Poesia-Pintura

LIBERDADE

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Liberdade”
Original de minha autoria
 Abril de 2024

Liberdade28042024_1jpg

“Liberdade”. JAS. 04-2024

POEMA – “LIBERDADE”

PERGUNTEI-TE,
Num dia
De sol:
“Voas comigo
Prà linha
Do horizonte?".
Deste-me a mão
E sorriste:
“Voo, sim,
Pois preciso
De ar puro
Lá bem no alto
Do Monte”.

E PARTIMOS.
Tu levaste
O arco-íris
Que tinhas
Dentro de ti
E eu as letras
Que tinha
Comigo,
Guardadas
Na minha alma,
O seu porto
De abrigo.

ENREDÁMOS
Todas as cores
Com linhas
De palavras
Deslaçadas,
Construímos
Asas em forma
De verso
E voámos
No céu
De um poema
Pintado todo
De azul...

ANDEI CONTIGO
Por lá
Anos a fio,
Vagueando
Ao sabor da
Inspiração,
Levados
Pela brisa
Que sopra fria
No Monte,
Mas afaga
O coração.

E COMO GOSTEI
De voar contigo,
Livres como
Pássaros
Sobre o vale
Onde te encontrei
Um dia
Construindo
Castelos
Na areia
Com a força
Da magia.

É ASSIM QUE EU
Te vejo,
Tecendo a vida
Com o sopro
Da tua alma
E as cores
Do arco-íris
Pintadas
Por tua mão
Como pauta
Colorida
Da nossa bela
Canção.

FOI ASSIM
Que nos dissemos
Nesse tempo,
Livres de amarras
Que não nos deixam
Voar,
Traçando
Com arte
Um destino
Marcado
Pela vontade
De fazer
Da nossa vida
Caminho
Da liberdade.
250424

“Liberdade”. JAS 2024. Detalhe da Pintura “Liberdade”

Poesia-Pintura

LIBERDADE

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Pássaro de Fogo”
Original de minha autoria
25 de Abril de 2024

Uccello12

“Pássaro de Fogo”. JAS. 04-2024

POEMA – “LIBERDADE”

PERGUNTEI-TE,
Num dia
De sol:
“Voas comigo
Prà linha
Do horizonte?".
Deste-me a mão
E sorriste:
“Voo, sim,
Pois preciso
De ar puro
Lá bem no alto
Do Monte”.

E PARTIMOS.
Tu levaste
O arco-íris
Que tinhas
Dentro de ti
E eu as letras
Que tinha
Comigo,
Guardadas
Na minha alma,
O seu porto
De abrigo.

ENREDÁMOS
Todas as cores
Com linhas
De palavras
Deslaçadas,
Construímos
Asas em forma
De verso
E voámos
No céu
De um poema
Pintado todo
De azul...

ANDEI CONTIGO
Por lá
Anos a fio,
Vagueando
Ao sabor da
Inspiração,
Levados
Pela brisa
Que sopra fria
No Monte,
Mas afaga
O coração.

E COMO GOSTEI
De voar contigo,
Livres como
Pássaros
Sobre o vale
Onde te encontrei
Um dia
Construindo
Castelos
Na areia
Com a força
Da magia.

É ASSIM QUE EU
Te vejo,
Tecendo a vida
Com o sopro
Da tua alma
E as cores
Do arco-íris
Pintadas
Por tua mão
Como pauta
Colorida
Da nossa bela
Canção.

FOI ASSIM
Que nos dissemos
Nesse tempo,
Livres de amarras
Que não nos deixam
Voar,
Traçando
Com arte
Um destino
Marcado
Pela vontade
De fazer
Da nossa vida
Caminho
Da liberdade.
250424

“Liberdade”. JAS 2024. Detalhe da Pintura “Liberdade”

Artigo

FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO (X)

SOBRE A POESIA

João de Almeida Santos

Fantasia2023_1

“Fantasia”. JAS. 04-2024

O NOME DA MUSA

ALGUÉM, UM DIA, PERGUNTOU AO POETA quem era a sua musa inspiradora. Sim, dizia-lhe a interlocutora, há sempre – tal como em Dante Alighieri havia Beatrice – uma musa, um nome. Também em ti, poeta, há uma musa e um nome? Uma Beatrice? O poeta respondeu que sim, que há sempre a visita de uma musa que desperta a pulsão poética, ficando o escolhido marcado para cumprir o poético destino: a subida permanente ao Monte Parnaso. O amor e o castigo. O castigo de Sísifo. E mais disse. Disse que a sua musa era Erato, a da poesia lírica, um nome que contém mil nomes como véu translúcido que nunca deixa ver com nitidez a silhueta ou o perfil de cada nome. Neste nome cabem outros nomes. Mas a da poesia é uma linguagem em código. Para iniciados. E há até um oráculo lá no alto, o lugar que ele tem de visitar incessantemente por determinação da deusa e da musa. Mas, sim, respondeu – há sempre uma Beatrice. No caso deste poeta também haverá, mas não ouso perguntar-lhe, pois ele responderia que o poeta é um eterno fingidor, finge que sente o que talvez sinta e não revela por quem sente aquilo que finge sentir. Não o faz como exibição frívola de virtuosismo técnico ou como farsa: fá-lo porque tem de o fazer para se redimir e sobreviver. Porque é esse o seu mundo, de onde nunca poderá sair.

A RUA E O SONHO

As ruas e as janelas aparecem muitas vezes associadas a sonhos. E a poemas baseados em sonhos. Como se sonhar fosse estar à janela a ver passar estranhos transeuntes. E como se os poetas se encontrassem sempre à janela a ver-se passar com eles a seu lado, instigados pela musa. Sempre as tão cantadas janelas, na poesia, no teatro, no cinema, na pintura… No caso do poema que inspira estas reflexões (“Um Sonho na Aldeia”, 21.04.2024), a janela do sonho. A que se abre sobre o fantástico, sobre o mistério, sobre o abismo da simbologia mais enigmática. Ver, num poema, o mundo através dos rendilhados ou dos bordados do sonho, feitos pelas musas. Ver o mundo com os cortinados oníricos da janela em primeiro plano. Onde o real se confunde com a fantasia do sonhador duas vezes: no sonho e no poema. Musas, fantasmas e poetas. Só que o poema lhe acrescenta beleza, sentido, coerência, harmonia e melodia, sem deixar de ser enigmático por as palavras nunca o deixarem ver com nitidez, mas induzirem, isso sim, sensações reais na partilha. Curtas histórias contadas pelos poetas, mas como revelações em carne viva, dor em palavras, sentimentos em forma verbal. Os poetas não estão ali para falar do mundo, mas sim para o sofrer com palavras e assim o partilhar. Isso mesmo. Amantes que passam, lado a lado, sem se olharem, sem falarem, apenas se pressentindo, sentindo a presença um do outro, mas sem ousarem dar forma a esse (des)encontro. Como “estranhos em solidão”. Nada mais. Algo que, afinal, também acontece na realidade, não só no sonho do poema: fingirem, ambos, que não se apercebem da presença do outro, apesar de todos os seus sentidos estarem a registar intensamente o que se passa ali mesmo a seu lado.  A notícia deste (des)encontro aconteceu num sonho que foi relatado ao poeta por si próprio, ou seja, por quem o teve, esse sonho. E o que é interessante é que esse sonho o levou não só ao passado recente, mas também ao passado remoto. Tempos que o poeta consegue ligar ao relatar poeticamente o sonho. Maravilhas do sonho… e da poesia. Talvez sejam sonhos tão vivazes que se tenham prolongado dia afora, já com o poeta acordado e estremecido, em sobressalto. E, por isso mesmo, talvez ele tenha sentido necessidade de contar esse (des)encontro num poema, para se libertar, com palavras e melodia, do que sentira intensamente nesse sonho: desencanto, impotência e melancolia. Creio que é isto. Mas não sei. A resposta só poderá ser dada por outro poema. Mas para que isso aconteça tem de haver novo sonho. Que não é programável. Como o sentimento poético.

