AUTOBIOGRAFIA DE UM JORNALISTA
(Nova versão, revista e aumentada)
Giovanni VALENTINI
Il Romanzo del Giornalismo Italiano.
Cinquant’anni di informazione
e disinformazione
(Milano, La Nave di Teseo, 2023)
Por João de Almeida Santos

“GiV – Perfil de um Jornalista”. JAS. 05-2024
CONHECI-O pessoalmente há uns largos anos, quando fui convidado a fazer o Elogio de um poeta italiano, Corrado Calabrò (*), na cerimónia de entrega do Prémio Damião de Góis, pela Universidade Lusófona, em Junho de 2016. Giovanni Valentini estava presente e no fim da cerimónia tivemos uma breve conversa, onde tive oportunidade de o informar de que, na realidade, já o conhecia desde os tempos em que vivi em Roma, para onde fui preparar, em 1978, no Instituto Gramsci, uma tese de doutoramento sobre Antonio Gramsci. Por lá fiquei dez anos. Esse ano, o de 1978, foi um ano especial em que Aldo Moro foi raptado e assassinado pelas Brigate Rosse, mas também o ano da eleição de Karol Woytila, como Papa Giovanni Paolo II. Foi também o ano em que la Repubblica deu um grande salto em frente em notoriedade e difusão devido, em parte, ao tratamento do caso Moro e até à célebre fotografia em que o prisioneiro das BR tinha este jornal nas suas mãos. Ficámos amigos e dialogamos regularmente sobre a situação política italiana e portuguesa. E não só.
1.
Em primeiro lugar, o conteúdo de “Il Romanzo del Giornalismo Italiano”, em 19 pontos.
- Filho de arte, o Pai, Oronzo Valentini, a Gazzetta del Mezzogiorno e a ida para Roma como correspondente no Parlamento (1972).
- Ingressa em Il Giorno (1956), em 1974. Um jornal de centro-esquerda, com colaboradores de prestígio como Umberto Eco, Pier Paolo Pasolini, Giorgio Bocca, Alberto Arbasino, Antonio Cederna ou Vittorio Emiliani (que viria a ser director de Il Messaggero de Roma – 1981-1987). O “Caso Mattei”, a suspeita morte do presidente de ENI relacionada com a sua política sobre o petrólio.
- 1975 – Ingressa no jornal la República, que estava a nascer. Valentini participa na elaboração do números experimentais do “semanário que sai todos os dias”, com a “falange macedone” que se prepara para lançar um jornal de opinião e de massas, liberal de esquerda, politicamente comprometido, mas independente. O nome, por influência do caso do jornal português “República”, no período revolucionário de Abril. O “compromisso histórico”. De Martino dá lugar à liderança de Craxi no PSI. A vitória de Zaccagnini na DC.
- A experiência de L’Europeo (1945-1995), entre 1977 e 1979. Angelo Rizzoli consulta os partidos políticos antes de convidar Valentini para Director. O caso Moro (1978). A morte de Papa Luciani e a chegada de Papa Woytila. A P2 de Licio Gelli. O conflito com o “piduista” Tassan Din e o regresso ao Grupo L’Espresso-Repubblica.
- Vai para Padova (1979) dirigir dois jornais do Grupo: “Il Mattino di Padova” e “Tribuna di Treviso”, onde fica até 1981. Padova, a capital política da revolta estudantil. Autonomia Operaia e Tony Negri.
- Vai para Milão dirigir a delegação de la Repubblica. Uma proposta de Berlusconi, que recusa, apesar de a proposta lhe duplicar o salário, para trabalhar com ele. O Cardeal Carlo Maria Martini, sobre o qual escreveria um livro. O jornal tem em Milão 14% da difusão nacional.
- Em 1984 vai dirigir “L’Espresso”, onde ficará sete anos. O comportamento indecoroso do director Livio Zanetti e o “cerchiobottismo” (“uma no cravo outra na ferradura”) de Paolo Mieli; a colaboração de Giuliano Amato, de Umbetco Eco (a famosa “Bustina di Minerva”) e dos escritores Alberto Moravia e Enzo Sicialiano; o jornalista Giampaolo Pansa e o excelente e imaginativo vinhetista Forattini. A operação TV de Silvio Berlusconi, que haveria de levar à criação de Canale 5, Retequattro e Italia Uno. A orientação ambientalista da revista.
