Poesia-Pintura

OCASO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Rasto de Luz” - JAS
2023 (83x83), papel de algodão e
 verniz Hahnemuehle (100% - 310gr),
Artglass AR70, em mold. de madeira.
Quadro e Poema (acrescido de dois 
versos na última estrofe) que 
integram a Exposição “Luz no Vale”,
aberta ao público no Museu
da Guarda até ao dia 7 de Abril.
RastodeLuz_2023

“Rasto de Luz”. JAS 2023 (83×83), papel de algodão e verniz Hahnemuehle (100% – 310gr), Artglass AR70, em mold. de madeira. 

POEMA – “OCASO”

CAMINHAVA SÓ
No Paredão
E sentei-me,
À tardinha,
A olhar
A solidão,
O oceano
E o sol
Lá ao fundo
A brilhar
Sobre a linha
Do horizonte,
Em tempo de
Baixa-mar.

O SOL CRIARA
Um caminho
De luz,
Mar afora,
A entrar
Pelos olhos
Dentro
Nessa já
Tardia hora.

E CONVIDAVA-ME
A segui-lo
Com o olhar
Em gesto
De despedida,
Era hora
De sol-posto,
Era hora
De partida.

A LUZ INTENSA
Do sol,
Longo rasto
Luminoso,
Incendiava
O olhar
De tão forte
Ser a luz
A refractar-se
No mar.

FIXEI
Esse caminho
E ouvi
Da sua água
Um suave
Marulhar,
Murmúrio
Terno
Das ondas,
Melodia
Luminosa
Criada
Pra embalar.

ERGUI DE NOVO
O olhar
Para o sol
Que s’esvaía,
Respirei
E voltei
A respirar
Uma intensa
Maresia.

RUA DE LUZ
Marinha
A levar-me
Ao horizonte
Por círculo
De fogo
Aceso
Em urgente
Despedida,
Ocaso
Que anuncia
Noites
Passadas
De sonho,
Estranhas
Formas
De vida.

ASSIM ME PARECE
Ter sido
A história breve
Que contigo
Eu vivi,
A mesma faixa
De luz,
O mesmo círculo
De fogo
Que o horizonte
Engoliu,
O serpenteio
De corpos
No luminoso
Caminho
Que a ti
Me conduziu...

ATÉ QUE O SOL
Se pôs
Pra regressar
De manhã,
Metáfora
Luminosa
Do nosso encontro
Fugaz
Já tão perdido
No tempo,
Esse tempo
Tão voraz.

E O SOL
Lá regressou,
Mas vinha
De outro lado,
Sem suave
Marulhar,
Sem ondas
Pra navegar
Nesse brilho
Ondulante
Que um dia
Me encantou
A lembrar-me
O teu mar,
Esse ondear
Cativante
De quem não sei
Se me amou.

RastodeLuz_2023Rec

Artigo

FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO (VII)

SOBRE A POESIA

Por João de Almeida Santos

OVoodaRosa2021Pub

“O Voo da Rosa”, JAS 2023, 86×88, em papel de algodão (100% – 310gr) e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70 em moldura de madeira. Em exposição no Museu da Guarda.

ESPANTO E ESTREMECIMENTO

A VIAGEM ao fascinante mundo da poesia começou quando o jardineiro se deu conta de que uma videira cardinal trepara pernada acima e pusera um loureiro a dar uvas. Claro, as uvas eram da videira cardinal, mas foi o loureiro que as acolheu em seu regaço e as exibiu ao olhar estupefacto do observador, do jardineiro… e, afinal, do poeta em gestação.  Este registou o momento e não sei se recorrendo também a fragmentos de memória afectiva. Só se saberia perguntando-lhe. Ao que certamente ele responderia, em rima, dizendo que o poeta é fingidor. E ficaríamos ali, nesse intervalo entre a realidade e a ficção. De resto, nem a poesia tem como função descrever o que acontece no real, porque ela é tão-só um expressivo, estilizado e sofisticado grito de alma. Mas nunca se conhece bem a razão desse grito silencioso, a não ser na cifrada linguagem poética. A poesia é um veículo onde o poeta viaja sem destino aparente, mas movido por concreta propulsão. Aqui, o poeta parece ter nascido, como os filósofos, do espanto ou, então, de um aparentemente inexplicável estremecimento. Creio, todavia, que o espanto accionou um qualquer fragmento intensivo de memória que estivesse por ali activo, mas silencioso, a fazer estragos na alma do poeta em gestação. Talvez seja isso, mas não sei.

VER COM A ALMA

A aparição, ao poeta, de um anjo em forma de mulher é sobretudo uma visão sensorial interior. Sim, a visão terá uma sua exterioridade correspondente, algo que um dia impressionou sensorialmente o poeta, para não dizer mais, algo que o tocou fisicamente, mas, depois de esculpido pelo tempo no território intangível da memória, ganhou uma nova dimensão, expressa em linguagem poética. É aí que a aparição se torna ambígua, entre anjo e mulher, provocando alguma indecisão no poeta e até no pintor, quando aquele lhe sugere que pinte uma figura de mulher, também ela um pouco anjo e um pouco mulher. A pintura será aquela que tem por título “Epifania” (JAS 2023), aqui reproduzida. É nesta nebulosidade sensorial que reside o mistério, mas é também ela que alimenta o poeta. Sim, o problema reside na palavra “ver”. Ver com os olhos ou ver com a alma? Ou ver com ambos? É aqui, nesta tentativa simbiótica que o poeta se move, entre os olhos e a alma, entre a dimensão sensorial e os sentidos internos. E é aqui que o poema se desenrola. Há sempre o perigo de uma idealização extrema e de uma excessiva desrealização. Um perigo de que o poeta se dá conta e do qual sempre tenta fugir. Porquê? Porque sempre sente que tem de dar fisicidade, materialidade, ao poema. E não só através da sua musicalidade, altamente perfomativa, mas também na semântica, na alusão, ainda que equívoca e até perigosa, à realidade. Por isso se compreende que o poeta se tenha tornado também pintor, na ânsia de poder tocar com os olhos essa imagem silenciosa e longínqua, dando-lhe forma visível. Forma de anjo em figura de mulher.

SEDUÇÂO

A poesia é sedução, fantasia, desejo, engano, realidade. Sim, tudo isso, porque o motor é a paixão… reinventada. Não pela razão, mas pela fantasia. E quanto maior for a perda ou a dor que a motiva mais intensa será a recriação. Reconstrói e recria o que perdeu, o poeta. E reinventa diálogos e seduções como se tivesse perante si esse ser que se ausentou e que lhe fala, o interpela, com silêncio reiterado. Como castigo. E ele, sentindo-se punido, procura resgatar-se com a perfeição. Com a perfeição sedutora, que é a melhor forma de reapropriação do que perdeu. Seduz, exibindo-se como criador de formas belas para oferecer à musa, como resposta, inscrevendo a sua história numa narrativa esteticamente elaborada. Assim se redime. O poeta esculpe sempre com um cinzel afectivo. Delicado, portanto. E como dádiva. Tal como o tempo escultor no fluxo ininterrupto da memória. E eleva e faz perdurar o que estaria condenado a esgotar-se, a cair no poço fundo do esquecimento. Depois, o pintor, solidário, até chega a dar forma ao rosto dessa paixão cantada, completando a recriação e suplantando a realidade invocada poeticamente.

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“Epifania”. JAS 2023, 79×82, em papel de algodão (100% – 310gr) e verniz Hahnemuehle. Artglass AR70, em moldura de madeira. Em exposição no Museu da Guarda.

ROSA QUE VOA NÃO MURCHA

Sim, a rosa, a flor que frequentemente se lhe insinua, quando voa não murcha. Como o amor. Voar é, pois, preciso. E é o que faz o poeta. Voa, voa sempre, para sobreviver. Para não murchar. Bem sei que, tal como nas rosas, há espinhos e corre riscos, durante o voo, mas é por isso que a viagem é fascinante. Há poços de ar, há tempestades e arrisca despenhar-se. Um dos riscos é os seus beijos em forma de versos serem bebidos pelos fantasmas durante a viagem e nunca chegarem ao destino. Mas esse é o mundo dos poetas. Eles têm de conviver com os fantasmas. Tarefa infindável, essa de subir ao Parnaso vezes sem conta e sem fim, no desejo de que algum beijo chegue à musa. E talvez também seja esse o destino das rosas.

INFORTÚNIO

Sim, o Bernardo Soares é frequente companheiro de viagem e de infortúnio do poeta. Se não pode ou não deve tocar a realidade sequer com a ponta dos dedos, então olha para ela como para uma galeria de arte. Ele nem se ajeita lá muito com a poesia, mas este, o poeta, felizmente lá se vai ajeitando e assim pode aspirar a salvar-se do infortúnio. Ir-se salvando à medida de cada poema que escreve. Ainda por cima vive irmanado com um pintor que o vai confortando e animando com riscos e cores que vão dando mais vida e luz às suas palavras. E ao infortúnio que elas exprimem. Perdido, perdido, anda sempre e, por isso, tem sempre que fazer para se ir reencontrando noutros territórios que não naquele em que pecou, fracassou e se condenou. Ele voa regularmente sobre uma pétala de rosa, o veículo mais seguro para se salvar do infortúnio.

PERFUME

Poder sentir o perfume da rosa com a alma é dádiva do Olimpo. O poeta é passageiro permanente nos voos da rosa. As pétalas são as suas asas. E o perfume o combustível. O jardim encantado do poeta é o seu aeroporto espiritual, de onde parte e onde sempre regressa. E gosta dele porque gosta cada vez mais de viajar deste modo. A sua poesia perfuma e os aromas são os do seu jardim encantado. Em particular, o do inebriante jasmim.

A DANÇA DA SOLIDÃO

O “Voo da Rosa”, uma pintura que um dia o pintor ofereceu ao poeta, é a dança da solidão. O poeta está condenado a dançá-la até cair exausto. O seu karma. Na dança, o poeta vagabundo e solitário move-se com outras almas, que convoca e que, assim, alimenta para que o ajudem a reencontrar-se nesse bailado da alma.  Cumplicidade poética. Ritual. Ele tornou-se poeta, mas ao mesmo tempo um ser perdido no mundo, depois da visita da musa, que logo o abandonou. Restou-lhe o estro, a marca da passagem dela por si. E a poesia é filha da musa e da dor, pela inevitável partida. Depois, chegam sempre os fantasmas que se alimentam dos beijos que ele sopra ao vento que passa para que cheguem até ela. Um destino marcado, este, o do poeta – beijar com versos a musa ausente. Destino que se cumpre no canto e na dança em solidão, mas sem que ele saiba se alguma vez conseguiu intersectá-la, à musa, com os seus beijos escritos. Os fantasmas são vorazes quando se trata de beijos escritos.