O POETA E OS SEGREDOS

Os poetas estão cheios de segredos, que revelam… sem os desvelar. O véu mantém-se sempre sobre tudo o que dizem. Dizem o essencial e escondem a fonte, a referência, a origem, a raiz. Ainda que aludam a elas. Os segredos talvez sejam a parte essencial da sua identidade. Não há poesia que não esteja coberta por uma espécie de véu que apenas deixa ver tenuemente as sombras a que o discurso alude. A poesia é como os sonhos. É mais importante dizê-la e senti-la do que compreendê-la, do que conhecer as motivações que lhe deram origem ou os seus referentes. Claro, tem sempre de ser interpretada, mas nunca pode ser totalmente decifrada, embora possa ser totalmente sentida e revivida. Porque é altamente performativa. Mas que há sonho, lá isso há. Que há referentes, lá isso também há. Mas que eles tenham sido decisivos para iniciar a viagem não torna necessária a sua identificação. Esta é intrinsecamente uma linguagem semântica e referencialmente codificada. Até porque as “histórias” estão conservadas “na penumbra da memória” para não se derreterem, como a neve, quando o sol irrompe. Se irromper. Continuam lá aninhadas e protegidas. Eu acho mesmo que a vida de poeta se passa uma boa parte do tempo precisamente na penumbra. Se se expuser arrisca-se a perder a sua própria condição. Arrisca-se a não ser levado a sério. É por isso que nas pinturas muitas vezes sinto necessidade de dar um pouco mais de cor à convergência sinestésica da pintura com a poesia. Para avivar um pouco essa sua aparência “anémica”. Para dar mais vida e luz à “placidez” e “suavidade de um sonho que se processa entre a fantasia e a vida”, para usar as palavras de um Amigo que comentou o poema aqui em referência.  Sim, nos sonhos há penumbra e, por isso, quando os trazemos à consciência poética, em registo sinestésico, é bom dar-lhes um pouco mais de luz e de cor, embora não em excesso, para que se conservem. E como o poeta cultiva a sinestesia pode sempre fazê-lo. E fez. Até para ver se a musa “insinuante, cativante e bela” se pode rever melhor na rua por onde oniricamente andou, em cumplicidade poética, com o sonhador e talvez mesmo amante impossível. Com o poeta, em suma. “Ecco”, diria um poeta italiano. A verdade é que o poeta, na sua impossibilidade congénita, nunca desiste de tentar seduzir. É o seu karma.

A SOLIDÃO DO POETA

O poeta é também um ser solitário e só em solidão pode poetar. Ele está só porque se perdeu e a realidade o mandou para aí, lhe disse que teria de se reencontrar e que o ponto de reencontro só poderia ser o da solidão, sem ruído à volta, onde só pode ser interpelado pela sua voz interior. A verdade é que os poetas perdem-se sempre. Não se ajeitam com a realidade. Ou a realidade com eles. A poesia é, sim, um reencontro do poeta consigo próprio, mediado e estimulado por relações e circunstâncias que tocaram a sua sensibilidade e que ficaram registadas na sua memória com uma intensidade especial. Mas exige solidão, tempo de meditação e alguma distância emocional, ainda que a emoção fervilhe na sua memória, em particular na memória afectiva. Só então se pode activar a “maquinaria” poética. Podemos compreender melhor o mundo se nos compreendermos a nós próprios, sendo, todavia, certo que a poesia é mais um longo grito de alma do que uma incursão cognitiva no mundo. E a solidão é imprescindível para isso. Pode ouvir melhor o eco do seu grito interior e aperfeiçoar melodicamente a sua própria notação poética, aumentando a sua performatividade. Mas também é verdade que é na solidão que melhor se decanta a experiência vivida e se procede à sua conversão estética. A palavra é mesmo decantar, ou seja, retirar as impurezas e com elas densificar as cores que dão vida ao poema e avivar a palidez congénita que o caracteriza.

ALEPH

Um amigo dizia, a propósito do poema “A Porta” (14.04.2024), que essa porta que o poeta cantava era o seu Aleph, numa referência ao conto do Jorge Luís Borges. E o poeta reconheceu a pertinência da observação: que sim, que era verdade, porque ela era (é) o ponto de contacto entre o começo e o fim, o lugar onde a longa travessia do poeta se condensa e ganha sentido, a identidade que permaneceu nele (pelo menos como ilusão) quando viajava por esse mundo à procura de si próprio. Na porta, assumida poeticamente, há, sim, indícios, registos, marcas de todos os lugares por onde ele andou ou mesmo de todos os lugares do mundo. Porque ela é, sim, o espaço intermédio entre o começo e o fim. Também se poderia dizer que, de algum modo, alude a Siddharta, do Hermann Hesse. Sim, a porta cantada é o Aleph do poeta, com ou sem a loucura de um qualquer Carlos Argentino, mas sempre com a inspiração fixada numa Beatriz.

ETERNO RETORNO

Há quem não conheça e até nem reconheça o retorno às origens, seja às da montanha ou às do mar. Não saiba o que isso é. Partiu e nunca mais voltou. Ficou por lá, num qualquer ponto da viagem. Destino e errância de quem já não voltará a subir o rio até à fonte matricial. Vidas atropeladas pelo acaso. Ou o fascínio irresistível do acaso. Talvez vidas incompletas. Ou vidas que assumiram a incompletude como destino. O fascínio do imprevisto e do desconhecido. Para mim, é felicidade suprema vir beber à fonte essa água gelada e pura na qual me banhei pela primeira vez. Alma e corpo. E por isso eu escolhi, definitivamente, a fonte do Vale Glaciar para marcar o meu regresso. Um autêntico rio a descer, gelado, por essa montanha abaixo, rumo ao Zêzere. É essa a água que me acompanha na viagem. Quando chego e quando parto. Água baptismal. Fria e pura como a montanha que me inspira. A montanha em estado líquido. Bebê-la é como abrir a porta para ver a montanha e ir até ela sem sair do mesmo lugar. Anda sempre comigo, como a porta de granito amarelo, com cristais.

A VIDA É UMA MONTANHA

Todos temos a nossa montanha, é verdade. A vida, ela própria, é uma montanha que temos de subir. Viajar na vida é como ir à montanha. Mas também há vales. Se há montanha há vale. E há trilhos a percorrer, na montanha e no vale e do vale para a montanha. Os trilhos estão mapeados, mas só percorrendo-os os conheceremos. São eles que nos levam à montanha. Uma vez percorridos passam a fazer parte de nós, do nosso tempo de vida, do nosso passado, do nosso património subjectivo. Do nosso mapa interior. Esta é a linguagem que me é mais afim porque nasci nela, na montanha, e nela fui criado. É por isso que regresso sempre ali para me reencontrar e poder repartir com novo alento. Sem a montanha da (minha) vida não haveria poeta.

A MAGIA DO NÚMERO TRÊS

Um Amigo identificou o número três como o núcleo central da minha poesia, a propósito do meu poema “A Janela” ( 11.02.2024). Talvez seja. Três é o número perfeito (e o sete também), pelo que pode ser. O poeta procura sempre a perfeição para seduzir. Três vezes. Enigma: uma janela, uma rua uma silhueta… e uma mulher que viaja em palavras e em melodia com estes três elementos, carregada de afecto, de saudade e de melancolia. No poema “A Janela”. Mas é (creio) o único poema meu em que o sujeito poético é uma mulher. Uma mulher e três elementos em que fixa o seu olhar comprometido. Haverá razão para isso? E será mesmo necessário ler o poema três vezes, como quer o ritual? Talvez, digo eu. Há sempre uma razão para tudo. E também haverá para que, aqui, o sujeito poético seja uma mulher.  E mesmo que, aparentemente, para tal não houvesse explicação racional… haveria sempre uma razão. Melhor: uma motivação. Tal como no amor.

A JANELA PARA O INFINITO

A chuva, a neve, gente que passa, um jardim que muda de cor, nuvens sopradas pelo vento, memórias do tempo que flui na nossa imaginação… tudo pode ser visto de uma janela. E da janela é possível voar para o infinito, dar-nos asas e ir mais além do que daquilo que a vida nos pode dar. A janela simboliza a liberdade, a porta e a rua a contingência e as amarras da vida. Numa janela se dá corpo a desejos que a rua não contempla nem permite. O poeta gosta das janelas porque elas representam a liberdade, a possibilidade de voar. Não se ajeita com a vida? Então, põe-se à janela e observa o horizonte infinito. E voa. Mesmo que seja para neverland. Ou, sobretudo, porque pode voar para lá. Para a terra do nunca, esse território onde só poeticamente se pode reconstruir.

SOL NA ALMA E RAÍZES NO CHÃO

Sol na alma e da alma e mar nos olhos e dos olhos – a felicidade. Êxtase e epifania. A felicidade acontece quando as raízes são fortalecidas e rendilhadas (como na Pintura “Luz na Montanha”, para o poema “Chão”) pelo sol e pela água e a árvore da vida enrobustece e se torna frondosa. As raízes são a âncora firme do poeta, em chão firme. Então, tudo é sólido. E as tempestades podem ser enfrentadas com sucesso. Neste chão rendilhado com o cinzel poético e plástico se encontram as raízes que sustentam a existência do poeta e o interpelam esteticamente. Um monólito marca a presença da deusa e a exactidão a que obedece o exercício estético. Talvez neste quadro tenha conseguido a convergência perfeita entre um poema e uma pintura. JAS@04-2024

Jas28Luzna Montanha2021

“Luz na Montanha”. JAS 2021

Poesia-Pintura

UM SONHO NA ALDEIA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Rua da Carreira”, 2022.
Original de minha autoria.
Abril de 2024.
Jas31RuadaCarreira2022COR

“Rua da Carreira”. JAS 2022. Pintura digital, 68×70 (c/mold). Impressão Giclée em papel de algodão (100% I 310gr) e verniz Hahnemuehle. Arglass AR70 em moldura de madeira. 

