública e privada, interferindo fortemente na própria esfera pública política e nos processos de legitimação e de conquista do poder. Uma nova esfera pública com características e problemas diferentes da esfera pública tradicional, precisamente aquela a que se referia Habermas no livro de 1962. Um espaço onde opiniões públicas “qualitativamente filtradas” coexistem com uma “esfera pública” de tipo plebiscitario, com  “disrupted public spheres” que se separaram da clássica esfera pública integrada pela mediação jornalistica e onde a fronteira entre o público e o privado tende a ficar cada vez mais esbatida e nebulosa (Habermas, 2023: 64-69).

2.

O livro de Habermas, publicado em 2022 pela Suhrkamp com o título de Ein neuer Strukturwandel der Öffentlichkeit und die deliberative Politik  (mas cito a edição italiana: Habermas, J., Nuovo Mutamento della Sfera Pubblica e Politica Deliberativa, Milano, Raffaello Cortina Editore, 2023), dá-nos conta desta mudança que está a acontecer. E fá-lo de forma reflexiva e crítica, evidenciando os seus efeitos disruptivos sobre o processo de coesão e de inclusão política, no essencial apontando os aspectos negativos desta nova realidade. Para se perceber o raciocínio de Habermas é necessário, em primeiro lugar, saber que a sua mais influente obra  foi precisamente Strukturwandel der Öffentlichkeit, de 1962, concebida em linha com a natureza da comunicação social da altura, quando já estava a acontecer a queda das grandes narrativas ideológicas e quando a televisão já iniciara, nos USA, a sua marcha triunfal rumo ao controlo e domínio da comunicação política. Depois, a evolução de Habermas para a sua teoria discursiva da democracia e para a teoria da política deliberativa, ambas ancoradas num intenso racionalismo crítico. Evolução que exigia uma esfera pública ordenada e predisposta para um eficaz uso público da razão e para a argumentação socializada como meio de legitimação e de acesso ao poder. Ora, o que se verificou com o advento da comunicação via plataformas digitais foi a tendência para a fragmentação desta esfera pública, para o deslaçamento discursivo e argumentativo das comunicações e para um tendencial esbatimento das fronteiras entre comunicação pública e comunicação privada. E é aqui, neste plano, que ele vê o maior perigo, pela desqualificação da instância pública política e, consequentemente, pelo risco de dissolução da sua capacidade inclusiva. Ele considera que é necessário preservar a fronteira entre a instância privada dos direitos individuais e a instância do exercício da soberania e da afirmação dos vínculos societários colectivos. O mesmo cidadão deve agir politicamente tendo em conta estas duas instâncias. A contaminação da esfera pública com uma forte, difusa e indeterminada comunicação de natureza híbrida ou semi-pública, como é a comunicação digital das redes sociais, tende a ser desqualificá-la e a tornar a fronteira entre público e privado cada vez menos nítida, enfraquecendo os laços colectivos e, naturalmente, a política e a democracia. Não é por acaso que Habermas associa este processo à afirmação do neoliberalismo: “uma destas razões” (para a crise funcional da esfera pública política) “pode ser vista na coincidência entre a emergência de Silicon Valley, isto é, do uso comercial da rede digital, por um lado, e a difusão global do programa económico neoliberal, por outro. Uma área globalmente alargada de livres fluxos comunicativos, tornada, então, possível pela invenção da infraestrutura técnica da ‘rede’, tornou-se a imagem especular de um mercado ideal”. Por isso, ele não só considera necessária a responsabilização das plataformas digitais pelos conteúdos como também considera “um imperativo constitucional manter uma estrutura mediática que torne possível o carácter inclusivo da esfera pública e um carácter deliberativo para a formação da opinião e da vontade pública” (2023: 69-71). Habermas defende a estrutura clássica da esfera pública porque é esta que melhor se adequa ao seu modelo de democracia discursiva e deliberativa ancorada num racionalismo crítico e argumentativo como fonte de legitimação do poder.

3.

O que parece ser evidente neste livro é uma clara responsabilização da comunicação digital dos social media pela desestruturação da esfera pública política, pois é esta que garante e legitima os vínculos de comunidade imprescindíveis para que uma democracia funcione, na “sociedade dos media”, de forma racional e intersubjectiva (2023: 57), garantindo ao mesmo tempo os direitos subjectivos àquele que Habermas chama Gesellschaftsbuerger, cidadão da sociedade, mas garantindo também a sua condição de Staatsbuerger, de cidadão do Estado (2023: 96). A tendência centrífuga inaugurada pela rede prejudica, segundo Habermas, a função integrativa e legitimadora da esfera pública e abre caminho ao deslaçamento político da democracia e à emergência de um plebiscitarismo digital pouco compatível com a matriz liberal da democracia representativa. Tendência que favorece e alimenta as visões populistas, que navegam à vontade nessa zona cinzenta e sem fronteiras entre o público e o privado e onde cada um pode colonizar livre e perigosamente o outro.

4.

A posição de Habermas é clara e tem algum sentido, sobretudo se a entendermos no quadro da sua concepção discursiva da democracia e do racionalismo crítico que o inspira. O que, no meu entendimento, ele não valoriza suficientemente é o potencial de libertação da cidadania em relação ao monopólio de controlo do acesso à esfera pública das tradicionais plataformas de comunicação (mass media), muito em particular quando elas se comportam como a outra face do poder, mesmo que seja o legítimo poder democrático. Mas, referindo a emergência de uma dimensão autoral do cidadão, enquanto produtor de informação e de opinião, autêntico prosumer, Habermas não a valoriza suficientemente porque, no seu entendimento, não é garantida por reconhecidas competências institucionais e expressos códigos éticos partilhados, como, pelo contrário, acontece com o jornalismo e com os media tradicionais. Na verdade, o que acontece, a par de fake news e de exibicionismo de massas e de mau gosto, é que outros protagonistas com créditos firmados na sociedade civil se podem afirmar na esfera pública digital, independentemente da autorização dos famosos gatekeepers, mantendo, entretanto, padrões de garantia ética e de competência intelectual superiores aos dos encartados jornalistas e dos consagrados meios de comunicação. O que ele não vê, pois, é o potencial de libertação que a expansão digital da esfera pública pode trazer consigo, ainda que ele possa contaminar a linearidade e a aparente racionalidade discursiva e argumentativa da esfera pública mediática.

5.

Claro, é um universo onde, para o bem e para o mal, o real é replicado e por isso é muito mais complexo e desregulado do que o mundo concentrado dos mass media. Mas, por isso mesmo, é também um universo mais rico, mais variado e até mais exigente, porque tem de ser filtrado com as competências cognitivas que cada um tem, seja ele o “cidadão do Estado” ou o “cidadão da sociedade”, sem as delegar comodamente nos profissionais da comunicação, tantas, demasiadas, vezes meras câmaras de eco dos poderes instalados. Por outro lado, o alargamento do espectro da esfera pública corresponde ao alargamento da própria esfera da deliberação pública e política exigindo maior atenção aos fluxos que correm livres na área deste enorme espaço intermédio, que funciona no intervalo entre a esfera privada e a esfera pública política, integrando funcionalmente ambas as esferas, precisamente como aquele cidadão que Habermas designou através dos conceitos de Gesellschaftsbuerger e Staatsbuerger, um mesmo indivíduo com duas dimensões essenciais em si, a pública e a privada. Diz Habermas: “A comunicação pública constitui o nexo necessário entre a autonomia política do indivíduo e a formação da vontade política comum de todos os cidadãos” (2023: 96). Mas é precisamente “o Estado democrático constitucional” que “garante a cada cidadão de modo co-originário tanto a autonomia política como as iguais liberdades próprias de um sujeito de direito privado” (2023: 96).

6.

Claro, trata-se uma realidade nova e que exige novos e sofisticados meios de gestão e controlo, por exemplo, um novo constitucionalismo digital, até porque as grandes plataformas digitais já estão a intervir com intuitos comerciais, chegando mesmo a transformar os clientes em matéria bruta para a sua transformação em produtos preditivos do comportamento para a economia e para a própria política. E, todavia, o potencial da nova esfera pública é enorme, quer em sentido negativo quer em sentido positivo. O que não é aceitável é ver só um dos dois lados da questão. Mesmo que seja em nome do racionalismo crítico. JAS@01-2024

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Poesia-Pintura

ESCULPIR-TE

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “O Aurífice”, 2022.
Pintura e Poema de minha autoria. 
Ambos integram a Exposição de Pintura 
e Poesia, “Luz no Vale”, cuja 
inauguração ocorrerá a 8 
de Fevereiro, às 18:00, no 
Museu da Guarda. Janeiro de 2024.
Jas15Oaurífice2022

“O Aurífice”. JAS. 2022

POEMA: “ESCULPIR-TE”

ENTRE O BRANCO
E O NEGRO
Quis esculpir-te
A alma
Na flor que,
Num acaso,
Encontrei
Perdida
No jardim
Da minha vida...

ATRÁS DE TI,
Ou em fuga
(Já nem sei),
Gastara
Todas as cores do
Arco-íris
Que tinha
Guardado
Dentro de mim.

SOBRARA
Uma marmórea
Pedra negra,
Espelho oracular
Onde me via
Escuro na alma
Por falta
De cores
Exuberantes
Que me protegessem
Do frio glacial
Da tua ausência,
Suportada
Nas longas
Intermitências
E contrapontos
De uma melodia
Inacabada.

SOPREI FORTE
Com a alma
Desnuda
E a flor
Pousou suavemente
Na pedra lisa
E brilhante
Da catedral,
Do oráculo
Vestal
Onde te queria
Celebrar
Como amante.

ESCULPI-TE
Como filigrana
De ouro preto
Sobre branco-pérola,
Aurífice da tua
Alma sedutora
No coração
Alvoraçado
Dessa flor
Onde guardei
O teu nome
Gravado em letras
Invisíveis.

DESENHEI
Alvas incrustações
Em filigrana
Como marcas
Indeléveis
Da arte
Que um dia
Me visitou
Para celebrar
A beleza
Do teu rosto.

E, AGORA,
A olhar para
O branco e o negro
Desse cântico
Desenhado
E esculpido,
Ofereço-te
Este poema
Sobre pintura
Imaculada
Onde te celebro
Com arte
Minimal,
Na forma
E na cor,
Sem fronteiras,
E onde
Te reinvento
Em fuga:
Um elegante
Fio branco
Que esvoaça,
Livre,
No marmóreo céu
Do teu altar.

A ÂNCORA,
A sul,
Desliza
Suavemente
Sobre ti
E dilui-se,
Como eu,
Na negra
Vastidão...

EVOCO-TE, ASSIM,
A branco e negro
Sobre a flor
Que um dia
Encontrei
Perdida
No meu Jardim
Encantado
Quando visitava
O impossível...
...............
À tua procura.

Jas15Oaurífice2022Rec

Artigo

DEMOCRACIA – A FORMA E O CONTEÚDO

As Legislativas de 2024

Por João de Almeida Santos

SBento3

“S/Título”. JAS. 01-2024

TENHO OUVIDO, demasiadas vezes, dizer, e pelos próprios agentes políticos, que estas eleições servem para eleger o primeiro-ministro. A toada do discurso eleitoral é esta. E até quando se tratou de eleger o líder de um importante partido político a decisão foi centrada na escolha, não do melhor candidato a líder, mas sim de qual seria o melhor candidato para aquelas funções. E agora todos os líderes afunilam o discurso na figura do primeiro-ministro. Em termos de conteúdo do discurso não há qualquer dúvida. É sobre isso que os eleitores devem decidir, mais do que escolher entre candidatos a deputados, assim reduzidos a tropa de choque do candidato a chefe do governo. Na prática, está instalado em Portugal um presidencialismo do primeiro-ministro. A reforçar esta tendência está o próprio sistema eleitoral vigente que põe os eleitores a votarem numa sigla partidária que é corporizada e interpretada pelo líder-candidato-a-PM. E até é recorrente, e generalizado, ouvir dizer que o primeiro-ministro vale mais do que o próprio partido que o candidatou, reforçando, deste modo e erradamente, a figura do líder-primeiro-ministro. Qualquer que tenha sido o líder, os partidos da alternância (governativa) sempre mantiveram um consistente núcleo duro eleitoral que lhes garantiu a formação de governo. Na verdade, o que está a acontecer é uma forte aceleração do processo de personalização ou mesmo de hiperpersonalização da política.