- Os casos de Enzo Tortora (apresentador televisivo), o “spinello” (ou ganza) de Claudio Martelli (ex vice-primeiro-ministro de Craxi), Cossiga (ex Ministro do Interior e futuro PR) e a operação “Gladio” (uma organização militar secreta).
- O Grupo L’Espresso passa a Carlo de Benedetti.
- Valentini, em 1991, volta a la Repubblica e em 1994 torna-se vice-director de Scalfari, ficando até 1988, já com a direcção de Ezio Mauro. É criada a página digital do jornal.
- 1996 – la Repubblica muda de director e com Ezio Mauro, vindo de La Stampa, começa a entrada da FIAT. Para desgosto de Mauro, Valentini mantém-se como vice-director até 1998.
- Entrevista Antonio di Pietro, onde este avança com o conceito de “corruzione ambientale”, conceito-chave para compreender a atmosfera da Milão daquele tempo e Tangentopoli.
- Vai para a Tiscali, a empresa de Internet, de Renato Soru, mas, em 2004, regressa ao Grupo Editorial “L’Espresso” como “inviato editorialista” de AGL (a Agenzia Giornali Locali).
- Pacto financeiro entre Berlusconi, primeiro-ministro, e Carlo de Benedetti.
- “Il Mistero della Sapienza” – a morte de uma jovem estudante na Cidade Universitária de Roma, sobre a qual haveria de escrever um livro de sucesso.
- A traição do jornal la Repubblica e o corte definitivo de Valentini com o jornal, já no fim da direcção de Ezio Mauro.
- De la Repubblica a Il Fatto Quotidiano, depois de consumada aquela que Marco Travaglio haveria de chamar “Stampubblica”, a “fusão” de La Stampa com la Repubblica, com a passagem do controlo proprietário à FIAT, onde passaria a publicar a sua rubrica “Il Sabato del Villaggio”.
- “Barbapapà” – as suas relações com Eugenio Scalfari.
- Finalmente, reflexões sobre o jornalismo hoje e o jornalismo online, em dois subcapítulos diferentes.
É este, numa curta descrição, o conteúdo do livro.
2.
Este livro é uma biografia de Giovani Valentini, ou GiV, mas contada a partir da sua experiência profissional, na qual, pela própria natureza da profissão, convergia uma parte importante da história de Itália, em particular da sua história política e editorial. Tendo trabalhado, como vimos, em Il Giorno, em la Repubblica, L’Europeo e L’Espresso, meios de comunicação muito relevantes no panorama editorial italiano, e, coisa não de somenos, tendo sido fundador e subdirector de la Repubblica e director dos dois semanários durante cerca de dez anos, pôde conviver com a maior parte dos protagonistas da vida política, editorial e económica italiana, chegando, assim, ao conhecimento dos seus mais importantes dossiers. E é precisamente isso que Valentini nos conta neste livro, que é mais um dos tantos que escreveu: “Um certo Carlo Maria Martini – La rivoluzione del Cardinale”, “Intervista su Tangentopoli”, “Il Mistero della Sapienza”, “Media Village”, “La Scossa”, “La Repubblica tradita”, para não citar os três romances publicados, de forte inspiração portuguesa, onde há vários anos vai vivendo de forma intermitente. Um dos romances, o primeiro, começa com um jantar que realmente aconteceu, no bairro lisboeta da Graça, com Valentini, a sua esposa, Anna Maria, e eu próprio e Teresina, a minha mulher, onde conhecemos o casal de jovens americanos que haveria de se tornar o centro da narrativa.
3.