POEMA – “UM SONHO NA ALDEIA”

SONHEI-TE,
Esta noite,
Numa rua
Da minha aldeia...
..............
Não sei porquê
(É assim que
Os sonhos são),
Caminhámos
Paralelos
Sem dizer
Uma palavra,
Sem um olhar
De través,
Estranhos
Em solidão.

DUAS VEZES,
Duas vezes
Lá estive,
A sentir
O que sentia
Na rua
Da minha aldeia,
Nesse tempo
Diferido
Dos encontros
Intangíveis.

MAS VI-TE
Com nitidez
(Um pouco baça,
É certo)
No silêncio
Do meu sonho,
Cintilante
Como a neve,
A recordar
Tempo antigo
Quando ela,
Muito leve,
Vinha ter
Sempre comigo.

FOI NA RUA
Da Carreira
(A rua
Chama-se assim)
Em frente
Da minha casa,
Onde me vejo
Passar
Quando as saudades
Apertam
E eu tenho
De voltar.

SE A VIDA
É um sonho,
Como dizia 
O poeta,
Também os sonhos
São vida,
Pois eu vi que,
Embalada,
E já um pouco
Perdida
Nesse teu
Caminhar
Ondulante,
Me sentiste,
Neste encontro,
Como sonhador
E amante.

E AQUI 
Estou eu
A sonhar-te
Outra vez,
Com palavras
Que componho,
Porque te vi
Nesse sonho...
..........
Na rua da
Minha aldeia.

É SEMPRE ASSIM,
Quanto mais tu
Te esfumas
Mais cresce
Este desejo
De ti.
É por isso
Que te sonho,
Pra desenhar
O teu rosto
Como no sonho
Te vi.

E DE TANTO
Te sonhar
Acabei por
Te encontrar
Na terra
Onde nasci,
Na rua
Onde brinquei,
Onde a neve
Derretia
Quando o sol
Lá despontava
E logo a saudade
Irrompia.

AGORA A NEVE
És tu,
Alvura
Que recriei
Para nunca
Eu perder
O que de ti
Me sobrou,
Como a neve
Da minha rua
Que não há sol
Que a derreta
Na penumbra
Da memória
Que, em parte,
É também tua,
Embora seja
Secreta.

Jas31RuadaCarreira2022CORRec

Artigo

CONSIDERAÇÕES SOBRE A POLÍTICA

EM PORTUGAL

Por João de Almeida Santos

AR2024_04

“Avenida Parlamento”. JAS. 04-2024

1.

Em primeiro lugar, uma curta nota sobre o sistema eleitoral. Creio que a experiência aconselha a que, não sendo os sistemas eleitorais a panaceia que, em matéria de estabilidade política ou de representação, tudo resolve, se introduza um sistema eleitoral maioritário com círculos uninominais (garantindo ou não um círculo nacional plurinominal, em nome de uma representação mais alargada), não só porque garantiria uma maior estabilidade, mas também porque garantiria uma melhor e mais responsável representação política, onde os eleitos são identificados, avaliados e escolhidos nominalmente pelos eleitores, superando escolhas de lista fechada exclusivamente dependentes da vontade das lideranças do momento. E sabemos como os partidos tendem a ser “colonizados” pelas lideranças do momento. De resto, a actual e progressiva fragmentação dos sistemas de partidos por toda a Europa também parece aconselhar a que esta solução seja adoptada. Garantir uma governação estável é seguramente uma prioridade, para que não se esteja sempre a recomeçar, em todos os sentidos. A democracia é um regime muito frágil e sensível e por isso precisa de garantir estabilidade, eficácia decisional e legitimidade. É certo que, do ponto de vista da estabilidade, e a tomarmos em consideração o que aconteceu em Novembro, já nem as maiorias absolutas parece garantirem estabilidade. Mas essa é questão que, mais à frente, e a propósito do programa de governo do PSD, tomarei em consideração. A verdade é que a queda tendencial do valor eleitoral dos partidos da alternância parece exigir cada vez mais duas coisas: a formação de alianças eleitorais robustas (precisamente o contrário desse simulacro a que chamaram AD) ou pós-eleitorais e a alteração do sistema eleitoral. Isto, claro, no interior de uma profunda mudança na própria política democrática, que está a dar claros sinais de desgaste, um pouco por todo o lado. Não havendo génios malignos que semeiem a degradação dos sistemas democráticos (embora os aspirantes sejam muitos), também não haverá génios benignos que, com um golpe de magia, resolvam o que está em progressivo desgaste, sendo, pois, necessário lutar para que a democracia representativa possa evoluir. É por isso que a cidadania deve ser mais interveniente na escolha dos candidatos a deputados do que o é com os sistemas proporcionais de listas fechadas e com voto exclusivo no símbolo do partido. E não só neste plano, mas também numa intervenção organizada no chamado espaço público deliberativo.

2.

Em segundo lugar, uma nota sobre os programas eleitorais. Na verdade, estes programas estão a revelar-se verdadeiras inutilidades ou mesmo autênticos embustes eleitorais. Já aqui referi o volume global de páginas somente dos programas dos três maiores partidos – mais de quinhentas. Algum cidadão se dará ao trabalho de as ler? Mas, pior do que isso, é a concepção que subjaz à elaboração desses autênticos livros de registo eleitorais: trata-se de imensas listas para onde se atiram frases sobre todos os sectores sem a preocupação de ir ao essencial, à causa causans que, sector a sector, determinará o essencial da intervenção política. Ou seja, documentos analíticos e de rápida consulta. Se assim fosse, bastariam poucas páginas para explicar o essencial do projecto que os eleitores devem avaliar durante o processo eleitoral. Mas não só. Estes programas deveriam também explicar em poucas páginas a visão de sociedade, os valores fundamentais que assumem e propõem, sem retóricas enganadoras, e definir com rigor as fronteiras da intervenção do Estado. Não é pedir muito – simplesmente seriedade e esforço analítico e explicativo. E, ainda, eles deveriam também conter informação essencial sobre os candidatos, sobretudo se o sistema eleitoral adoptado fosse o de círculos eleitorais uninominais. Três frentes que são, pois, essenciais para que o cidadão possa votar em consciência e com fundamento: programa, filosofia, candidatos.

3.

Em terceiro lugar, outra nota sobre a necessidade de uma nova filosofia para os partidos políticos, mas também de promoção de plataformas cívicas, sobretudo digitais, que promovam a capacidade de influência da cidadania, não deixando o espaço público deliberativo exclusivamente confiado aos partidos políticos e aos media, ou seja, às elites instaladas nos centros de poder. Hoje, a cidadania já dispõe de instrumentos para agir com grande autonomia relativamente ao gatekeeping comunicacional e político. Os partidos políticos estão cada vez mais transformados em meras máquinas eleitorais para acesso ao poder de Estado e também os media estão cada vez mais transformados em máquinas de fabrico de consenso e em motores de tabloidismo em todos os géneros informativos, incluído o género político, primando em noticiar e comentar sobretudo o negativo, seu core business. Uns e outros deveriam mudar e só vejo um modo de provocar a mudança: através da automobilização política e comunicacional da cidadania. É certo que a endogamia do establishment e o uso do Estado para a sua própria auto-reprodução corporativa têm vindo a ser combatidos pelo aparecimento de novas forças políticas e pela redução do poder eleitoral dos partidos da alternância, mas em muitos casos o resultado arrisca-se a ser pior do que o próprio statu quo. O caso mais evidente é o do populismo da direita radical.

4.

Dito isto, em geral, gostaria agora de acrescentar alguns comentários acerca da situação pós-eleitoral. Em primeiro lugar, uma apreciação dos primeiros passos da nova liderança do governo. Passos delicados, vista a fraca representação parlamentar do partido do governo (PSD), que nem sequer é o maior partido parlamentar. Mas passos algo incertos e até mesmo pouco cuidados, para não dizer arriscados ou mesmo temerários, numa filosofia que parece poder resumir-se na ideia de que “se posso estar perdido por cem, então que perca por mil”. Grandes riscos, grandes oportunidades. Mas é quase certo que, vista a posição naturalmente intransigente e combativa da direita radical em relação às iniciativas da esquerda, o CHEGA tenderá, em linha de princípio, a servir de suporte ao governo, ainda que este, publicamente, o desconsidere politicamente. Condição essencial para que este sobreviva, visto que, depois da ingénua e reiterada condescendência do PS para com o PSD e o governo (na eleição do Presidente da AR, na abstenção nas moções de rejeição do programa do governo ou na carta sobre várias matérias em que se mostrou disponível para um acordo, mas também na declaração intempestiva sobre o orçamento para 2025), o mais certo será o endurecimento da sua posição, não só pela clara arrogância, inversamente proporcional à sua própria consistência eleitoral, com que Montenegro se apresenta na dialéctica política, mas também pela temerária e reiterada tentativa de enganar os cidadãos sobre a sua redução do IRS. O PS provavelmente passará, de facto, a mover-se com mais intransigência, desempenhando aquele que é o seu papel e obrigando sistematicamente o CHEGA a definir a sua colocação em relação a um governo da sua própria família política. Sim, da sua própria família política. Isso, de resto, já se viu na votação das moções de rejeição do programa do governo. Mas há um senão: o CHEGA levar a sério a possibilidade de substituir o PSD como partido maioritário da direita e aspirar a, nessa condição, ser governo. Essa ambição alterará substancialmente a sua filosofia. Ventura meditará certamente no que aconteceu com a senhora Meloni em Itália (em relação ao governo Draghi) e poderá recuar (ainda mais) para um ponto exterior ao sistema político e de partidos que temos. 