1.

Esta tendência não começou ontem. Ela iniciou-se com a migração do discurso político (em sentido amplo) para os ecrãs da televisão, nos anos cinquenta, nos Estados Unidos, e com a personalização da política que isso comportou. Costuma-se apontar o famoso debate, em 1960, entre os candidatos John Fitzgerald Kennedy e Richard Nixon, onde o rosto de Kennedy se impôs ao discurso de Nixon, como provaram as sondagens feitas quer ao debate televisivo (com cerca de 70 milhões de espectadores) quer à transmissão radiofónica do mesmo debate, onde a maioria foi favorável a Nixon. No discurso venceu Nixon, na imagem venceu Kennedy.  Nas eleições venceu este último. Esta tendência evoluiu reforçando cada vez mais a personalização da política, sendo, por exemplo, a transformação, em 1969, do Press Office da Casa Branca  em White House Office of Communications e a mudança conceptual de information para communication, um claro sinal da estratégia de valorização da imagem presidencial sobre a estratégia de informação analítica acerca da governação. Da informação às relações públicas. Depois, seguiu-se o que já era de esperar: o reverso da medalha. Remetendo o poder para a imagem pessoal do presidente também ele se tornou alvo fácil para as “campanhas sujas”, centradas na sua vida, durante as campanhas eleitorais. Até hoje.

2.

Ora o que se passou recentemente em Portugal com a queda do governo e a convocação de novas eleições alinha perfeitamente nesta tendência de extrema personalização ou mesmo  hiperpersonalização da política: por um lado, uma leve suspeita judiciária sobre o primeiro-ministro não só levaria à sua demissão, mas também à convocação de eleições, não obstante houvesse uma maioria parlamentar de suporte a um novo governo. Note-se que numa democracia parlamentar como a nossa os governos saem das maiorias parlamentares, havendo mesmo, pelo menos, um caso, o inglês, em que os membros do governo, para serem nomeados, têm de ter a condição de deputados. Ora, o que aconteceu foi que o PR, à revelia da matriz do nosso sistema constitucional, identificou o resultado das eleições de 2022 com a figura do primeiro-ministro (o tal discurso de que o líder “vale mais” do que o partido de que é líder e que o gerou), rejeitando, ipso facto, outra solução suportada na mesma maioria que ganhara as eleições. Foi assim dado mais um passo para a consolidação do presidencialismo do primeiro-ministro, só faltando mesmo, e coerentemente, dar-lhe dignidade constitucional, promovendo, agora formalmente, a eleição directa do primeiro-ministro e, já agora, com as listas dos deputados incluídas, por círculo eleitoral, na mesma lista que exibiria o nome do candidato a PM.

3.

Estamos, assim, numa clara dissociação entre o que está inscrito na matriz do sistema representativo (a fórmula presidencialista inspira-se nas monarquias constitucionais) e a prática política que vem crescentemente sendo assumida pelos partidos da alternância, do establishment. Ou seja, o que se verifica é uma inversão na hierarquia dos poderes, onde o primeiro poder, o legislativo (que exprime directamente a soberania popular) cede lugar ao segundo poder, o do executivo, cuja génese e legitimidade deriva do primeiro. Este torna-se, portanto, o primeiro e decisivo poder na hierarquia dos três poderes (ou dos quatro, se o PR, o poder moderador, for considerado). Nasce assim um decisionismo centrado na figura do PM com a consequente subalternização do parlamento, da casa dos representantes. Não foi por acaso que Giorgia Meloni aprovou em Conselho de Ministros um “disegno di legge costituzionale” que prevê isto mesmo (a que chamam “premierato”), procurando instituir constitucionalmente, com isso, o que a direita radical vem tentando já em vários países, a começar pela Hungria do senhor Viktor Orbán. Precisamente um decisionismo de primeiro-ministro.

4.

De resto, o mecanismo formal é claríssimo e só não o vê quem não quer: a eleição é para os representantes e não para um PM que, numa democracia parlamentar ou num regime semipresidencial, não é eleito directamente. Stricto sensu, o primeiro-ministro é sempre nomeado (ou indigitado), não eleito. Entretanto, quanto mais se reforça o poder e a legitimidade directa do PM mais poder se subtrai ao poder legislativo, já tão subalternizado com a formação de listas fechadas e voto no símbolo do partido, em sistema proporcional, e com a imposição dos cabeças de lista nos círculos eleitorais pelas lideranças partidárias. Para não falar do monopólio de propositura detido pelos partidos políticos. Não é por acaso que muitos defendem – e eu estou entre eles – a criação de círculos uninominais, em sistema maioritário e a duas voltas, como modo de, além das tão necessárias primárias, responsabilizar (enquanto representantes da nação) os candidatos perante os eleitores que os irão votar, devolvendo-lhes, por isso mesmo, maior densidade e autoridade política, também perante as próprias lideranças. A questão é mais funda, mas esta orientação é seguramente melhor do que a que temos. Na verdade, o fundo da questão reside no activismo e na maturidade da sociedade civil, capaz de obrigar o establishment a mudar. E hoje já há instrumentos para isso. Lembro as plataformas digitais bottom-up (do tipo da moveon, da meetup ou mesmo da momentum, ligada ao Labour) e a capacidade que elas têm de influenciar fortemente o eleitorado e a cidadania. A não ser assim, a mobilização ficará a cargo da direita radical, que sabe, essa sim, mover-se no interior das brechas do sistema político e social, ganhando significativas quotas de eleitorado a ponto de já governar em vários países. E em Portugal também parece estar a desenhar-se a ruptura definitiva do bipolarismo de governo, com o forte crescimento da direita radical.

5.

Em poucas palavras, a mim parece pouco consistente esta hiperpersonalização da política nos termos a que me refiro porque tende a retirar-lhe a sua tão necessária rede orgânica e a ficar ancorada numa única pessoa, sujeita, portanto a uma excessiva volatilidade, como se viu no caso do primeiro-ministro português, António Costa. A política democrática torna-se inconsistente e extremamente volátil se não dispuser de organicidade territorial, social e política, ficando sujeita ao construtivismo ou ao subjectivismo político de um protagonista dotado de excessivo poder, o que acontece no caso de consolidação do presidencialismo executivo e decisionista do primeiro-ministro. Não é por acaso, como disse, que esta é a orientação que está a ser assumida pela direita radical. JAS@01-2024

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Poesia-Pintura

ONDAS REVOLTAS

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Thálassa”, 2024.
Original de minha autoria
para este Poema.
Janeiro de 2024.
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“Thálassa”. JAS. 01-2024

POEMA – “ONDAS REVOLTAS”

ONDAS REVOLTAS
Embatem
Com harmónico
Estrondo
Nos rochedos
Esculpidos
Da praia
Da meia-lua.

DO ALTO DA TOSCA
Escadaria
Fixo o horizonte
E vejo-me
A surfar
As ondas
Desse teu mar,
Em fuga
E sem destino
Marcado...
..............
Simplesmente,
A vagar.

SINTO NA PELE
A espuma branca
Que se dispersa
Em mil gotículas
Sobre a areia fina
Da praia,
Alvura
Cintilante
Que me encandeia
E me põe
À deriva
Nas águas
Mornas
Do mar.

DEPOIS SINTO
Um leve
E curto
Marulhar,
Sinto paz,
Uma melodia
Na alma,
Azul
Que se desprende
De ti,
Me pinta todo
Por dentro
E me convida
A cantar.

REGRESSAM
De novo,
Tonitruantes,
As ondas
E esta fúria
Impetuosa
Do mar
Tempera-me
A vontade
De contigo
Navegar.

MAS SINTO-ME
Frágil
Na praia
Da meia-lua,
A força
Cadenciada
Das ondas
Atrai-me como
O canto
Das sereias
E eu sinto-me
Levitar.

DE NOVO
Ondas brancas,
Fervilhando
Contra rochas,
Esculpindo,
Maresia,
Gotículas
Que pairam
No ar
E me refrescam
A alma,
Morrinha
Difusa
Que me rega
A pele já
Tão seca de ti...
.............
E me ajuda a
Renascer.

E EU,
Sentado ali,
A meditar
Sobre ti,
A ouvir o canto
Da Milva
Sobre o mar,
Thálassa...
Thálassa,
E com ela
Ensaiando
Um tímido
Trautear...

PARÃ... PARÃ...
PARÃ...
.............
Neste teu mar
O barco invisível
Do tempo
Ali mesmo
A flutuar
E o meu destino
É azul
E as ondas
Batem nas rochas
Sem parar
E eu,
Já seduzido
Pelo som
Encantatório,
Sinto o meu corpo
A tremer,
Mas sinto a alma
A vagar...
......................
Na praia da meia-lua.

MILVA_2024_6Rec

Artigo-Ensaio

His. comun. soc. 28(2) 2023: 259-266

EL DISCURSO POPULISTA

Texto publicado pela Revista 
“Historia y Comunicación Social”,
da FCI da Universidade Complutense 
de Madrid, como Introdução a um número 
sobre “Valores democráticos y 
comunicación ética frente 
a populismos y demagogias”

João de Almeida Santos (1)

Populismo2024

“S/Título”. JAS. 01-2024

Resumen

ESTA REFLEXIÓN SOBRE EL POPULISMO propone una análisis de la idea de pueblo a lo largo de la historia y de la operación de su conversión ideológica con fines de conquista, de legitimación y de reproducción del poder. Un proceso igual al de la reconstrucción ideológica de la realidad. La narrativa populista es antiliberal y desprecia la mediación de las instancias representativas, ya que las identifica con la confiscación del poder soberano del pueblo por las élites. El poder unificador de la heterogeneidad social es garantizado por una figura carismática que interpreta el sentimiento popular, equivalente a la figura tradicional del monarca, que encarna, representa e interpreta la idea de pueblo-nación. El populismo (o el neopopulismo) puede ser de derecha o de izquierda, pero ambos se afirman, sobre todo, en la oposición a la matriz liberal de la democracia representativa.

Palabras clave: democracia representativa; masas; pueblo; significante vacío; soberanismo.

Abstract

This reflection on populism proposes an analysis of the idea of the people throughout history and of the operation of its ideological conversion for purposes of conquest, legitimization, and reproduction of power. A similar process to that of the ideological reconstruction of reality. The populist narrative is an anti-liberal narrative that depreciates the mediation of representative instances since it identifies these instances with the confiscation of the sovereign power of the people by the elites. The unifying power of social heterogeneity is guaranteed by a charismatic figure who interprets popular sentiment and is equivalent to the traditional figure of the monarch, who embodies and interprets the idea of people-nation. Populism (or neo populism) can be from the right or from the left, but both are affirmed by opposition to the liberal matrix of representative democracy.

Keywords: representative democracy; mass; people; empty signifier; sovereignism.


Para entender el populismo es necesario revisitar la idea de pueblo, base sobre la que se ancla este concepto. Partiendo de algunas consideraciones de Ernesto Laclau, en la obra La Razón Populista (Laclau, 2005), empiezo con una interesante y muy útil afirmación teórica suya: “una identidad popular tiende a funcionar como un significante vacío” (Laclau, 2005: 125). En otras palabras, la identidad popular no expresa una realidad sociológica concreta y, debido a su indeterminación, no puede alcanzar dignidad conceptual, ni convertirse en concepto o en “abstracción determinada” (della Volpe). ¿Qué es entonces? Laclau distingue entre la dimensión óntica de la idea de pueblo y su dimensión ontológica. La primera se refiere a las determinaciones concretas que ha adquirido a lo largo de la historia y su asunción ideológica por las diversas corrientes políticas. La segunda se refiere a su dimensión genérica: la pretensión de hacer universal lo que tiene una simple dimensión óntica,  histórica,  contingente,  parcial,  transformando  la  especie  en  género,  la  parte  en  todo,  lo  particular  en  universal. Esto es un proceso ideológico típico. Para esta operación es necesario extirpar, mediante hipóstasis, sus determinaciones concretas, pudiendo así, después, como “abstracción indeterminada”, usando el lenguaje del filósofo italiano Galvano della Volpe, aplicarse a cualquier determinación temporal concreta, a su realidad óntica. Pero para eso tendrá que funcionar precisamente como un “significante vacío” o una “abstracción indeterminada”.