Mas a sua profissão também lhe permitiu conhecer grande parte da elite política, jornalística, económica e intelectual italiana. Percorrendo o livro pude encontrar lá muitos dos personagens que eu próprio conheci, não pessoalmente, mas através da sua obra ou da sua acção. Seria demasiado referir aqui todos os nomes, mas permito-me referir alguns pelo seu relevo no livro, as funções desempenhadas ou a participação em episódios relatados: Eugenio Scalfari (Director de la Repubblica), Carlo Caracciolo (Presidente do Grupo L’Espresso), Umberto Eco (Filósofo, semiólogo), Giovanni Sartori (Cientista Político), Giampaolo Pansa (Jornalista), Forattini (Vinhetista), Angelo Rizzoli (Presidente do grupo Rizzoli), Maurizio Costanzo (Apresentador de televisão), Tassan Din (Empresário), Carlo Maria Martini (Cardeal), Paolo Mieli (Jornalista e ex-director do Corriere della Sera), Giuliano Amato (Ex-Primeiro-Ministro), Alberto Moravia (Escritor), Oscar Luigi Saclafaro (Ex-Presidente da República), Massimo D’Alema (Ex-primeiro-ministro), Berlusconi (Ex-primeiro-ministro), Enzo Tortora (apresentador de televisão, acusado de traficante de droga), Claudio Martelli (Ex-vice-primeiro-ministro), Carlo de Benedetti (Presidente do Grupo CIR – Olivetti), Carlo Azeglio Ciampi (ex-primeiro-ministro e ex-PR), Mario Segni (político da área DC), Mino Fucillo (Jornalista), Giuseppe Tatarella (vice-primeiro-ministro e membro de Alleanza Nazionale), Ezio Mauro (Jornalista), Antonio di Pietro (Magistrado Judicial – Mani Pulite), Water Veltroni (Ex-Secretário-Geral do PD), Renato Soru (Empresário), Giovanni Pitruzzella (Presidente Anti-Trust), Antonio Padellaro (Jornalista), Marco Travaglio (Director de “Il Fatto Quotidiano”). Estes nomes podem dar uma ideia da vastidão, da importância e do significado do que está em causa neste livro.
No livro não são referidos alguns nomes importantes da vida política italiana, porque não se cruzam com a evolução e a economia da narrativa. Cito somente alguns: Gianfranco Fini (Alleanza Nazionale), Beppe Grillo (M5S), Gianroberto Casaleggio (M5S), Matteo Renzi (Ex-primeiro-ministro), Matteo Salvini (ex-vice primeiro-ministro e líder da LEGA), Giuseppe Conte (ex-primeiro-ministro).
4.
Ocorre também sublinhar, agora de forma mais analítica, os mais importantes acontecimentos que são objecto da atenção de Valentini. Antes de mais, todas as etapas de evolução da história de la Repubblica, desde a sua fundação pela dupla Caracciolo/Scalfari, até à sua passagem ao Grupo de De Benedetti, com a entrada como Director, vindo de “La Stampa”, do grupo FIAT, Ezio Mauro, dando início ao que depois viria a ser conhecido como Stampubblica (fórmula da autoria de Travaglio), até à passagem definitiva, em 2016, de la Repubblica ao grupo FIAT, primeiro com Mauro Calabresi e, depois, a seguir à curta direcção de Verdelli, a Maurizio Molinari (veja pp. 180-181). O autor conta o seu trajecto, nas relações com o grupo de Caracciolo/Scalfari, que se pode resumir ao seguinte: deixa la Republica para, depois da experiência de L’Europeo, dirigir dois jornais do Veneto, a que se segue a chefia da redacção de la Repubblica em Milão, seguindo-se, por sete anos, a Direcção de L’Espresso e o regresso a la Repubblica como vice-director (1994-1998) até ao corte radical com o jornal, em 2015, na sequência de um desagradável episódio (uma notícia plantada) sobre o Presidente do Anti-Trust Giovanni Petruzzelli, de que era porta-voz. Estas as passagens fundamentais de Valentini, depois uma curta experiência em Tiscali, a empresa de Renato Soru. Mas outros acontecimentos são, como vimos, objecto da atenção de Valentini neste livro na justa medida em que se cruzam com a evolução do seu percurso de vida e profissional, que correu na sua maior parte durante uma parte da história de Itália em que houve grandes mudanças e significativos acontecimentos: rapto e assassínio de Aldo Moro pelas Brigate Rosse, a morte de João Paulo I, Papa Luciani, e a eleição de Karol Woytila, como João Paulo II, a emergência do craxismo no Partido socialista italiano, a queda do muro de Berlim, Mani Pulite ou Tangentopoli, o fim da DC e do PCI, a mudança no sistema televisivo italiano, com a Fininvest de Berlusconi e, depois, Mediaset, a entrada na cena política de Silvio Berlusconi em 1993-1994, com a subsequente formação do seu primeiro governo, a entrada em cena do Movimento 5 Stelle, em 2009, a queda de Berlusconi em 2011, os primeiros passos de Fratelli d’Italia, o governo de Matteo Renzi, a estrondosa vitória do M5S, em 2018, e os dois governos de Giuseppe Conte, o Governo de Mario Draghi e a vitória de FdI, em 2022, com Giorgia Meloni hoje a governar esse grande e belo país chamado Italia.
5.
