FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO (VII)
SOBRE A POESIA
Por João de Almeida Santos

“O Voo da Rosa”, JAS 2023, 86×88, em papel de algodão (100% – 310gr) e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70 em moldura de madeira. Em exposição no Museu da Guarda.
ESPANTO E ESTREMECIMENTO
A VIAGEM ao fascinante mundo da poesia começou quando o jardineiro se deu conta de que uma videira cardinal trepara pernada acima e pusera um loureiro a dar uvas. Claro, as uvas eram da videira cardinal, mas foi o loureiro que as acolheu em seu regaço e as exibiu ao olhar estupefacto do observador, do jardineiro… e, afinal, do poeta em gestação. Este registou o momento e não sei se recorrendo também a fragmentos de memória afectiva. Só se saberia perguntando-lhe. Ao que certamente ele responderia, em rima, dizendo que o poeta é fingidor. E ficaríamos ali, nesse intervalo entre a realidade e a ficção. De resto, nem a poesia tem como função descrever o que acontece no real, porque ela é tão-só um expressivo, estilizado e sofisticado grito de alma. Mas nunca se conhece bem a razão desse grito silencioso, a não ser na cifrada linguagem poética. A poesia é um veículo onde o poeta viaja sem destino aparente, mas movido por concreta propulsão. Aqui, o poeta parece ter nascido, como os filósofos, do espanto ou, então, de um aparentemente inexplicável estremecimento. Creio, todavia, que o espanto accionou um qualquer fragmento intensivo de memória que estivesse por ali activo, mas silencioso, a fazer estragos na alma do poeta em gestação. Talvez seja isso, mas não sei.
VER COM A ALMA
A aparição, ao poeta, de um anjo em forma de mulher é sobretudo uma visão sensorial interior. Sim, a visão terá uma sua exterioridade correspondente, algo que um dia impressionou sensorialmente o poeta, para não dizer mais, algo que o tocou fisicamente, mas, depois de esculpido pelo tempo no território intangível da memória, ganhou uma nova dimensão, expressa em linguagem poética. É aí que a aparição se torna ambígua, entre anjo e mulher, provocando alguma indecisão no poeta e até no pintor, quando aquele lhe sugere que pinte uma figura de mulher, também ela um pouco anjo e um pouco mulher. A pintura será aquela que tem por título “Epifania” (JAS 2023), aqui reproduzida. É nesta nebulosidade sensorial que reside o mistério, mas é também ela que alimenta o poeta. Sim, o problema reside na palavra “ver”. Ver com os olhos ou ver com a alma? Ou ver com ambos? É aqui, nesta tentativa simbiótica que o poeta se move, entre os olhos e a alma, entre a dimensão sensorial e os sentidos internos. E é aqui que o poema se desenrola. Há sempre o perigo de uma idealização extrema e de uma excessiva desrealização. Um perigo de que o poeta se dá conta e do qual sempre tenta fugir. Porquê? Porque sempre sente que tem de dar fisicidade, materialidade, ao poema. E não só através da sua musicalidade, altamente perfomativa, mas também na semântica, na alusão, ainda que equívoca e até perigosa, à realidade. Por isso se compreende que o poeta se tenha tornado também pintor, na ânsia de poder tocar com os olhos essa imagem silenciosa e longínqua, dando-lhe forma visível. Forma de anjo em figura de mulher.
