Artigo-Notícia

“POLÍTICA E IDEOLOGIA NA ERA DO ALGORITMO”

Novo Livro
de JOÃO DE ALMEIDA SANTOS
(S. João do Estoril, ACA Edições,
2024, 262 pág.s)
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A Capa do Livro. JAS. 06-2024

“POLÍTICA E IDEOLOGIA NA ERA DO ALGORITMO”

Já está disponível, para aquisição
em formato digital, este Livro (5€).
Pedido a
ACA Edições: acazarujinha@gmail.com
FICHA TÉCNICA

Título: Política e Ideologia 
na Era do Algoritmo
Autor: João de Almeida Santos
Capa: João de Almeida Santos
Design & Paginação: Pedro 
de Almeida Santos
ISBN: 978-989-33-5389-9
Local: S. João do Estoril
Ano: 2024
Copyright: João de Almeida Santos
& Associação Cultural Azarujnha
Editora: ACA Edições
Rua Brito Camacho, nº 129, 2.º D.to
2765-457 - S. João do Estoril
E-mail: acazarujinha@gmail.com
ÍNDICE

INTRODUÇÃO

I. A POLÍTICA NA ERA DO ALGORITMO

A Política na Era do Algoritmo
Apocalipse Now?
Algoritmocracia
Os Novos Spin Doctors
e o Populismo Digital
A Política Tablóide
e a Crise da Democracia 

II. A DIREITA RADICAL

A Democracia Iliberal
A Direita Radical
A Direita Radical em Itália

III. A POLÍTICA DELIBERATIVA

A Democracia Deliberativa
Globalização, Capitalismo 
e Democracia

IV. IDEOLOGIA - A LAVANDARIA 
SEMIÓTICA

A Lavandaria Semiótica
Woke
Os Novos Progressistas
Ideologia de Género 
e Luta de Classes
Os Revisionistas e seus Amigos

V. CONCLUSÃO

VI. BIBLIOGRAFIA

TRATA-SE, COMO SE VÊ PELO ÍNDICE, de uma obra que, no essencial, se confronta com quatro grandes temas: 1) a democracia perante os progressos tecnológicos:  plataformas digitais, TIC, internet, redes sociais, algoritmo, constitucionalismo digital; 2) a direita radical: a democracia iliberal, a doutrina e o caso italiano; 3) a democracia deliberativa, como solução para a crise de representação, e o novo espaço público deliberativo na era da globalização; 4) a ideologia woke e seus derivados – a caminhada política, rumo à hegemonia, da esquerda identitária dos novos direitos.

1.

São estes os grandes temas desenvolvidos neste livro. Um livro escrito de acordo com as normas da academia, mas com o objectivo de contribuir para a resolução dos grandes problemas com que hoje se confronta a democracia representativa, num registo teórico que procura ir além do paradigma da teoria política clássica, designadamente através de uma incursão analítica sobre estes temas com novas categorias mais adequadas à nova realidade dos meios de produção da política, da comunicação e da democracia.

2.

Senti necessidade de escrever este livro por duas razões essenciais: em primeiro lugar, porque não vejo a esquerda moderada a agir politicamente de acordo com os novos paradigmas emergentes, continuando subsidiária de velhos modelos de política, já desgastados e responsáveis pela sua crise actual, ou seja, produzindo política em movimento por inércia, por não dispor de novas categorias e de uma nova cartografia cognitiva, acabando por revisitar o seu próprio património ideal com a mundividência da chamada esquerda identitária dos novos direitos, ou seja, desviando-se progressivamente do confronto activo com as fracturas fundamentais da sociedade, que acabam por ser sobredeterminadas cognitivamente ou mesmo encobertas pela nova ideologia. Uma ideologia que encontra enormes afinidades em todas as doutrinas que recusam aquela que é a matriz liberal clássica da nossa própria civilização, desde a revolução da modernidade; em segundo lugar, porque considerei absolutamente necessário desmontar, não só a ideologia e a mundividência política da direita radical (em três capítulos), mas também, nas suas várias frentes, esta ideologia identitária dos novos direitos (em cinco capítulos), que tem vindo a ganhar terreno no seio do centro-esquerda, e até no próprio centro-direita, tornando-se não só um inadequado e até perigoso substituto da narrativa clássica da esquerda moderada, mas também o alvo privilegiado da direita radical, que acaba por a identificar como expressão doutrinária hegemónica do próprio establishment democrático. Em Portugal, não faltam exemplos da assunção pelo centro-esquerda desta ideologia, seja do discurso politicamente correcto seja da ideologia de género (na sua versão radical) ou do próprio wokismo. Versões que analiso exaustivamente no livro.

3.