1.

A lo largo de la historia, el pueblo (político) se ha identificado con los individuos que tenían derecho a pronunciarse sobre las causas de la comunidad (Grecia), con los que tenían derechos en virtud de su condición civil, los cives (Roma), con los citoyens actifs (en la época liberal), con la clase obrera (marxismo), con el campesinado (populistas rusos), con las masas (populismo de derecha y de izquierda en el período entre las dos guerras mundiales), con los votantes (democracia representativa), con el público (“democracia del público”), con los usuarios  (democracia  digital).  Sin  embargo,  cuando  estas  identidades  fueron  asumidas  por  las  formaciones  políticas como pilares fundamentales de la sociedad, se convirtieron en totalidad social, identificándose con la sociedad en su conjunto, mientras eran solo una parte de la identidad popular. Por ejemplo, la plebs que se convierte en populus o los polítai que se convierten en demos. No es hegemonía, sino transfiguración totalitaria. Así, la palabra pueblo, en su dimensión ontológica, equívoca, genérica, vacía o indeterminada, cumple su función ideológica y política. Por ejemplo, identificando al pueblo con la nación se garantizaría esta conversión. La nación sería la otra cara del pueblo: pueblo-nación. Si miramos las constituciones de las democracias representativas,  estas  dos  ideas  aparecen  como  totalidad  social según  su  génesis:  la  soberanía  reside  en  el  pueblo o, en las constituciones liberales, reside en la nación. Aunque parezcan iguales, son significativamente diferentes. En el marxismo, la clase agota la idea de pueblo en sí misma, ya que está en el centro del proceso histórico y determina su evolución hacia una sociedad sin distinciones de clase, homogénea y genérica, donde todos son iguales en una “cadena equivalencial” (Laclau) de identidades individuales. Lo que todavía es sólo in nuce, en la fase capitalista, se convierte, con la evolución histórica, en “todo el pueblo” (por ejemplo, en la URSS, en el “Estado de todo el pueblo”). Lo mismo ocurre con la raza, para los herederos de Gobineau. La igualdad se convierte en una identidad absoluta y, por lo tanto, vacía de contenido empírico.

2.

Es un proceso típicamente ideológico, en el cual se produce una hipóstasis y una inversión: lo particular se proyecta como universal (hipóstasis) y luego, a partir de esta nueva condición, se reformatea la realidad como su determinación (inversión). Este proceso fue muy bien visto y teorizado por Galvano della Volpe, en Logica come Scienza Positiva y en Rousseau y Marx (della Volpe, 1973, IV y V; y Cerroni, 1972: 115-149). Según esta perspectiva, la idea de pueblo no sería más que una “abstracción indeterminada”. Parte de una realidad concreta, pero se sublima a través de una hipóstasis, absorbiendo su contenido empírico para, después, devolverle una nueva dimensión funcional más amplia. Esto cumple una función ideológica, una especie de tautología con funciones reconstructivas. En esencia, es una reconstrucción ideológica de la realidad. La realidad se sublima para ser confirmada simbólicamente y legitimada con mayor densidad ideal. Por eso, Laclau también tiene razón cuando dice que el pueblo de los populistas es una construcción política (yo diría una reconstrucción ideológica) y no refleja una realidad sociológica. En cambio, es objeto de una “sobredeterminación” – que él llama “nominación” – desde un vértice que es representado por una individualidad, por un nombre aglutinador de la heterogeneidad societaria, por un intérprete de la realidad sublimada como pueblo. Es en este contexto que surge el carisma. La figura del monarca puede ser considerada como una imagen de la nueva figura carismática y “laica” propuesta por el populismo, pero con menos poderes ejecutivos.

3.

El vacío de la identidad popular, en su dimensión ontológica, es llenado por una individualidad, por un líder, por un nombre, generalmente carismático y oracular. El ejemplo clásico se encuentra en la concreta corporeidad del monarca y en su simbolismo ideal en relación con la nación-pueblo. Durante el período de entreguerras, en la era dorada de la propaganda, de la ideología y de las grandes narrativas político-ideológicas este proceso adquiere un nuevo tipo de protagonista que encarna y representa la idea de pueblo y de pueblo-nación: “il Duce”, “der Führer”, “el Caudillo”, “el Secretario-General”, “o Chefe” o “il Capo”. En la película encargada por Hitler a Leni Riefensthal, Triumph des Willens, de 1935, el Führer aparece como un deus ex machina que desciende sobre el escenario de Nürenberg (véase sobre todo el comienzo, los primeros quince minutos) para restablecer el orden y rescatar a la nación alemana, que había sido humillada en el Tratado de Versailles (1919), que siguió a la Gran Guerra. La raza aria, el partido nacionalsocialista y el Führer serían los protagonistas de la redención del pueblo y de la nación alemanes. Veáse también el artículo 11 (“Capo II: La struttura dello Stato”) de la Constitución de la República Social Italiana (la Repubblica di Salò): “Sono organi supremi della Nazione: il Popolo e il Duce della Repubblica”. Una relación directa entre pueblo y jefe carismático, “Il Duce”. La generalidad de la idea de pueblo necesita, por lógica interna, un principio que la materialice, identifique y unifique funcionalmente. En el nacionalsocialismo, existía incluso el “Führerprinzip”, como principio supremo que daba unidad a toda acción política, interpretado por un personaje concreto, Adolf Hitler. Un monarca (o un emperador) de un nuevo tipo. Glosando a Gramsci, si el partido es el nuevo príncipe, el líder carismático y oracular es el nuevo monarca. En la actualidad, el principio del populismo es la soberanía “directa” del pueblo-nación, en su forma más radical de soberanía, el nacional-populismo, interpretado también por una individualidad que concentra en sí misma un poder por encima de los partidos, precisamente porque está investida del poder de unificación orgánica, de materialización y de representación. Este poder supera las instancias de intermediación en nombre de un retorno permanente de la política a su fundamento primario, fuente de toda legitimidad: el pueblo. De hecho, los populistas no se identifican con la primacía constitucional de la nación, sino que anteponen la primacía del pueblo soberano. No es casualidad que este populismo sea soberanista y considere, a diferencia de los liberales, sus opositores (o incluso enemigos – véase la idea de Viktor Orbán de “democracia iliberal”), que la soberanía reside sobre todo en el pueblo, no en la nación, en el pueblo-nación, donde deriva su cualificación como nacional-populismo.

4.

La naturaleza del populismo está aquí. Para comprenderla es necesario explotar tanto las diversas formas que ha  asumido  históricamente  la  idea  de  pueblo,  como  el  proceso  de  su  propia  sublimación  o  hipóstasis  para  que pueda cumplirse lo que es absolutamente necesario: garantizar la unidad de la heterogeneidad social, la identificación de todos con la totalidad social y una alta performatividad del propio discurso político. Para ello, es necesario distinguir el plano óntico de la idea de pueblo, su dimensión contingente, del plano ontológico, donde funciona como ideología totalizadora (interpretada por una individualidad concreta) desde la cual – y mediante un decisionismo reforzado (que hoy descansa en el presidencialismo del primer ministro) – se recrea o reformatea la realidad. Sólo así podrá imponerse en la competencia por el poder. El populismo ha desarrollado esta capacidad a expensas de la ineptitud política e ideológica de las formaciones políticas que se han alternado en la gestión del poder democrático. De hecho, la política actual parece estar confinada, por un lado, a las formaciones políticas de inspiración populista y, por otro, a la conocida izquierda de los nuevos derechos, que se centra en las causas del políticamente correcto, de los identitarios y de los revisionistas de amplio espectro. El centroizquierda ha preferido la asepsia política, la governance y la tecnogestión de los procesos sociales, en una progresiva “despolitización” de la gestión del poder. Los resultados son visibles para todos. Pero miremos más analíticamente la idea de populismo tal como se manifestó históricamente, pero también a través de su ancla histórica.

5.

El populismo nació en Rusia, como una tendencia política de izquierda, en la segunda mitad del siglo XIX, intentando dar voz al campesinado y a sus formas organizativas, como los muziks y la obshina. ¿Nombres? A. I. Herzen y N. G. Chernyshevski. Creían que Rusia no tenía que seguir el camino de la industrialización y que el progreso podía lograrse con la civilización rural, siempre y cuando se suprimieran las formas de dominación imperial y se crearan nuevas formas de organización social y de legitimidad política. Lo que pasó en Rusia, después del segundo “Tierra y Libertad” (1876), es bien conocido: la socialdemocracia rusa, la Gran Guerra y la Revolución de Octubre, con la instalación del sistema soviético en el poder. En realidad, más poder estatal que poder de los soviets, más poder del partido que poder del pueblo, del pueblo de los soviets (2). Sin embargo, hijos de la Gran Guerra y de la Revolución de Octubre, surgieron en Europa movimientos populares de derecha e izquierda con fuerte influencia política, unos en contra de la revolución soviética y sus efectos en la geografía política europea, otros a favor. Los partidos comunistas, como el portugués, el español o el italiano, nacieron en 1921. Estos partidos reivindicaban la soberanía del pueblo-nación frente a las élites en el poder, es decir, las élites liberales. De hecho, el populismo es antiliberal, ya sea de izquierda o de derecha, y siempre convierte una entidad política parcial (clase social, raza) en totalidad, bajo la designación genérica e ideológica de pueblo o pueblo-nación. Es una visión más organicista que representativa.

6.

¿Pero qué pueblo es este? ¿A qué pueblo dicen representar los populismos de izquierda o de derecha? Tiene razón François Furet, en su interesante libro El Pasado de una Ilusión (Furet, 1995), cuando señala que la Gran Guerra propició la entrada de las masas en la política. Ortega y Gasset, en La Rebelión de las Masas (Ortega y Gasset, 1930), va en la misma dirección (3). En general, los partidos radicales de derecha y de izquierda intentan organizar a las masas en torno a una idea, una utopia o gran narrativa movilizadora. Por ejemplo, la clase o la raza son las entidades ónticas que, en la narrativa, se vuelven entidades ontológicas bajo la forma pueblo-nación. Esta narrativa, esta conversión es populismo.

Hasta entonces, la mayoría de los regímenes que tenían la responsabilidad de gobernar Europa en la crisis eran  regímenes  liberales,  monarquías  constitucionales,  regímenes  de  élites,  donde  sólo  unos  pocos  tenían  derecho a voto y aún menos llegaban al poder. En otras palabras, eran regímenes censitarios, mientras que la adopción del sufragio universal a lo largo del siglo XX se implantaba muy lentamente. Había sistemas representativos, pero no había todavía democracias representativas. Lo que estaba emergiendo políticamente era un nuevo constructo político, una nueva idea de pueblo (político). Se observa, pues, una transfiguración con fines estrictamente políticos – por ejemplo, la clase se convierte, con un pase de magia ideológico y político, en pueblo, fuente de legitimidad incontestable y que no admite alternativas legítimas. El comunismo, por ejemplo, no admite la dialéctica de la alternancia en el poder, pues la clase obrera se convierte en totalidad social. La clase obrera es portadora única de la verdad histórica, centro de la totalidad social (véase, por ejemplo, Lukács en Historia y Consciencia de Clase, de 1923, y Santos, 1977, pp. 227-242).

7.

Tras la Gran Guerra se inaugura una nueva era política, dando lugar a dos populismos, uno de derecha y otro de izquierda. Ambos hablaban en nombre del pueblo y en contra de las élites. Ambos eran antiliberales y proponían la devolución de la soberanía confiscada al pueblo. Pero, repito, ¿qué pueblo era este? A la izquierda, el pueblo de los oprimidos, “les damnés de la terre”, para usar la feliz expresión de Frantz Fanon sobre los colonizados, los obreros y los campesinos (según los comunistas y los populistas rusos). A la derecha, el pueblo-nación, al que las élites habían confiscado el poder soberano. Desde la perspectiva de la izquierda siempre existen dominadores, los capitalistas burgueses, que no son considerados pueblo. Aquí el pueblo se identifica con el conjunto de las clases subalternas (Gramsci), con los explotados y los oprimidos frente a los que detienen el poder político y económico.

8.