SEDUÇÂO
A poesia é sedução, fantasia, desejo, engano, realidade. Sim, tudo isso, porque o motor é a paixão… reinventada. Não pela razão, mas pela fantasia. E quanto maior for a perda ou a dor que a motiva mais intensa será a recriação. Reconstrói e recria o que perdeu, o poeta. E reinventa diálogos e seduções como se tivesse perante si esse ser que se ausentou e que lhe fala, o interpela, com silêncio reiterado. Como castigo. E ele, sentindo-se punido, procura resgatar-se com a perfeição. Com a perfeição sedutora, que é a melhor forma de reapropriação do que perdeu. Seduz, exibindo-se como criador de formas belas para oferecer à musa, como resposta, inscrevendo a sua história numa narrativa esteticamente elaborada. Assim se redime. O poeta esculpe sempre com um cinzel afectivo. Delicado, portanto. E como dádiva. Tal como o tempo escultor no fluxo ininterrupto da memória. E eleva e faz perdurar o que estaria condenado a esgotar-se, a cair no poço fundo do esquecimento. Depois, o pintor, solidário, até chega a dar forma ao rosto dessa paixão cantada, completando a recriação e suplantando a realidade invocada poeticamente.

“Epifania”. JAS 2023, 79×82, em papel de algodão (100% – 310gr) e verniz Hahnemuehle. Artglass AR70, em moldura de madeira. Em exposição no Museu da Guarda.
ROSA QUE VOA NÃO MURCHA
Sim, a rosa, a flor que frequentemente se lhe insinua, quando voa não murcha. Como o amor. Voar é, pois, preciso. E é o que faz o poeta. Voa, voa sempre, para sobreviver. Para não murchar. Bem sei que, tal como nas rosas, há espinhos e corre riscos, durante o voo, mas é por isso que a viagem é fascinante. Há poços de ar, há tempestades e arrisca despenhar-se. Um dos riscos é os seus beijos em forma de versos serem bebidos pelos fantasmas durante a viagem e nunca chegarem ao destino. Mas esse é o mundo dos poetas. Eles têm de conviver com os fantasmas. Tarefa infindável, essa de subir ao Parnaso vezes sem conta e sem fim, no desejo de que algum beijo chegue à musa. E talvez também seja esse o destino das rosas.
INFORTÚNIO
Sim, o Bernardo Soares é frequente companheiro de viagem e de infortúnio do poeta. Se não pode ou não deve tocar a realidade sequer com a ponta dos dedos, então olha para ela como para uma galeria de arte. Ele nem se ajeita lá muito com a poesia, mas este, o poeta, felizmente lá se vai ajeitando e assim pode aspirar a salvar-se do infortúnio. Ir-se salvando à medida de cada poema que escreve. Ainda por cima vive irmanado com um pintor que o vai confortando e animando com riscos e cores que vão dando mais vida e luz às suas palavras. E ao infortúnio que elas exprimem. Perdido, perdido, anda sempre e, por isso, tem sempre que fazer para se ir reencontrando noutros territórios que não naquele em que pecou, fracassou e se condenou. Ele voa regularmente sobre uma pétala de rosa, o veículo mais seguro para se salvar do infortúnio.
PERFUME
Poder sentir o perfume da rosa com a alma é dádiva do Olimpo. O poeta é passageiro permanente nos voos da rosa. As pétalas são as suas asas. E o perfume o combustível. O jardim encantado do poeta é o seu aeroporto espiritual, de onde parte e onde sempre regressa. E gosta dele porque gosta cada vez mais de viajar deste modo. A sua poesia perfuma e os aromas são os do seu jardim encantado. Em particular, o do inebriante jasmim.
A DANÇA DA SOLIDÃO
O “Voo da Rosa”, uma pintura que um dia o pintor ofereceu ao poeta, é a dança da solidão. O poeta está condenado a dançá-la até cair exausto. O seu karma. Na dança, o poeta vagabundo e solitário move-se com outras almas, que convoca e que, assim, alimenta para que o ajudem a reencontrar-se nesse bailado da alma. Cumplicidade poética. Ritual. Ele tornou-se poeta, mas ao mesmo tempo um ser perdido no mundo, depois da visita da musa, que logo o abandonou. Restou-lhe o estro, a marca da passagem dela por si. E a poesia é filha da musa e da dor, pela inevitável partida. Depois, chegam sempre os fantasmas que se alimentam dos beijos que ele sopra ao vento que passa para que cheguem até ela. Um destino marcado, este, o do poeta – beijar com versos a musa ausente. Destino que se cumpre no canto e na dança em solidão, mas sem que ele saiba se alguma vez conseguiu intersectá-la, à musa, com os seus beijos escritos. Os fantasmas são vorazes quando se trata de beijos escritos.