Torna-se, pois, necessário, proceder a uma correcção de rota, retomando aquele que deve ser o caminho do centro-esquerda, não só através de um claro reposicionamento relativamente à tradição liberal clássica, a mesma que derrubou o Ancien Régime e o regime do privilégio (e bastaria, para o efeito, lembrar que há muito existe uma doutrina, com pergaminhos teóricos e de valor, chamada socialismo liberal), mas também de um reconhecimento da necessária evolução para uma democracia deliberativa, deixando para a esquerda radical a defesa e a promoção política desta ideologia identitária dos novos direitos. A distanciação em relação a esta corrente permitiria, além do mais, clarificar o terreno político do centro-esquerda relativamente à confusão intencional que a direita radical tem vindo a promover sobre esta nova ideologia da esquerda como a ideologia dominante do establishment. A democracia, enquanto regime plural e tolerante, convive bem com estas ideologias, desde que elas exibam um efectivo “patriotismo constitucional”, para usar o conceito de Habermas, mas não pode é deixar que elas se transformem em seus pilares estruturais, com o seu cortejo de dogmas intolerantes e atentatórios da própria liberdade. Cabe, pois, ao centro-esquerda (mas também ao centro-direita) ocupar o lugar que a modernidade e a própria democracia lhe tem vindo a confiar, adequando a sua doutrina e as suas práticas às profundas mudanças que estão a acontecer: rompendo com os graves desvios a que tem estado sujeito; recuperando uma ideia de política mais centrada nas expectativas da cidadania e na ética pública e menos endogâmica e corporativa; superando o obsessivo discurso “algebrótico” dos grandes números como discurso legitimador das políticas e suporte de uma visão meramente managerial da política, mas abandonando também essa visão cada vez mais caritativa do Estado Social e injusta para com aqueles que representam o pilar fiscal que suporta, no essencial, o orçamento de Estado (a classe média); e, finalmente, preocupando-se mais com a eficiência do aparelho de Estado, que não seja exclusivamente na cobrança dos impostos. Em síntese, corrigir o que não foi bem feito, os desvios e as insuficiências, em função de novas categorias e de uma nova cartografia cognitiva da sociedade actual.

4.

Foram estas, no essencial, as razões que me levaram a escrever este livro.

5.

O livro, que se segue ao que a ACA Edições já publicou e que se encontra esgotado (A DOR E O SUBLIME. Ensaios sobre a Arte, 2023), está disponível para venda, bastando contactar a Editora através do e-mail acazarujinha@gmail.com, manifestando o desejo de adquirir o livro na versão digital (5 Euros) e seguindo as instruções que a Editora dará (depósito na conta, envio de recibo e receberá o livro no mail indicado). Em breve ficará disponível a versão on paper, em edição limitada. A quem vier a adquirir o livro na versão on paper e o tiver já adquirido em versão digital será descontado o valor pago pela versão digital. Pode obter mais informações no site da ACA (em renovação), no Instagram e no Facebook: (https://www.instagram.com/aca_associacaocultural?igsh=MTkwNWE4MmQ0dTV3cw==  e https://www.facebook.com/share/wGiqZFHpRTeMGUFi/ ) JAS@07-2024

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Poesia

IDENTIDADES

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: "A Outra Janela".
Original de minha autoria.
Maio de 2024.
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“A Outra Janela”. Jas. 05-2024

POEMA – “IDENTIDADES”

QUEM ÉS TU?
(Talvez um dia
Perguntes)
Eu sou aquele
Que canta
Pra ti,
Que te desenha
O perfil
Sem nunca
Te nomear,
Aquele que
Sempre
Te chama
Como quem gosta
De ouvir
O eco
Do seu cantar.

QUEM SOU EU?
(Insistirás...)
Ah, sou aquele
Que num dia
Inesperado
Te disse
Que era mais
Do que certeza
Gostar da tua
Beleza
Mas sem te
Comprometer
Porque o teu corpo
Não era
O que mais eu
Desejava
Vir algum dia
A ter.

MAS TU
(Agora,
Sou eu
Que pergunto),
Quem és tu,
Afinal?
Aquela que
Tem medo
De me olhar,
Que diz
Que não
Pode ser,
Que não me ousa
Dizer
Que tudo pode
Arriscar
Porque teme
As tempestades
Deste meu
Incerto mar?

MAS PORQUÊ
Estas perguntas
Que aludem
Ao que nunca
Aconteceu,
Tão longe
Que estamos
De ter
Caminho
Pra percorrer
Em busca
Do impossível
Ou do que nunca
Foi meu?

TALVEZ SEJA
Muito fácil
Responder
Se souberes
Que só tive
Uma razão
Pra te ter
Deste modo
Intangível
Que nunca
Ousaste
Entender...
..........
Porque parecia
Impossível...

UM POEMA,
Um canto
Em surdina,
Um arco-íris
Vertido
Numa bela
 Aguarela,
Um modo
De te olhar
Sem sair
Do meu lugar...
.............
O de um poeta
À janela.

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Artigo

AS FRONTEIRAS DO PODER JUDICIAL

João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 05-2024

A PROPÓSITO do famoso Manifesto dos 50 sobre a necessidade de reformar a justiça e, claro, a propósito do ainda mais famoso parágrafo do comunicado que o suscitou e que haveria de acabar com o governo de maioria absoluta do PS, pareceu-me oportuno repropor, com excepção da pequena parte relativa ao primeiro subtítulo, por nada de novo acrescentar em relação ao que aqui está em causa, e de pequenas actualizações,  alterações de forma e de oportunidade, o essencial do artigo que publiquei num jornal digital (“Tornado”), em 5 de Janeiro de 2018, e que viria a ser reproduzido na íntegra, e com destaque de primeira página, no jornal angolano “O País”, sobre o caso da acusação judiciária ao Vice-Presidente de Angola, Manuel Vicente. Tratando-se de um caso com pesadas consequências internacionais – diria mesmo um caso-limite – permite compreender melhor a atenção que devem merecer certos processos judiciais (este, em análise, ou o mais recente da queda do XXIII governo constitucional) pelas relevantes implicações que eles têm sobre o sistema político e, neste caso, também sobre as próprias relações internacionais. Este artigo é o primeiro de outros que aqui irei publicar sobre esta matéria.