En general, el pueblo es un grupo indeterminado de individuos en un territorio, con fronteras determinadas que puede ser traducido por la palabra griega plêthos (plenitud, multitud, las masas), uno de los significados de demos. No obstante, en un sentido político, como constructo político, en el sentido de Ernesto Laclau, la noción se estrecha en su concreción óntica. En la antigua Grecia, fuera de la idea de pueblo, en su sentido político y óntico, como conjunto de ciudadanos (polítai), estaban las mujeres, los esclavos y los extranjeros, aunque la palabra griega demos tenga, en general, una amplia extensión semántica: país, comunidad, territorio, pueblo (en oposición a notables), multitud. El pueblo se identificaba con los miembros de la ciudad con derecho a pronunciarse sobre los asuntos comunes – en la Ekklêsía -, pero no se trataba de un concepto jurídico como, según algunas  interpretaciones,  ocurriría  en  Roma  con  el  término  “populus”  (populus, plebs, multitudo  –  palabras  utilizadas para designar a los miembros de la ciudad), sino de un conjunto de personas físicas. Lo que en Roma parece haber existido como populus era en verdad una colectividad de ciudadanos con derechos. Populus romano, cives romanos, los que tienen la ciudadanía romana, con sus respectivos derechos.

La cuestión que se plantea radica en saber si el populus es el conjunto de ciudadanos titulares individuales de derechos (según Jhering, por ejemplo) o es un ente colectivo abstracto (como el Estado, sujeto de derecho en sí mismo), titular de derechos y lugar de soberanía, superior a los ciudadanos naturales (como el Leviatán, de Hobbes). En cualquier caso, parece haber un avance real en la integración política del populus, entendido, en la mayoría de las interpretaciones, como el conjunto de ciudadanos titulares de derechos (la pluralidad de cives), independientemente de que también pueda ser considerado o interpretado como parte del sistema de poder romano (los magistrados, el Senado y el pueblo), ser un lugar de soberanía y ser identificado con la idea misma de Estado. Lo cierto es que la noción de pueblo, en el sentido político, sigue siendo muy fluctuante en el tiempo (he seguido aquí a Caravale & Cesa, 1996). En cualquier caso, se trata de un constructo político. Como dice Laclau: “Una primera decisión teórica es concebir al ‘pueblo’ como una categoría política y no como un dato de la estructura social”, un nuevo actor creado a partir de una pluralidad de elementos heterogéneos. “Este conjunto, como hemos visto, presupone una asimetría esencial entre la comunidad como un todo (el populus) y ‘los de abajo’ (la plebs)”. Se trata de una asimetría entre la totalidad de los que componen la sociedad y una parte suya, aunque sea una parte importante. “También hemos explicado”, sigue diciendo, “las razones por las cuales esta plebs es siempre una parcialidad que, sin embargo, se identifica a sí misma como la comunidad, como un todo”. Una conversión ilegítima que define la operación ideológica del populismo. “Es en esta contaminación entre la universalidad del populus y la parcialidad de la plebs donde descansa la peculiaridad del ‘pueblo’ como un actor histórico. La lógica de su construcción es lo que hemos denominado ‘razón populista’ ”(Laclau, 2005: 278).

Aquí tenemos una primera conclusión: el pueblo del populismo es una construcción ideológica y política. No corresponde a una entidad sociológica concreta y no asume y metaboliza el principio de la mayoría, como en el sistema representativo, ya que es una parte que se vuelve totalidad (véase Müller, 2023: 36-37). Como dice Laclau, el pueblo “no constituye ningún tipo de efecto ‘superestructural’ de alguna lógica infraestructural subyacente,  sino  que  es  el  terreno  primordial  en  la  construcción  de  una  subjetividad  política”  (2005:  280).  Estamos  ante  una  “sobredeterminación”  (Althusser)  –  “nominación”,  dice  Laclau  –  en  la  constitución  de  la  entidad y de la subjetividad pueblo (sobre la cadena de demandas equivalenciales). El pueblo populista es omnívoro pues se convierte en totalidad expresiva y performativa. De hecho, tal vez podamos decir, como Laclau, que es “un significante vacío”, en su realidad ontológica, que puede expresar diferentes realidades ónticas (la clase, la raza). También podríamos usar, como señalado anteriormente, el concepto de Galvano della Volpe: el pueblo como una “abstracción indeterminada”. Un típico proceso ideológico de hipóstasis y de inversión ideológica. La parte que se vuelve totalidad y que, desde su nueva condición, concibe a la realidad como su determinación. En realidad, una perspectiva totalitaria.

9.

En la época liberal, esta noción política de pueblo aún excluía a las mujeres y a aquellos que no podían demostrar cierto nivel de renta (4). En los movimientos de masas posteriores a la Gran Guerra, la idea de pueblo se vuelve más indiferenciada, pero en general se identifica, por un lado, con las masas y, por otro, con pueblo-nación. En las democracias representativas de matriz liberal, el pueblo (político) está integrado por todos los que votan (todos son ciudadanos activos), excluyendo únicamente a los menores de edad. En la “democracia del público” (Minc, 1995; Manin, 1996) el pueblo es el público, los espectadores, los oyentes y los lectores. En la digital, “democracia de ciudadanos” (Castells), el pueblo son los users. Pueblo, en su dimensión óntica, pero funcional y políticamente asumido con dimensión ontológica, como totalidad social – esto es populismo.

La noción política de pueblo ha cambiado a lo largo de la historia y es entendida de manera diferente en su contenido óntico por las diferentes ideologías políticas. Su correlato político es el propio Estado, la entidad que representa la totalidad de la sociedad. Luego, podría decirse que es su configuración como Estado la que identifica al pueblo como entidad política, como ciudadanía, derecho de ciudadanía, politeia. Pero la noción de pueblo como tal no puede ser considerada unívoca y, por lo tanto, concepto – es tan sólo un “significante vacío” o una “abstracción indeterminada”. Y, sin embargo, ha sido una idea genérica muy utilizada en el discurso político, de derecha e izquierda, que ha servido y sigue sirviendo para diversos fines ideológicos y políticos. Sirve, en particular, al populismo, donde la noción pueblo se convierte en totalidad ontológica, con toda su fuerza ideológica y performativa, aunque las élites estén (políticamente) fuera: el pueblo como plêthos, plenitud, multitud. Así, llegamos a una legitimidad algo totalizadora o incluso totalitaria, resultado de una operación ideológica, de una transfiguración.

10.

¿Qué es, entonces, el populismo, donde el pueblo es a la vez fuente de legitimidad y destinatario del discurso político? “El populismo es, simplemente, un modo de construir lo político”, dice Laclau (2005: 11). Una forma ideológica y performativa. En cualquier caso, el populismo propugna un retorno a la fuente primaria de legitimidad y promueve la crítica a las instancias de intermediación en la gestión del poder y a las élites que lo ejercen. Es un retorno a los orígenes a través de una transferencia de poder directa al soberano primario, ese pueblo, más a través de un proceso de personalización que por los mecanismos de medición plural del consenso y de representación política. Back to the basics. Su modelo ideal es, por lo tanto, más la democracia directa y orgánica que la democracia representativa, la relación directa entre el pueblo y su intérprete supremo. En ella, la soberanía reside en el pueblo y no, como quiere la mayoría de (o, teóricamente, todas) las constituciones liberales, en la nación. En realidad, lo que esta visión critica es la separación entre quienes ejercen el poder y la fuente original de su propia legitimidad, el pueblo, es decir, el dominio de las instancias de intermediación y de la burocracia (las dos caras de una misma moneda) y la práctica generalizada de su reproducción endogámica en el poder. La personalización populista, en cambio, toma clásicamente la forma de carisma en un jefe capaz de interpretar no sólo el sentimiento popular, sino también los designios de la historia, ya sea por inspiración de tipo oracular o por interpretación científica de la verdad histórica, como en el marxismo-leninismo, en el famoso ISTMAT. Como dice Laclau: “De esta manera casi imperceptible, la lógica de la equivalencia conduce a la singularidad, y esta a la identificación de la unidad del grupo con el nombre del líder. Estamos, hasta cierto punto, en una situación comparable a la del soberano de Hobbes”. “Sin embargo”, añade, “la unificación simbólica del grupo en torno a una individualidad (…) es inherente a la formación de un pueblo” (2005: 130; cursiva mía).

El pueblo, ontológicamente vacío, se materializa en la individualidad concreta de la persona del líder, como sucedía con la figura física del monarca. Esto ocurrió, como hemos visto, en la era de las grandes narrativas: fascismo, nacionalsocialismo, comunismo – Duce, Caudillo, Führer, Secretario-General. Un nuevo personaje que reinterpreta el papel del viejo monarca. La reedición “laica” de una antigua funcionalidad política de las monarquías, bajo un nuevo fundamento de legitimidad – el pueblo, que sustituye a Dios.

11.

Durante  más  de  siete  décadas,  desde  la  segunda  mitad  del  siglo  XX,  hemos  sido  testigos,  primero,  de  un  mundo  bipolar  (político,  ideológico,  estratégico  y  económico)  y,  luego,  del  aparente  triunfo  universal  de  la  democracia representativa (el famoso fin de la historia, de Fukuyama), con la caída del sistema socialista, con excepción del sistema chino. Sin embargo, lo que comenzó a observarse en este lado occidental, con la crisis de representación y de los partidos de alternancia, fue la irrupción de tendencias nacional-populistas (sobre todo de derecha, pero también de izquierda, como podría ser el caso del partido PODEMOS, por ejemplo – véase Donofrio, 2017: 48-49) con fuerte capacidad de afirmación política institucional: en Estados Unidos, con la victoria y la presidencia de Donald Trump; en Brasil, con Bolsonaro; y en Europa, con Viktor Orbán, en Hungría, Jaroslaw Kaczynski, en Polonia, Marine Le Pen, en Francia, los Brexiters y el UKIP, en el Reino Unido, Giorgia Meloni, Matteo Salvini y Beppe Grillo, en Italia. Este último representa un nuevo tipo de populismo, el neopopulismo digital, que también rechaza la clásica dicotomía izquierda-derecha, como es típico del populismo (Barberis, 2020: 12, 35). El M5S inauguró, de modo muy radical, una nueva era del populismo con su pueblo en red (5). Pero este neopopulismo digital es también el que los spin doctors nacional-populistas, los “ingenieros del caos”(Da Empoli, 2023), practican y promocionan, en el silencio de la red, con el pueblo en red (Santos, 2018; y 2023). Una nueva materialidad óntica del pueblo: los users. “La rivoluzione digitale è la causa principale, benché non l’unica, del populismo odierno”, dice Mauro Barberis (2020: 137; e 156). O incluso más intensamente: “o populismo tradicional que desposa o algoritmo e dá à luz uma temível máquina política” (da Empoli, 2023: 39). Neopopulismo digital, el populismo contemporáneo

12.