CHORAR

O destino do poeta é, sim, chorar com palavras. Mas não espera que lhas enxuguem, as lágrimas. Ele sente prazer nelas. Podem não chegar ao destino, mas, chorando assim, redime-se. Nada mais espera, apesar de sempre tentar o encontro impossível. O pintor embelezou o choro com uma rosa em voo (aqui reproduzida). Deu asas ao lamento. A cor da rosa foi ditada exclusivamente pela beleza a que o poeta aspira no seu voo redentor. Mesmo que não chegue ao destino, e nunca se sabe se chega, ele é feliz.

FRUTO AMARGO

A poesia mata saudades, pois mata. Ela chama a si o ausente e dá voz ao silêncio perturbador. A felicidade possível do poeta. Os olhos dela pode vê-los com os sentidos interiores ou, felizardo, pelo pincel do pintor. Já aconteceu. Epifania. “Delicioso pungir de acerbo espinho” – sim, o prazer de um fruto amargo, como disse uma vez o grande poeta Garret. Sofre, o poeta, no canto feliz da dor estilizada. Tem saudades, mas, ao cantá-las, converte a dor da ausência em feliz ritual celebrativo, para o qual convoca as almas sensíveis, as almas gémeas, as que sentem o poema por dentro. Assim parece ser. E assim tem de ser.

A POÉTICA DO FRACASSO

Bernardo Soares: “Não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram”. Isto lembra-me o comentário de uma Amiga a um poema meu. Sim, saudades do que só aconteceu em sonho ou simplesmente como desejo. Do que foi não é tão doloroso porque, de algum modo, foi, aconteceu. Tem razão o Bernardo Soares. Do desejo que se ficou pelo desejo ou do sonho de que se acordou noutro lugar qualquer, ah, isso, sim, é dor, é doloroso. Porque o desejo desejado ou o sonho sonhado são mais intensos do que o desejo ou o sonho cumpridos. É essa intensidade interior que torna a saudade mais dolorosa. Tudo se passa nos sentidos interiores, que são mais intensos do que as relações sensoriais com a contingência do mundo exterior. Era este o mundo do Bernardo Soares. O mundo, para ele, era uma galeria de arte que ele desenhava com a sua fantasia e com as suas palavras. No real não gostava de tocar sequer com as pontas dos dedos. Por isso, a dor para ele não tinha uma dimensão sensorial. Os rostos eram retratos que ele apreciava na galeria da vida. Se sofria era como observador empenhado das obras expostas nesta galeria. E nem sequer se ajeitava com a poesia. Imaginemos o que seria se se ajeitasse. São dolorosas, essas saudades… porque isso nunca aconteceu a não ser em sonho ou como desejo. É como reencontrar-se no tempo perdido. Uma impossibilidade. O Cioran falava de uma poética do fracasso. A celebração dorida do irrealizado, do falhado. As coisas que nunca foram são mais reais do que as que foram. Porque aquelas nunca morrem, persistem como desejo (sempre) irrealizado. E isso dói. Ah, se dói!

A POÉTICA DA PERDA

A poética da perda: a elevação da perda a ritual poético no processo de redenção pela arte.

MÚSICA CREPUSCULAR

O poema como “música crepuscular”. Belo. Ao cair ou ao nascer do dia levanta-se o poema para o reviver ou para o viver, em forma diferida ou em poética antevisão do que será. Mas a poesia é toda ela crepuscular, porque acontece sempre num intervalo em que as formas mais parecem sombras indefinidas que solicitam a imaginação para as identificar e desenhar à medida da cifra poética. É como um ambiente de neblina a que é preciso acrescentar luminosidade e definição. Ou traz consigo ainda as figuras do sonho sonhado ou já esbatidas as formas expostas à luz do sol. Mas a definição acrescentada nunca provém do exterior. Ela resulta da música interior que anima o poeta e do seu cinzel poético. O crepúsculo é o ambiente favorável da poesia porque está entre o real e a fantasia. Convida a recriar e a desenhar com maior nitidez, embora de forma cifrada, o que se apresenta um pouco sombrio. O poeta encontra aqui a posição privilegiada para poetar, entre a vida e o sonho, entre a realidade e a imaginação, entre o dia e a noite. Neste intervalo nem é uma coisa nem a outra, sendo ao mesmo tempo todas elas. É aqui que a linguagem poética melhor se exprime.

METABOLIZAR AS SAUDADES

Cantá-las, as saudades, ajuda a metabolizá-las e a conservá-las como feliz melancolia. Sim, ficam as saudades, quando o essencial perdura no tempo. Senti-las é uma coisa, cantá-las é outra coisa. É dar um passo em frente. Este passo depende apenas de quem as sente e, de certo modo, significa ritualizá-las, revivendo o passado sob uma forma mais livre. É já um tempo próprio, independente do contexto em que se viveu. Metabolizá-las num organismo que já se transformou, com o tempo. Mesmo na pintura, ainda que ela possa evocar nos traços esse passado que o poeta canta.

POESIA E INTERTEXTUALIDADE

Eu não valorizo a retórica poética, o circuito dominantemente intertextual da poesia, o virtuosismo linguístico, o culto da linguagem obscura como estratégia comunicacional. Para mim, a poesia tem um sentido: é um grito de alma. Grito filtrado pelas exigências estéticas e pela busca do belo que lhe será devolvido como eco da alma. Sem uma componente dionisíaca a poesia é pura retórica, puro “divertissement”. Eu não frequento nem gosto desse mundo. Não me interessa. Depois, o que acontece ou aconteceu no real não importa, do ponto de vista poético. Que o real resiste e persiste, assumido e sofrido, isso sim. A poesia é vida vivida, mas esteticamente transfigurada e metabolizada. Prossecução da vida por outros meios, dotados de poder performativo. Recriar a vida, fazendo coisas através de palavras (“to do things with words”), diria o Austin. E digo também eu.

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FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO  (VI)

SOBRE A POESIA

Por João de Almeida Santos

Jas04TeuOlhar2022

“Teu Olhar”, 2022. JAS. 02-2024

A CANETA QUE SE TORNA PINCEL

PROCURO SEMPRE transpor para dentro do próprio poema a sinestesia concreta que proponho com a convergência total entre pintura e poesia, lembrando-me sempre do grande Cesário Verde: “Pinto quadros por letras”. Caneta-pincel, portanto. Mas também pincel-caneta. Pintar com palavras e escrever com riscos e cores. E o poema torna-se também pauta de uma melodia colorida. Sinfonia de cores e letras.

OS OLHOS

Dos olhos diz-se, e bem, que são o espelho da alma. Choram com ela. Ou sorriem. E iluminam de alegria ou de tristeza quem os fixa. E seduzem. Ou fulminam. Ou olham de través como quem não se quer deter no percurso do olhar. Um mundo. É esta riqueza expressiva dos olhos que surpreende permanentemente o poeta-pintor. Que é volúvel e de paixão fácil. Pecador. Fácil de seduzir. Ele está ali para isso mesmo, para se apaixonar, para ser seduzido por um olhar. O poema do João Roiz de Castelo Branco diz tudo sobre eles. Transcrevo:

“Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
tão fora de esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.”

Tristeza, a destes olhos cantados pelo poeta. São os olhos que partem e, com eles, a alma, de que são a fala, a expressão, a materialização. O poeta tenta sempre convocar os cinco sentidos nos poemas. E, por isso, procura realçar também o poder que o murmúrio tem de acender a chama nesse altar onde executa o seu ritual. Chove-lhe na alta fantasia, mas a chuva não apaga a chama, que se vai consumindo em permanência, sem nunca se esgotar. Não é, pois, como a vela que vai perecendo para iluminar… até ao fim. Mas enquanto houver altar, haverá chama. E poesia.

ROSTOS PARA UMA IDENTIDADE

O exercício poético torna-se menos complexo quando o poeta tem um sorriso perante si. E pode ser o sorriso que ele próprio, enquanto poeta-pintor, pintou. Com palavras e com cores. Olha, olha, volta a olhar… e vai-se deixando seduzir pelo sorriso que vai desenhando. Cada olhar, cada verso. Cada verso, uma cor. Cada pausa, cada estrofe. Cada risco, as palavras. O silêncio, melodia. Com o olhar põe a figura em movimento através de palavras, da melodia e da toada que lhes estão (às palavras) sempre associadas. E a vantagem de saber escrever palavras também com o pincel consiste em materializá-las, em poder olhá-las de frente, em responder-lhes com a linguagem e a luz do olhar. “Esse enigmático alguém”, o poeta-pintor desenha-o com palavras, com melodia e com cor, ao sabor de uma fantasia ancorada no real, dionisíaca. Parece, de cada vez, fixar-se em rostos diferentes. Mas é pura ilusão: são as personagens que o procuram na (sua) imaginação e na sua memória. São diferentes na forma, mas parece haver uma só identidade (a crer nas palavras). Rostos para uma identidade – a que exprime com a alma, a que se lamenta de uma perda, a que procura recuperar pela arte o que perdeu na vida (perda sofrida, levitação desejada), desencontros marcados pelo alinhamento dos astros… Essa identidade acaba por ser reconstruída pelo pintor com fragmentos da memória do poeta. Os rostos não são pura imaginação, mas estão todos eles animados pela mesma e única pulsão do poeta-pintor. Sinestesia, ao serviço da recomposição de uma identidade perdida e em permanente sentimento de perda. A musa é uma criação do poeta remotamente inspirada na memória visual, mas recriada com o turbilhão emocional que o leva a escrever. Às vezes a caneta e o pincel escapam-se-lhe mesmo das mãos e vão por conta própria ao serviço do deus Apolo.  A via apolínea da arte percorrida com o combustível que alimenta essa pulsão criativa. E ele não tem poder para se lhes opor. O poeta-pintor vive numa teia que é maior do que ele. Só tem que sintonizar… e deixar-se ir. É por isso que se diz que a poesia lhe acontece, ao poeta. Não foi o que disse também o Pessoa? E não ouvi também, numa gravação, a Amália dizer que o canto lhe acontecia, exactamente no mesmo sentido em que o poeta o disse? É a fala da alma que acontece, acrescida da beleza da forma. Poesia.