INTRODUÇÃO

A acusação formal ao Vice-Presidente de Angola pelo Ministério Público português, num caso de corrupção, suscitou-me algumas reflexões que gostaria de partilhar. Porque, na verdade, o caso me pareceu politicamente muito complexo e delicado. Em particular, pelos efeitos que provocou no sistema de poder angolano, quando estava em curso um processo eleitoral e uma complexa transição de poder, mas também nas relações bilaterais, tendo causado a suspensão da visita da Ministra da Justiça a Angola. E até me pareceu que seria legítimo pensar, pelo simbolismo e alcance da decisão, que o Ministério Público português acabou por assumir o poder de “declarar guerra” a um Estado estrangeiro soberano. Sim, porque Manuel Vicente era um cidadão estrangeiro, número dois do Estado angolano e, por isso, também detentor de imunidade diplomática, não se sabendo sequer qual o destino que teriam as cartas rogatórias enviadas e não estando o alegado ilícito enquadrado no raio de acção do Tribunal Penal Internacional, dada a sua natureza. Temos, pois, neste caso, ingredientes mais do que suficientes para suscitar uma reflexão profunda sobre os limites da acção do Ministério Público (MP). Num registo muito claro e limitado: a acção e os seus efeitos sobre o sistema de poder angolano e sobre as relações entre os nossos dois países. Trata-se de um caso extremo e isso ajuda a compreender melhor o traçado das fronteiras do poder judicial (ou judiciário).

O CASO

Um procurador português foi acusado de ter arquivado um processo que visava Manuel Vicente – acusado formalmente pelo MP, enquanto corruptor -, a troco de dinheiro. Coisa grave, sem dúvida. A começar pelo próprio MP que, através de um dos seus, se viu envolvido em actos de corrupção. E a acabar em alguém que se encontrava nesse momento no vértice de um Estado soberano com quem Portugal tem relações muito estreitas. E é aqui que surge o problema e a dificuldade. Ou seja, o problema da relação entre meios e fins, entre causas e efeitos, quando a desproporção se torna gigantesca, colocando-se a questão da adequação de uns em relação aos outros. E quando os efeitos se tornam incomensuravelmente maiores do que as causas, como dizia François Furet a propósito das causas e dos efeitos da Grande Guerra sobre a história mundial. Pode haver pequenos gestos (que até sejam correctos) que, por conterem em si um grande potencial devastador, devam ser muito bem avaliados antes de serem praticados. Às vezes, o problema até se pode resolver com o bom-senso. Mas quando se trata de instituições do Estado é mesmo obrigatório introduzir sempre nos processos decisionais a variável “consequências” (sobre a sociedade, sobre as gerações futuras ou sobre as relações internacionais). Porque, na verdade, alguns actos de normal e justificada administração podem induzir efeitos em boomerang tão intenso sobre o sistema que seja aconselhável evitá-los ou tratá-los com o maior cuidado. No caso do Vice-Presidente de Angola, os autores da acusação formal e a hierarquia do Ministério Público calcularam os efeitos devastadores que esta acusação formal – e a correspondente divulgação – poderia ter? Angola é um Estado soberano e o acusado era a segunda figura deste Estado. Não poderia esta acção vir a ser considerada, como, de resto, foi, um acto de agressão de Portugal a Angola, com todas as consequências que isso poderia ter, designadamente para as empresas e pessoas que estavam estabelecidas neste país e para as relações entre dois Estados soberanos com tantos interesses comuns? O MP tem o poder de “declarar guerra” a um Estado soberano, provocando efeitos infinitamente superiores à causa que motivou essa acção? Alguém diria: “É a política, estúpido!”. E com razão.

ESTRANHAS COINCIDÊNCIAS

O que não deixa de ser curioso é que Manuel Vicente foi também atingido na Operação Marquês, por contactos mantidos com José Sócrates, ao mesmo tempo que era uma figura em queda no sistema de poder angolano, primeiro na Sonangol e, depois, na Presidência, uma vez que foi preterido em relação ao então anunciado sucessor de José Eduardo dos Santos, João Lourenço. A pergunta maliciosa que ocorre fazer é a seguinte: com esta acusação não estava o Ministério Público português a interferir no processo de defenestração política de Manuel Vicente, em Angola? Se o visado fosse, por exemplo, João Lourenço o MP agiria nos mesmos moldes? E com que consequências? E esta acusação tinha alguma relação simbólica com o desenlace da Operação Marquês (por via de Sócrates e de Ricardo Salgado)? Porquê, então? O “Expresso” dava, então, bem conta dos efeitos desestabilizadores que esta acção do MP estava a ter numa Angola que se preparava para eleições, para uma profunda transição no poder e para novos reequilíbrios de poder.

De qualquer modo, e até por estas razões, este era um dos casos em que o efeito era certamente muito superior à causa e, por isso, deveria ter sido tratado com o necessário cuidado.