5.

Mas há também um outro aspecto que merece a maior atenção, ou seja, o que está escrito no próprio programa de governo acerca da justiça. E passo a citar para que não haja dúvidas: 

“A reforma da Justiça deverá seguir dois eixos transversais fundamentais. Primeiro, é necessário desgovernamentalizar as escolhas políticas de Justiça. As políticas públicas da Justiça têm sido excessivamente governamentalizadas. O que não é compatível com uma matéria cuja dignidade político-constitucional postula uma visão exigente do princípio da separação e independência dos poderes. Segundo, impõe-se democratizar a reforma da Justiça, gerando um consenso alargado, político e social, para que a mesma seja implementada com solidez e tenha resultados com eficácia” (pág.s 82-83; itálico meu).

Em síntese, a justiça tem estado excessivamente governamentalizada? A mesma que, num passe de magia, com um vago parágrafo em comunicado da PGR, deitou abaixo um governo com maioria absoluta de apoio no Parlamento? Ou, pelo contrário, o que é preciso é desjudicializar a política? O lawfare está a ganhar demasiados adeptos também em Portugal. Separação e independência dos poderes não pode significar promovê-las somente numa direcção. De resto, em Portugal o ministério público já tem uma enorme autonomia, que consiste na autonomia externa (em relação ao poder político) e na autonomia interna e funcional dos procuradores, que os subtrai até ao controlo da sua própria hierarquia. Uma autonomia muito diferente, pois, da que acontece, por exemplo, na Alemanha, onde o ministério público responde perante o ministro da justiça.

6.

Aquilo a que estamos a assistir é a uma progressiva deslegitimação da política democrática, a que se funda na soberania popular, com a exaltação dos poderes separados e das autoridades ditas independentes, considerando o que é do foro governativo ou até mesmo do foro parlamentar como suspeito, talvez em nome da ideia de que o poder corrompe e de que o poder absoluto corrompe absolutamente, mesmo que seja democrático e alcançado por via electiva. Depois, desgovernamentalizar a justiça para a democratizar? Afinal o que significa democratizar? Não será remeter essas instâncias para processos electivos, onde o primeiro deles é precisamente o do poder legislativo (e da correspondente instância que deriva directamente dele, ou seja, o executivo)? Não é por acaso que existe uma intensa discussão precisamente acerca da natureza da autonomia do ministério público. Se se quiser ter uma ideia daquilo que estou criticamente a referir basta ver o recente discurso de tomada de posse do Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Paulo Lona. Ele chega a afirmar que o sindicato nunca aceitará “reformas que contemplem soluções” que “comprometam a independência do MP”. Independência, note-se – a categoria que, de acordo com o disposto na CRP, só pode ser aplicada aos juízes, existindo, sim, para o ministério público, autonomia: externa, relativamente ao poder político, mas também interna, de natureza funcional, para os procuradores titulares dos processos. De qualquer modo, a um agente qualificado do poder judiciário, que tem como missão aplicar a lei, não cabe o direito de recusar (“nunca aceitará”) submeter-se a essa mesma lei, a que emana dos órgãos de soberania. No mínimo, o que se poderá dizer ao senhor Presidente do SMMP é que vá reler a CRP. Na verdade, Portugal tem um dos mais autónomos ministérios públicos da União Europeia. Mesmo assim, quer agora que o próprio PGR passe a ser um dos seus. Só falta mesmo reivindicar para si a eleição ou a nomeação do próprio Procurador-Geral da República. Ou seja, reinvindicar para si a independência que a Constituição da República lhe não concede (concedendo-a, sim, mas aos juízes).

7.

A grande questão é a de saber como é que o sistema garante a ligação entre os dois poderes, o político e o judicial (em sentido amplo), a verificar-se a independência total dos juízes (que deve existir, por imperativo da própria função) e a independência total do ministério público, como quer o sindicato (que não deve existir). O facto é que o poder judicial actua em nome do povo, mas a sua legitimidade é meramente funcional ou técnica e derivada, sendo certo que separação de poderes não equivale a igual legitimidade dos poderes por se verificar uma hierarquia que define a) a do poder legislativo como legitimidade de primeiro grau, ou ontológica, por derivar directamente do povo, através do processo electivo; b) a do poder executivo, que deriva do princípio da maioria; e, finalmente, c) a do poder judicial, que é meramente técnica e derivada da primeira. Esta ligação é hoje feita, no sistema português, através da nomeação (e da livre destituição) do PGR pelo PR, por proposta do PM. O executivo responde perante o poder legislativo e pode por ele ser destituído (através de moção de rejeição do programa de governo ou de moção de censura, para não falar dos poderes do PR, nesta matéria). O que não se compreende é que o poder judicial (incluído o judiciário) seja todo ele independente e não responda perante o povo, através dos seus representantes. Por detrás de tudo isto há, evidentemente, uma implícita suspeição generalizada sobre o poder institucional derivado do voto popular e uma concepção negativa da própria política, o que, como se sabe, tem alimentado o sucesso da direita radical e do populismo por essa Europa fora, alimentando também os processos de lawfare.

8.

As consequências de tudo isto são conhecidas: um progressivo e inaceitável enfraquecimento da política democrática e da sua expressão institucional e um crescimento insustentável do poder das corporações, que acabam por impor os seus interesses corporativos a todo o país. Mas isto significa a degradação da democracia e a sua redução a mero simulacro legitimador de uma dialéctica dos interesses interpretada sobretudo pelas grandes corporações. Tudo isto com a complacência de uma classe política timorata e impotente. O que resta é, pois, um sobressalto de cidadania que possa salvar o que há a salvar da política e da democracia representativa. JAS@04.2024

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Poesia-Pintura

A PORTA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “A Montanha”.
Original de minha autoria.
Abril de 2024.

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“A Montanha”. JAS. 04-2024

POEMA – “A PORTA”

OLHO A MONTANHA
De uma porta
De granito
Amarelo,
Com cristais
(O de sempre,
Muito belo),
Como se fosse
A janela
Desse palácio
Encantado
Que do sonho
É o cais.

É A MONTANHA
De sempre,
A que vejo
Da minha porta,
Mas é muito
Diferente
O perfil
Desta visão:
Antes, era 
Futuro que via,
Agora, vejo
O passado,
Essa bela
Ilusão
De a ter tido
A meu lado.

ENTRE PASSADO
E futuro
Era a minha
Identidade,
Ficou quieta,
À espera,
Quando dela
Eu saí
Pra descobrir
A cidade.

SEU HORIZONTE
É o céu,
Abóbada
Sideral
Na fronteira
Da montanha,
Sinto-a
Dentro de mim
Como fonte
Seminal
Que sempre
Me acompanha.

ELA É PORTO
De abrigo
E é lugar de
Partida,
É, pois, mais
Do que porta
Ou mesmo
Do que janela,
É fronteira
Que passamos
Quando a vida
Em nós desponta,
Quando a vida
Se revela.

MAS HÁ
Eterno retorno,
Há regresso
Renovado
Para, assim,
Renascer,
Revisitar
O passado,
O que não
Quero esquecer.

ESTA PORTA
É magia,
Viajo sempre
Com ela,
Dá asas
À fantasia
E dá-me um
Forte alento
Como se fosse
Janela
De onde voo
Com o vento.

DELA VOEI
Para o mundo
E o mundo veio
Até ela,
Quando passei
Esta porta
Também desci 
Da janela.

POR ISSO REGRESSO
A ela,
Esse pilar
Do meu ser
Que da alma
É janela
De onde me posso
Rever.

QUANDO CHEGO,
Logo amanhece,
Quando parto, 
Já entardece,
Mas não sinto
A despedida
Porque dela
Vejo o mundo
Como a montanha
Da vida.

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“A Montanha”. Detalhe

Artigo

FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO (IX)

SOBRE A POESIA

Por João de Almeida Santos

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“Folhas Caídas”. JAS. 04-2024

MUSAS NO JARDIM

NUM JARDIM ENCANTADO haverá sempre musas, para felicidade do poeta. Em que outro lugar as deveria ele encontrar? Elas são amigas das flores, das cores e dos aromas. Às vezes até se disfarçam de flor ou mesmo de aroma. E inebriam. Mas elas também são difíceis e imprevisíveis. E rápidas, como as fadas. Não é, pois, missão fácil, a do poeta, que convive com elas como se fossem amantes. Por isso, é desafiante esta relação, mas, no fim, depois de um árduo trabalho de (re)criação, muito compensadora. Até ao próximo andamento dessa interminável sinfonia de palavras.