CHORAR
O destino do poeta é, sim, chorar com palavras. Mas não espera que lhas enxuguem, as lágrimas. Ele sente prazer nelas. Podem não chegar ao destino, mas, chorando assim, redime-se. Nada mais espera, apesar de sempre tentar o encontro impossível. O pintor embelezou o choro com uma rosa em voo (aqui reproduzida). Deu asas ao lamento. A cor da rosa foi ditada exclusivamente pela beleza a que o poeta aspira no seu voo redentor. Mesmo que não chegue ao destino, e nunca se sabe se chega, ele é feliz.
FRUTO AMARGO
A poesia mata saudades, pois mata. Ela chama a si o ausente e dá voz ao silêncio perturbador. A felicidade possível do poeta. Os olhos dela pode vê-los com os sentidos interiores ou, felizardo, pelo pincel do pintor. Já aconteceu. Epifania. “Delicioso pungir de acerbo espinho” – sim, o prazer de um fruto amargo, como disse uma vez o grande poeta Garret. Sofre, o poeta, no canto feliz da dor estilizada. Tem saudades, mas, ao cantá-las, converte a dor da ausência em feliz ritual celebrativo, para o qual convoca as almas sensíveis, as almas gémeas, as que sentem o poema por dentro. Assim parece ser. E assim tem de ser.
A POÉTICA DO FRACASSO
Bernardo Soares: “Não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram”. Isto lembra-me o comentário de uma Amiga a um poema meu. Sim, saudades do que só aconteceu em sonho ou simplesmente como desejo. Do que foi não é tão doloroso porque, de algum modo, foi, aconteceu. Tem razão o Bernardo Soares. Do desejo que se ficou pelo desejo ou do sonho de que se acordou noutro lugar qualquer, ah, isso, sim, é dor, é doloroso. Porque o desejo desejado ou o sonho sonhado são mais intensos do que o desejo ou o sonho cumpridos. É essa intensidade interior que torna a saudade mais dolorosa. Tudo se passa nos sentidos interiores, que são mais intensos do que as relações sensoriais com a contingência do mundo exterior. Era este o mundo do Bernardo Soares. O mundo, para ele, era uma galeria de arte que ele desenhava com a sua fantasia e com as suas palavras. No real não gostava de tocar sequer com as pontas dos dedos. Por isso, a dor para ele não tinha uma dimensão sensorial. Os rostos eram retratos que ele apreciava na galeria da vida. Se sofria era como observador empenhado das obras expostas nesta galeria. E nem sequer se ajeitava com a poesia. Imaginemos o que seria se se ajeitasse. São dolorosas, essas saudades… porque isso nunca aconteceu a não ser em sonho ou como desejo. É como reencontrar-se no tempo perdido. Uma impossibilidade. O Cioran falava de uma poética do fracasso. A celebração dorida do irrealizado, do falhado. As coisas que nunca foram são mais reais do que as que foram. Porque aquelas nunca morrem, persistem como desejo (sempre) irrealizado. E isso dói. Ah, se dói!
A POÉTICA DA PERDA
A poética da perda: a elevação da perda a ritual poético no processo de redenção pela arte.