O PAPEL DA PROCURADORA-GERAL 
DA REPÚBLICA

A pergunta que ocorre fazer é a seguinte: que papel teria tido neste processo a Senhora Procuradora-Geral da República (PGR), enquanto máxima responsável do Ministério Público e pessoa (formalmente) da confiança do poder político? Calculou os efeitos que esta acção do MP iria ter em Angola? É que, pela natureza do cargo, a PGR tem particulares responsabilidades na gestão de dossiers desta natureza, ou seja, de matérias que implicam níveis mais elevados de poder institucional e mais ainda quando se trata de Estados estrangeiros. Não é por acaso que o PGR é proposto pelo Primeiro-Ministro, é nomeado pelo Presidente da República e não tem de ter requisitos formais iguais aos dos outros magistrados. Ou seja, em palavras muito claras, o PGR tem funções que ultrapassam em muito o plano meramente jurídico, devido à sua posição de charneira, de ligação e de interface do poder político com o poder judiciário. Mesmo que os seus poderes sejam limitados, o PGR tem certamente de estar em condições de, pelo menos, exercer uma responsável e eficaz “magistratura de influência”. Para não dizer, de accionar o poder hierárquico de que dispõe. Caso contrário, verificar-se-á um injustificável desequilíbrio entre o seu estatuto e o seu efectivo poder. Por isso, se esta acção do MP fosse considerada como intempestiva e politicamente disruptiva, a Senhora Procuradora-Geral da República teria nisso a sua quota parte de responsabilidade. E, se assim fosse, não deixaria de haver quem passasse a ter saudades dos tempos do PGR Cunha Rodrigues (há dias, na entrevista ao DN, 17.05.2024) considerado por Francisca Van Dunem o melhor PGR “que este país já teve”). Não se discute, de modo algum, que a justiça deva ser cega. Mas, certamente, existem bordões procedimentais que podem ajudar na escolha do caminho mais adequado…

OS MEDIA E A JUSTIÇA

Este assunto chama a atenção uma vez mais – e é isso que aqui, no essencial, está em causa – para o poder excessivo que o poder judiciário está a exibir, e não só em Portugal. Este poder está a transformar-se cada vez mais numa sofisticada e eficaz arma de luta pelo poder. Alguns já usam um conceito para o designar: lawfare. Sobretudo quando se verifica uma crescente personalização da política e, por isso, uma mais fácil imputabilidade (ética e judicial) de quem detém o poder. E, neste processo, o establishment mediático tem-se constituído como importante parte activa, tornando-se ele próprio protagonista de investigações muito pouco claras quanto aos fins. Um ministro ameaça com as suas decisões a posição de um canal televisivo, logo põem 15 ou 20 jornalistas a investigar a sua vida e, depois, com resultados à mão, julgam-no em prime time, ao mesmo tempo que accionam um processo judicial. Chama-se a isto jornalismo de investigação. Que tanto pode ser honesto como desonesto, não esquecendo que os media se comportam como um poder, como referido pelo Tocqueville de “Da democracia na América”. Os casos abundam, para um lado e para o outro. Mas uma coisa é certa: as garantias (jurídicas) que ao longo dos séculos foram penosamente conseguidas, caem como castelos de cartas perante esta novíssima forma de “administração da justiça”. Os casos são cada vez mais frequentes. Acresce, ainda, que se tem vindo a verificar uma promiscuidade absolutamente intolerável entre o poder judiciário e o establishment mediático na gestão dos processos. O mais conhecido é o do ex-Primeiro-Ministro José Sócrates, com a divulgação ao minuto das peças processuais obtidas por assistentes ao processo que continuam a desempenhar as suas funções de jornalistas sobre o mesmo processo onde são assistentes, mandando às urtigas o código ético a que estão obrigados. O segredo de justiça já passou à história, ultrapassado que foi pelos factos. Não é, todavia, de hoje esta promiscuidade, havendo já uma vasta bibliografia sobre o assunto. O Alain Minc tem dois livros sobre o assunto (L’Ivresse Démocratique, de 1995, e Au nom de la Loi, de 1998).

SEPARAÇÃO DE PODERES?

Mais interessante ainda é a posição dos próprios agentes políticos sobre tudo isto. Em Portugal assobia-se para o lado, na esperança de que a vida pessoal não venha a ser investigada por jornalistas ou pelo Ministério Público, não se compreendendo que, assim, já se está a agir sob coacção, aumentando o poder de quem subtilmente infunde medo. A fórmula é conhecida e já enjoa: “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”; e, já agora, “à imprensa o que é da imprensa”, enquanto, no mais indefinido dos critérios, tudo é considerado de “interesse público”. Muito bem, até poderia ser se a justiça e um certo jornalismo não estivessem cada vez mais a entrar no terreno da política, exorbitando claramente das competências e funções. É-se escutado e investigado, directa ou indirectamente, a pretexto de uma denúncia, que até pode ser anónima. Um modo cómodo e até agradável de investigar, sobretudo se for depois de “refeiçoar”. O espectro de um big brother, que não é político, paira sobre a nossa frágil democracia. É certo que a separação de poderes é fundamental, mas também é certo que os poderes, sendo separados, não são hierarquicamente iguais. E, mais, a separação não pode ser válida num só sentido, o de quem tem o poder de escutar e de perseguir criminalmente. Na verdade, enquanto a legitimidade do poder legislativo é de natureza, digamos, ontológica, a do poder judicial é de natureza derivada e meramente técnica. Só que esta tecnicidade, a que acresce autonomia plena, já se tornou verdadeiramente ontológica, tal foi a mudança qualitativa e o crescimento do seu poder invasivo junto dos outros poderes. 