RENÚNCIA

As musas não se deixam capturar e, portanto, os poetas não as podem ter.  São amantes impossíveis.  Não se deixam possuir. E se não as podem ter e nem sequer sabem se elas os escutam, que podem eles fazer? Fazem o que os poetas devem sempre fazer: cantam-nas. Eles escrevem como se elas os estejam a ler, a escutar. É a sua forma (poética) de viver. E a alma voa, porque o corpo se arrasta na vã tentativa de as alcançar. Se é que não houve renúncia, consciente, dolorosa, mas renúncia. Em certos casos, não há arrastar de pés, mas dolorosa firmeza. O Bernardo Soares diz que nobre é a renúncia. Só os fracos e vulgares são incapazes de renunciar. A renúncia é o segredo da arte. Só renunciando se pode possuir… pela arte. Longa espera, a de quem renuncia, por um encontro impossível? Sim, porque a renúncia não é o fim do desejo. É, sim, uma espera sem fim à vista. Uma espera sem esperança. Por isso falo muitas vezes do Sísifo que carrega palavras, num vai-e-vem interminável entre o vale da vida e o Parnaso. O desejo não morre com a renúncia, porque ganha outra forma e até se projecta até à posse, a única possível, pela arte. Diz o Bernardo Soares: “Tenho de escrever como cumprindo um castigo. E o maior castigo é o de saber que o que escrevo resulta inteiramente fútil, falhado e incerto”. Talvez não, a não ser perante a prova dos factos, desses com os quais não quer compromissos. O que o salva, ao poeta, é que ele tem muitas primaveras consigo e, por isso, resiste e sobrevive. A cantar. E talvez outras musas o ouçam, que não aquela para quem ele julga que canta. Julga? Sim, porque a realidade se confunde com a ficção, a vida com o sonho e o sonho com a vida. Mas sonhar é preciso. Dizia a Yourcenar que só se possui pela arte. E é verdade. E o Bernardo Soares também dizia que possuir o corpo é vulgar, como o sonho – todos possuem, todos sonham: “O que há de mais reles nos sonhos é que todos os têm”. Ele não queria tocar a realidade sequer com a ponta dos dedos. Elevar-se sobre essa posse ou sobre os sonhos é que é difícil, belo e nobre. Mas para se elevar tem de renunciar. Essa é que é essa.

PALAVRAR

O vento é amigo do poeta e leva, sim, os aromas, os sabores e as mensagens aos amantes das palavras, estejam eles onde estiverem. Sim, são as mãos do poeta e do pintor que lançam palavras e cores ao vento que passa na esperança de as porem em diálogo com a vida que, como o vento, também passa. Só que com elas passa melhor. As palavras também migram, transportando com elas beleza, cor, melodia. É por isso que das suas migrações resulta sempre um mundo mais rico, mais belo, melhor. O outro gostava de palavrar. Um palavrar bonito e pleno de sentido, como só ele sabia fazer. Eu também gosto de palavrar porque as palavras são nossas amigas… se não se deixarem capturar pela imensa logorreia que corre por aí e que as desfigura e empobrece. Tornam-se descartáveis. Se calhar é por isso que as palavras se aninham nos arbustos dos jardins para se protegerem desse sol abrasador que todos procuram para lhes aquecer a alma, sem se aperceberem de que acabarão com ela esturricada. No silêncio de um loureiro acolhedor elas sempre poderão ser encontradas por uma alma sensível que lhes dê asas e as leve para a ilha da utopia… para a sua neverland, a terra dos poetas.

ENLACE

Na verdade, a sinestesia é um enlace entre duas artes, neste caso, entre a poesia e a pintura. E “Enlace” foi o título que dei ao poema que cantou o encontro (poético) entre uma videira cardinal e um loureiro, lá no jardim. Uvas no loureiro, em pleno Verão. Um improvável enlace que acabou por acontecer e que suscitou um produtivo espanto e um estremecimento. A poesia nasce, sim, do estremecimento, mas, depois, torna-se coreografia de palavras ao ritmo de uma toada sedutora. Mas é assunto mais da alma do que do corpo, apesar do pulsar sensível da sua melodia.

CHORAM OS POETAS?

O choro poético é belo. Porque é um canto. As lágrimas são palavras derramadas em cadência melódica. Mesmo assim, paradoxalmente, o poeta diz a si próprio que não chore. Provavelmente refere-se ao momento anterior (e tão necessário) ao da levitação poética e apolínea. Talvez leia Nietzsche demais. Cito-o de “A Origem da Tragédia”: “com gestos sublimes é que ele nos mostra quanto o mundo dos sofrimentos lhe é necessário para que o indivíduo seja obrigado a criar a visão libertadora, porque só assim, abismado na contemplação da beleza, permanecerá calmo e cheio de serenidade, levado na sua frágil barca por entre as vagas do mar alto” (Lisboa, Guimarães Editores, 1972, 51). “Não chores, não, transforma o choro em canto”, poder-se-ia dizer-lhe, ao poeta. “Eleva-te ao sublime e pára de sofrer através da contemplação da beleza do teu próprio canto”. pois há sempre, lá bem no fundo de si, essa pulsão que o impele a cantar para não afundar na tristeza, para levitar em contemplação. Leveza é o que lhe dá a poesia. Uma das categorias deste milénio, de que falava o Calvino. Também lhe poderia ter dito “canta, amigo, canta…”, pois o poeta é amigo das minhas divagações sentimentais, às vezes tristes, sim. E foi mesmo assim que o representei na pintura, melancólico e um pouco enredado em si próprio.

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“Perfil de um Poeta”. JAS. 04-2024

AS COISAS FINDAS 
MAIS QUE LINDAS FICARÃO?

Uma amiga e habitual leitora da minha poesia lembrava-me alguns versos do poema de Drummond de Andrade, “Memória”: “Amar o perdido / deixa confundido / este coração (…) / Mas as coisas findas, / muito mais que lindas, / essas ficarão”.

E julgo que era o Drummond de Andrade que dizia para o Manuel Bandeira (citado no poema a que me refiro, “Um Sonho no Poema”, de 24.03.2024, a partir de “Temas e Variações): “Teu nome é para nós, Manuel, bandeira”.  E diria mesmo: “se non è vero, è ben trovato”. Junto-me, pois, a eles e digo, em poesia, também:

Coisas findas, 
Mas cantadas, 
Mais que lindas
Ficarão
Em poemas
Ou sonhadas
Muito mais
Do que já são.

Há sonhos que são mesmo assim.

SONHO CANTADO

De uma rosa (num quadro meu chamado “Sonho”) sai um perfil de mulher, talvez o da musa do poeta-pintor. A cor, vermelho-púrpura intenso, diz tudo. Um belo e colorido renascer da musa na primavera que desponta. E no poema. E no sonho. E os sonhos acontecem mesmo com dimensão existencial e força expressiva. Mas, depois, é preciso convertê-los, dar-lhes forma poética e plástica. Há sonhos intensamente sensitivos que persistem fisicamente para além do sonho, que perduram como imagens nítidas ao olhar interior. Só faltará, então, cantá-los para os tornar reais. E cada canção será, depois, uma ponte que leva o sonho a muitos lugares, talvez mesmo ao lugar onde habita a musa. Uma ponte lançada sobre o mundo da sensibilidade. Sim, “la vida es sueño” e, por isso, também o sonho é vida. O poeta Calderón de la Barca tinha razão.

O PODER DO SONHO

Há sonhos que são mesmo assim: têm lá dentro fortes emoções e cores intensas. Tão fortes e tão intensas que o poeta tem de as cantar, de lhes dar vida, de as trazer cá para fora e de as partilhar. E, claro, se a musa acompanhar por dentro o canto será grande a felicidade do poeta. Cantar o sonho é vivê-lo, fazendo da vida “sueño” e do “sueño” vida, como queria o poeta. E confesso que talvez seja algo mais do que “piedosa ilusão”, porque não é assim que o poeta a sente. Simplesmente porque não pode deixar de lhe dar forma, com palavras e rítmica melodia. Imperativamente. Como exigência interior, ainda por cima sob pressão de uma intensa e viva narrativa onírica. Mesmo que, até em sonho, pressinta que irá acontecer, a esse perfume, um fim, uma rápida dissipação que já se esteja a avizinhar. É na fronteira que tudo ganha maior intensidade e sentido. Vê-se para dentro e vê-se para fora dessa linha separadora de mundos diferentes. A poesia acontece sempre em situação de fronteira, que funciona como se de um intervalo entre si e o mundo se tratasse. O sonho também está na fronteira só que com uma intensa neblina que nada permite ver com nitidez.