MÚSICA CREPUSCULAR
O poema como “música crepuscular”. Belo. Ao cair ou ao nascer do dia levanta-se o poema para o reviver ou para o viver, em forma diferida ou em poética antevisão do que será. Mas a poesia é toda ela crepuscular, porque acontece sempre num intervalo em que as formas mais parecem sombras indefinidas que solicitam a imaginação para as identificar e desenhar à medida da cifra poética. É como um ambiente de neblina a que é preciso acrescentar luminosidade e definição. Ou traz consigo ainda as figuras do sonho sonhado ou já esbatidas as formas expostas à luz do sol. Mas a definição acrescentada nunca provém do exterior. Ela resulta da música interior que anima o poeta e do seu cinzel poético. O crepúsculo é o ambiente favorável da poesia porque está entre o real e a fantasia. Convida a recriar e a desenhar com maior nitidez, embora de forma cifrada, o que se apresenta um pouco sombrio. O poeta encontra aqui a posição privilegiada para poetar, entre a vida e o sonho, entre a realidade e a imaginação, entre o dia e a noite. Neste intervalo nem é uma coisa nem a outra, sendo ao mesmo tempo todas elas. É aqui que a linguagem poética melhor se exprime.
METABOLIZAR AS SAUDADES
Cantá-las, as saudades, ajuda a metabolizá-las e a conservá-las como feliz melancolia. Sim, ficam as saudades, quando o essencial perdura no tempo. Senti-las é uma coisa, cantá-las é outra coisa. É dar um passo em frente. Este passo depende apenas de quem as sente e, de certo modo, significa ritualizá-las, revivendo o passado sob uma forma mais livre. É já um tempo próprio, independente do contexto em que se viveu. Metabolizá-las num organismo que já se transformou, com o tempo. Mesmo na pintura, ainda que ela possa evocar nos traços esse passado que o poeta canta.
POESIA E INTERTEXTUALIDADE
Eu não valorizo a retórica poética, o circuito dominantemente intertextual da poesia, o virtuosismo linguístico, o culto da linguagem obscura como estratégia comunicacional. Para mim, a poesia tem um sentido: é um grito de alma. Grito filtrado pelas exigências estéticas e pela busca do belo que lhe será devolvido como eco da alma. Sem uma componente dionisíaca a poesia é pura retórica, puro “divertissement”. Eu não frequento nem gosto desse mundo. Não me interessa. Depois, o que acontece ou aconteceu no real não importa, do ponto de vista poético. Que o real resiste e persiste, assumido e sofrido, isso sim. A poesia é vida vivida, mas esteticamente transfigurada e metabolizada. Prossecução da vida por outros meios, dotados de poder performativo. Recriar a vida, fazendo coisas através de palavras (“to do things with words”), diria o Austin. E digo também eu.

FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO (VI)
SOBRE A POESIA
Por João de Almeida Santos

“Teu Olhar”, 2022. JAS. 02-2024
A CANETA QUE SE TORNA PINCEL
PROCURO SEMPRE transpor para dentro do próprio poema a sinestesia concreta que proponho com a convergência total entre pintura e poesia, lembrando-me sempre do grande Cesário Verde: “Pinto quadros por letras”. Caneta-pincel, portanto. Mas também pincel-caneta. Pintar com palavras e escrever com riscos e cores. E o poema torna-se também pauta de uma melodia colorida. Sinfonia de cores e letras.
OS OLHOS
Dos olhos diz-se, e bem, que são o espelho da alma. Choram com ela. Ou sorriem. E iluminam de alegria ou de tristeza quem os fixa. E seduzem. Ou fulminam. Ou olham de través como quem não se quer deter no percurso do olhar. Um mundo. É esta riqueza expressiva dos olhos que surpreende permanentemente o poeta-pintor. Que é volúvel e de paixão fácil. Pecador. Fácil de seduzir. Ele está ali para isso mesmo, para se apaixonar, para ser seduzido por um olhar. O poema do João Roiz de Castelo Branco diz tudo sobre eles. Transcrevo:
“Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
tão fora de esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.”