Lo que ha cambiado en el populismo respecto a su forma original no sólo fue su base social, el pueblo, que dejó de ser rural, sino también la forma política adoptada por los movimientos nacional-populistas, que aceptaron la democracia representativa, pero la han cambiado internamente para instalar su sistema decisorio de poder (Vassallo y Vignati, 2023: 253), siempre hablando en nombre del pueblo, en contra de las élites. Esto es lo que Orbán llamó “la democracia iliberal”(6). En el caso de M5S, se trató de un neopopulismo donde el pueblo (político) se identificaba con los usuarios (militantes) de la Plataforma Digital Rousseau (creada por Gianroberto Casaleggio) y, en general, con el pueblo en red. La crítica de Rousseau a la representación política y su propuesta de comisarios, en el Contrato Social, es la inspiración para el nombre de la plataforma del M5S (pero la Plataforma Rousseau ya no es, desde 2021, la plataforma del M5S). En los demás casos, el fundamento es el soberanismo, como narrativa que aglutina al pueblo, lo que más se identifica con el sentimiento nacionalista profundo y que, en particular, en nombre de su seguridad física, laboral, moral y cultural, se manifiesta con fuerza contra la inmigración amenazante, contra el otro, contra el invasor, contra el extranjero. Este sentimiento unificador del pueblo parece haber prevalecido, por ejemplo, en el BREXIT, y ha sido la causa del éxito pasajero de Matteo Salvini en las elecciones europeas de 2019. Un pueblo que creció mucho con la ola gigante de fenómenos migratorios, producto de la crisis en el gran Medio Oriente (Irak y Siria). Sin embargo, está claro que, con este fenómeno, la crisis de representación y de los partidos de la alternancia, el crecimiento masivo de personas en la red y, en particular, de los usuarios de las redes sociales, algo ha cambiado profundamente y sigue cambiando. La idea de “democracia del público”, centrada en el imperio de los medios tradicionales (prensa, radio y televisión), en el broadcasting y en su poder de construcción de la opinión pública, donde el pueblo es el público, sigue manteniendo su validez. Sin embargo, también es cierto que, como dice Castells, con la red surge una nueva democracia de ciudadanos, centrada en lo que él llama “mass self-communication”,  comunicación individual de masas (Castells, 2007), donde el pueblo, ahora, corresponde a los users. Pero se trata de una realidad muy expuesta también al peligro de un proceso de instrumentalización personalizada, impulsado por los “ingenieros del caos”, como se ha visto en los casos del BREXIT y de la candidatura de Donald Trump, donde Cambridge Analytica y su vicepresidente, Steve Bannon, han condicionado fuerte y exitosamente  al  electorado  en  ambos  países  (véase  Cadwalladr  y  Graham-Harrison,  2018;  y  Santos,  2018).  Esta nueva realidad permite la transición de la democracia representativa a la democracia deliberativa, sin duda, pero es también un terreno muy propicio para la intervención del nacional-populismo a través de una comunicación directa con los votantes individuales en este inmenso campo silencioso, o espacio intermedio, de la red. Es esta la tendencia que Giuliano da Empoli intenta explicar en su libro Les Ingenieurs du Chaos, de 2019 (Da Empoli, 2023; Santos, 2023). Y esto no es futurología, porque ya se ha logrado con éxito, por ejemplo, en Italia, en 2022, y sigue ocurriendo. Dicen Vassallo y Vignati que Giorgia Meloni y su staff han demostrado “una notevole capacità di creare e interpretare registi comunicativi diversi”, “riuscendo ad affermarsi nell’attuale sistema mediale ibrido, in cui convivono le logiche dei mass media digitali, dei broadcast e dei social” (2023: 191).

13.

En el territorio digital, los nuevos populistas de derecha están interviniendo con mayor éxito que las fuerzas políticas moderadas. Y este es el campo privilegiado para su trabajo político actual. La democracia clásica aún no ha evolucionado hacia la democracia deliberativa porque aquellos que deberían impulsarla están paralizados en una gestión aséptica y endogámica del poder y siguen mirando sobre todo a la “democracia del público” y a la  política  como  management,  como  governance,  como  tecnogestión  del  poder.  Además,  la  democracia deliberativa es la única que puede resolver los problemas estructurales del modelo clásico de democracia representativa, pero la derecha radical ha comprendido mejor la nueva configuración de las sociedades contemporáneas y sus temas fracturantes, incluidos los representados por la ideología y la política woke e identitária (7), manejando  inteligentemente  su  discurso  y  adaptando  los  mecanismos  centrales  del  sistema  representativo  a  sus designios con gran eficiencia, cambiando sus equilibrios internos e introduciendo un creciente poder del ejecutivo y un decisionismo del primer ministro (Müller, 2023: 98; y Vassallo e Vignati, 2023: 253). El caso de Viktor Orbán es paradigmático, al igual que el caso de Cambridge Analytica. Pero también fue ejemplar la experiencia del M5S cuando, en menos de diez años (entre 2009 y 2018), logró elevar su intención de voto a casi el 33% del electorado italiano. A esto se le suma la experiencia de la LEGA de Matteo Salvini (“io sono un populista”, se puede leer en una de sus camisetas – Barberis, 2020: 12), quien, al explotar exhaustivamente el tema de la inmigración, alcanzó el apoyo de alrededor del 34% del electorado en las elecciones europeas de  2019:  “la  politica  antimmigrazione  del  governo  gialloblù  è  un  caso  da  manuale  di  populismo  digitale”,  dice Mauro Barberis (2020: 120). Tampoco podemos olvidar el partido Fratelli d’Italia que, en cuatro años, ha pasado de poco más del 4% a alrededor del 26% y que, ahora, en el gobierno, sigue creciendo (promedio en cuatro encuestas de final de mayo: 29,5%), mientras que el centroizquierda y el centroderecha languidecen (por ejemplo, el mayor partido de la izquierda, el PD: 20,5%). Todos ellos, los populistas de derecha, son críticos de la matriz liberal del sistema, críticos radicales de la llamada confiscación del poder del pueblo por las élites y críticos de la ideología woke, de la ideología gender y de lo “políticamente correcto” de forma muy intensa y políticamente eficaz.

14.

Esta es la realidad que el centroizquierda y el centroderecha se empeñan en no ver, poniendo en peligro las conquistas de la civilización occidental que, entre avances y retrocesos, tardó más de dos siglos en madurar hasta alcanzar niveles de desarrollo civilizatorio verdaderamente notables. El populismo está a la orden del día y su oponente histórico es el liberalismo, mientras que su oponente coyuntural y político directo son la ideología  y  la  política  woke,  lo  “políticamente  correcto”  y  la  ideología  gender. A efectos  de  combate,  los  populistas identifican estas tendencias instrumentalmente con la doctrina política del liberalismo, a pesar de las diferencias estructurales entre ellos. Los italianos tienen una expresión que se aplica efectivamente a esta trampa de la derecha radical: “fare di tutta l’erba un fascio”, metiendo todo en el mismo saco para hacer más eficaz y aceptable la lucha, conociendo muy bien la laxitud de los moderados, que se están dejando infiltrar o incluso dominar por la izquierda de los nuevos derechos. En mi opinión, esta es también una de las razones del éxito electoral del populismo de derecha, que está recuperando la idea de política, que los moderados (tanto de izquierda como de derecha) han convertido en puro management, governance, tecnogestión, gestión aséptica o apolítica del poder. La política, a día de hoy, parece haberse convertido en patrimonio exclusivo de los populistas y de la nueva izquierda fracturante, políticamente correcta, identitaria y revisionista. El centroizquierda y el centroderecha ya están pagando el precio de su ineptitud política e ideológica, y no veo señales que indiquen que algo va a cambiar.

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Santos, João (2022a). “A Democracia Iliberal”, en https://joaodealmeidasantos.com/2022/12/ (acceso en 10.07.2023).

Santos, João (2022b). “Woke”, en https://joaodealmeidasantos.com/2022/12/ (acceso en 10.07.2023).

Santos, João (2023). “Os Novos ‘Spin Doctors’ e o Populismo Digital”, en https://joaodealmeidasantos.com/2023/06/27/artigo-108/ (acceso en 10.07.2023).

Vassalo,  Salvatore  e  Vignati,  Rinaldo  (2023).  Fratelli  di  Giorgia.  Il  partito  della  destra  nazional-conservatrice.  Bologna:  Il  Mulino.

NOTAS

(1). Investigador. Ex director de la Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad Lusófona de Lisboa (2012-2020) y exasesor político del Primer Ministro de Portugal (2005-2011). ORCID: 0000-0002-4102-6480.  Email: joaodealmeidasantos@gmail.com. URL: www.joaodealmeidasantos.com  Historia y comunicación social ISSN-e: 1988-3056. Monográfico. DOI: https://dx.doi.org/10.5209/hics.92237

Como citar: de Almeida Santos, J. (2023). El discurso populista. Historia y Comunicación Social 28(2), 259-266. (*)

(*) Este texto resultou da minha intervenção de abertura da Conferência Internacional sobre “Populismos, Democracia e Comunicação na História”, promovida pela Associação Espanhola de Investigação da Comunicação, com organização de seis Universidades espanholas e a participação de doze, em Janeiro (19) de 2023.

(2). Hay un interesante libro de Umberto Cerroni sobre Los orígenes del socialismo en Rusia que desarrolla este tema (Cerroni, 1965).

(3). Véase, para ambas referencias, mis artículos sobre el PCP (“PCP – El nombre y la cosa” I y II), en Santos, 2022.

(4). Solo la 19ª Enmienda de la Constitución estadounidense, de 1920, reconoce el derecho de voto a las mujeres; véase la distinción entre ciudadanos activos y ciudadanos pasivos en la Constitución francesa de 1791 (Art. 7, Sección II, Cap. I, Título III).

(5). Para una mejor comprensión de Movimento5Stelle véase mi ensayo en Santos, 2017, pp. 51-78.

(6). Léase mi artículo sobre “Democracia Iliberal”, de 11.07.2022 (Santos, 2022a).

(7). Léase mi ensayo “Woke”, 14/12/2022, sobre esta ideología, en Santos, 2022b.

JAS@01.2024

Populismo2024Rec

Poesia-Pintura

POEMA PARA UM ROSTO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Fascínio”, 2023.
Original de minha autoria,
brevemente em exposição  
no Museu da Guarda.
Janeiro de 2024.
FascínioPoema2024

“Fascínio”, 2023. JAS, pintura digital, 68×88, impressão Giclée em papel de algodão (e verniz) Hahnemuehle (310gr), Artglass AR70 em moldura de madeira. 

POEMA – “POEMA PARA UM ROSTO”

AH, ESSES TEUS OLHOS
Exortam-me,
Mas não ouço palavras,
Não ouço sons
E até pressinto
Um impulso hesitante,
Um leve espanto contido
Que te suspende
E mantém
Nesse impasse
Tão sofrido.

DOCE MISTÉRIO,
Sinais intensos,
Os teus,
Que falam
Sem te dizer
E capturam 
O olhar
Até, por fim,
Me perder.

ESSE TEU ROSTO
Intenso,
Esses olhos
Fascinantes
Perturbam,
Têm um estranho
Poder
Porque invocam
Nome incerto,
O chamam
Sem o dizer.

SE TE OLHO,
Tu seduzes
E eu fico 
Expectante,
Suspenso
Entre o calor
Do desejo
E o frio
Do impossível,
No limiar
Deste meu lado
Tão frágil,
Deste lado
Tão sensível.

QUERES FALAR,
Mas dos lábios
Sai silêncio,
Talvez suspiro
Ou um leve 
Balbucio,
Receias denunciar
O que não tens
Pra dizer
Em contido desafio.

CALASTE
Com medo
De perder
O que nunca
Agarraste
Com as mãos
Puras
Do desejo...

TEUS LÁBIOS
Sussurram,
Desenham palavras
Sem som
E suspendem
O encontro
Adiado,
Como esse beijo
Que não ousaste
Inventar
Com as cores
Da tua alma,
Esse beijo
Sufocado.

NOS TEUS CABELOS
Enovela-se-me
A alma,
No teu mistério
Caio tão fundo
Que já nem posso
Esbracejar,
Agarrar-me
Às paredes macias
Do desejo,
Por elas acima
Trepar
À procura
Do que nunca
Chegará,
Forte que seja
O ensejo.

ESSE MISTÉRIO
E esse sedutor
Olhar
Onde afundo
As raízes
Da alma
Consomem-me
A energia
Para, em sonho,
Eu contigo
Navegar.

VEJO-TE
Fixar o vazio,
Mais além
Do horizonte,
Melancolia
Em estado puro,
Valsa lenta
Dentro de ti,
Que balbucias
A vida,
Incapaz 
De a gritar
Aos que não
Querem ouvir
A palavra 
Proibida.

AH, SIM,
Mas eu gosto
Dessa tua solidão
E viajo contigo
Até ao lado mais
Esconso
Da tua alma
Para depois o pintar
Com todas
As palavras
Que tiver comigo,
Até que um dia
Me abandonem,
Exaustas de tanto
Clamarem
Por ti,
Cansadas de tão
Inútil castigo.

FascínioPoema2024Rec

Artigo

PS – O RECOMEÇO

Por João de Almeida Santos

PNS_5

“S/Título”. JAS. 01-2024

DUAS NOTAS prévias antes de entrar 
no tema que hoje me proponho tratar.