NAVEGAR

Navegar no oceano poético ao sabor do vento, livremente, levando no barco reminiscências, memórias – é este o destino do poeta. E sem tapar os ouvidos nem se atar ao mastro, mas ouvir sem receio as sereias, deixando-se encantar, seduzir. É esse, sim, o destino do poeta. Ainda por cima com a possibilidade de desenhar o rosto que lhe fala ao poema, que o interpela, materializando as palavras com traços e cores. Epifania. Antes de se lançar ao oceano (sim, oceano, não mar, aqui a ocidente) prepara-se em terra: prepara bem o barco (seria perigoso se metesse água) para a viagem em alto mar, o motor de propulsão (sob forma de asas), escolhe os mantimentos e afina o sextante (é este o instrumento que usa, porque se guia pelos astros) para se orientar melhor. Depois parte, quer haja ondas alterosas ou mar calmo. Simplesmente, parte. Durante a noite fixa o céu, escolhe uma estrela e fixa a atenção nela até quase o encandear. Só aí a viagem começa a ganhar forma e a fantasia se desprende. Sonho. Cruza-se com sereias, mas só uma o pode seduzir. E é em estado de sedução que continua a viagem… até ao regresso. Para logo a retomar.

RECRIAR É POSSUIR

Recriar em poesia e em pintura é a missão do poeta-pintor.  O impulso original responde a uma tensão interior, procurando, depois, resolvê-la pela arte. Ou melhor, projectá-la para o território da arte, lá onde a sensibilidade mais intensa e delicadamente se exprime. Pode, assim, levá-la – a musa, objecto do seu compromisso afectivo – consigo, como expressão do seu desejo mais profundo. “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”, dizia o Michelangelo da Yourcenar ao seu amante, que ia partir, sem regresso possível. Possuo-te quando te perco ou porque te perco. Pela arte, a única posse possível.  E, no futuro, verei (em arte) em ti o que mais ninguém pôde ou poderá ver. Então, todos, através de mim, poderão fruir o melhor e o mais belo que fica de ti, porque eu te eternizei. O artista, claro, está nele mais do que os outros porque a imagem (plástica e verbal) revela o que outros nunca poderiam ver. E é por isso que ele se torna mais belo do que realmente é no espelho onde os outros o verão reflectido. Transfiguração estética, poder-se-ia dizer, impulsionada por essa tensão interior do artista que também era amante. Arte e amor. Foi a Yourcenar que disse que só pela arte se pode possuir, porque a verdadeira posse é a recriação do outro: “il s’agit moins de s’emparer d’un être que de le recréer”. O poeta quando procura atingir o sublime está a colocar-se nesse território. Michelangelo reteve de Gherardo o que só o artista e amante poderia encontrar nele: “l’autre, que j’ai dégagé de toi, et qui te survivra”. É isto. Ela, a Yourcenar, di-lo sem dissimulação. É a conjunção daquilo a que o Nietzsche chamava “espírito dionisíaco” com o “espírito apolíneo”. Gherardo, o seu amante, chegou até nós através de Michelangelo (e da Yourcenar).

É esse o poder da arte, da poesia e da pintura. Recriar e reinventar. Não só na imaginação ou no sonho, mas dando forma ao objecto de atenção estética com as categorias da arte e partilhando-a, como complemento que concretiza a materialização de todo o processo. Em três fases dá-se vida ao desejo do artista: sente, estiliza e partilha. E isso também contribui para minimizar a dor da ausência, da perda e do silêncio. E para elevar o sentimento para além da sua efectividade empírica. Eu creio que a verdadeira arte é sempre resposta a uma inquietação profunda, a um qualquer sentimento de perda. O Pessoa dizia que não aceitava estar encerrado na prisão do seu corpo e que, por isso, escapava até outras personagens e paragens, evadindo-se, com estrondo. Talvez esta lógica também se aplique aqui: evasão da prisão desse corpo e dessa alma sujeitos a uma compressão que provoca dor, melancolia, impotência ou mesmo depressão. Ele não sabe se há solidão e dor do outro lado, o da musa, ma sabe que, se referida a si, há. Solidão criativa e partilhada. E essa é a narrativa que lhe interessa (do ponto de vista poético, claro). É essa solidão que permite o auspicioso encontro (com a musa) em arte num território superior.

PALAVRAS

Quando as palavras têm peso, quando elas procuram tocar o real, chegam a deslaçar-se, se for preciso, para que, ao menos, um fio chegue lá. Na poesia acontece esse deslaçamento.

TIMIDEZ
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“Timidez”, 2023. JAS. 02-2024

A timidez é “amiga” da melancolia. A acção impetuosa estilhaça sem piedade a sensibilidade e o delicado mundo que lhe está associado. Pelo contrário, a timidez gera recolhimento interior para esse universo da sensibilidade. O poeta sabe da melancolia da protagonista/amada e julga conhecer a razão. E por isso quer partilhá-la no território íntimo da sensibilidade poética. A luz que a iluminava interiormente mudou de direcção (para poente, onde o sol se põe) e provocou alguma intermitência na sua sensibilidade. Não se sabe se esta luz era a do poeta, mas pode suspeitar-se que sim, pois no fim de um poema ele confessa que tem desejo de voltar a voar com ela, sob a luz quente e cintilante do sol de primavera. Não sei se será esta a interpretação, mas, se fosse, ela explicaria a melancolia e a timidez que ela parece exibir. Mas, sabendo nós que o poeta é um fingidor, é sempre de desconfiar do que ele confessa num poema. Mas também há que ter presente o que diz Ovídio na “Ars Amatoria” sobre o jogo do amor.

ARS AMATORIA

A seguir à “Ars Amatoria” Ovídio publicou “Metamorfoses”. E só uns anos mais tarde é que é exilado por ordem de Augusto (a 8 d. C., em Constança). A edição bilingue da Rizzoli tem uma longa e interessante introdução de Scevola Mariotti sobre Ovídio. Aqui se diz (a propósito de “Amores”, de 19 a. C.): “Ovídio debruça-se com prazer sobre as contradições fundamentais da vida amorosa, em particular sobre a que resulta da relação entre o desejo de libertação do amor e a fatalidade da recaída”. Quanto a mim. é desta inevitabilidade, ou melhor, desta dialéctica que resulta a pulsão poética: desejo de libertação e persistente recaída.

Transcrevo, noutro sentido, um passo interessante de “Ars Amatoria”: “Spesso chi finse amore cadde in amore: pensava fosse un gioco essere amante, poi lo divenne. E dunque date ascolto a chi v’invoca, o donne, anche per gioco!”. (I, 920-923; Milano, Rizzoli, 1989, p. 151). Será o caso também do poeta fingidor, que finge amar porque ama realmente? Que finge que é só jogo o que deveras sente? Ou que, de tanto fingir, acaba por ficar prisioneiro do próprio jogo e perde-se em amor, tornando-se amante? Talvez seja isto. É esse o território onde o poeta acaba por se perder. Jogo perigoso, com esse sentimento tão poderoso que é o amor. Mas é nesse território que se move o poeta, mesmo quando parece não falar dele.

REFÉM OU LIVRE?

Sobre uma aparente contradição: o poeta é refém, mas em permanente movimento de libertação… que nunca termina. A cicatriz está lá, é refém dela, mas a poesia eleva-o e vai-o libertando, sem que, todavia, o processo algum dia possa concluir-se. Porque há sempre “a fatalidade da recaída”. Não é possível eliminar a cicatriz, que às vezes mais parece ferida em carne viva. Corpo e alma em ferida. Refém do corpo, liberta a alma. A cicatriz é o sinal da ferida, que permanece. Por isso, a cada olhar (interior) sobre a ferida deve corresponder um poema. Eterno retorno. Pecado original. Diria que o poeta está condenado a ser livre. A libertar-se da ferida. Condenado-refém que se vai libertando pela poesia sem nunca conseguir finalizar o processo. É o caminho de Sísifo até ao Monte Parnaso. O corpo de Gramsci esteve cerca de 20 anos na cadeia (até à morte), mas a sua alma não. Cada fragmento dos cadernos do cárcere era um grito de libertação. Da prisão e do tempo. Também o poeta é refém de uma ferida-dor corporal (ainda que cicatrizada), mas a sua alma pode entregar-se livremente a um processo de permanente libertação. A liberdade reside no processo. É a condição de refém que o leva a essa libertação superior. A prisão é a alma gémea da liberdade. Ou o seu lado escuro. Procura libertar-se porque se sente prisioneiro. Um impulso imparável. Mas, claro, há ali uma permanente instabilidade existencial e uma permanente inquietação. Um permanente desassossego. É sobre ele, o desassossego, que constrói e se constrói.

INQUIETAÇÃO PERSISTENTE

Quando a inquietação é profunda e persistente o destino é ser poeta. Dizer tudo num poema, não.  Absolutamente. O poeta nunca diz tudo, mesmo que pareça que diz. Vai dizendo, isso sim, mas de forma cifrada, só compreensível pelos “iniciados” ao mistério da vida. Mas o mistério subsiste e exige um infinito ritual.

A POESIA É MÚSICA

Sim, “a vida flui como tem de ser”, dizia alguém. Se for com música tanto melhor. E a poesia é música para as almas sensíveis. E ajuda a vida a fluir melhor. E flui entre uma dor que se pode ter tornado crónica e a busca permanente da beleza redentora, entre o peso gravitacional da existência e a leveza do desejo em busca da harmonia de formas que o exprimam e o realizem.