Tristeza, a destes olhos cantados pelo poeta. São os olhos que partem e, com eles, a alma, de que são a fala, a expressão, a materialização. O poeta tenta sempre convocar os cinco sentidos nos poemas. E, por isso, procura realçar também o poder que o murmúrio tem de acender a chama nesse altar onde executa o seu ritual. Chove-lhe na alta fantasia, mas a chuva não apaga a chama, que se vai consumindo em permanência, sem nunca se esgotar. Não é, pois, como a vela que vai perecendo para iluminar… até ao fim. Mas enquanto houver altar, haverá chama. E poesia.
ROSTOS PARA UMA IDENTIDADE
O exercício poético torna-se menos complexo quando o poeta tem um sorriso perante si. E pode ser o sorriso que ele próprio, enquanto poeta-pintor, pintou. Com palavras e com cores. Olha, olha, volta a olhar… e vai-se deixando seduzir pelo sorriso que vai desenhando. Cada olhar, cada verso. Cada verso, uma cor. Cada pausa, cada estrofe. Cada risco, as palavras. O silêncio, melodia. Com o olhar põe a figura em movimento através de palavras, da melodia e da toada que lhes estão (às palavras) sempre associadas. E a vantagem de saber escrever palavras também com o pincel consiste em materializá-las, em poder olhá-las de frente, em responder-lhes com a linguagem e a luz do olhar. “Esse enigmático alguém”, o poeta-pintor desenha-o com palavras, com melodia e com cor, ao sabor de uma fantasia ancorada no real, dionisíaca. Parece, de cada vez, fixar-se em rostos diferentes. Mas é pura ilusão: são as personagens que o procuram na (sua) imaginação e na sua memória. São diferentes na forma, mas parece haver uma só identidade (a crer nas palavras). Rostos para uma identidade – a que exprime com a alma, a que se lamenta de uma perda, a que procura recuperar pela arte o que perdeu na vida (perda sofrida, levitação desejada), desencontros marcados pelo alinhamento dos astros… Essa identidade acaba por ser reconstruída pelo pintor com fragmentos da memória do poeta. Os rostos não são pura imaginação, mas estão todos eles animados pela mesma e única pulsão do poeta-pintor. Sinestesia, ao serviço da recomposição de uma identidade perdida e em permanente sentimento de perda. A musa é uma criação do poeta remotamente inspirada na memória visual, mas recriada com o turbilhão emocional que o leva a escrever. Às vezes a caneta e o pincel escapam-se-lhe mesmo das mãos e vão por conta própria ao serviço do deus Apolo. A via apolínea da arte percorrida com o combustível que alimenta essa pulsão criativa. E ele não tem poder para se lhes opor. O poeta-pintor vive numa teia que é maior do que ele. Só tem que sintonizar… e deixar-se ir. É por isso que se diz que a poesia lhe acontece, ao poeta. Não foi o que disse também o Pessoa? E não ouvi também, numa gravação, a Amália dizer que o canto lhe acontecia, exactamente no mesmo sentido em que o poeta o disse? É a fala da alma que acontece, acrescida da beleza da forma. Poesia.
NAVEGAR
Navegar no oceano poético ao sabor do vento, livremente, levando no barco reminiscências, memórias – é este o destino do poeta. E sem tapar os ouvidos nem se atar ao mastro, mas ouvir sem receio as sereias, deixando-se encantar, seduzir. É esse, sim, o destino do poeta. Ainda por cima com a possibilidade de desenhar o rosto que lhe fala ao poema, que o interpela, materializando as palavras com traços e cores. Epifania. Antes de se lançar ao oceano (sim, oceano, não mar, aqui a ocidente) prepara-se em terra: prepara bem o barco (seria perigoso se metesse água) para a viagem em alto mar, o motor de propulsão (sob forma de asas), escolhe os mantimentos e afina o sextante (é este o instrumento que usa, porque se guia pelos astros) para se orientar melhor. Depois parte, quer haja ondas alterosas ou mar calmo. Simplesmente, parte. Durante a noite fixa o céu, escolhe uma estrela e fixa a atenção nela até quase o encandear. Só aí a viagem começa a ganhar forma e a fantasia se desprende. Sonho. Cruza-se com sereias, mas só uma o pode seduzir. E é em estado de sedução que continua a viagem… até ao regresso. Para logo a retomar.