Quando cheguei a Itália, o jornal la Repubblica tinha sido fundado por Eugenio Scalfari há cerca de dois anos e 9 meses, em 1976, e Giovanni Valentini fora também um dos seus fundadores. E, por isso, quando nos encontrámos, contei-lhe o que de facto, acontecera: lembrava-me de ter lido artigos seus na primeira página do la Repubblica, jornal que adoptei, então, não só como meio de informação, mas também como “estrutura de opinião”, a forma como os fundadores o conceberam, e que integrava grandes nomes do jornalismo, da política e da cultura italiana. Aprendi muito com este jornal, que li diariamente durante mais de trinta anos. Situava-se, de facto, na área do centro-esquerda, mas cultivava uma rigorosa e brilhante independência em relação não só ao poder político, mas também aos outros poderes da sociedade italiana, designadamente o económico. Independência que era garantida sobretudo por duas personalidades de grande peso: Eugenio Scalfari, o Director, e Carlo Caracciolo, “il Principe Rosso”, presidente da “Società Editoriale la Repubblica”. Um grande jornal que deveria servir de modelo, ainda hoje, a toda a imprensa. Um jornal de opinião, mas também de massas, rigoroso, culto, de centro-esquerda assumido, liberal de esquerda, intelectualmente competente e independente. Disputava a hegemonia com o Corriere della Sera, mais conservador, batendo-se taco-a-taco, tendo chegado a superá-lo. Giovanni Valentini foi sempre, e é, um jornalista formado na “escola” do la Repubblica, a pesar de ser “figlio d’arte” e de ter sido “contaminado” pelo jornalismo logo desde casa, por seu pai, Oronzo Valentini, jornalista e director de um influente jornal do Mezzogiorno, la “Gazzeta del Mezzogiorno”. Valentini assume com orgulho essa sua originária identidade profissional, que tem em Eugenio Scalfari o seu mais ilustre representante. Isso pode ler-se no delicioso capítulo que lhe dedica mais explicitamente: “Barbapapà” (pp. 292-302).
6.
Valentini, natural de Bari, foi jornalista e colaborador do la Repubblica durante quarenta anos, tendo sido também, como vimos, seu vice-director, entre 1994 e 1998. Mas esta não foi uma mera relação profissional. Iniciara a carreira de jornalista por influência (e contra o desejo) do Pai, também ele jornalista e futuro director da “Gazzetta del Mezzogiorno”, onde também trabalhou. Mas, em abono da verdade, e depois de ter trabalhado em “Il Giorno”, viria a construir-se verdadeiramente como jornalista na “escola” do la Repubblica, esse grande jornal que exibia uma solidez intelectual, cultural e política pouco comum no próprio panorama editorial mundial. Um jornal que se revia um pouco no “Le Monde”. Uma solidez que tinha no grande Scalfari o seu selo de garantia. Valentini reconhece-se, neste livro, como discípulo do “Maestro” Scalfari, também conhecido no círculo jornalista como “Barbapapà” (do francês “barbe à papa”: “algodão doce”), talvez pelas suas abundantes barbas brancas (ou “a sale e pepe”) e pela sua doce auctoritas, por todos reconhecida e aceite. Mas, ao ler este livro, de 334 páginas e 20 capítulos, acabei por verificar uma curiosa coincidência. Com a saída de Scalfari, em 1996, Valentini iniciara (silenciosamente) o seu processo de afastamento interior do la Repubblica quando Ezio Mauro, vindo do La Stampa, de Turim, foi, em 1996, nomeado seu director, tendo chegado a pôr o seu lugar à disposição, mas acabando por se manter até 1998, apesar da manifesta hostilidade de Mauro em relação a si, atitude que, de resto, acabaria por determinar a sua decisão de deixar o cargo de vice-director. A operação indiciava uma mudança no jornal, pois este fora durante vários anos director de La Stampa, o jornal do grupo Agnelli, conhecido como La Busiarda. Mudança que viria, de facto, a consolidar-se com a entrega, em 2016, do jornal a outro director proveniente de La Stampa, quebrando-se, definitivamente, do ponto de vista editorial, a lógica de independência do jornal, o seu estatuto de jornal de “editoria pura”, apesar de a sua estrutura proprietária já ter mudado há muito, com a chegada de Carlo de Benedetti, em 1989. A situação iria consolidar-se com a entrada da FIAT logo em 2016 e a entrega total, em 2019, do grupo à FIAT de John Elkan. Mas a ruptura definitiva de Valentini viria a acontecer em 2015, por ocasião de um “golpe baixo” desferido por duas jornalistas do la Repubblica contra o presidente do Antitrust Pitruzzella, de quem Valentini era porta-voz, já no fim da direcção de Mauro ( e a que este provavelmente não terá sido estranho). Com efeito, em 2016, viria a tomar posse como director do jornal Mario Calabresi, a que se seguiria, depois de um ano de Carlo Verdelli como director, Maurizio Molinari, outro homem do La Stampa, consumando-se, assim, definitivamente, a operação de mudança de orientação do velho la Repubblica (veja-se os capítulos 10 e 11, pág.s 165-198), quer em termos de estatuto proprietário quer em termos de gestão editorial. Também Scalfari viria a distanciar-se do jornal, mantendo apenas a relação através da publicação de artigos de cultura.