A ANEMIA DO PODER POLÍTICO

A verdade é que por muitas outras razões – designadamente devido à globalização, à dependência dos mercados financeiros internacionais, a que se juntam as famosas agências de rating, à crise da representação, à personalização excessiva do poder e à natureza do novo espaço público – o poder político de natureza representativa está cada vez mais anémico. Mas também é verdade que os agentes políticos nada fazem para reverter a situação, deixando-se, por um lado, nas mãos dos populistas (como está a acontecer) e, por outro, nas mãos de outros poderes (designadamente o mediático e o judiciário) de que estão a ficar, e cada vez mais, reféns. Até pelas fragilidades pessoais que uma boa parte das elites tem vindo a revelar perante a cidadania.

Tudo estaria bem se por detrás desta utopia interesseira e perigosa da transparência total não estivessem também interesses ocultos que se protegem iluminando com os holofotes de serviço os pecadores presentes no palco da política, ao mesmo tempo que favorecem aqueles que, nos bastidores, melhor sintonizam com as suas próprias estratégias e interesses.

ENFIM...

Regressando, pois, ao começo deste artigo, o caso de Angola (tal como o mais recente ocorrido no dia sete de Novembro) levanta uma questão de fundo acerca dos limites da acção do Ministério Público, quando se verifique que ela se inscreve num claro quadro onde os efeitos globais superam em grande medida as causas, implicando dimensões que interferem directamente no funcionamento global do sistema social ou das relações internacionais. O que parece ser o caso de Angola: anulada a visita da Ministra da Justiça (por acaso de origem angolana), em causa a visita oficial do PM a Angola para a resolução de urgentes problemas financeiros das empresas que lá operavam, eleições presidenciais, transição do poder, complexos reajustamentos no sistema de poder angolano, etc., etc…

O poder judiciário tem o dever de se proteger a si próprio, porque quando assistirmos ao fim da sua própria credibilidade, depois da queda de credibilidade do sistema financeiro, o caminho ficará aberto para soluções onde todos temos a perder, incluído ele próprio. E os populismos estão a encontrar cada vez mais terreno fértil para a conquista de um poder que tenderá a não respeitar, esse sim, a separação de poderes. JAS@05-2024

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Poesia-Pintura

A FONTE E A NEVE

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Pasárgada II”, JAS 2022.
Museu da Guarda.
* Impressão Giclée, 119x119,
em papel de algodão e verniz
Hahnemuehle, Artglass AR70.
Maio de 2024.

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“Pasárgada II”. JAS 2022. 05-2024

POEMA – “A FONTE E A NEVE”

ERA MAIO
E subia
Lentamente
A montanha
A caminho
Dessa fonte
Seminal,
Um rio
De água pura
E fria,
Torrencial,
Cristalina,
A jorrar...
..........
Uma dádiva
Divina
Pra fruir
E ofertar.

SUBITAMENTE,
 O céu
Cobriu-se
Dessa neblina
Brilhante
Que anuncia
Neve
Lá no alto
Da Montanha.
Pressentem-na
Os que a têm
Em si,
Os que ela
Sempre inspira
E acompanha,
Como eu,
Que sempre
Em mim a senti.

ATRAÍDO
Por um íman
Invisível,
Mudei de rumo
E para o topo
Subi,
Tão grande
E tão constante
Era a sede
Desse branco
Sempre frio e
Cintilante
No seio do qual
Eu cresci.

SAUDOU-ME
Lá em cima,
Vinda
Do alto do céu,
Farrapos brancos
Caíam,
Feitos de fios
De véu,
Murmúrio
Da natureza
A insinuar
De mansinho
A sua discreta
Beleza.

DAVA-ME
As boas-vindas
E continuei,
Feliz,
A subir
Até à densa
Neblina
Do céu
E à esparsa
Brancura,
Esse véu
Tecido com
Leves farrapos
De seda,
Seda branca,
Seda pura
Que a natureza 
Me deu.

E COMO GOSTEI
De me ver
Envolvido
Nessa teia
Que abraça
Com neblina
E frio,
Com o branco
Que cintila,
Branco leve,
Branco macio
Que lembra
Noites de sonho
E me sabe
A desafio...

NADA MAIS
Eu pude ver
Que um palmo
De alvura
Mesmo ali
A meus pés,
Uma intensa
Brancura
Que anuncia
O infinito
Que está ali...
............
Mas não vês.

INSPIREI FUNDO
Esse branco
E esse frio,
Bebi da densa 
Neblina
Que me envolvia
Como abrigo
E regressei
À fonte
Com neve
Na alma
E já com água 
No corpo
Levei a montanha
Comigo.

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Artigo

O DUPLO VALOR DAS EUR0PEIAS

João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 05-2024

DIGO-O DE IMEDIATO: as legislativas deixaram um quadro político algo confuso e frágil, com um partido a governar sem condições para exercer realmente o poder executivo (por mais aeroportos, pontes ou TGVs que anuncie), dando forma a uma efectiva separação de poderes, que tão maltratada tem sido no nosso país. Talvez seja por isso que, paradoxalmente, Luís Montenegro diz que está a gostar muito de ser primeiro-ministro – uma certa sensação de inebriante vertigem de quem sente ali ao lado a força gravitacional do precipício. Há até quem já identifique, e com alguma razão, a governação através do conhecido conceito de governo de assembleia, baseando-se nas mais recentes medidas impostas pelo parlamento.