O SILÊNCIO

O silêncio, diz o filósofo, é a mais profunda das linguagens, quando ancorado numa pulsão profunda, numa demorada e focada contemplação, numa escuta atenta ou na intenção de dar a conhecer a outrem, por uma insistente e intencional redundância, o seu peso e o seu significado (o do silêncio). Muito se pode dizer pelo silêncio. A contemplação é silenciosa e permite a mais perfeita das sintonias. Mas só a poesia pode reconduzir o silêncio à sua forma original… como comunicação. Dando-lhe voz, transforma o imperceptível ruído de fundo em melodia. É a sua pauta. E pacifica e amacia a alma atormentada do poeta, dando forma à voz do silêncio, como se este tivesse um sujeito-autor e fosse a sua fala. Terá? Será? Não sei, mas é provável que sim. A poesia reinventa o discurso do silêncio e dá-lhe vida. O silêncio, quando perturba, tem sempre um autor, um sujeito por detrás. A este silêncio só o poeta está em condições de responder com eficácia devido não só ao poder criativo, mas também ao poder performativo da poesia. A resposta, a reinvenção ou a recriação é como a moldura cifrada do silêncio quando este é assim devolvido ao seu autor. Devolvido, mas sem um preciso endereço. O poeta responde interpondo-se entre aquele que sofre o silêncio e o seu autor, criando uma ponte invisível erguida sobre um imenso vazio.

PARADOXOS

Os paradoxos permitem-nos dizer com maior intensidade o que pretendemos significar. E são estilisticamente belos. Um silêncio ensurdecedor… Não há melhor forma de traduzir o poder de um silêncio que se torna insistentemente redundante e teimoso quase até à agressão (dos sentidos e da alma). O silêncio intensifica-se quando estamos cercados pelo ruído da multidão, anulando-o, enquanto silêncio físico, e expondo brutalmente a alma ao seu som ensurdecedor. No meio da multidão sentimo-nos mais sós e atormentados pelos nossos fantasmas. Outro silêncio é o da montanha para onde se evade o eremita-poeta para ouvir, em solidão, o som silencioso da majestade das alturas. Este silêncio é mais pacificador. Não agressivo, como o da cidade, que nos faz sentir perdidos e abandonados na selva urbana, à mercê da crueza das memórias mais duras. Lembro-me sempre do Baudelaire de “Les Fleurs du Mal”, do poema “À une Passante”: “La rue assourdissante autor de moi hurlait. (…) Un éclair… puis la nuit!”. Ou do Edgar Allan Poe. Pelo contrário, no ermo, lá no alto, a solidão é sideral. O silêncio, tenha ele a cor que tiver, é reconduzido à dimensão natural da existência, à dialéctica da natureza a que pertencemos e à sua lei. Lá do alto podemos observar o vale da vida com maior elevação (espiritual) e maior distância. Podemos relativizar, mas também podemos redesenhar a vida com a nitidez do olhar das águias reais, olhando lá de cima a vida como nosso alimento espiritual. Essa nitidez é dada pelo olhar interior do poeta ou do pintor. Nesta condição, o silêncio pode ouvir-se como melodia da alma ou até do universo. JAS@02-2024

Jas04TeuOlhar2022Rec

Poesia-Pintura

TEMPO

Poema de João de Almeida Santos. Ilustração: “La Peccatrice”, JAS 2023. Este poema integra um conjunto de sete que estão expostos, ao lado das pinturas que os ilustram, nas paredes das salas do Museu da Guarda que acolhem a minha Exposição individual “Luz no Vale”, de 51 pinturas, que está acessível ao público até 7 de Abril. Esta associação entre pinturas e poemas pretende ilustrar o processo sinestésico que adopto no meu trabalho criativo. Fevereiro de 2024.

LaPeccatrice2023

“La Peccatrice”, 2023. JAS. 02-2024

POEMA – “TEMPO”

QUE FARIA
Se te encontrasse,
Olhos nos olhos,
Numa margem
Deserta
Do nosso passado?

QUE TE DIRIA
Se te visse
Caminhar,
Airosa,
Mas circunspecta,
Ali mesmo
A meu lado,
Com esse rosto
Tão belo,
Tão brilhante,
Acetinado?

NÃO SEI,
Porque não sei
O que o tempo
Fez de nós,
Se petrificou
Nas encostas
Da memória
A tua tão bela
Imagem,
Ficando
Ainda mais sós
Nesta já longa
Viagem.

TALVEZ ENCONTRO
Impossível,
Porque o tempo
Transbordou
E apagou
As margens
Do rio que
Navegámos
Entre escolhos
Perigosos,
Rápidos
Sempre
Imprevistos
E como tu
Revoltosos.

MAS O RIO
Já não tem água
Nem murmúrios
De corpos
Por ela abaixo
A vagar
Até à foz
Quente do mar,
Melodia
Do desejo
A clamar
Por um simples
Lampejo
Pra iluminar
A viagem.

E SE UMA FOZ
Encontrasse
Seria de um rio
De palavras
Em turbilhão
A entrar
Nesse teu mar
Com a força
Da paixão.

MAS O NOSSO
Já é um barco
Fantasma
Sem foz
À vista
E sem mar,
Sem leito
Pra navegar,
Sem água
Nem margens
Para onde
Transbordar.

POR ISSO,
Se te encontrasse
Numa margem
Deserta
Desse tempo
Já perdido
Ou num porto
De abrigo
Do passado
Que persigo
Talvez eu
Estremecesse,
Mas seguiria
Caminho,
Com palavras
E com contigo,
Mesmo que fosse
Sozinho.

LaPeccatrice2023Rec

Artigo

SOBRE A MINHA PINTURA

 A propósito da Exposição de Pintura
 “LUZ NO VALE”, no Museu da Guarda

João de Almeida Santos

Jas07UmaCasaNoJardim2022

“Uma Casa no Jardim”, 2022. JAS. 02-2024

NOTA PRÉVIA

Publico, hoje, um texto (com algumas alterações) sobre a minha pintura que integra o Catálogo da Exposição “Luz no Vale”, aberta ao público até sete de Abril, no Museu da Guarda.

I.

A MINHA PINTURA, digital, está associada à poesia. Nasceu em terreno poético, o seu húmus. Para cada poema, um quadro. Para cada quadro, um poema. Há muitos anos que venho regularmente publicando aos domingos, aqui, poesia associada à pintura, em torno de um tema ou de uma história, que até pode ser a expressão de um breve, mas intenso, instante. É um delicado processo de sinestesia, perseguido com determinação, um diálogo entre duas artes, mas onde cada uma das expressões estéticas conserva a sua própria autonomia de linguagem e de narrativa. A pintura explora, com as suas próprias categorias estéticas, ângulos de visão que resultam de uma intencionalidade temática sempre associada à poesia, funcionando também como uma sua especial extensão ou projecção, onde a semântica conta. Por isso, é possível manter na pintura um registo semântico claramente identificável e que alude sempre a uma originária intencionalidade poética.

II.

Gosto de explorar sobretudo cores quentes, as que melhor exprimem a carga semântica da poesia com que a pintura converge, e de usar fundos negros, como recurso que permite evidenciar, com maior pregnância, as formas e as cores. Até porque o negro que uso tem, no tipo de papel que utilizo, uma textura e um tom muito especiais. Parto sempre de uma mancha original, que capto através de prótese fotográfica, sempre accionada tendo em vista explorar plasticamente um determinado ângulo de visão, seja de um rosto, de um corpo, de uma flor ou de uma paisagem. E, para além do traçado central que dá forma e pregnância ao tema, procuro dar vida às figuras que nela se insinuam, originariamente ainda sob forma larvar, como se estivessem a pedir que lhes desse uma identidade definida. Um processo de gestação estética de formas inscritas originariamente num tecido ainda vagamente definido.

III.

Rostos, corpos, flores, paisagens – em todas as formas ainda informes (para o fim em vista) procuro animação, vida, movimento. Parto à descoberta de figuras que, à primeira vista, são de difícil percepção, porque de pequena dimensão e de contornos indefinidos, mas que vão ganhando forma no processo de desenvolvimento da pintura. Como se se tratasse de uma construção a partir de uma estrutura molecular. E é esta animação interna da pintura que sugere os desenvolvimentos posteriores, sempre subordinados, claro, à unidade estético-expressiva do todo, que sempre sobredetermina esteticamente os elementos que o integram. Mas há uma constante na minha pintura – a presença e a influência do discurso poético. Como se o real de que parto fosse já o que a própria poesia configura, traduz, apresentando-se a pintura como discurso metapoético, mas por ela já marcado originariamente, na génese, na origem. Uma estética da cor e do traço assente na semântica poética. A poesia funciona, assim, como uma espécie de mediação entre o pintor e o real. Um real já devolvido pela poesia e por ela reconfigurado. Uma “second life” de natureza poética como ponto de partida da pintura. Mas também acontece, cada vez mais frequentemente, que, sendo sempre a pulsão originária que me leva a compor de natureza poética, o processo se inicie com a pintura, acontecendo a poesia em momento posterior como resposta à proposta plástica que a antecedeu. O quadro “O Aurífice”, de 2022 (n.º 15 do Catálogo, pág. 29), para o poema “Esculpir-te”, é exemplo claríssimo de escrita que se desenvolve baseada no olhar do poeta sobre a pintura já executada. O mesmo vale para o quadro “Rasto de Luz”, de 2023 (n.º 49 do Catálogo, pág. 63), para o poema “Ocaso”. E, todavia, a intencionalidade originária é sempre de natureza poética, a matriz da criação, um olhar poeticamente já comprometido.

IV.

Todas as pinturas têm, por isso, um poema associado. Assim, é possível detectar na pintura também uma sua função orgânica – a de tornar visível o discurso oculto da poesia, dar-lhe cor, prolongá-lo até ao ponto em que a própria pintura se desprende, transportando consigo, sim, a intencionalidade poética, mas exibindo-a em total autonomia, com a própria plasticidade e a própria hermenêutica. Poderia exemplificar com alguns quadros, nos quais se desenvolve e converte a própria fala poética. Mas essa sinestesia pode ser consultada livremente aqui, no separador “Poesia-Pintura”, onde se encontra publicada a maior parte da minha obra poética, associada à pintura. E, todavia, não é possível dizer que a pintura seja a ilustração plástica da poesia, porque o mesmo poderia ser dito da poesia, dizendo que ela seria a ilustração discursiva da pintura. Mas também se poderia dizer que, sim, é uma coisa e é a outra, ou as duas em simultâneo. O efeito sinestésico resulta da convergência intencional e livre – animada por uma originária ou primordial relação poética com o real – das duas artes em torno de um mesmo tema ou história, tratados com a linguagem própria de cada arte. Também no meu livro de poesia (João de Almeida Santos, Poesia, Lisboa, Buy The Book, 2021, 438 pág.s), tal como nesta Exposição “Luz no Vale”, onde estão expostos sete poemas associados espacialmente a sete pinturas, é possível encontrar exemplos desta sinestesia, estando treze poemas associados a treze pinturas (entre as pág.s 98-99, 106-107, 114-115, 126-127, 194-195, 252-253, 256-257, 262-263, 298-299, 302-303, 306-307, 328-329, 340-341 e, finalmente, para toda a poesia, entre as pág.s 52-53). Livro onde também se encontra desenvolvida a minha concepção de arte num ensaio de estética e de introdução à poesia e à pintura ou, ainda, nas respostas aos meus leitores digitais sobre vinte poemas.