7.
Pois bem, também eu, por essa altura, no fim do mandato de Ezio Mauro, tinha deixado de ler, com a regularidade com que até então o fazia, o la Repubblica, por já não reconhecer nele o que me atraíra, quando em 1978 cheguei a Itália, e que vira confirmado não só durante os dez anos em que lá vivi, mas ainda por muitos mais anos, já em Portugal, tendo continuado a segui-lo diariamente, primeiro, em papel, e, depois, na internet. Até que chegou a desilusão e passei a ler com maior regularidade o jornal Il Fatto Quotidiano, fundado em 2009 pelo excelente jornalista e amigo de Valentini Antonio Padellaro (lia-o no Corriere della Sera), que foi seu director até 2015, sendo a partir de então dirigido pelo imparável e turbulento Marco Travaglio. Trata-se de um jornal independente que não recebe financiamentos estatais nem é, creio, de propriedade de um grupo financeiro ou económico. Um bom jornal, na minha opinião. Valentini é seu colaborador regular, com a sua já clássica rubrica “Il Sabato del Villlagio”, que, creio, iniciara em la Repubblica, título que homenageia o grande poeta italiano Giacomo Leopardi: “Questo di sette è il più gradito giorno, / Pien di speme e di gioa: / Diman tristezza e noia...” – estrofe de “Il Sabato del Villaggio”).
A minha reacção ao que estava acontecendo ao também “meu” jornal, a esta mudança profunda no seu perfil, foi quase de indignação pelo que estavam fazendo a uma jóia do jornalismo mundial. Pelo vistos, havia uma minha real sintonia com dois dos seus fundadores, Scalfari e Valentini: a identidade do la Repubblica fora radicalmente alterada… para pior. Tornara-se um “holograma” do que fora, como diz Valentini (pág. 302). Na verdade, ao ler este livro de Giovanni Valentini fiquei a conhecer melhor as razões da mudança, pois ele dedica uma parte consistente do livro à descrição da evolução do jornal.
8.
O livro conta a história de cinquenta anos de imprensa em Itália, vistos por um dos seus principais protagonistas. O jornalismo italiano visto por dentro, em particular nas suas relações com a estrutura proprietária, mas também nas suas complexas, delicadas e difíceis dinâmicas internas, incluindo episódios de claro corporativismo, de inveja e desconfiança entre os próprios profissionais e também sobre as consequências, inclusive judiciais, da coragem de informar sem medo das represálias. Valentini experimentou isso na própria pele. Mas sobretudo visto a partir de uma visão bem precisa, assumida e argumentada do que é e deve ser o jornalismo. A posição de Valentini é clara, como resulta de todo o livro: a boa imprensa é aquela que é gerida por editores puros, não aquela que fica sujeita à estratégia de financeiros ou de grupos económicos que a vêem exclusivamente com a lógica do lucro e do poder, totalmente independente da sua função social e política, ao serviço da cidadania. Uma identidade que ele identifica em la Repubblica de Scalfari e de Caracciolo ou no seu L’Espresso. Esta sua posição está claramente formulada no livro: “Um vaudeville de directores, entre Torino e Roma, que marcou o jornal fundado por Scalfari” (…), outrora “ancorado num editor puro, mas agora “com o selo de fábrica da maior indústria privada italiana: o editor mais ‘impuro’, que mais não é possível” (pág. 181), chegando a propor, no livro, um “Statuto dell’Editoria” “para limitar as quotas das participações financeiras nas empresas editoriais”, “e, ao mesmo tempo, reservar os financiamentos públicos para as cooperativas de jornalistas”, evitando que “editores impuros” possam aceder aos financiamentos estatais (pág. 315), pela óbvia razão de que eles não cumprem o código ético a que funcionalmente estariam obrigados – o de garantirem um rigoroso serviço público em que a informação deve instruir o cidadão nas matérias em que ele deve tomar as suas decisões, seja na política, na economia ou na cultura. E este é um ponto crítico do jornalismo actual, até porque “salvo raras excepções, doravante o chamado ‘editor puro’ é uma espécie em vias de extinção, que deveria ser protegida como o panda do Wwf” (pág. 313).