1. No passado fim-de-semana ocorreu o 24.º Congresso do PS, que finalizou o processo eleitoral para os novos órgãos do partido, em particular, para o novo secretário-geral. E, a este respeito, não poderia deixar de referir a atitude do semanário “Expresso” referente aos dois momentos culminantes da vida recente do maior partido político português, que não só governou o nosso país nos últimos oito anos, mas que foi também o partido que durante mais tempo governou Portugal. E a atitude resume-se simplesmente nisto: nem em relação ao Congresso do passado fim-de-semana nem no dia em que se iniciaram as votações para a eleição do novo secretário-geral este semanário, que sai precisamente à sexta-feira, ou seja, nos dias em questão, dedicou uma chamada de primeira página a qualquer destes eventos, tendo apenas, e somente no jornal do dia 15.12, incluído uma curta referência às eleições internas deste partido no interior de um dos dois artigos de primeira página dedicados a António Costa (um sobre o caso em que o PM está envolvido judicialmente e o outro sobre a hipótese de AC vir a ser candidato às europeias). No mais recente número, de cinco de Janeiro, nenhuma referência em primeira página.

O assunto não merece grandes comentários tal é a evidência da posição deste semanário sobre os princípios fundamentais do código ético por que se rege, ou deveria reger, em particular sobre o princípio da “relevância”. O que se pode concluir é que a agenda do “Expresso” não coincide com a agenda do país. Quem o compra deverá ter isto em consideração.

2. Outro facto que merece um curto comentário é a notícia, saída no dia do congresso, de que António Costa está acusado de “prevaricação”, acusação fundada no facto de João Tiago Silveira ter sido escutado a dizer que teve uma reunião de quatro horas com o PM sobre o dossier relativo ao novo regime jurídico de urbanização e edificação, ou seja, reunião no âmbito do processo legislativo, em particular do processo de simplificação legislativa (onde JTS desempenha funções como coordenador do Simplex do licenciamento). Li o que a imprensa detalhadamente noticiou sobre o assunto e ficou para mim claro que o PM está acusado de perder horas a analisar importantes dossiers da governação, acusado de “prevaricar” ao intervir no processo legislativo, ou seja, acusado de fazer o seu trabalho. Estamos, pois, no bom caminho, o de procurar beneficiados especiais na produção de leis que, como se sabe, são gerais e abstractas, beneficiando por igual todos os que se encontrarem nas mesmas condições. Que eu saiba existe um tribunal habilitado a controlar a produção legislativa, a sua conformidade com a Constituição, tribunal a que o poder judiciário sempre pode recorrer, designadamente através de um pedido de fiscalização dos diplomas pela Procuradoria-Geral da República. E este é o Tribunal Constitucional. Criminalizar no âmbito do processo legislativo parece-me realmente excessivo e intrusivo relativamente a um poder que, também ele, desfruta da separação de poderes. Para tornar ainda mais estranho o processo, acontece que a norma em causa nem sequer ficou consignada no diploma entretanto promulgado, tendo a questão sido resolvida internamente durante o recorrente processo de ajustamento dos diplomas entre a Presidência da República e o Governo. Mas, em qualquer caso, “à justiça o que é da justiça”, tenha ela ou não os olhos vendados.

I.

Posto isto, o PS teve uma campanha eleitoral muito participada (cerca de 40 mil militantes) e conduzida com elevação, embora pouco centrada sobre o próprio partido, e fez um bom Congresso. No primeiro dia, o palco ficou reservado para o secretário-geral cessante, António Costa, que teve a oportunidade de fazer um balanço geral dos oitos anos da sua governação. Os dois dias seguintes ficaram reservados, como é natural,  para o novo líder, Pedro Nuno Santos, que fez dois discursos: um, no sábado, e, o outro, no encerramento do Congresso. E confesso que fiquei bem impressionado por algo que em política tem grande importância: a coincidência entre o que o novo líder disse e o que pareceu ser a sua profunda convicção. Um discurso assertivo e sentido. Isto independentemente do conteúdo concreto das suas palavras. A imagem foi essa: convicção e valores. Depois, o clima de unidade interna por ele promovido: o elogio do antigo líder e do seu trabalho e o dos outros dois candidatos à liderança, que deram corpo à democracia e ao pluralismo internos. Uma colocação acima de eventuais clivagens que pudessem instalar-se e assomar publicamente, prejudicando a pré-campanha eleitoral para as legislativas, que já está em movimento. Depois, ainda, a preocupação em chamar ao discurso a política dos valores, recentrando o discurso naquilo que tem vindo a ser posto excessivamente em surdina. Ou seja, evidenciou a política dos valores em detrimento do habitual discurso sobre os grandes números da economia ou sobre os temas que todas as forças políticas assumem como eficaz retórica política para a conquista do consenso. Um discurso claramente orientado à esquerda, com enfoque no predomínio da ideia de comunidade sobre a ideia de singularidade. Do dever colectivo sobre o dever e a responsabilidade individuais. Mas também a clara assunção de que erros, sim, foram cometidos, e que é preciso corrigir, e de que muito há a fazer. Por exemplo, é necessário seleccionar os apoios em vez de os distribuir indiscriminadamente, para a todos contentar.  Outro dos erros cometidos e apontados foi o de o PS não ter apresentado candidato nas últimas eleições presidenciais, erro que, como o actual secretário-geral disse, com ele não voltará a acontecer. Depois, uma clara demarcação temporal, geracional e de liderança do PS: o ciclo de António Costa encerra-se aqui e uma nova liderança inaugurará um novo tempo político para o PS. Fez bem, pois, PNS em deixar claro que algo muda efectivamente, apesar de não ser através de rupturas. Mas isso deverá começar logo no modo de gestão do próprio partido que aspira continuar a ser hegemónico na sociedade portuguesa. Não o disse, mas espera-se que o faça, porque o PS precisa de ser reanimado na sua vida quotidiana e na sua própria organização e mobilização. A participação dos militantes nas eleições internas foi também um bom sinal e o Congresso foi outro sinal positivo. E creio mesmo que o modo como estes dois processos decorreram indicia que este partido pode muito bem ser revitalizado desde que haja vontade de o fazer. Esta declaração de PNS sobre um novo tempo político não foi, quanto a mim, circunstancial, mas de fundo, anunciando um estilo muito diferente de fazer política. A redução da política a pura táctica (que evidenciou um claro virtuosismo de António Costa) acabou, tendo sobrevindo um líder para o qual o importante é fazer, sim, e num quadro de valores enfaticamente assumido e verbalizado. E à esquerda. Programaticamente talvez António Costa tenha sido pouco eficaz e o discurso enfático de PNS sobre o fazer talvez também queira dizer isso mesmo. Decidir e fazer – ideias sublinhadas com convicção e com alma. Assim me pareceu ser a toada do discurso.

II.

Quem tem lido os meus artigos sabe que apoiei e votei no actual secretário-geral do PS. E também conhece as observações que fui fazendo sobre o partido ao longo da campanha (e não só), em artigos que aqui publiquei. E designadamente sobre os candidatos e as moções em disputa. Parece-me, pois, coerente propor, agora, uma reflexão crítica, mas propositiva, sobre o essencial, sobre a filosofia inscrita nos dois discursos que PNS fez no Congresso. E depois de ter evidenciado o que me parece ter sido positivo, cabe-me agora evidenciar o que me parece que deva ser melhorado ou mesmo corrigido no discurso do líder.

III.

Há três grandes temas sobre os quais é necessário reflectir, porque eles marcam, de facto, uma fronteira: a relação entre a comunidade e o indivíduo singular, as fronteiras da intervenção do Estado nas dinâmicas da sociedade civil e o papel do mercado nesta dinâmica e no funcionamento da economia. Os partidos socialistas sempre se afirmaram por demarcação relativamente aos defensores do maximalismo estatista e da economia de plano e aos defensores da redução do papel do Estado às funções de soberania, Estado mínimo, ou pouco mais. Foi essa posição politicamente virtuosa que sempre os tornou partidos centrais nos sistemas de partidos. Partidos que interpretaram e metabolizaram virtuosamente os avanços da democracia representativa ao longo da sua história: na passagem do Estado como garantia de segurança dos indivíduos singulares ao Estado social, inaugurado por Bismarck, nos anos oitenta do século XIX, prosseguido pela República de Weimar, nos anos vinte do século XX, aprofundado pelo famoso Relatório Beveridge, nos anos quarenta, e, finalmente, assumido pela União Europeia como “modelo social europeu”. Os partidos socialistas foram os partidos que melhor souberam interpretar e representar a evolução do Estado ao longo da história, assumindo o modelo social europeu como a solução mais virtuosa e alternativa quer à visão conservadora e mais restritiva do papel do Estado quer à visão maximalista das suas funções. E é aqui que se situa a sua principal virtude política, porque ela concilia a liberdade individual, a garantia e a afirmação dos direitos e das responsabilidades e deveres dos indivíduos singulares em face das injunções ilegítimas e excessivas do Estado na sua esfera, com a responsabilidade imperativa da comunidade perante si própria e perante os membros que a integram.

IV.

A democracia funciona politicamente segundo o princípio “um homem, um voto”, mas integra também a própria ideia de comunidade com poder de “sobredeterminação”, em questões essenciais para o bom funcionamento do sistema, sobre a esfera individual. Um delicado equilíbrio que é necessário preservar. E este equilíbrio é essencialmente aos partidos socialistas que cabe garantir. Por isso, pareceu-me excessiva a ênfase dada no segundo discurso de PNS à ideia de comunidade. Um discurso onde a matriz e a toada apontavam para excesso de comunidade e para défice de reconhecimento da centralidade que os indivíduos singulares ocupam no sistema, acabando, esta centralidade, identificada, por defeito, com individualismo egoísta e utilitarista. O indivíduo singular e a responsabilidade individual pareceram ser, no seu discurso, engolidos pela ideia de comunidade, um sufoco comunitário pouco compatível com os tempos que vivemos e com o próprio princípio da liberdade e da responsabilidade. Responsabilidade que é, sim, da comunidade, mas igualmente do indivíduo. Não perguntes o que o teu país pode fazer por ti, mas sim pelo que tu podes fazer por ele, disse Kennedy no seu discurso inaugural. Uma frase feliz e muito clara. E se o PS se identifica com o pensamento e a prática do seu fundador Mário Soares, então também a liberdade e, claro, a responsabilidade individuais não devem ficar na penumbra do discurso do líder. Na verdade, o excesso de comunidade conduz a uma visão organicista do sistema social, menoriza a liberdade, a responsabilidade e o sentimento do dever. E é pouco amiga da democracia representativa. Tudo é remetido para a comunidade (veja-se o meu artigo “A Culpa é do Sistema”: https://wordpress.com/post/joaodealmeidasantos.com/12927). O bom e o mau são da comunidade e as pulsões e utopias que movem os indivíduos singulares e os levam a construir futuro com as suas próprias mãos acabam por ser menorizadas e desvalorizadas, levando à paralisia, ao imobilismo e à falta de ambição. E a culpa, por isso, será sempre do sistema, isto é, da comunidade. Lembro o que Ferdinand Toennies e Max Weber disseram da comunidade e da diferença em relação à ideia de sociedade: uma, a comunidade, exprime identidade de afectos, subjectiva, de tradição, enquanto a outra, a sociedade, exprime uma relação de associação, uma relação de interesses motivada racionalmente, expressa em objectivos partilhados e em relações formais. O excesso de comunidade e de Estado, para além de enfatizar a dimensão orgânica e compacta das relações sociais, é, afinal, irmão gémeo do Estado mínimo, que deslaça e reduz as relações sociais à sua dimensão atomística, exterior e puramente formais. Ambas radicalizam as relações sociais a um ponto tal que arrastam a democracia para os seus níveis extremos (Estado máximo – Estado mínimo). Max Weber, em Economia e Sociedade, identifica a comunidade com os dois tipos-ideais “affektuel” e “traditional”, reservando os outros dois para a ideia de “associação”: “wertrational” e “zweckrational” (“racional em relação ao fim” e “racional em relação ao valor” – Milano, Ed. Comunità, 1980: I, 38), os dois tipos-ideais que identificam o plano de associação voluntária e racional das sociedades modernas e as distingue das comunidades orgânicas (sobretudo o tipo-ideal “zweckrational”).

V.

O PS deve, pois, mover-se com delicadeza e sensibilidade neste território societário (que também incorpora, mas supera, a própria ideia de comunidade), não só para melhor identificar as características da sociedade moderna, mas também para evitar um deslize fatal para o maximalismo e para a identificação do liberalismo clássico, que derrubou o Ancien Régime e fundou as bases da civilização moderna, com o puro individualismo utilitarista, identificando-o, sem distinções, com o neoliberalismo de inspiração hayekiana. Trata-se, afinal, de reconhecer os traços distintivos da modernidade, mas também de rejeitar o organicismo político e social como modelo prioritário da acção política.