RECRIAR É POSSUIR
Recriar em poesia e em pintura é a missão do poeta-pintor. O impulso original responde a uma tensão interior, procurando, depois, resolvê-la pela arte. Ou melhor, projectá-la para o território da arte, lá onde a sensibilidade mais intensa e delicadamente se exprime. Pode, assim, levá-la – a musa, objecto do seu compromisso afectivo – consigo, como expressão do seu desejo mais profundo. “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”, dizia o Michelangelo da Yourcenar ao seu amante, que ia partir, sem regresso possível. Possuo-te quando te perco ou porque te perco. Pela arte, a única posse possível. E, no futuro, verei (em arte) em ti o que mais ninguém pôde ou poderá ver. Então, todos, através de mim, poderão fruir o melhor e o mais belo que fica de ti, porque eu te eternizei. O artista, claro, está nele mais do que os outros porque a imagem (plástica e verbal) revela o que outros nunca poderiam ver. E é por isso que ele se torna mais belo do que realmente é no espelho onde os outros o verão reflectido. Transfiguração estética, poder-se-ia dizer, impulsionada por essa tensão interior do artista que também era amante. Arte e amor. Foi a Yourcenar que disse que só pela arte se pode possuir, porque a verdadeira posse é a recriação do outro: “il s’agit moins de s’emparer d’un être que de le recréer”. O poeta quando procura atingir o sublime está a colocar-se nesse território. Michelangelo reteve de Gherardo o que só o artista e amante poderia encontrar nele: “l’autre, que j’ai dégagé de toi, et qui te survivra”. É isto. Ela, a Yourcenar, di-lo sem dissimulação. É a conjunção daquilo a que o Nietzsche chamava “espírito dionisíaco” com o “espírito apolíneo”. Gherardo, o seu amante, chegou até nós através de Michelangelo (e da Yourcenar).
É esse o poder da arte, da poesia e da pintura. Recriar e reinventar. Não só na imaginação ou no sonho, mas dando forma ao objecto de atenção estética com as categorias da arte e partilhando-a, como complemento que concretiza a materialização de todo o processo. Em três fases dá-se vida ao desejo do artista: sente, estiliza e partilha. E isso também contribui para minimizar a dor da ausência, da perda e do silêncio. E para elevar o sentimento para além da sua efectividade empírica. Eu creio que a verdadeira arte é sempre resposta a uma inquietação profunda, a um qualquer sentimento de perda. O Pessoa dizia que não aceitava estar encerrado na prisão do seu corpo e que, por isso, escapava até outras personagens e paragens, evadindo-se, com estrondo. Talvez esta lógica também se aplique aqui: evasão da prisão desse corpo e dessa alma sujeitos a uma compressão que provoca dor, melancolia, impotência ou mesmo depressão. Ele não sabe se há solidão e dor do outro lado, o da musa, ma sabe que, se referida a si, há. Solidão criativa e partilhada. E essa é a narrativa que lhe interessa (do ponto de vista poético, claro). É essa solidão que permite o auspicioso encontro (com a musa) em arte num território superior.
PALAVRAS
Quando as palavras têm peso, quando elas procuram tocar o real, chegam a deslaçar-se, se for preciso, para que, ao menos, um fio chegue lá. Na poesia acontece esse deslaçamento.