POETAR É SONHAR

Os sonhos acontecem e às vezes são intensos e perduram. A poesia pode dizê-los com a sua linguagem ou ela própria ser o sonho e até induzi-lo. A musa faz parte dos sonhos e a linguagem poética tem sempre algo de onírico. Subtrai-se, como o sonho, à inflexibilidade do tempo e do espaço. E tem uma linguagem codificada. E nunca mente. É como voar sem sair do mesmo lugar.

PÓLEN

Fruir poeticamente o jardim é dar asas à sensibilidade e viajar com a alma à procura de pólen, seu alimento. Como as borboletas. A poesia poliniza almas. É uma viagem interior sobre paisagens sobre as quais pousa para retirar pólen. Essas paisagens ficaram registadas na memória, pela sua intensidade, locus amoenus do poeta, porque já filtrado e aveludado pelo tempo. E a pintura ajuda, dando cor e materializando essas paisagens, onde o poeta se pode rever em viagem .

O ARBUSTO

“Tem de estar encantado o arbusto que te encanta”, dizia-me um companheiro de viagem poética. Claro que sim. E o encanto também está nos olhos de quem o observa. Sobretudo do poeta melancólico, que pede ajuda ao pintor para ver mais claro e com mais cor. Tê-lo duas vezes em frente de si. Uma das vezes já recriado pelo olhar da alma sobre a memória.  Sonho? Também. É ele que o diz. Sonho multiforme. O arbusto ganha, assim, vida. Duas vezes, com este desdobramento artístico. E ganha vida o jardim, ajudado pelo intenso perfume do inebriante jasmim que incendeia o olfacto do poeta e lhe provoca poéticas alucinações. Eu nem sei se não será a embriaguez do poeta, por este perfume tão intenso, que o leva a declarar-se assim. Talvez. Mas não sei, de tão perdido ele andar nesses seus territórios da memória afectiva, acicatado pela visão do loureiro. Visões e inalações que lhe transformam o olhar. Mas, repito, não sei. Uma coisa, todavia, eu sei: isto é coisa antiga e que perdura, de tão intensa ser ou ter sido. Talvez tenha mesmo razão o Eliot: a musa visitou-o e, como dizem os brasileiros, virou poeta. Só pode, como diz o outro. Por necessidade. Para sobreviver nessa imensa carência afectiva em que passou a viver. Uma espécie de sem-abrigo existencial que adoptou a poesia como sua casa (para viver e sobreviver). Não serão os poetas como os sem-abrigo? Existencialmente desinstalados? Só não serão porque têm recursos especiais e estão sempre a construir casas (os poemas) como refúgios dos temporais existenciais que os estão sempre a fustigar quando não estão debaixo da ponte poética. Mas isso cansa. Levar permanentemente as palavras às costas lá para cima, para o Monte Parnaso, para construir os seus refúgios cansa mesmo. Mas é esse o seu destino. O destino de um ser eternamente melancólico. Ele vive em eterno retorno. O da melancolia.

A DIALÉCTICA DO SUBLIME

Ideação do amor, foi o que um Amigo me disse a propósito do poema “Talvez” (17.03.2024). A composição poética é, sim, o resultado da elaboração e da estilização de uma relação sensível com o mundo, quando ela é intensa e marcante. Nesta relação, o amor ocupa um lugar predominante. O amor expresso poeticamente reflecte uma dimensão subjectiva, que não é somente existencial, mas que também é formal, porque investida pelas categorias da arte. O Calvino falava de leveza, de rapidez ou de exactidão, por exemplo. Sim, mas a expressão poética do amor assenta na força existencial dessa pulsão estrutural que anima o ser humano, que está ligada à reprodução da própria espécie, estimulada pelo prazer que a acompanha, e que  se exprime superiormente como dialéctica dos afectos. “Dádiva do céu”, sim, porque acontece como uma revelação e tem esse poder. O poder de uma revelação ou de um dom recebido, como destino. E permanece porque não tem resolução (racional) aparente, a não ser através da transfiguração poética. A levitação poética retira peso (gravidade) ao amor e, de algum modo, e por isso mesmo, liberta. E a omnipresença do amor deve-se à sua intensidade e à sua perdurabilidade, sendo esta última consolidada pela poesia. E perdura porque a poesia o subtrai aos efeitos da contingência e ao respectivo desgaste, elevando-o. A intensidade queima, mas se for convertido em palavras e melodia com poder performativo resiste e subsiste. A espécie humana encontra na dialéctica do sublime a condição da sua própria humanidade e eternidade.

OCASO

“Ocaso” é o título de um poema meu, ilustrado por um quadro (“Rasto de Luz”, aqui reproduzido) com o mar e o sol a pôr-se (25.02.2024). E alguém disse que a arte torna possível a concretização de sonhos irrealizados. De certa forma, sim. Sobretudo se se tratar de uma arte altamente performativa, como é a poesia.  Trata-se do ocaso da vida, mas também de um sonho incompleto ou, ainda, de um amor que ficou pelo caminho e que no tempo foi esvaecendo. Ocaso é a lenta dissolução da fonte de energia que despertou sentimentos de grande intensidade. Esgotamento. Algo que perdeu força propulsiva. Então, é necessário dar-lhe, de novo, vida, recriá-lo, agora de forma mais estilizada, mais sofisticada, menos dionisíaca, mais apolínea. Antes que se dissipe totalmente. Enquanto for ainda possível chorá-lo, sofrê-lo. Assim, a marca, a cicatriz, fica lá, embora com menor poder emocional sobre o poeta ou mesmo como “locus amoenus”. O poema é, continua a ser, sempre uma revivescência com poder (quase) substitutivo e compensador. É neste sentido que falo quando digo que a poesia é fortemente performativa. Não substitui, mas de algum modo resolve ou, pelo menos, atenua. Neste poema acrescentei (à primeira versão publicada), na última estrofe, dois versos clarificadores. Depois de tanto tempo, apercebi-me de que era isso que lhe faltava:

(...)
E O SOL
Lá regressou,
Mas vinha
De outro lado,
Sem suave
Marulhar,
Sem ondas
Pra navegar
Nesse brilho
Ondulante
Que um dia
Me encantou
A lembrar-me
O teu mar,
Esse ondear
Cativante
De quem não sei
Se me amou.

 Essa declarada incerteza: “De quem não sei / Se me amou”. Verbalizá-la foi como se a tivesse resolvido.

A verdade é que entre o começo e o ocaso acontece algo que permanece. Por alguma razão começou, ainda que tudo tenha um fim. O que importa é o começo. A atracção inicial, originária. Depois, é o desgaste, como tudo. A rotina que tudo consome. Mas há casos em que a intensidade já anuncia um fim rápido, quase como se não tivesse começado ou tivesse terminado antes de acontecer. Um raio que fulmina. Luz intensa que encandeia. E o incidente acontece. Depois, o silêncio. A escuridão. A noite. Tudo fica lá no mais profundo da consciência e a poesia pode lá ir à procura desse instante fulminante que ficou registado sem mediação. Como acontece com a psicanálise: com as associações livres ou com a interpretação dos sonhos. A poesia descodifica, sim, mas em código. E mais: precisa de rituais. E quando é ajudada pela pintura em sinestesia tudo parece ser mais fácil de interpretar, com a ajuda do olhar. Mas não é. Fica a beleza de que esse instante fulmíneo é a causa remota. E acontece uma momentânea libertação.

No ocaso, o sol põe-se, lá ao fundo, no horizonte, deixando um rasto de luz a iluminar a fantasia do poeta na sua revisitação onírica do passado e da musa, quando a noite chegar. O dia seguinte será outro dia e a melancolia do ocaso parece ter passado… mas não passou. Só se atenuou. A luz regressa, mas já não é a mesma.

Nessa “hora crepuscular” o poeta reconstrói-se. Sim, é a magia do poema e, neste caso, também da pintura. Lembra-lhe o ocaso de uma relação, intensa, mas em rápida diluição, como esse rasto de luz marinha e esse sol que está prestes a deixar o fio do horizonte. O brilho do sol e do mar que o inspira para articular o discurso sobre uma relação que o marcou, esse brilho ajuda-o, sim, a reconstruir-se, a recriar o tempo de uma epifania afectiva e, assim, a resolvê-la, metabolizando-a poeticamente. Sim, tratando-se de poeta, a dúvida persiste. Persistirá sempre. Mas só até ao momento em que se quiser ir mais além da certeza de que algo aconteceu, se é verdade que a poesia é sempre a resposta a um imperativo existencial. Ou seja, até ao momento em que se conclui que realmente há cicatriz. Que tem mesmo de haver. Porque houve ferida. E que foi por isso que houve poesia. Tudo isto, dito poeticamente, será sempre incerto, mas não falso.

Foi neste rasto de luz, neste caminho cintilante que o poeta reviu a sua própria experiência afectiva e a quis recriar com toda esta luminosidade, sem deixar de a comparar com a rapidez do ocaso (que se verifica em ambas as circunstâncias). “Un éclair… puis la nuit!”, dizia o Baudelaire no poema “À une Passante”, em “Les Fleurs du Mal”. Tal e qual. Impossível dizer melhor. Tudo aqui, no poema e na pintura.