V.

Há um lugar inspirador central: o meu jardim no Vale de Famalicão da Serra e os horizontes que o enquadram. Ali colho grande parte da inspiração, mas interceptando sempre, por um lado, remotos, mas intensivos, fragmentos de memória e, por outro, as figuras que se insinuam na mancha original de que sempre parto. Depois, acontece o livre desenvolvimento da pintura, em obediência aos meus próprios critérios de beleza e de harmonia, mas também às exigências semânticas que respondem ao chamamento poético. Não concebo a arte sem semântica, tal como não concebo a poesia sem música, mas também não compreendo a subordinação da forma e da totalidade estético-expressiva às puras exigências da semântica. É como se se tratasse de camadas que se desprendem de uma mesma matéria orgânica, ganhando autonomia e sentido próprio, embora contaminadas pelo próprio processo criativo e pela sua palingénese. Não me filio em nenhuma corrente estética, por uma única razão: o real é o centro do meu discurso estético, ainda que, na pintura, seja um real já portador de sentido conferido pelo olhar poético do pintor sobre a realidade, sobretudo sobre a sua realidade interior. Conjugando pintura e poesia procuro interceptar e interpelar o observador, o fruidor, com uma clara intencionalidade. É uma interpelação complexa onde poesia e pintura cooperam para intensificar o chamamento e a convocação para a experiência estética. Mas também é possível detectar alguma intertextualidade na pintura. Por exemplo, a presença, em alguns quadros, de citações, de fragmentos klimtianos (“Uma Casa no Jardim”, 2022, n.º 7 do  Catálogo, pág. 21, o quadro que ilustra este artigo). Um autor, Gustav Klimt, que me seduz, desde sempre.

VI.

Para verificar em concreto o que disse, o melhor é, podendo, visitar a Exposição que está aberta ao público no Museu da Guarda até 7 de Abril, onde a pintura e a poesia expostas falam por si, em cinquenta e um quadros e sete poemas (veja aqui a notícia da inauguração da Exposição, e algumas imagens, na passada quinta-feira, dia 8 de Fevereiro).  JAS@02-2024

Jas07UmaCasaNoJardim2022Rec

Poesia-Pintura

 A JANELA

ILUSTRAÇÃO: "A JANELA", 2022 
Original de minha autoria. 
O poema de hoje integra um
conjunto de sete poemas que
estão expostos ao lado das
pinturas que os ilustram, nas
paredes das quatro salas do
Museu da Guarda que acolhem
a minha Exposição individual  
“Luz no Vale”, de 51 pinturas,
e que estará acessível ao público
entre 08.02 e 07.04.2024. Esta
associação entre  sete pinturas
e sete poemas pretende ilustrar
o processo sinestésico que adopto
no meu trabalho criativo.

Desejo-lhe um excelente domingo
e deixo-lhe aqui o convite
para que visite a Exposição.
Janela2024

“A Janela”, 2022. JAS. 02-2024

POEMA - "A JANELA"
NOS VIDROS
Desta janela
Se espelha
Todo o meu ser,
É neles que
Eu te revejo
Quando deixo
De te ver.

DA JANELA
Vejo o mundo
E o mundo
Vê a janela,
Debruçada
No parapeito
Olho o céu
E olho a rua
Para ver
Se passas nela.

NOS VIDROS
Desta janela
Há reflexos
Da vida,
Olho pra eles
Pensativa
Mas não me sinto
Perdida
Se puder
Falar contigo
Quando estás
De partida.

NESTES VIDROS
Da janela
Se espelha
Todo o teu ser
Quando passas
Nesta rua
E me sinto
Estremecer
Da falta que tu
Me fazes
Por ainda
Não te ter.

SE TE AFASTAS
Da janela
E vislumbro
Silhueta
Lá ao fundo,
Longe dela,
Eu sofro
Por te perder...
......
Na rua
E também nela.

VOA PRA LONGE
Essa tua
Silhueta
Que s’esgueira
Na esquina
Como se fosse
Cometa
A passar
Na minha rua,
Mas também eu
Me diluo
E me sinto
Um pouco nua
Na imagem
Transparente
Dos vidros
Desta janela
Como se fosse
Já tua.

FOSTE EMBORA
Do meu mundo
Onde eu
Te queria ter
Ao alcance
De um olhar
Para nunca
Te perder.

MAS NÃO DEIXEI
A janela,
Esperei sempre
Por ti,
Hora a hora,
Dia a dia,
Até que, por fim,
Eu te vi.

VI-TE
Da minha janela,
Desenhei-te
Com alma
E olhar
De devoção,
Pintei-te todo
A vermelho
Da cor da minha
Paixão...
................
Mas mesmo assim
Tu partiste
Sem me dar
A tua mão.

DA JANELA
Sempre te vejo
Mesmo ausente
Da nossa rua,
Nos vidros
Fica imagem,
Perfeita
Como a tua,
Mas é sempre
Transparente
E não lhe posso
Tocar,
Guardo-a, então,
Com ternura
Em meu inocente
Olhar.

E GOSTO
Da Primavera,
Confundir-te
Com aromas
Que me chegam
À janela,
Anunciando
A chegada
Do melhor
Que sinto nela.

A JANELA
Não tem cortinas
Pra te ver
Na nossa rua,
Ver-te chegar
E partir,
Ficando um pouco
Mais nua,
Querer que
Me vejas
Assim
Tão brilhante
Como a Lua.

AH, QUANTAS VEZES
Eu desci
Da janela
Para a rua,
Olhava de baixo
Pra cima,
Mas eu nela
Não me via
E, assim,
Não era tua.

O MEU MUNDO
É a janela,
O da rua
É o teu,
É dela que
Eu te revejo,
Na rua
Já não sou eu.

DA JANELA
Do meu mundo
Olho pra ti
Com calor,
Sem ela
Eu não te sinto,
Fica um muro,
Meu amor.

Janela2024REC

 

Notícia-Exposição

LUZ NO VALE – LUZ NO VALE – LUZ NO VALE

LUZ NO VALE

PINTURA&POESIA

EXPOSIÇÃO INDIVIDUAL
DE JOÃO DE ALMEIDA SANTOS

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NA PASSADA QUINTA-FEIRA, dia 8 de Fevereiro, foi inaugurada, no Museu da Guarda, a minha Exposição de Pintura e Poesia “LUZ NO VALE”, luz no meu Vale. Antes da visita às 51 obras de pintura digital e aos sete Poemas expostos, houve, no auditório da sala de exposições, uma sessão de apresentação do meu livro POESIA (Lisboa, Buy The Book) pelo Dr. António José Dias de Almeida, depois do discurso de abertura da sessão pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal da Guarda, Sérgio Costa. A finalizar a sessão tive ocasião de dizer algumas palavras de agradecimento ao Senhor Presidente da Câmara pela gentileza do seu discurso e ao Dr. António José Dias de Almeida pela bela apresentação do livro de poesia, dando, afinal, sequência à  interessante apresentação que, a 17 de Novembro, fizera, na Biblioteca Eduardo Lourenço, do meu livro A Dor e o Sublime. Ensaios sobre a Arte (S. João do Estoril, ACA Edições, 2023).

Tive oportunidade de dar conta do meu processo criativo, sublinhando, em particular, a sinestesia entre a pintura e a poesia que domina o meu discurso estético. Um processo que está ilustrado na Exposição com sete poemas e sete pinturas (associados espacialmente) em plena convergência de sentido, complementando-se, como discursos estéticos, em torno de um mesmo tema. Também pude falar da minha relação com a arte, da génese e das razões que me motivaram a percorrer, como criador, este delicado e fascinante universo. Muitas das obras em exposição inspiram-se, tal como a própria poesia que lhe está associada, no Vale de Famalicão e na magnífica vista da serra e do maciço central, mas também, em particular, no meu “Jardim Encantado”. É esta a razão do título da Exposição, “Luz no Vale”. Vale revisitado com as categorias da arte, pintura e poesia, e densificado com recurso a significativos fragmentos de memória devidamente enquadrados no discurso estético. Outras inspirações e outros lugares (Roma, por exemplo) também estão vertidos em arte, sim, mas a dominante é a do Vale.


Sala cheia e Amigos que me quiseram honrar com a sua presença, trazendo afecto a um evento duplamente muito importante para mim, porque me projecto como artista numa Exposição com uma significativa dimensão e porque o faço na minha terra. A todos o meu obrigado. Mas o meu obrigado também à Empresa que procede à conversão da versão digital das obras em papel Hahnemuehle, “Ideias com Peso”, e à que executa as respectivas molduras, “Espada&Lourenço, Lda”.  Aqui deixo também o meu reconhecimento aos funcionários do Museu da Guarda que intervieram com competência e simpatia na montagem da Exposição. Ao Pedro de Almeida Santos o meu obrigado pelo trabalho de paginação e design do Catálogo e dos elementos gráficos de apoio à Exposição. E, finalmente, o meu obrigado à Dra. Ana Leonor Pereira da Silva, com quem geri todo o processo de realização da Exposição.