1.

Na verdade, não estamos perante a clássica geometria da relação binária entre maioria e minoria, mas sim perante três blocos políticos em geometria variável, onde o bloco que governa é somente o segundo em força parlamentar, a seguir ao bloco da esquerda, pois rejeita (veremos até quando) a mobilização política da ala mais à direita da geografia parlamentar. Está, pois, preso apenas por dois deputados (os do CDS), que, em boa verdade, para mais nada servem, ou serviram, do que para justificar a  indigitação do líder da AD (isto é, do PSD) como primeiro-ministro. Em síntese, não se tratando de uma maioria absoluta, também não se trata sequer de uma maioria relativa. É, sim, uma absoluta minoria sem suficiente legitimidade para governar.  Na verdade, quem governa é o partido que, não sendo o maior partido da Assembleia, recusa, mesmo assim, sistematicamente, assumir a necessária aliança com a direita radical, ou seja, com o CHEGA. É um facto comprovado que a formação do actual governo teve como condição implícita a impossibilidade de a esquerda de maioria relativa (em relação ao dito bloco do centro-direita) poder formar governo, por uma única razão: a declarada oposição do partido CHEGA e, claro, da AD. Ou seja, pela oposição de 138 deputados, num parlamento de 230. Mas a convergência acabou aí, como se está a ver. Não se verificou na eleição do PAR, no IRS, nas portagens. Viu-se agora, e mais uma vez, a convergência com o PS, no caso do novo aeroporto. E também já se percebeu que o CHEGA nunca aceitará fazer acordos ocultos, por baixo da mesa, com o PSD, por razões facilmente compreensíveis. Com a dimensão que tem, ele exigirá sempre público reconhecimento de eventuais acordos (de governo ou parlamentares) que venha a celebrar com o PSD. O que é natural: aspira a ser reconhecido como força política que pode legitimamente integrar o arco governativo. Alguém dizia, e com alguma razão, que, nestas condições, ou circunstâncias, o verdadeiro adversário do CHEGA já não é o PS, mas sim o PSD, porque a sua ambição é mesmo vir a superá-lo eleitoralmente, colocando-se, então sim, como efectiva alternativa de poder ao PS. Ventura terá sempre bem presente o que aconteceu em Itália com o partido Fratelli d’Italia. Disso não duvido.

2.

Nestas circunstâncias, o actual quadro político não pode gerar clareza em relação ao processo decisional. Vive-se num ambiente de grande mobilidade ou de aleatoriedade decisional. O que é reforçado ainda mais pela atitude de manifesta arrogância de um governo que não tem suporte nem legitimidade que bastem no quadro parlamentar. Mas talvez seja isso mesmo: uma certa vertigem inebriante devida à proximidade do precipício. O que acontece é que, no fim, o cidadão não fica em condições de poder imputar com clareza a responsabilidade pelo que, no fim dos complexos processos de decisão, acabará por acontecer nas matérias que forem sujeitas a intervenção parlamentar. E ao governo restar-lhe-á sempre a possibilidade de dizer, qual patinho feio, que não o deixam governar, colocando-se, assim, na posição de vítima para pedir compaixão eleitoral à cidadania em próximas eleições, transformando-se, então, num belo cisne.

3.

É por isso que me parece que estas eleições europeias poderão ser decisivas para alavancar decisões clarificadoras em relação ao actual quadro político. Até porque não será olhando para os programas eleitorais europeus dos dois maiores partidos que o cidadão poderá orientar o seu voto, dada a forte convergência de linguagem e de posicionamento em relação à União Europeia, de resto, muito pouco instrutivos para a decisão (que, na origem, significa precisamente escolha). Mas também não será olhando para as escolhas partidárias dos candidatos a eurodeputados, pouco claras em relação à genuinidade da vocação europeia dos que aspiram a sentar-se na bancada do PE ou à eficácia da sua acção enquanto europarlamentares. Atenho-me, como se compreende, aos critérios de escolha dos candidatos e não às suas qualidades pessoais. Refiro-me, por exemplo, à escolha dos cabeças de lista, de deputados acabados de eleger para a AR, de autarcas em fim de mandato, dando ideia de que se trata mais de compensação por serviços prestados ou por aposta na visibilidade televisiva dos candidatos do que de qualquer outro critério. Por isso, talvez nunca, como desta vez, o voto para o PE tenha tido um significado nacional tão intenso, a par de um significado europeu tão pífio, se atendermos aos programas apresentados, uma ronda discursiva em europês e essencialmente em torno do que já está em curso na UE. Melhor, talvez nunca eleições europeias tenham suscitado um tão intenso imperativo nacional do voto como este. Sou europeísta convicto (fiz na Europa uma boa parte da minha vida), mas mesmo vivendo (ou tendo vivido) a União Europeia – com o COVID, a Guerra Rússia-Ucrânia e a crise da energia que dela resultou, a crise inflacionista e a alta de juros, a situação explosiva no Médio-Oriente, a pressão migratória, o avanço europeu da extrema-direita – uma situação tão complexa e delicada como a presente, a verdade é que nem a dimensão da nossa representação (21 eurodeputados em 705) nem a vocação europeia dos candidatos a representantes ou a qualidade das propostas que os dois partidos avançam nos seus programas eleitorais resultam ser tão importantes para o eleitor como a urgência de uma clarificação em matéria de política interna. Este voto será mais útil politicamente se for determinado pela situação política nacional do que se for determinado pelas variáveis em causa numa eleição europeia. Pelo menos nas condições em que esta agora ocorre.  Já quanto ao CHEGA, se a sua pulsão eleitoral, em termos nacionais, é clara, também o seu posicionamento europeu o é, pois ele, sem propor a saída da União, alinha com uma visão minimalista da União alicerçada num soberanismo assente numa Europa da Nações. E, todavia, o resultado que este partido obtiver será também de grande importância para uma clarificação do quadro político interno.