9.
A última parte do livro, depois de uma descrição da referência proprietária dos principais jornais italianos, à excepção do CdS (la Repubblica, La Stampa, Il Secolo XIX – Gruppo Gedi; Il Messaggero, Il Mattino, Il Gazzettino, Il Corriere Adriatico, Nuovo Quotidiano di Puglia, di Lecce e Bari – propriedade do construtor civil Francesco Gaetano Caltagirone; Il Giorno, Il Resto del Carlino, La Nazione – do Gruppo Monti-Riffeser; Il Giornale – da família Berlusconi; Libero, Il Tempo – do empresário da saúde e parlamentar de centro-direita Antonio Angelucci), mostrando abundantes exemplos da chamada “editoria impura”, é dedicada a uma reflexão, totalmente partilhável, sobre a nova condição do jornalismo na era da Internet e sobre as tendências que determinam uma nova dinâmica da informação, em função da emergência das redes sociais, do algoritmo e, em geral, da inteligência artificial. Uma profunda alteração na relação do cidadão com as plataformas de comunicação, onde a lógica do broadcasting é substituída por uma lógica relacional, não vertical nem hierárquica, mas horizontal e aleatória. Uma lógica que interfere decisivamente na função jornalística. E a verdade é que, como diz Valentini, “hoje, no essencial, não se faz informação para informar o cidadão, mas sim para defender interesses estranhos aos que deveriam ser estritamente editoriais. Para fazer negócios, obter favores, concessões ou licenças. E quanto mais se reforçarem as concentrações, neste campo”, diz, “menos se salvaguardam o conhecimento, o debate, a liberdade de opinião e, portanto, a democracia” (pág. 316). Na verdade, enquanto a procura de informação cresce, a oferta está a diminuir, ou seja, diminui o número dos que estão em condições de a produzir de forma profissional, de conjugar informação e conhecimento, daqueles que, em suma, Valentini designa por pós-jornalistas, os de hoje, aqueles que já inscrevem a sua actividade na sociedade em rede ou na sociedade algorítmica. Aqueles que se inscrevem na nova lógica que determina as formas de comunicação. Ofício, o de jornalista, absolutamente necessário, sem qualquer dúvida, mas que deve adaptar-se às exigências de tempos que estão cada vez mais em forte aceleração histórica e tecnológica: “uma nova figura profissional mais evoluída e complexa do que a tradicional”, é o que os tempos estão a exigir (pág. 307).
10.
Trata-se, pois, de um livro muito rico de informações sobre a imprensa nos últimos 50 anos em Itália, mas também sobre a própria história política e económica italiana. Tudo contado a partir da sua própria história pessoal, enquanto jornalista. No meio de uma enorme massa de informações, é uma narrativa com um claro fio condutor: a vida profissional de Giovanni Valentini contada através do desempenho, do complexo ambiente em que teve de se mover e das decisões que teve de tomar, das relações com os editores e com os colegas de profissão, tudo filtrado por uma ideia clara a que a sua vida profissional deveria sempre realisticamente obedecer – a que construiu ao longo da sua experiência, em primeiro lugar, e sobretudo, como membro da “escola” do La Repubblica, dirigida com sabedoria pelo “Maestro” Scalfari, e, em segundo lugar, como director de dois importantes semanários italianos, palco especial de onde pôde acompanhar, por dentro, como activo interveniente, no plano das suas funções profissionais, a vida política, editorial, económica e social de Itália. Uma ideia que entroncava numa ética editorial que sempre defendeu e que quis cumprir rigorosamente, em nome da cidadania – “editoria pura” e rigoroso cumprimento do código ético do jornalismo. Um desempenho independente de interesses que pudessem pôr em causa o exercício de informar e de descodificar o que de importante ia acontecendo nesse grande e belo país que é a Itália. A Giovanni Valentini foi atribuído o Prémio Saint-Vincent do Jornalismo, em 2000. É também romancista. JAS@05-2024.
NOTA
- Em português, deste autor: Corrado Calabrò, A Penúria de ti enche-me a alma. Poesia 1960-2012. Edição bilingue (Lisboa, 2014). Edição bilingue, tradução e pós-fácio de Giulia Lanciani. Prefácio de Vasco Graça Moura.