TIMIDEZ

“Timidez”, 2023. JAS. 02-2024
A timidez é “amiga” da melancolia. A acção impetuosa estilhaça sem piedade a sensibilidade e o delicado mundo que lhe está associado. Pelo contrário, a timidez gera recolhimento interior para esse universo da sensibilidade. O poeta sabe da melancolia da protagonista/amada e julga conhecer a razão. E por isso quer partilhá-la no território íntimo da sensibilidade poética. A luz que a iluminava interiormente mudou de direcção (para poente, onde o sol se põe) e provocou alguma intermitência na sua sensibilidade. Não se sabe se esta luz era a do poeta, mas pode suspeitar-se que sim, pois no fim de um poema ele confessa que tem desejo de voltar a voar com ela, sob a luz quente e cintilante do sol de primavera. Não sei se será esta a interpretação, mas, se fosse, ela explicaria a melancolia e a timidez que ela parece exibir. Mas, sabendo nós que o poeta é um fingidor, é sempre de desconfiar do que ele confessa num poema. Mas também há que ter presente o que diz Ovídio na “Ars Amatoria” sobre o jogo do amor.
ARS AMATORIA
A seguir à “Ars Amatoria” Ovídio publicou “Metamorfoses”. E só uns anos mais tarde é que é exilado por ordem de Augusto (a 8 d. C., em Constança). A edição bilingue da Rizzoli tem uma longa e interessante introdução de Scevola Mariotti sobre Ovídio. Aqui se diz (a propósito de “Amores”, de 19 a. C.): “Ovídio debruça-se com prazer sobre as contradições fundamentais da vida amorosa, em particular sobre a que resulta da relação entre o desejo de libertação do amor e a fatalidade da recaída”. Quanto a mim. é desta inevitabilidade, ou melhor, desta dialéctica que resulta a pulsão poética: desejo de libertação e persistente recaída.
Transcrevo, noutro sentido, um passo interessante de “Ars Amatoria”: “Spesso chi finse amore cadde in amore: pensava fosse un gioco essere amante, poi lo divenne. E dunque date ascolto a chi v’invoca, o donne, anche per gioco!”. (I, 920-923; Milano, Rizzoli, 1989, p. 151). Será o caso também do poeta fingidor, que finge amar porque ama realmente? Que finge que é só jogo o que deveras sente? Ou que, de tanto fingir, acaba por ficar prisioneiro do próprio jogo e perde-se em amor, tornando-se amante? Talvez seja isto. É esse o território onde o poeta acaba por se perder. Jogo perigoso, com esse sentimento tão poderoso que é o amor. Mas é nesse território que se move o poeta, mesmo quando parece não falar dele.
REFÉM OU LIVRE?
Sobre uma aparente contradição: o poeta é refém, mas em permanente movimento de libertação… que nunca termina. A cicatriz está lá, é refém dela, mas a poesia eleva-o e vai-o libertando, sem que, todavia, o processo algum dia possa concluir-se. Porque há sempre “a fatalidade da recaída”. Não é possível eliminar a cicatriz, que às vezes mais parece ferida em carne viva. Corpo e alma em ferida. Refém do corpo, liberta a alma. A cicatriz é o sinal da ferida, que permanece. Por isso, a cada olhar (interior) sobre a ferida deve corresponder um poema. Eterno retorno. Pecado original. Diria que o poeta está condenado a ser livre. A libertar-se da ferida. Condenado-refém que se vai libertando pela poesia sem nunca conseguir finalizar o processo. É o caminho de Sísifo até ao Monte Parnaso. O corpo de Gramsci esteve cerca de 20 anos na cadeia (até à morte), mas a sua alma não. Cada fragmento dos cadernos do cárcere era um grito de libertação. Da prisão e do tempo. Também o poeta é refém de uma ferida-dor corporal (ainda que cicatrizada), mas a sua alma pode entregar-se livremente a um processo de permanente libertação. A liberdade reside no processo. É a condição de refém que o leva a essa libertação superior. A prisão é a alma gémea da liberdade. Ou o seu lado escuro. Procura libertar-se porque se sente prisioneiro. Um impulso imparável. Mas, claro, há ali uma permanente instabilidade existencial e uma permanente inquietação. Um permanente desassossego. É sobre ele, o desassossego, que constrói e se constrói.