4.

A verdade é que se se verificar uma clara derrota da chamada AD, então ficará claro que urge mudar de vida e preparar rapidamente uma nova ida a votos em legislativas para obter um quadro político mais definido e eficaz e uma governação com efectivo suporte parlamentar e maior legitimidade. Ou, então, provocar uma mudança profunda nas relações políticas à direita de modo a que esta possa governar num quadro estável com uma maioria absoluta no parlamento. Que existe e é (numericamente) robusta. Só que esta solução não poderia contar com o actual primeiro-ministro, dada a sua reiterada inflexibilidade em relação ao CHEGA. Muitas serão as vozes que, neste caso, se levantarão a exigir que se ponha de pé esta última solução, argumentando, não sem alguma razão, que, por um lado, em ulteriores eleições o quadro actual não mudará substancialmente e que, por outro, é isto que já se verifica em inúmeros países da União. Ou seja, a direita nunca poderá dispor de uma maioria absoluta se não integrar o partido CHEGA numa solução de governo ou pelo menos parlamentar. Os resultados europeus ajudarão a clarificar este quadro.

5.

Estas eleições são, pois, mais decisivas para clarificar o quadro político interno do que para eleger qualificados representantes de Portugal no Parlamento Europeu que possam promover, neste quadro, um país mais influente e uma melhor União. Acresce que, olhando para os programas eleitorais dos dois partidos, o que se constata é que muitas matérias importantes ficaram fora dos programas eleitorais: 1) Como promover uma consistente e necessária cidadania europeia, aquela que o CHEGA rejeita? 2) Que reforma institucional para a UE, de modo a tornar possível a sua emergência como efectivo protagonista internacional dotado de poder de decisão e de legitimidade directa? 3) A questão de uma Constituição para a União foi definitivamente abandonada? Qual a posição destes dois partidos sobre esta matéria? 4) Que é feito do projecto de harmonização fiscal na União? 5) A União deve limitar-se a fiscalizar as grandes plataformas digitais americanas (e a chinesa do Tik Tok) ou deve ela própria promover a criação de uma potente plataforma digital europeia, visto o poder destas plataformas sobre os processos eleitorais, a ponto de se poder dizer que já correspondem a uma efectiva terceira constituency (depois da do cidadão contribuinte e da das grandes plataformas financeiras que detêm dívida pública)? 6) E, já agora, por que razão os dois partidos não mencionam sequer a necessidade de reforçar o protocolo entre a Comissão Europeia e as grandes plataformas digitais (Google, Youtube, Facebook, X, por exemplo) para combater a desinformação, tal como aconteceu nas eleições de 2019? 7) O mesmo vale para as agências de rating, poderosas avaliadoras do estado financeiro de empresas e países, gerando efeitos substanciais sobre o serviço da dívida – para quando, pois, a criação de uma agência de rating europeia? 8) E, a quem tanto defende a língua portuguesa, não será legítimo perguntar por que razão o “esperanto” da União Europeia é, cada vez mais, uma língua que nem sequer é língua nativa de algum país da União, com consequências devastadoras para as línguas dos países membros, em vários planos? 9) Que sentido faz virem (PS e PSD) falar de uma quinta liberdade, a do conhecimento e inovação, a que o senhor Enrico Letta se refere, como se isso não existisse já (até em excesso, quase diria), a começar logo pelo protocolo de Bolonha? A verdade é que em Portugal nada vale em matéria de investigação e de inovação se não for internacionalizado e escrito em inglês; 10)  Que concreta avaliação global é feita do mandato da senhora Ursula von der Leyen, uma vez que vai ser escolhido um novo presidente da Comissão? 11) E que balanço da acção do PE, que cessa funções, designadamente do trabalho das nossas representações? 12) Como resolver concretamente o caos do fenómeno migratório, sem perder a face humanista, mas pondo ordem no processo e sobretudo resolvendo esse sentimento de culpa que parece estar a ser sofrido pelos europeus e a ser injustamente induzido na opinião pública? 13) As competências do PE já atingiram o seu zénite e não precisam de ser reforçadas, designadamente em matéria de iniciativa legislativa?

6.