NAUFRÁGIO

Na verdade, a vida é um naufrágio permanente… embora não fatal. Navegamos sempre e, às vezes, naufragamos, para aportarmos, logo, a outra ilha. A esta luz seguir-se-á inevitavelmente a noite e os sonhos… e uma nova manhã com o sol a aparecer do outro lado e a voltar a encher-nos os olhos de luz, sim, mas de uma luz diferente. Mas também é verdade que naufragar numa estrada de luz é diferente de naufragar na noite escura. De qualquer modo, haverá sempre uma ilha onde aportar, guiados pela luz. A poesia é uma ilha onde se chega depois de um naufrágio numa rota de luz, mas num mar alteroso, emocionante e perigoso. E é desta emoção que reemerge o poeta e a poesia.

Aqui há luz, a luz do sol reflectida no oceano, aquela que as palavras procuram acender no espírito de quem lê. E, por isso, julgo eu, é que o “Ocaso” sensibiliza e seduz. Bem sei que há por aqui muita melancolia. Mas também há muita luz. E que a vida vai acontecendo entre a melancolia e a luz interior que ilumina a memória do que um dia vivemos intensamente, mas que o tempo amaciou. Felizmente que há sol e até luar para nos iluminarem a alma, seja dia seja noite. Esse sol e esse luar também têm outro nome: poesia. O sol da alma. Sempre. A luz da lua, nos dias de luar e nas noites felizes dos sonhos desejados. E esses também nos acompanham. JAS@04-2024

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Rasto de Luz”. JAS 2023

Poesia-Pintura

AS PALAVRAS NO JARDIM

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “O Jardim”.
Original de minha autoria.
Abril de 2024.

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“O Jardim”. JAS. 04-2024

POEMA: "AS PALAVRAS NO JARDIM"
ENCONTREI-AS,
As palavras,
No jardim
Da minha vida,
Aninhadas
No arbusto
Num quente
Dia de verão...
...........
Esperavam,
As palavras,
Por poética
Evasão?

NÃO PENSAVA
Encontrá-las
Nesse lugar
Encantado,
Onde o sol chega
Coado
Pela ramagem
Do arbusto
Em suave
Travessia,
Como esse filtro
Do tempo
Que me esculpe
A memória,
Mas acende
A fantasia.

FORAM TAMBÉM
As palavras
Coadas
Pelo tempo
Que passou
Ou pela densa
Folhagem
Do arbusto
Que por estranha
Magia
Nesse verão
Me fascinou?

EU NÃO SEI,
Mas o que sei
É que elas
Se encontravam
Nesse loureiro
Encantado
Pra serem
Lançadas
Ao vento
De regresso
Ao passado.

ERA A CASA
Onde as palavras
Viviam,
Suspensas,
Em solidão,
Aguardando
A chegada
De quem lhes
Marcasse
O destino
E as levasse
Pela mão...

PODIA SER
Um poeta
Ou então ser
Um pintor,
Pintá-las
Como oferta
Ou cantá-las
Por amor.

Oasis2024_1Rec

Artigo

YOU MUST LOOK AT FACTS

BECAUSE THEY LOOK AT YOU

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 04-2024

ONTEM, às 18:00, tomou posse o minoritário 24.º Governo Constitucional, liderado por Luís Montenegro. Houve dois discursos, o do Presidente da República e o do Primeiro-Ministro empossado. Nada de muito importante, a não ser três referências que, “sem jogos de semântica”, merecem algum destaque: 1) a distinção feita por Luís Montenegro, referindo-se ao PS, entre fazer oposição e comportar-se como força de bloqueio, numa vaga alusão à velha doutrina de Cavaco Silva; 2) a vontade de cooperar com todos, todos, todos, sem ter referido os 50 deputados do CHEGA e o milhão e 170 mil eleitores que votaram nele; 3) a vontade de, sendo um governo com um suporte ultraminoritário no parlamento, querer fazer reformas estruturais. Uma antecipação do discurso que fará por ocasião da apresentação do Programa de Governo no Parlamento e a primeira fase da longa campanha eleitoral que se seguirá. Mas vejamos como estão realmente as coisas.

1.

De uma maioria absoluta passou-se a uma absoluta minoria, devido a uma mais do que duvidosa injunção do ministério público na política – a inopinada demissão de um primeiro-ministro que dispunha de maioria absoluta no parlamento, eleições e a formação de um novo governo que dispõe, à prova dos factos, sim, de uma minoria absoluta no Parlamento. Viu-se como funcionará esta minoria, no futuro, considerando o processo de eleição do actual Presidente da Assembleia da República. Só com a muleta do principal partido de oposição conseguiu eleger o seu candidato, embora, a tomar em consideração a dimensão dos grupos parlamentares, devesse ter sido eleito, para os dois primeiros anos, o candidato do PS, pois este é o maior partido presente na AR (tem mais votos do que o PSD). Erro do PS? Não sei, mas parece. O CHEGA, depois da confirmação do cordão sanitário que a direita moderada (e toda a esquerda) criou à sua volta, declarou que esta minoria absoluta não iria contar com o seu apoio para formar uma maioria absoluta. Não é estranha, esta posição. E, à esquerda, que, no seu conjunto, dispõe de mais 4 deputados do que a base parlamentar de apoio do governo, sendo natural que se comporte politicamente como oposição, não parece razoável pedir, em nome do estafado sentido de Estado que agora serve de bandeira aos seus serviçais televisivos, que se junte à minoria e, em sede de orçamento, dê o seu generoso aval ao governo. Em nome do supremo ideal da estabilidade, o mesmo que não inibiu o PR de dissolver um Parlamento estável e que não impediu António Costa de se demitir-se apressadamente, logo a seguir a um suspiro da senhora PGR.  Sim, não fazer oposição ao país parece ser razoável, como diz o deputado Brilhante Dias, mas o que não parece razoável é fazer fretes a um governo de direita absolutamente minoritário, quando esse mesmo governo poderia, caso quisesse, dispor de uma confortável maioria absoluta. Nestas circunstâncias, e a manter-se a actual situação, o orçamento de Estado será chumbado e o Presidente da República, se seguir a linha política já por três vezes por si adoptada, e designadamente em 2021, deverá, em Novembro, dissolver o Parlamento e convocar novas eleições.

2.

O processo de lawfare não foi, como esperavam, devidamente concluído e, por isso, continuaremos a assistir às prédicas dos papagaios de serviço, a cânticos auspiciosos em honra do sentido de Estado e da estabilidade. Por exemplo, na SIC, o canal do PSD. O que, entretanto, urge saber é se quem manda no ministério público é a Procuradora-Geral ou o sindicato dos magistrados do ministério público. E, já agora, se quem decide os critérios para a escolha do Procurador-Geral é o sindicato ou os representantes do povo soberano. Esta deveria ser, sim, uma preocupação do governo e do Parlamento, uma vez que está em causa a relação do poder político – e, através dele, do povo soberano – com o poder judiciário, uma vez que é em nome da colectividade que ele actua e é dela que deriva a sua legitimidade. Mas em Portugal parece que quem decide da validade do voto popular é este mesmo ministério público que responde apenas perante si e já nem sequer perante o topo da sua própria hierarquia, sabendo-se que há na Europa países onde o ministério público “faz parte integrante do executivo e está subordinado ao ministro da justiça (por exemplo, na Alemanha, na Áustria, na Dinamarca ou nos Países-Baixos)”, como se lê num Relatório (de 03.01.2011) da Comissão de Veneza do Conselho da Europa sobre o Ministério Público *. Mesmo assim, nada impede que o topo da hierarquia, confortado pela Presidência da República, que o nomeia (sob proposta do governo), sempre possa emitir devastadores comunicados públicos que suspendem a soberania popular na sua forma de mandato eleitoralmente conferido.

3.

A verdade é que separação de poderes não significa igual legitimidade entre o poder judicial e o poder político, porque se este é portador de uma legitimidade de primeiro grau, ou seja, ontológica, aquele só é portador de uma legitimidade derivada, de segundo grau, ou seja, meramente técnica, e, por isso mesmo, a separação de poderes também não pode significar incomunicabilidade entre os poderes ou separação absoluta, o que acabaria por negar o carácter democrático do próprio regime. Na verdade, o que se espera é que o poder político defina com rigor estas relações, tendo sempre presente a natureza do Estado de direito democrático. Uma boa clarificação poderia evitar casos como este.

4.