  • Créditos fotográficos: Câmara Municipal da Guarda e Rádio Altitude.
A Exposição estará aberta ao público 
até ao dia 7 de Abril DE 2024

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"LUZ NO VALE" - 08.02 - 07.04 - 2024. 
JAS@02-2024

Artigo

FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO (V)

SOBRE A POESIA

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 02-2024

A POESIA E O SILÊNCIO

NO SILÊNCIO encontramo-nos com nós próprios. E também é o momento de interpretar o silêncio dos outros, se lhe atribuirmos importância e significado. Mas a verdade é que nos tempos que correm anda no ar um imenso ruído, chovem palavras vindas de todo o lado. As palavras à procura de quem as queira interpretar ou apenas de quem as queira ouvir ou ver. “Bavardage”, dizem os franceses. Tagarelice, dizemos nós.  E é aqui que ganha mais sentido o silêncio, a vontade de permanecer em silêncio. Às vezes até me apetece fazer um silêncio ruidoso para que o outro seja obrigado a interpretá-lo. E a valorizá-lo. E entre em diálogo comigo. Com sinais. Apenas sinais. E a poesia é a linguagem que está mais próxima do silêncio. Diz muito com pouco. É como a linguagem de sinais. É um falar sem aparente destinatário (mesmo quando o tem e até é verbalmente explícito) ou uma conversa com nós mesmos. Um desabafo cifrado. Um suspiro. Um murmúrio quase inaudível. Como água que brota da fonte. Um som leve. E pressente-se, o silêncio. Quando diz algo. E às vezes nem se tem a certeza de que seja mesmo silêncio. Ou que seja simplesmente ausência sem significado. Mas a verdade é que, às vezes, o silêncio é doloroso. E muitas vezes é usado como castigo. Ou até como vingança. Destruo todas as pontes por onde possa passar uma qualquer forma de comunicação. Chega a parecer terrorismo. Outras é pura indiferença… não intencional. Simples diferença. Desconhecimento sem significado porque não pode ser referido a alguém. No silêncio, podemos ouvir muitas vozes, em parte já confundidas com a nossa fantasia. Vamos à procura do melhor que encontrámos na vida e colocamo-nos em levitação, com palavras, com traços e cores, com notas musicais, com o corpo em movimento… com poesia. Chamar o tempo até à nossa fantasia e recriá-lo com prazer, ao limite da beleza que tivermos connosco e à qual consigamos dar forma. Sinto necessidade permanente de escrever poemas sobre o silêncio. O que significa que o silêncio me perturba, me vem perturbando, mesmo quando lhe dou forma verbal. O silêncio ressoa, sobretudo quando o ruído lá fora cresce para intensidades insuportáveis.

O SILÊNCIO E O MISTÉRIO

O silêncio é como o mistério. De certo modo, é insondável. E transforma-se com a interpretação, com a assunção subjectiva do seu aparente sentido (aos olhos de quem o ouve e sofre). O poeta procura penetrar nesse mistério com palavras em associação, semântica e sonora. Uma reconstrução do mistério, como se tivesse sido revelado (ao poeta). Uma ida à profundidade do tempo, ao passado ou à ausência. Um diálogo com o vazio que a ausência representa. O que se segue é uma tentativa de o preencher, ao vazio, com algo que possa ser considerado belo. Fazer do vazio pleno. A poesia é indissociável do silêncio e do mistério. Quando tudo é linear, directo e presente o poeta procura outras paragens mais sedutoras e densas. Não há poesia quando se é feliz. Mas pode-se ser feliz com a poesia. Um oxímoro? Não. Nela se acolhe com palavras e nas palavras o tempo que já se foi ou a presença que se tornou ausência. E dá forma ao silêncio que esse tempo traz consigo. Esse tempo é ausência irrecuperável a não ser com palavras que o recriem em forma de chamamento, de empenho, como parte do presente. O poeta como unidade expressiva do tempo (passado, presente, futuro). E assim dá a palavra ao silêncio do (daquele) que está ausente, invocando-o como algo inspirador. Sim, não somente como perda sentida e sofrida, como falta ou como fracasso, mas, sim, como algo inspirador, não como passado, mas (agora) como futuro. Um amor que já se foi, que já dói menos ou até que pode ser parte da alegria poética, revivescência, solução e parte integrante dessa unidade expressiva que se exprime na poesia. É isso. Fazer da dor remota, já menos viva, fonte de inspiração. Sim, fonte que abastece um rio de sentimento e beleza em curso e em direcção ao futuro. Isto não é lamento. Isto é alegria ou mesmo felicidade, de que esse passado ou essa ausência fazem parte. E talvez seja precisamente o silêncio que permite tudo isto, porque abre espaço para que a palavra poética se instale.

O SILÊNCIO E A MUSA

Um dia destes tive uma conversa com o magnífico Walt (o das “Folhas de Erva”) sobre o silêncio da musa, o seu vasto mar que o meu frágil barco solitário está sempre a navegar. E sabem o que me respondeu o Whitman? Que se trata de murmúrios de uma velada voz que o poeta tem de ouvir e interpretar. Mas também falou de vagas imperiosas nesse mar de murmúrios da musa. Pobre poeta que tem de (con)viver entre murmúrios indecifráveis e ondas imperiosas. Vida difícil, a dele. Não admira que esteja sempre a naufragar. Felizmente que adquiriu, por dádiva das deusas Athena e Aphrodite, o poder de levitar. Quando parece estar a afundar-se nas águas escuras e agitadas do alto mar, pode remar com a fantasia e elevar-se, levitar até à linha do horizonte. Palavras leva-as o vento e o barco ganha asas. É este o fabuloso, mas delicado e difícil, mundo do poeta, onde a musa o desafia permanentemente. As musas existem para serem abraçadas e beijadas pelos poetas, com a benção das duas deusas. Assim, é beijo seguro. Mesmo que seja bebido por fantasmas. Foi o Kafka que mo disse. E eu acreditei.

Os poetas têm diálogos sob a forma de monólogos, como quem as interpela, as musas. A verdade é que o poeta (também) faz a musa: dá-lhe vida, dá-lhe voz, interpela-a, (re)constrói-lhe o perfil, pedindo ajuda ao pintor, cobre-lhe o silêncio com palavras. Inunda-a de palavras e melodia. Sendo Erato, o seu perfil é o que o poeta traça: mistério. Porque o amor é isso. Só mistério, nada mais. É no mistério, coberto pelo silêncio, que o poeta navega. Ela não canta, não pinta, não dança – nada. É pura existência, sem definição. É isso que o desafia (ou desafiou) e o encanta. O inquieta. E como tem vida na memória do poeta, ele pode continuar sempre, “à la recherche du temps perdu”. Du visage perdu. De l’amour perdu: le poète à la recherche de ce qu’il ne trouvera jamais.

O POETA E O AMOR

Na poesia “pode o amor nem se reconstruir, porém, reconstrói-se o poeta”. Isto dizia um amigo a propósito de um poema meu (“Os Seios”). Sim. Talvez o amor persista como pulsão que tem de ter a sua vazão… neste caso pela poesia e a favor do poeta. É nesta forma de descompressão, de dar forma ao fluir pulsional que o poeta se reconstrói, se recompõe. O amor físico, esse fica lá perdido no tempo do insucesso. É coisa séria, profunda, que o obriga a falar do único modo possível. Como se o poeta se deitasse no divã do psicanalista e desse curso a associações livres, que depois são interpretadas com recurso à “tecnologia” poética. Esta leitura das associações tem exigências estéticas e assume uma forma que pode ser partilhada, embora seja uma linguagem iniciática, nem descritiva ou denotativa nem analítica. Uma das suas dimensões é a de se constituir como pauta musical que cobre, com a melodia e a rítmica, a própria semântica, que já nem é sequer explícita, linear. Exactamente: iniciática. A linguagem adequada ao mistério. Uma mensagem cifrada (dirigida a um imaginário interlocutor) em invólucro esteticamente desenhado. É neste labor e neste processo que o poeta se reconstrói. Por isso, sim, “pode nem o amor se (re)construir”, mas o poeta reconstrói-se em cada acto poético, como acto de amor, sem mais. É o processo, o percurso, que interessa, até porque nele não está inscrito o desejo de obter um concreto resultado (por exemplo, o da reaproximação do interlocutor original ou originário). Até porque sabe que isso é impossível. A poesia trabalha sobre e com o impossível.

O poeta, gosta de contar e de conter histórias na poesia. Nem que seja de fugidios, mas impressivos, instantes. No poema a que me aqui já me referi não é disso que se trata. Trata-se de uma longa história que alude à presença da figura maternal numa relação amorosa. O poema “Os Seios” simboliza isso. É um tema muito sensível, delicado e complexo, mas por isso mesmo só a linguagem poética, polissémica e metafórica, o pode tratar como deve ser tratado. Como se a própria poesia interviesse nele como sua expressão, como sua fala, sim, mas também como sua superior resolução. Ao mesmo tempo libertação e redenção, sem que a pulsão original se extinga, mantendo-se sob uma forma diferente, como pulsão amorosa, e, depois, como exaltação espiritual, na poesia. A presença no adulto da relação maternal figurada pelos e nos seios. É uma história de amor contada por um poema. Poeticamente reconfigurada. Onde a beleza é não só formal, mas também semântica. Onde a sensualidade se inscreve no mais profundo da natureza humana. É o sentido da presença dos seios no poema. Não é a explanação de uma tese ou a descrição de um estado de facto – é simplesmente um poema, um “grito” de alma poético, uma libertação, uma dupla libertação. Ou até um recomeço, uma entrada na maioridade afectiva guiada por um belo e nobre sentimento e pela exaltação da sensualidade. Na verdade, trata-se do exercício poético de fundir, através dos seios, o amor-paixão com a raiz profunda da própria maternidade matricial. É um tema delicado, mas desafiante para um tratamento poético que o envolva pela moldura da beleza. Sim, Mulher-Mãe, neste caso. O que sobrevive ao corte do cordão umbilical e subtilmente se transforma em fonte de sedução, de prazer e de amor.

A CLANDESTINIDADE DO POETA

De certo modo, todos os poemas são clandestinos. Têm uma identidade clandestina. O sujeito poético é sempre e somente poético. Fala de forma cifrada. Os poemas são obra da fantasia e, por isso, produzem ilusão poeticamente induzida. Mas não são pura ficção porque se inscrevem no “pathos” e são animados por aquilo a que o Nietzsche, na Origem da Tragédia, chamou “espírito dionisíaco”. Nascem de uma combustão, de um fogo que arde sem se ver.