VI.

E é daqui, deste aparente deslize ideológico para uma visão comunitarista da sociedade moderna, que resulta também uma certa aversão ao funcionamento do mercado, para onde são remetidas todas as culpas e ao qual são imputadas as falhas do sistema social. Se as culpas são do sistema, no essencial elas são do mercado. Por exemplo, na política para a habitação, onde ao mercado de arrendamento (mas também de compra e venda) são apontadas as falhas de oferta da habitação, propondo-se em alternativa (ou, pelo menos, algo mais do que um complemento) uma política do Estado como senhorio. O parque público de habitação como solução para a falha do mercado, não a criação de condições para que o mercado (na verdade, a sociedade civil) funcione. Daqui resulta também uma fiscalidade excessiva por necessidade de financiar a carga gigantesca de responsabilidades que recaem sobre a comunidade em relação ao indivíduo singular, ao qual não são, no discurso, imputadas quaisquer responsabilidades no rumo e no desfecho da sua própria vida. O excesso de assistencialismo caritativo a que temos vindo a assistir também é filho desta visão. Mas também pode daqui resultar um excesso de intervenção do Estado na economia a ponto de se aproximar perigosamente da economia de plano, como tendencialmente se pode ler no discurso, de agora ou anterior, sobre o problema da habitação. Se a selectividade é um bom princípio, porque governar é escolher, também é verdade que o Estado não se pode substituir às dinâmicas da economia real, de resto hoje globalizada, e da sociedade civil, fazendo recair as decisões fundamentais na máquina administrativa do Estado, como acontecia – mais radicalmente, claro – na economia de plano. Por isso, torna-se decisivo o método a usar pelo Estado para intervir no rumo da economia. Na verdade, para os partidos socialistas e sociais-democratas a função do Estado sempre esteve tipificada mais como função de regulação do que como função de planeamento.  Também o elogio da decisão é positivo desde que não se caia no decisionismo, pouco respeitador do equilíbrio de poderes. Com efeito, o decisionismo é hoje uma linha política estratégica dos partidos da direita radical, tendo, em Itália, Giorgia Meloni chegado a fazer aprovar, pelo Conselho de Ministros, um “desenho de lei constitucional” com a eleição directa do primeiro-ministro e a eleição dos dois ramos do parlamento no mesmo boletim de voto do candidato a Premier. O chamado “Premierato”. O triunfo e a consagração constitucional do decisionismo (do primeiro-ministro). Já uma vez tive ocasião de criticar, no meu segundo artigo como colunista do “Diário de Notícias”, nos anos oitenta, precisamente o decisionismo, naquele caso, o do secretário-geral do PSI, Bettino Craxi. Sabe-se como acabou não só o seu reinado, mas também o regime de bipartitismo imperfetto que vigorava na Itália de então.  Por isso, mais uma vez, o PS deve orientar o seu discurso e a sua prática para aquele que sempre foi o seu virtuoso espaço político, evitando recaídas num território que há muito parece ter sido superado não só por ele, mas também pelos partidos que partilham da mesma mundividência. Lembro somente, a título de exemplo, o Congresso do SPD de Bad Godesberg, em 1959, ou a reforma do Labour, iniciada por Neil Kinnock em meados dos anos oitenta, e que já fora tentada por Hugh Gaitskell nos anos cinquenta.

VII.

Eu procuro, com este artigo, apenas chamar a atenção para a compreensão e a gestão de um território muito complexo e delicado e que pode dar origem a desvios políticos muito graves, que urge evitar. Bem sei que PNS assume a tradição ideal do PS e com forte convicção, mas o que me pareceu nos discursos foi um forte deslize discursivo para a sereia comunitária como fonte de justiça social, correndo o risco de se desviar das fronteiras daquela que é a matriz do PS e, em geral, dos partidos socialistas e sociais-democratas. Em qualquer caso, e como é natural, desejo-lhe os maiores sucessos, mas também a maior atenção às questões que aqui referi e à filosofia que as inspira. Que não é matéria de somenos. JAS@01-2024

PNS_5Rec

Poesia-Pintura

O JARDINEIRO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Confissões no Jardim”, 2023.
Original de minha autoria.
Impressão Giclée em papel de algodão
e verniz Hahnemuehle, 88x71,
Arglass AR70 em moldura de madeira.
Janeiro de 2024.
ConfissõesNoJardim2023

“Confissões no Jardim”, 2023. JAS. 01-2024. Impressão Giclée em papel de algodão e verniz Hahnemuehle, 88×71, Arglass AR70 em moldura de madeira.

POEMA – “O JARDINEIRO”

TORNEI-ME
Bom jardineiro,
Com letras
Faço flores
E com rosas
Eu pinto versos,
Com camélias
Invento amores,
A deusa
Dos sonhadores
Aguça-me
A fantasia,
Nascem poemas
A rodos
No jardim da poesia.

O QUE VALE
Amor-perfeito?
Um verso
Que sai do peito?
Os versos
São como as cores,
São delicados
Sabores
Que amaciam a alma
Quando ela
Fica em ferida,
São remédios
Que nos curam,
Que tornam
Mais doce a vida.

POR ISSO VOU
Ao jardim
Inebriar-me
De flores,
Saem versos
Só pra mim
Com palavras
Que são cores.

OLHOS-AS
Com atenção,
Fixo-as
Com o olhar,
Toco nelas
Com a mão,
Fico ali a meditar
No que vai
Acontecer
Em tempo de 
Floração,
Com elas
A germinar...

NADA MAIS
Quero saber,
Só de cores
Pra me curar
Do que mais
Me faz sofrer.

MAS AS FLORES
Não duram
Sempre,
São mortais,
Ao ritmo
Da natureza,
Cada uma
Tem seu tempo
Pra resolver
A tristeza.

NAS FLORES
Vejo beleza,
Nas palavras
A matriz,
Em cada flor
Pureza
E em todos
Os perfis,
Até a tristeza
É bela...
............
Como quando
Me sorris.

POR ISSO SOU
Jardineiro,
Com flores
Aprendo sempre,
É saber
Sempre certeiro
Pois natureza
Não mente.

DAS FLORES
Eu faço versos,
Com letras
Pinto flores,
Faço rima
No jardim
E lá crescem
Meus amores...
..............
E as palavras
Curam dores
Que o poema
Sublima,
São como as cores
Dos meus olhos
Que iluminam
A rima.

POR ISSO SOU
Jardineiro
Da palavra colorida,
Crio perfumes
Em verso
Pra dar leveza
À vida.

ConfissõesNoJardim2023Rec

Artigo

A AUTOBIOGRAFIA DE UM JORNALISTA

Giovanni Valentini
“Il Romanzo del Giornalismo Italiano.
Cinquant’anni di informazione 
e disinformazione
(Milano, La Nave di Teseo, 2023)

Por João de Almeida Santos

ARCHIVIO STORICO PERSONAGGI

“Perfil de um Jornalista”. JAS. 01-2024

CONHECI-O pessoalmente há uns largos anos, quando fui convidado a fazer o Elogio de um poeta italiano, Corrado Calabrò (*), na cerimónia de entrega do Prémio Damião de Góis, pela Universidade Lusófona, em Junho de 2016. Giovanni Valentini estava presente e no fim da cerimónia tivemos uma breve conversa, onde tive oportunidade de o informar de que, na realidade, já o conhecia desde 1978, quando fui para Roma preparar, no Instituto Gramsci, uma tese de doutoramento sobre Antonio Gramsci. Um ano especial, aquele, pois foi o ano em que Aldo Moro foi raptado pelas Brigate Rosse, mas também o ano da eleição de Karol Wojtyla, como Papa Giovanni Paolo II. Foi também o ano em que la Repubblica deu um grande salto em frente em notoriedade e difusão devido, em parte, ao tratamento do caso Moro e até à célebre fotografia em que o prisioneiro das BR tinha este jornal nas suas mãos.   Ficámos amigos e dialogamos regularmente sobre a situação italiana. E não só.

1.

O jornal la Repubblica tinha sido fundado por Eugenio Scalfari há dois anos, em 1976, e Valentini fora também um dos seus fundadores. E, por isso, quando nos encontrámos, contei-lhe o que de facto, acontecera: lia regularmente os seus artigos de primeira página no la Repubblica, jornal que adoptei não só como meio de informação, mas também como “estrutura de opinião”, a forma como os fundadores o conceberam, que integrava grandes nomes do jornalismo, da política e da cultura italiana. Aprendi muito com este jornal, que lia diariamente. Era um jornal que se situava na área do centro-esquerda, mas que cultivava uma rigorosa e brilhante independência em relação não só ao poder político, mas também aos outros poderes da sociedade italiana. Independência que era garantida sobretudo por duas personalidades de grande peso: Eugenio Scalfari, o Director, e Carlo Caracciolo, “il Principe Rosso”, presidente da “Società Editoriale la Repubblica”. Um grande jornal que deveria servir de modelo, ainda hoje, a toda a imprensa. Um jornal de massas, mas rigoroso, culto, intelectualmente competente e independente. Disputava a hegemonia com o Corriere della Sera, mais conservador, batendo-se taco-a-taco. Giovanni Valentini foi sempre, e é, um jornalista formado na “escola” do la Repubblica. E assume com orgulho essa sua identidade profissional, que tem em Eugenio Scalfari o seu mais ilustre representante.

2.

Valentini foi jornalista e colaborador do la Repubblica durante quarenta anos, tendo sido também seu vice-director, entre 1994 e 1998. Mas esta não foi uma mera relação profissional. Iniciara a carreira de jornalista por influência do pai, também ele jornalista e futuro director da “Gazzetta del Mezzogiorno”, onde também trabalhou, mas construiu-se como jornalista na “escola” do la Repubblica, esse grande jornal que exibia uma solidez intelectual, cultural e política pouco comum no próprio panorama editorial mundial. Uma solidez que tinha no grande Scalfari o seu selo de garantia (veja-se o texto infra sobre Scalfari). Valentini reconhece-se, neste livro, como discípulo do “Maestro” Scalfari, também conhecido no círculo jornalista como “Barbapapà” (do francês “barbe à papa”: “algodão doce”), talvez pelas suas abundantes barbas brancas (ou “a sale e pepe) e pela sua doce auctoritas, por todos reconhecida (veja as pág.s 294-296). Mas ao ler este livro, de 334 páginas e 20 capítulos, verifiquei uma curiosa coincidência. Com a saída de Scalfari, em 1996, Valentini iniciara (passiva e silenciosamente) o seu processo de afastamento interior do la Repubblica quando Ezio Mauro foi, em 1996, nomeado seu director, chegando a pôr o seu lugar à disposição, mas mantendo-se até 1998. A operação indiciava uma mudança no jornal, pois este fora durante vários anos director de La Stampa, o jornal do grupo Agnelli. Mudança que viria, de facto, a consolidar-se,  com a entrega, em 2016, do jornal a outro director proveniente de La Stampa, Mario Calabrese, quebrando-se, definitivamente, do ponto de vista editorial, a lógica de independência do jornal, o seu estatuto de jornal de “editoria pura”, apesar de a sua estrutura proprietária já ter mudado há muito, com Carlo de Benedetti. A ruptura definitiva de Valentini viria a acontecer em 2015, por ocasião de um “golpe baixo” desferido por duas jornalistas do la Repubblica contra o presidente do Antitrust Pitruzzella, de quem Valentini era porta-voz, já no fim da direcção de Mauro. Em 2016, viria a tomar posse como director do jornal Mario Calabrese, a que se seguiria (depois de um ano de Carlo Verdelli como director) Maurizio Molinari, outro homem do La Stampa, consumando-se, assim, definitivamente, a operação de mudança de orientação do velho la Repubblica (veja-se os capítulos 10 e 11, pág.s 165-198). Também Scalfari viria a distanciar-se do jornal, mantendo apenas a relação através da publicação de artigos de cultura. Pois bem, também eu por essa altura, no fim do mandato de Ezio Mauro, tinha deixado de ler, com a regularidade com que até então o fazia, o la Repubblica, por já não reconhecer nele o que me atraíra, quando em 1978 cheguei a Itália, e que vira confirmado não só durante os dez anos em que lá vivi, mas ainda por muitos mais anos, já em Portugal, tendo continuado a segui-lo diariamente, primeiro, em papel, e, depois, na internet. Até que chegou a desilusão e passei a ler com maior regularidade o jornal Il Fatto Quotidiano, fundado em 2009 pelo excelente jornalista Antonio Padellaro (lia-o no Corriere della Sera), que foi seu director até 2015, sendo a partir de então dirigido pelo imparável e turbulento Marco Travaglio. Trata-se de um jornal independente que não recebe financiamentos estatais nem é, creio, de propriedade de um grupo financeiro ou económico. Um bom jornal, na minha opinião. Valentini é seu colaborador regular, com a sua já clássica rubrica “Il Sabato del Villlagio”, título que homenageia o grande poeta italiano Giacomo Leopardi (“Questo di sette è il più gradito giorno, / Pien di speme e di gioa: / Diman tristezza e noia…” – estrofe de “Il Sabato del Villaggio”). A minha reacção ao que estava acontecendo ao “meu” jornal, a esta mudança profunda no seu perfil, foi quase de indignação pelo que estavam fazendo a uma jóia do jornalismo mundial. Pelo vistos, havia uma minha real sintonia com dois dos seus fundadores, Scalfari e Valentini: a identidade do la Repubblica fora radicalmente alterada… para pior. Tornara-se um “holograma” do que fora (pág. 302). Fiquei a conhecer melhor as razões da mudança ao ler este livro de Giovanni Valentini.