Entretanto, haverá eleições europeias, em Junho, e os resultados tornarão a situação política mais clara, em qualquer dos casos, certifiquem elas ou não os resultados das legislativas de Março. Elas não modificarão a geometria política, a relação de forças no parlamento, mas darão ulteriores indicações para o rumo a seguir pelos principais protagonistas, o PSD, o PS e o CHEGA.  A mais recente sondagem da IPSOS (divulgada ma passada sexta-feira pelo jornal “SOL”) dá uma vitória tangencial ao PSD e uma ligeira quebra do CHEGA, que conseguiria eleger 3 eurodeputados (e, de novo, igual número de mandatos para o PS e o PSD). Se este quadro se verificasse, nada de essencial mudaria. Mas se o PS vencer as eleições, confirmando-se como o maior partido, a fragilidade política do governo aumentará. E muito mais se o CHEGA confirmar o seu score eleitoral ou até o aumentar. Por isso, o mais provável é que a imediata acção do governo que ontem tomou posse seja, por um lado, tomar medidas que visem reforçá-lo nas próximas eleições europeias e, por outro, preparar-se para eleições legislativas a curto prazo. Ou seja, este governo provavelmente tornar-se-á uma mera máquina eleitoral para preparar um seu futuro politicamente mais robusto. Continuaremos, pois, em intermezzo eleitoral, ou seja, em permanent campaigning. Uma prática que tem vindo a contribuir para o descrédito da própria política e, consequentemente, da própria democracia.

5.

Em qualquer caso, a esquerda não tem maioria no parlamento. E a direita moderada, se quiser manter-se no poder, deverá retirar o cordão sanitário ao CHEGA e com ele negociar. Trata-se, afinal, de um partido constitucionalmente reconhecido, havendo no interior do PSD muitos que o reconhecem como possível aliado. Na verdade, nem se trataria de algo insólito pois a direita radical faz parte de soluções governativas em vários países da União Europeia (por exemplo, na Suécia ou na Finlândia) e governa, por exemplo, em Itália e na Hungria, tendo já governado também na Polónia. Aqui ao lado, o PP governa comunidades em aliança com o VOX.  E eu creio que a assunção de responsabilidades é sempre uma excelente via para a moderação e para pôr à prova o verbo (ainda que desmedido) que se exibe quando isso não implica assunção de responsabilidades perante o país. Mas esse compromisso e o abandono do radicalismo verbal e anti-sistema talvez tenha também como resultado uma efectiva redução eleitoral, pois o discurso de tipo tablóide, que atrai audiências, tenderá a reduzir-se. A segregação do CHEGA, pelo contrário, levá-lo-á a colocar-se fora do sistema, a suscitar uma forte polarização da atenção social e a lutar com redobradas forças para chegar a primeiro partido, a única forma de chegar ao poder. O caso italiano é muito ilustrativo do que também aqui pode vir a acontecer. O Fratelli d’Italia foi o único partido que não integrou a grande coligação de apoio ao governo de Mario Draghi (02.2021-10.2022). O resultado foi uma subida de 4.5%, em 2018, ou de 6,4%, em 2019, nas europeias, para 26%, nas legislativas de 2022. Este caso, onde a líder sempre exibiu um carisma e uma capacidade de controlo do partido muito alta, certamente está a ser tomado em séria consideração por André Ventura, que dispõe das mesmas condições (e não exibe o mesmo grau de filiação histórica num passado de regime ditatorial).

6.

Tenho a convicção de que não existe actualmente uma clara percepção pública da distinção entre uma parte consistente do centro-direita e o centro-esquerda, sobretudo porque o PSD mantém uma posição política e ideológica ambígua, a começar logo no nome. E esta posição de intransigência confirma essa incapacidade de assumir sem tibiezas o espaço político que realmente ocupa ou deveria ocupar, ainda que a linguagem dos adversários o qualifique sistematicamente como partido de direita. Foi também por isso que apareceram, à direita, dois partidos que, somados, exibem uma força eleitoral quase igual à sua (CHEGA e Iniciativa Liberal, hoje com cerca de 24% e 58 deputados). É uma questão antiga que representa a sobrevivência de resíduos ideológicos do tempo do PREC, em que este partido se afirmava, e cito o seu “Programa do Governo”, de Abril de 1976, “fazem parte do nosso ideário e das metas a atingir os valores do socialismo democrático”, posição que, de resto, já vinha do Programa do PPD, de Novembro de 1974. Esta identificação acentuou-se recentemente com a liderança de Rui Rio e não se alterou com Luís Montenegro, que numa campanha eleitoral interna afirmou que o PSD não tem problemas existenciais, como que a dizer que a clarificação acerca da sua identidade política nada interessaria. Pois parece que, afinal, interessa, pois não se dando, teimosamente, com o vizinho – alguém que, afinal, antes até habitara a mesma casa – porá em causa a própria sobrevivência (enquanto partido de governo). Eu creio que o problema é mesmo de natureza existencial, antes de ser político (embora também seja). Ou seja, o PSD nem assume que é um partido claramente de direita ou de centro-direita nem assume que o espaço da social-democracia sempre esteve efectivamente ocupado pelo PS. E esta situação, sendo factor de confusão para os eleitores, muitos deles, à direita, acabaram por preferir a clareza do CHEGA (ou da Iniciativa Liberal), votando nele. Sabemos que o bipartidarismo está hoje em crise um pouco por todo o lado, sendo também certo que esta sobreposição dos dois maiores partidos num mesmo espaço político (e apesar de a nova middle class representar mais de 50% do eleitorado nas sociedades avançadas) contribuirá para aprofundar a fragmentação do nosso sistema de partidos, designadamente na área do bloco de direita, como vimos. Uma tendência já presente na sociedade civil, naqueles que não se sentem representadas por um partido que, como o PPD de outrora, tendia a representar uma ampla federação de tendências, em largo espectro (como acontecia, por exemplo, com a velha Democracia Cristã italiana).

7.

Mas confesso que também não vejo grande clarificação à esquerda, sobretudo agora que o discurso parece cada vez mais esgotar-se na ideologia das contas certas e na subordinação da política à gestão comunicacional dos grandes números, sem reconhecer que essas contas certas se devem à pauperização fiscal dos contribuintes, reforçada, mais recentemente, pelos efeitos da subida da inflação. Acresce uma permanente e quase obsessiva exibição do Estado Social, apesar de este estar a exigir uma profunda revisão e não só pela sua reconhecida ineficiência. O excesso de prestações do Estado não só leva à sua própria ineficiência pela crescente assimetria entre uma elevada procura e uma efectiva escassez de recursos disponíveis (uma equação sem solução, vista a dimensão do universo abrangido) como também gera imobilismo social num país que do que mais precisa é de ser estimulado a produzir, a inovar e a sair das suas zonas de conforto. O Estado deve estar lá onde é necessário, sem dúvida, mas não pode estar em todo lado e até a fazer o que compete aos indivíduos singulares fazerem. De facto, não me parece muito saudável que se proceda a uma inversão total da famosa e feliz frase do discurso inaugural de John Kennedy: não te perguntes o que podes fazer pelo teu país, mas sim o que o teu país pode fazer por ti. O Estado-Caritas e o Estado-Fiador não me parece serem os melhores modelos para resolver os nossos problemas de desenvolvimento e de crescimento. Mas o excesso de visão comunitarista, e de amplo espectro, é a isso que leva, com consequências desastrosas para o país. Acresce ainda que, à esquerda, se está a verificar uma pouco interessante tendência para a resolução da crise ideológica através da importação generalizada do discurso da esquerda identitária dos novos direitos. O que só agrava as coisas, dando ulteriores pretextos para um reforço doutrinário e político da direita radical, que imputa a todo o establishment (e com alguma razão) esse discurso.

8.

Não se adivinham tempos fáceis. O governo para sobreviver tem de dedicar uma boa parte da sua energia a isso, mas também tem de decidir em matérias que há muito estão imobilizadas, não tendo, todavia, força política para isso. Se a situação, com uma maioria absoluta, já estava socialmente explosiva, agora, com um governo frágil e com todas as condições para ficar paralisado, a probabilidade de, a breve trecho, haver novas eleições é enorme, apesar do enorme optimismo e determinação que Montenegro pôs no seu discurso de tomada de posse. É evidente que o terceiro governo de António Costa enfrentou consecutivas crises internas e que a qualidade dos membros que o integravam suscitava muitas dúvidas, mas não foi isso que levou a novas eleições. O que levou a novas eleições foi a injunção política do poder judiciário e a prontidão com que António Costa deitou a toalha ao chão, sem cuidar de defender o mandato que os portugueses lhe confiaram, até pela leveza desse suspiro discursivo da senhora Procuradora-Geral da República no ambiente rebuscado e algo insidioso do Palácio de Belém. O que seria paradoxal era um governo de minoria absoluta durar mais (uma inteira legislatura) do que um governo de maioria absoluta (que só durou cerca de dois anos), com a benevolência do proscrito e com a condescendência quer do castigado PS quer (já agora) do seu carrasco, aquele que, em qualquer circunstância, terá sempre o poder de declarar, por comunicado, a falência de um qualquer mandato popular, mesmo que seja absoluto.

NOTA

* “Rapporto sulle norme europee e in materia di indipendenza del potere giudiziario. Parte II: il pubblico ministero. Adottato dalla Commissione di Venezia alla sua 85ª sessione plenária” (Venezia, 17-18 dicembre 2010). JAS@04-2024

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