ENCONTRO E DESENCONTRO

Perder-se de paixão em poesia sem o risco de desencontros – eis a questão. Mas se a poesia nasce sob o signo do desencontro, ela converte-o em encontro num patamar superior imune ao arbítrio da vontade, do interesse ou da circunstância porque as suas únicas leis são a da beleza e a da sedução. Perder-se, sim. Se não nos perdermos nunca conseguiremos reencontrar-nos. Perder-se é como sair de si para, depois, regressar mais rico, mais cheio de mundo e de maior consciência de si. O poeta só é poeta porque se perdeu. Reencontrou-se na poesia. Voilà.

DESPERDÍCIO

“Desperdício”. Fiquei a pensar nesta palavra quando uma leitora assídua da minha poesia a referiu à musa que parece inspirar o poeta. Parecia estar a dizer: “Ela não te merece, poeta!”. E não encontro resposta plausível. Mas, pensando bem, talvez encontre: desperdício por o amor só acontecer como poesia. Alguns chamam-lhe amor platónico. Eu não. Mas pergunto: se não houvesse “desperdício” teríamos poeta e poesia? Talvez não. Lembro-me sempre do passarinho do Vinícius: não há poeta, sou feliz. É a dor, não a felicidade, que faz dele “um poeta de alto nível”. É sempre necessária uma dissociação entre o poeta e o sujeito poético, para poder manter a própria condição de fingido “fingidor”. O poeta é um foragido das leis da vida. Não um desertor, porque leva a vida consigo, para dentro si, submetendo-a livremente aos seus códigos de beleza. Mas o “desperdício” parece estar escrito nas estrelas. Não depende da vontade. Sim, o poeta finge a dor (e o amor) que realmente sente, mas nunca encontra fisicamente o ser amado. Não será a poesia filha do “desperdício”? A musa diz-lhe: “Vem até mim”. Mas o poeta só pode ir no veículo poético. E, por isso, nunca lá chegará. É como Sísifo, a viagem não tem fim. A musa é como uma utopia que o atrai… chegado a ela seria o êxtase e o poeta morria. Mas nem Athena nem Aphrodite o permitem. É, sim, como a condenação de Sísifo, só que aqui a pedra é a poesia… que ele carrega nos ombros da sua atormentada alma.

O POETA E O ARBUSTO

O poeta fala para o arbusto do seu jardim encantado como se fosse uma mulher. Estranho? Às vezes os arbustos têm nomes de mulher. Vê o arbusto e sonha com uma mulher? Não sei, mas parece que sim. O jardim é ambiente idílico. E esse é o ambiente em que a sonha. É natural. Mas a mulher cultivará sempre um certo mistério, um seu lado obscuro, uma certa e espontânea frieza, acrescida de um persistente silêncio. À primeira vista, uma coisa parece não bater com a outra. Mas o ambiente em que cresce a fantasia do poeta acaba por se impor. Afinal, como sempre acontece na poesia. Mistério e desencontro, mas, depois, a harmonia e a beleza poética a imporem-se sobre a inquietação e o abandono, sobre o desconforto existencial, sobre a nostalgia e a melancolia, sobre um destino que parece estar traçado. Sobre tudo isto se eleva a poesia como veículo que transporta o poeta para regiões superiores, onde até a turbulência e as tempestades são suaves e belas. O poema tem referente? Sim, o arbusto (um loureiro). E o arbusto tem referente humano? Não sei, mas talvez tenha. E, se tiver, isso acontece nesse jardim encantado do poeta, para onde o transportou. Querem coisa mais bela do que esta, pôr beleza onde só parece haver mistério, desencontro ou até mesmo fracasso e tristeza? Envolver tudo isso em moldura idílica de formas, cores e aromas, temperados com palavras e melodia… ver beleza onde até pode haver dor é redenção. Levitação. Sim, é bom levitar e a poesia permite-nos levitar sobre a dor, levando connosco os que a partilham. Sim, tudo parece conduzir a um movimento de libertação pela palavra em pauta musical. O triunfo da leveza sobre a força gravitacional da privação sofrida, “como reação ao peso do viver”, como diria o Italo Calvino: quando a tristeza se transforma em melancolia, quando se dissolvem os últimos resíduos da opacidade corpórea (Calvino, Lezioni Americane, Milano, Garzanti, 1988, pág. 21).

A MUSA E O BEIJO

As musas, afinal, andam por toda a parte. Havendo arte também no futebol é natural que por lá também andem musas. Evadem-se da poesia e vão divertir-se a jogar futebol. Não se limitam a inspirar. Entram em jogo, em competição. O Rubiales que o diga, pois parece ter-se inspirado excessivamente numa musa, a Hermosa Erato, sem se aperceber que também ela estava em campo. Concordo: há que obedecer às musas, muito senhoras do seu nariz. Ah, sim. Não podes agarrá-las à bruta e dar-lhes beijos, mesmo que seja dia de festa. O seu poder é imenso e não há manuais de procedimento para interagir com elas. Nunca sabes como vai acabar. É como estar em alto mar com ondas altas e com um barco frágil. Deixar-se ir com elas, sem lhes resistir, para não ser esmagado por elas. Não nadar contra a corrente. O infeliz Rubiales, que não é poeta (julgo eu), foi atirado pelas ondas contra as rochas. Não se salvou. Devia ter deixado a vida correr sem se ter atirado a ela, à musa. Estatelou-se, depois de, como o Benfica, se ter inspirado nela, na musa. É coisa muito séria, esta.  Que o digam os poetas. Um poeta famoso, de seu nome Shakespeare, até estava disposto a ir para o inferno por um beijo: “aqui estou”, diria aos diabos, “mas antes eu vi o paraíso”. Cumpriu-se a profecia: por um beijo o Rubiales foi parar ao inferno. E nem teve tempo de ver o paraíso (creio). Mas há mais: onde há beijos também há fantasmas e não se sabe bem o que fazer quando o alimento escasseia e não há beijos para beber. Os fantasmas precisam dele, do alimento, do beijo. E os poetas já sabem que têm de enviar beijos às musas, não assim, como fez o Rubiales, mas através do veículo poético, sempre sujeito ao assalto dos fantasmas (e eles, os poetas, sabem disso). O ambiente em que tudo isto se processa é sempre de mistério e navegar nele é sempre difícil e delicado porque ao mínimo erro pode mesmo haver uma revolta dos fantasmas. E das musas, das nove, de todas. Eu acho que a única maneira de abordar as musas é mesmo através do veículo poético, que transporta os beijos dos poetas. Elas gostam de viajar nele. Às vezes até pedem boleia. Mas estão sempre protegidas pelos fantasmas porque são elas as destinatárias dos beijos, do seu próprio alimento. E pelas irmãs, as outras musas. Os beijos devem ser-lhes dados sempre de forma indirecta (não digo de cernelha, porque é feio e pouco poético) e nunca como fez o pobre do Rubiales. Quando o futebol feminino entra em campo, também as musas passam a estar lá e não só como inspiração. São protagonistas. O Rubiales não tomou isto em consideração. Pelo contrário, os poetas não se enganam, apesar de também correrem riscos. Porquê? Porque dão os beijos de forma intangível (beijam à distância) e é por isso que os fantasmas os podem beber ao longo do percurso, quando são levados ao destino, pelo vento. Não admira, pois, que os beijos não cheguem ao destino. É o preço a pagar, sim, mas o beijo fica dado. Fica mesmo. O beijo do poeta é coisa muito mais sofisticada do que o do Rubiales. Assim, o beijo, dado directamente e de qualquer modo, pode ser como a medusa: petrifica. Foi o que lhe aconteceu.

Nota a este fragmento: A questão Rubiales estava-me aqui entalada e, para não implodir, socorri-me da observação do JN sobre o jogo Gil Vicente-Benfica para me libertar deste peso. A coisa é complexa e delicada, mas, pelo menos, pude olhá-la a partir da mitologia e da poesia. Se o outro falou de “rebelião das massas”, agora estamos perante a “rebelião das musas”, ainda por cima nesse terreno mundial e explosivo do futebol. L’important c’est… le baiser. Quando um gesto de amor ou de júbilo (digo eu, somente por hipótese) se transforma em guerra, em “luta de classes”, em violência simbólica, em inominável agressão, em questão mundial, provocando mesmo a intervenção de governos – então há que reflectir sobre o sentido de tudo isto. “Eu já não sei”, para glosar a Roberta Sá e o Zambujo, se um dia destes os beijos poéticos não poderão ser também eles alvo de censura social ou até mesmo governativa, ainda que beijar a barriga de uma grávida seja considerado, e bem, um gesto de ternura presidencial. Já sei, talvez possa ser o Ortega y Gasset de Famalicão da Serra e publicar o livro “A Rebelião das Musas”, com prefácio da Isabel Moreira e da Fernanda Câncio (se elas aceitarem a prosa de um empedernido cisgénero, claro). Pronto, já me sinto melhor.

NAUFRÁGIO

Os poetas sofrem um pouco de desnorte, ziguezagueiam na vida, vagueiam por aí… É que a bússola é a sensibilidade e, por isso, dependem muito dos estímulos sensoriais, dos aromas, das paisagens, dos olhares e dos corpos… Penso que há sempre um estado de alma primordial que lhes faz disparar a sensibilidade. A este mar de sensações chega a poesia e o poeta transfere-as para lá livremente e voa, voa nesse mar de palavras, com as asas que as deusas da beleza e do amor lhe deram. Os jardins perfumados são a pista de onde os poetas descolam nos seus voos para a linha do horizonte. Mas é verdade, os poetas são filhos dos poços de ar, das turbulências, da tempestade, do deserto, das águas revoltas do mar. Por isso, venham ventos e marés que eles saberão sempre navegar neles. Mas nos mares habitados pelas musas o naufrágio é sempre iminente… só que ele nunca se conclui porque a fantasia o põe em levitação poética e o conduz sempre até à linha do horizonte… E o que é curioso é que ele leva sempre a musa consigo. Tudo recomeça, como se revivesse a pena de Sísifo. Eterno retorno, que é também a constante procura de uma linguagem de sedução pela beleza… Só seduzindo ele poderá redimir-se, salvar-se. Nem as musas aceitam outra linguagem que não seja a da sedução. Redenção pela arte, a que eleva e, assim, resgata.