INQUIETAÇÃO PERSISTENTE
Quando a inquietação é profunda e persistente o destino é ser poeta. Dizer tudo num poema, não. Absolutamente. O poeta nunca diz tudo, mesmo que pareça que diz. Vai dizendo, isso sim, mas de forma cifrada, só compreensível pelos “iniciados” ao mistério da vida. Mas o mistério subsiste e exige um infinito ritual.
A POESIA É MÚSICA
Sim, “a vida flui como tem de ser”, dizia alguém. Se for com música tanto melhor. E a poesia é música para as almas sensíveis. E ajuda a vida a fluir melhor. E flui entre uma dor que se pode ter tornado crónica e a busca permanente da beleza redentora, entre o peso gravitacional da existência e a leveza do desejo em busca da harmonia de formas que o exprimam e o realizem.
O SILÊNCIO
O silêncio, diz o filósofo, é a mais profunda das linguagens, quando ancorado numa pulsão profunda, numa demorada e focada contemplação, numa escuta atenta ou na intenção de dar a conhecer a outrem, por uma insistente e intencional redundância, o seu peso e o seu significado (o do silêncio). Muito se pode dizer pelo silêncio. A contemplação é silenciosa e permite a mais perfeita das sintonias. Mas só a poesia pode reconduzir o silêncio à sua forma original… como comunicação. Dando-lhe voz, transforma o imperceptível ruído de fundo em melodia. É a sua pauta. E pacifica e amacia a alma atormentada do poeta, dando forma à voz do silêncio, como se este tivesse um sujeito-autor e fosse a sua fala. Terá? Será? Não sei, mas é provável que sim. A poesia reinventa o discurso do silêncio e dá-lhe vida. O silêncio, quando perturba, tem sempre um autor, um sujeito por detrás. A este silêncio só o poeta está em condições de responder com eficácia devido não só ao poder criativo, mas também ao poder performativo da poesia. A resposta, a reinvenção ou a recriação é como a moldura cifrada do silêncio quando este é assim devolvido ao seu autor. Devolvido, mas sem um preciso endereço. O poeta responde interpondo-se entre aquele que sofre o silêncio e o seu autor, criando uma ponte invisível erguida sobre um imenso vazio.
PARADOXOS
Os paradoxos permitem-nos dizer com maior intensidade o que pretendemos significar. E são estilisticamente belos. Um silêncio ensurdecedor… Não há melhor forma de traduzir o poder de um silêncio que se torna insistentemente redundante e teimoso quase até à agressão (dos sentidos e da alma). O silêncio intensifica-se quando estamos cercados pelo ruído da multidão, anulando-o, enquanto silêncio físico, e expondo brutalmente a alma ao seu som ensurdecedor. No meio da multidão sentimo-nos mais sós e atormentados pelos nossos fantasmas. Outro silêncio é o da montanha para onde se evade o eremita-poeta para ouvir, em solidão, o som silencioso da majestade das alturas. Este silêncio é mais pacificador. Não agressivo, como o da cidade, que nos faz sentir perdidos e abandonados na selva urbana, à mercê da crueza das memórias mais duras. Lembro-me sempre do Baudelaire de “Les Fleurs du Mal”, do poema “À une Passante”: “La rue assourdissante autor de moi hurlait. (…) Un éclair… puis la nuit!”. Ou do Edgar Allan Poe. Pelo contrário, no ermo, lá no alto, a solidão é sideral. O silêncio, tenha ele a cor que tiver, é reconduzido à dimensão natural da existência, à dialéctica da natureza a que pertencemos e à sua lei. Lá do alto podemos observar o vale da vida com maior elevação (espiritual) e maior distância. Podemos relativizar, mas também podemos redesenhar a vida com a nitidez do olhar das águias reais, olhando lá de cima a vida como nosso alimento espiritual. Essa nitidez é dada pelo olhar interior do poeta ou do pintor. Nesta condição, o silêncio pode ouvir-se como melodia da alma ou até do universo. JAS@02-2024