3.

O livro conta a história de cinquenta anos de imprensa em Itália, vistos por um dos seus principais protagonistas. Com efeito, ele não só foi um dos fundadores do la Repubblica, como foi também durante sete anos director da revista L’Espresso (1984-1991) e, durante dois, director do L’Europeo (1977-1979), entre outras funções e cargos de significativa relevância. O jornalismo italiano visto por dentro, em particular nas suas relações com a estrutura proprietária, mas também nas suas complexas e difíceis dinâmicas internas. Mas sobretudo visto a partir de uma visão bem precisa, assumida e argumentada do que é e deve ser o jornalismo. A posição de Valentini é clara, como resulta de todo o livro: a boa imprensa é aquela que é gerida por editores puros, não aquela que fica sujeita à estratégia de financeiros ou de grupos económicos que a vêem exclusivamente com a lógica do lucro e do poder, totalmente independente da sua função social e política, ao serviço da cidadania. Esta sua posição está claramente formulada no livro: “Um vaudeville de directores, entre Torino e Roma, que marcou o jornal fundado por Scalfari” (…), e ancorado num editor puro,  “com o selo de fábrica da maior indústria privada italiana: o editor mais ‘impuro’, que mais não é possível” (pág. 181). E chega a propor um “Statuto dell’Editoria” “para limitar as quotas das participações financeiras nas empresas editoriais. E, ao mesmo tempo, reservar os financiamentos públicos para as cooperativas de jornalistas”, evitando que “editores impuros” possam aceder aos financiamentos estatais (pág. 315), pela óbvia razão de que eles não cumprem o código ético a que funcionalmente  estariam obrigados – o de garantirem um rigoroso serviço público em que a informação deve instruir o cidadão nas matérias em que ele deve tomar as suas decisões, seja na política, na economia ou na cultura. E este é um ponto crítico do jornalismo actual até porque “salvo raras excepções, doravante o chamado ‘editor puro’ é uma espécie em vias de extinção, que deveria ser protegida como o panda do Wwf” (pág. 313).

4.

A última parte do livro, depois de uma descrição da referência proprietária dos principais jornais italianos, à excepção do CdS (la Repubblica, La Stampa, Il Secolo XIX – Gruppo Gedi; Il Messaggero, Il Mattino, Il Gazzettino, Il Corriere Adriatico, Nuovo Quotidiano di Puglia, di Lecce e Bari – propriedade do construtor civil Francesco Gaetano Caltagirone; Il Giorno, Il Resto del Carlino, La Nazione – do Gruppo Monti-Riffeser; Il Giornale – da família Berlusconi; Libero, Il Tempo – do empresário da saúde e parlamentar de centro-direita Antonio Angelucci), é dedicada a uma reflexão, totalmente partilhável, sobre a nova condição do jornalismo na era da Internet e sobre as tendências que determinam uma nova dinâmica da informação, em função da emergência das redes sociais, do algoritmo e, em geral, da inteligência artificial. Porque, hoje, tudo isto interfere na função jornalística. E a verdade é que, como diz Valentini, “hoje, no essencial, não se faz informação para informar o cidadão, mas sim para defender interesses estranhos aos que deveriam ser estritamente editoriais. Para fazer negócios, obter favores, concessões ou licenças. E quanto mais se reforçarem as concentrações, neste campo,  menos se salvaguardam o conhecimento, o debate, a liberdade de opinião e, portanto, a democracia” (pág. 316). Na verdade, enquanto a procura de informação cresce, tem vindo a diminuir a oferta, ou seja, está a diminuir o número dos que estão em condições de a produzir de forma profissional, de conjugar informação e conhecimento, daqueles que, em suma, Valentini designa por pós-jornalistas. Ofício absolutamente necessário, sem dúvida, mas que deve adaptar-se às exigências de tempos que estão cada vez mais em forte aceleração histórica e tecnológica: “uma nova figura profissional mais evoluída e complexa do que a tradicional”, é o que os tempos estão a exigir (pág. 307).

5.

Trata-se de um livro muito rico de informações sobre a imprensa nos últimos 50 anos em Itália. Mas, no meio de uma enorme massa de informações, é uma narrativa com um claro fio condutor: a vida profissional de Giovanni Valentini contada através do desempenho, do complexo ambiente em que teve de se mover e das decisões que teve de tomar, tudo filtrado por uma ideia clara a que a sua vida profissional deveria obedecer – a que construiu ao longo da sua experiência, em primeiro lugar, e sobretudo,  como membro da “escola” do La Repubblica, dirigida com sabedoria pelo “Maestro” Scalfari, e, em segundo lugar, como director de dois importantes semanários  italianos, L’Europeo, mas sobretudo, L’Espresso, palco especial de onde pôde acompanhar, por dentro, como activo interveniente, no plano das suas funções profissionais, a vida política, económica e social de Itália. Uma ideia que entroncava numa ética editorial que sempre defendeu e que quis cumprir rigorosamente, em nome da cidadania. “Editoria pura” e rigoroso cumprimento do código ético do jornalismo. Um desempenho independente de interesses que pudessem pôr em causa o exercício de informar e de descodificar o que de importante ia acontecendo nesse grande e belo país que é a Itália. Giovanni Valentini é autor de vários livros sobre a política e a informação em Itália, tendo-lhe também sido atribuído o Prémio Saint-Vincent do Jornalismo, em 2000. É também autor de três belos romances. Um dia escreverei sobre eles. JAS@01-2024.

NOTA
  • Em português, deste autor: Corrado Calabrò, A Penúria de ti enche-me a alma. Poesia 1960-2012. Edição bilingue (Lisboa, 2014). Edição bilingue, tradução e pós-fácio de Giulia Lanciani. Prefácio de Vasco Graça Moura.
A propósito, e como útil complemento, 
reproduzo o que aqui escrevi, em Julho 
de 2022, sobre Eugenio Scalfari, 
por ocasião da sua partida.

“Partiu Eugénio Scalfari. Com 98 anos, o grande, enorme jornalista deixou-nos, ontem. E, nesta ocasião, senti o dever de escrever algumas linhas sobre ele e o seu jornal, o la Repubblica, que leio praticamente desde que foi, em 1976, fundado. Comecei em 1978, altura em que me mudei para Roma, e ainda o leio regularmente. Ainda por cima, fiquei e sou amigo de um dos jornalistas que o fundaram e que me habituei a ler logo nos primeiros tempos, Giovanni Valentini, que foi seu vice-director e, mais tarde, director de L’Espresso. Dizem-me que o nome do jornal foi um tributo ao jornal português República. E foi, mas já não é tanto, um grande jornal, que chegou a ultrapassar o Corriere della Sera. No início dos anos ’90, obtive, e concretizei, autorização do la Repubblica para reproduzir, a título gratuito, artigos e até vinhetas de autores famosos em publicações dirigidas por mim. E aprendi muito na leitura deste jornal. Lá escreviam os melhores jornalistas e intelectuais italianos. Havia como que uma identificação ontológica do jornal com Scalfari, sendo impossível dissociá-los. E o mesmo se verificava com o seu editor, Carlo Caracciolo, ‘il principe rosso’ e ‘editor puro’, nas relações que sempre manteve com Scalfari. Como diz Giovanni Valentini, sem esta profunda cumplicidade de vida e de projecto entre ambos la Repubblica não teria acontecido.  Essa marca manteve-se sempre, mesmo quando Scalfari já não era o director e se distanciara um pouco do jornal. Era um intelectual prestigiado, respeitado e muito influente. A sua ‘travagliata’ vida deu-lhe uma densidade que se notava em tudo o que fazia.

Um Ensaio de Scalfari sobre a Burguesia

Num livro que publiquei em 1998, Paradoxos da Democracia (Lisboa, Fenda, 1998, 175-179), retomei, no subcapítulo ‘Middle class, uma democracia sem futuro?’, um estimulante ensaio de Scalfari, ‘Meditações sobre o declínio da burguesia’, publicado na Revista MicroMega, 4/1994. Em poucas palavras, a sua ideia era a de que a burguesia estava a perder (ou já tinha mesmo perdido) o seu papel originário de classe geral, regressando a uma visão corporativa da sociedade e pretendendo ela própria interpretar directamente o poder, o que antes não acontecia. É claro que Scalfari tinha em mente o recente caso de Berlusconi e a comparação com os Agnelli – que nunca pretenderam gerir, eles, directamente o Estado – era inevitável. A ideia era a de que a universalidade do Estado não podia ser interpretada por uma concreta classe (ainda que obtivesse  mandato por via electiva) e, por isso, havia que favorecer a representação por parte de instâncias e de protagonistas não ligados directamente ao interesse e ao poder corporativo. De resto, foi assim que nasceu e se consolidou (dos contratualistas a Hegel) o Estado e o direito modernos. A emergência política da middle class  viria a favorecer um movimento social e politicamente fragmentário favorável à reconstrução de uma ‘burguesia de classe’ já não identificada com o chamado ‘interesse geral’ que a burguesia tradicional representou e a seu modo promoveu. Assistiu-se, assim, ao regresso do classismo burguês e à tentativa de acesso directo do grande capital ao poder de Estado. É o caso concreto do acesso ao poder de Berlusconi. Uma bela reflexão, a de Scalfari, a que um dia voltarei.

Uma “Estrutura de Opinião”

O seu la Repubblica era um jornal culto e sofisticado que conseguia ao mesmo tempo ter uma enorme difusão nacional, uma difusão média diária de cerca de 730 mil exemplares, no início dos anos ’90, tendo atingido picos superiores a um milhão. E tudo isto era obra sua, enquanto líder deste excelente projecto jornalístico. Um projecto que Scalfari definia como uma “estrutura de opinião”, um autêntico “jornal de opinião de massas” (Valentini). Em suma, um projecto de centro-esquerda, que não era um quase-partido, como muitos diziam, mas, sim, quase uma ‘universidade popular’ tal era a sua sofisticação, a diversidade de áreas em que intervinha com competência reconhecida e a enorme dimensão de massas que atingiu.

Obrigado, Eugenio Scalfari

Hoje vivemos tempos em que o modelo deste jornal de Scalfari está em declínio, não só pelo triunfo incontestado do audiovisual, contra a cultura de natureza mais analítica, e pelo dilúvio tablóide que inunda a maior parte dos meios de comunicação, mas também pelo desenvolvimento do digital, da rede e, em particular, pelo aparecimento das redes sociais e da revolução que elas estão a introduzir na opinião pública. Scalfari pertencia a outro tempo e julgo poder caracterizá-lo analogicamente como tempo das Luzes. Um tempo que o seu projecto tão bem soube interpretar. E digo-o com conhecimento de causa e com alguma nostalgia, pois o que agora estamos a viver continua a ser, sim, um tempo de luzes, mas mais o das fugazes luzes da ribalta.”

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