 GOETHE

Há um poema meu (“Reminiscências”) que tem várias inspirações na base. Precisamente Goethe (“Selige Sehnsucht”), Thomas Mann/Goethe (“Lotte em Weimar”) e, claro, Manuel Bandeira (“Desencanto”). Mas a base essencial é Goethe. Tudo partiu dali. Depois, Florença, onde vivi durante alguns meses, logo quando fui para Itália, em casa da minha Amiga Laura. Sim, a poesia propicia o renascer de memórias intensas e antigas. Musas, afinal, são nove. Para mim, são sobretudo quatro. E é um eterno retorno, um regresso permanente. Só não é como Sísifo porque a poesia é mais leveza do que peso. Mas talvez seja castigo da vida por algum fracasso amoroso. Há castigos destes. Ficas castigado a cantá-lo (o amor) ou a cantá-la (a musa) enquanto durares. Aos domingos, o dia do teu ritual laico. Só que a poesia tem este poder de elevar o efémero e de o preservar no tempo, de trocar o peso pela leveza, de libertar. Sim, tens de subir a montanha sempre, do Vale para a Montanha e da Montanha para o Vale. Só que aqui existem asas (dadas por Athena) que te levam, movidas pelo vento que te sopra na alma e na fantasia. Hermes, o mensageiro.

São múltiplas, sim, as referências que este poema traz consigo. A epifania toscana é uma delas. É lá, na Galleria degli Uffizi, em Florença, que está a Primavera do Sandro Botticelli. A primeira inspiração do desenho que ilustra o poema foi numa das suas figuras. Mas também há reminiscências da minha viagem literária por “Via dei Portoghesi”. Por ali andou Goethe, que viveu na rua que continua esta, a “Via dell’Orso”. Reminiscências – o poeta vai lá e procura preservar o efémero das suas vivências mais intensas. A minha canção preserva o efémero, diz Goethe (creio que no diálogo com Lotte), em “Lotte em Weimar”, do Thomas Mann (1939). Imortalidade? Pelo menos, desejo de preservar o que de mais precioso lhe coube viver. Isto dá mais sentido à poesia. Mas aquele poema “Selige Sehnsucht”, de Goethe, agarra o tema da chama que atrai a borboleta: ansioso por luz, qual borboleta, ardeste; ou a vida: “quero celebrar a vida /que morrer em chamas anseia”. É um tema fascinante, este, a celebração da vida, a luz intensa que atrai e que queima. A borboleta, a fragilidade e a beleza da vida. Muitas vezes, indo lá mais atrás nas nossas vidas, deparamo-nos com algo semelhante. Reminiscências. Depois a Epifania – algo se manifesta através de sinais. Por que razão um poeta se atira inexoravelmente à poesia e por ali fica sem poder exilar-se? Algo mais forte do que ele o obriga a mover-se. Reminiscências que afloram e que exigem nova descodificação? Talvez. A poesia também é exegese do poeta. Sobre si próprio. Que exige comunicação, partilha, para se completar como exegese.

A POESIA ACONTECE

Busca, magia, reinvenção – três palavras certeiras para captar o essencial da minha poesia. E, então, “o poema acontece”. Creio que era o Pessoa que dizia que a poesia lhe acontecia, retirando-lhe aquela dimensão, sempre ameaçadora, do construtivismo da vontade. A poesia como algo natural, algo que decorre da vida de um poeta. Acontece-lhe, a poesia, enquanto caminha. E logo se põe asas e voa até ao fio do horizonte. Ele procura sempre seduzir, através da beleza. Ele, que foi seduzido. É assim que procura a perfeição, porque sabe que só seduz se for perfeito. Aconteceu-lhe ter sido seduzido, mas, sem jeito para as coisas práticas da vida, falhou, fracassou. Foi então que decidiu repor poeticamente a ternura das palavras e dos actos falhados, mesmo (ou sobretudo) quando já interditos e quando foram submersos pelas altas vagas das marés da vida. Um modo diferente de responder aos desafios e aos desencontros da vida. Sim, é verdade. O poeta tem sempre uma razão profunda para cantar. E quase sempre se trata de perda ou de impossibilidade. Mas o canto não é fuga, porque ele transporta a dor consigo, dá-lhe forma, di-la e, com isso, consegue metabolizá-la, transformando o peso em leveza. A poesia é um belíssimo divã. “Malheur intérieur” – o poeta tem sempre de conquistar a sua própria (in)felicidade. De a construir com os sentidos interiores. Em permanência, como se tivesse sido condenado a transportar todos os dias as palavras até ao cimo do Monte. Feliz melancolia é o que ele sente no fim de cada percurso. Parnaso e Sísifo que transporta consigo palavras sob as asas da fantasia até lá ao alto do Monte. O poeta é um artífice da leveza.

KARMA

Não duvido de que o amor faz parte do código genético da poesia. Um amigo dizia-me que, neste poema, tudo disse sem filtros. Talvez, digo eu, que sou outro que não o poeta. Melhor, que não sou o sujeito poético. Mas é verdade que o poeta finge, mesmo quando diz o que sente. É a força e a fraqueza da poesia. A pergunta é a de saber se o poeta se distancia da experiência. Sim, porque se eleva para um plano que pretende ser universal. Mas levando consigo esse peso gravitacional. Não foge, enfrenta-a com as armas de que dispõe. Por isso o poeta é um combatente. Sofisticado, mas combatente.

O que, ou quem, estará na origem desta pena sisifiana? Só perguntando ao poeta. Mas já se sabe que ele fingirá. Karmamarga, referi eu na resposta a uma Amiga. Sim, mas a origem? O Thomas S. Eliot dizia que a visita da musa fazia nascer o poeta. Musa-parteira? Ou musa que provoca estremecimento de alma e condena o estremecido a uma permanente subida ao Monte? Mas eu também acho que os deuses ou as fadas não são estranhos a este acontecimento. O estranho é esta associação de uma pena à criação, sobretudo â criação poética. Eu acho que o Eliot tem razão e, se for assim, fica tudo explicado. E é verdade, pois acho que isto acontece com todos os poetas. E até com a predisposição para gostar de poesia.

O título deste poema a que o meu Amigo se referia era, primeiro, “Desabafo”. Depois, mudei para “Lamento”. Sim, vai longa a caminhada e o silêncio do lado de lá do poema pesa. Depois recomeça o lamento e a subida ao Monte. Não há disfarce possível a não ser o da própria linguagem poética e o do seu código. Mas eu creio que só assim a poesia exprime o seu próprio poder e desempenha eficazmente a sua função. Se é que ela tem uma específica função que transcenda a sua própria performatividade. Algo que lhe seja exterior. Acho que não, embora às vezes pareça que sim. O poeta nada espera a não ser uma bela fruição na partilha estética. E sedução. Isso sim.

Talvez a palavra Karma seja apropriada. Ritual para a redenção. Lixado, sim: ao fim de sete dias chega ao Monte, mas logo começa a descida, para, de novo, ao fim de sete dias, voltar ao topo do Monte. Karma. Há anos (curiosamente, sete) que este percurso acontece todas as semanas. Rigorosamente. Por isso falo de Sísifo. Como se fosse uma condenação. Mas não uma maldição. A subida é uma depuração de sentimentos (através de palavras). Lá no alto há sempre neve (figurei a neve e o palácio das artes, na pintura que ilustrava o poema). Beleza e frio. Sim, a beleza é sempre fria porque só exprime o essencial. Eu sinto-a assim. Mas não há razão para “inveja” porque o acto de fruição, com a alma, equivale ao acto da criação. Tem outra intensidade e não tem o sofrimento do “parto”. Mas é também acesso ao essencial. Participação no ritual. Partilha. Há também um estado que se chama karmamarga (“La via di salvezza consistente nell’osservanza delle norme rituali e nell’esecuzione dei sacrifici prescritti” – in Enciclopedia Treccani). Gosto mesmo desta palavra.

Jas_AutoR2022Rec

Poesia-Pintura

“CHÃO”

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Luz na Montanha”, 2021.
Original de minha autoria. 

O Poema de hoje integra um conjunto 
de sete que estarão expostos, ao 
lado das pinturas que os ilustram, 
nas paredes das quatro salas do 
Museu da Guarda que acolherão a 
minha Exposição individual “Luz no 
Vale”, com 51 pinturas, que estará 
acessível ao público entre 08.02, 
(dia da inauguração às 18:00), e 
07.04.2024. Esta associação entre 
sete pinturas e sete poemas pretende 
ilustrar o processo sinestésico 
que adopto no meu trabalho criativo. 

Desejo-lhe um excelente domingo 
e deixo-lhe aqui o convite para 
que se associe a nós no dia da 
inauguração da Exposição. 02.2024
Luzna Montanha

“Luz na Montanha”. JAS, 2021. 02-2024

POEMA – “CHÃO”

DESCESTE,
Não sei bem
De onde.
Cravaste raízes
Profundas
Neste meu
Sagrado chão.

AO LONGE,
Lá na montanha,
Surge, do nada,
Incandescente,
Um clarão.
São os meus olhos
Que te iluminam...
...............
Ou talvez não.

NUNCA VI
Chover do céu
Tanta luz...
..........
E no chão
Que sempre piso
Tão delicada raiz
Que cresce
Dentro de mim
E, suave,
Me conduz
Como quando
Me sorris.

ESTA LUZ
Que lá do alto
Ilumina
É magia,
É milagre,
É fogo
Que me fascina
Neste meu
Entardecer...
............
Faz-me voar
Para ti
Apenas para
Te ver.

MAS NAS RAÍZES
Que crescem
Por dentro
E por fora
Como rendilhado
Neste meu chão
Seminal
Fica presa
A minha alma
Como se fosse
Prisão...
..................
Por pecado capital.

ELEVA-SE NELAS
A geometria
Perfeita de um
Monólito
Sideral
Para te invocar
Em ritual
De montanha
Onde possas
Renascer
Como a divindade
Da chama.

A MAGIA
Deste chão,
Despertada pela luz
Que vem lá
De cima,
Do alto,
Devolve-me
A liberdade,
Acende-me a fantasia,
Põe-me a alma
Em sobressalto
E o corpo
Em euforia...

ENTÃO, CANTO
Então, danço
Neste chão
Que é só meu,
Dou asas
À fantasia
E a fronteira é o céu.

Luzna MontanhaREC