Muito mais haveria, pois, a dizer do que aquilo que se encontra nos programas dos dois principais partidos, sendo também certo que a transição digital e ecológica está em curso, que o accionamento tempestivo de resposta a crises foi feito e com sucesso na crise energética e na crise sanitária, que a resposta comunitária, em matéria de sanções, à invasão russa da Ucrânia foi rápida e unânime, que o modelo social europeu é um virtuoso exemplo mundial, que a intervenção financeira do BCE já conheceu momentos de grande eficácia comunitária (com Draghi, por exemplo) e que já existe também um Banco Europeu de Investimento, que a conectividade (nas zonas de baixa densidade) está na ordem do dia (também em Portugal, embora esteja a ser feita de forma  absolutamente inaceitável, com fios colocados em arraial-minhoto e em total insegurança – veja-se, por exemplo, o concelho da Guarda), e que, finalmente, a igualdade de género está na ordem do dia. Sim, tudo isto e muito mais, mas é também certo que alguma responsabilidade caberá aos Estados Membros na resolução do problema da habitação e do da protecção dos desempregados, não sendo aceitável que, um dia destes, acabemos por ver os partidos da alternância, aproveitando o balanço destes seus programas eleitorais, dizer que a culpa da falta de habitação ou da insuficiência do apoio aos desempregados é toda ela da União Europeia, alijando, de vez, as responsabilidades. O primeiro andamento já se conhece: o problema – ou os problemas – não é só nacional, pois toda a União o está a sofrer. O segundo andamento será, pois, o de exigir à União que o resolva…

7.

Chegados aqui, apetece-me mesmo dizer o que o outro dizia sobre uma tese de doutoramento em apreciação: a sua tese tem coisas originais e coisas boas, só que as coisas boas não são originais e as coisas originais não são boas. Foi mais ou menos esta a sensação com que fiquei ao ler os dois programas eleitorais. Que me perdoem os que os escreveram, mas é verdadeiramente o que penso. E até penso em algo mais: que os programas deveriam ter o essencial dos curricula dos candidatos (afinal, é a eles, e não aos programas, que nós elegemos) e que, em vez de listas de medidas avulsas, os programas deveriam apontar somente as principais prioridades e de forma argumentada. Afinal, os programas são instrumentos que servem para ajudar o eleitor a tomar as suas decisões em relação aos candidatos a eleger (embora a coberto de siglas partidárias e em listas fechadas).

Já quanto ao programa do terceiro maior partido, o do CHEGA, é, como vimos, o que já se esperava: soberanista, minimalista em relação à União e anti-federalista. Defende a permanência na União, mas na sua versão minimalista, em coerência com aquela que é a visão dominante na direita radical europeia – a Europa da Nações.

8.

Termino, fazendo, em nome do que fica dito, uma confissão pessoal: o meu voto será muito mais determinado pelos seus efeitos na política nacional do que pelo entusiasmo que me possa motivar a proposta programática ou os candidatos do meu próprio partido, o PS, no qual votarei. JAS@05-2024

UERec

Poesia-Pintura

REVELAÇÃO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Penché Arabesque”.
Original de minha autoria.
Maio de 2024.
Arabesque2024_05_7.jpgEscuro

“Penché Arabesque”. JAS. 05-2024

POEMA – “REVELAÇÃO”

EM BREVE
Eu te direi
O nome cifrado
Dela,
O da musa
Que me inspira
E que um dia
Pintei
Numa bela
Aguarela...

NESSE DIA
Falarei
Dos cabelos
Negros
E fartos
Que lhe dançam
Com o vento
Que sempre
Me sopra
Na alma
E nos versos
Que desenho
Nos nossos
Dias de festa,
Quando a folia
Acalma.

PINTAREI
Seus olhos
Negros,
Janelas abertas
Da alma
Quando me fita
E me diz,
Com gravidade
E leveza,
Que o amor
É coisa séria,
Profundo
Como raiz
E de uma rara
Beleza.

HEI-DE DIZER-TE
Por que razão
Ela esconde
Suas pernas
Esguias
E sedutoras,
Leves
Como penas
De colibri,
Que lembram
Os Arabesques
Da bailarina
Elegante
Que gosta
De me dançar
As mazurkas
Do Chopin...
.............
E que sempre
Me sorri.

SIM, UM DIA
Falo-te dela,
Do véu
Translúcido
Que sempre
Lhe cobre
O corpo,
Me inspira
E desafia
Quando tento
Desenhá-la
Com as cores
Da nostalgia.

TUDO
Num só poema,
O véu
Com que finjo
Que não é ela,
A cubro
De transparências
Ao modo de
Botticelli,
Com palavras
Desenhadas
A pintar
A sua vida
Como se ela
Só fosse
Uma longa
Despedida...

Arabesque2024_05_6.jpgEscuro

Artigo

AUTOBIOGRAFIA DE UM JORNALISTA

(Nova versão, revista e aumentada)
Giovanni VALENTINI
Il Romanzo del Giornalismo Italiano.
Cinquant’anni di informazione 
e disinformazione
(Milano, La Nave di Teseo, 2023)

Por João de Almeida Santos

GiV4

“GiV – Perfil de um Jornalista”. JAS. 05-2024

CONHECI-O pessoalmente há uns largos anos, quando fui convidado a fazer o Elogio de um poeta italiano, Corrado Calabrò (*), na cerimónia de entrega do Prémio Damião de Góis, pela Universidade Lusófona, em Junho de 2016. Giovanni Valentini estava presente e no fim da cerimónia tivemos uma breve conversa, onde tive oportunidade de o informar de que, na realidade, já o conhecia desde os tempos em que vivi em Roma, para onde fui preparar, em 1978, no Instituto Gramsci, uma tese de doutoramento sobre Antonio Gramsci.  Por lá fiquei dez anos. Esse ano, o de 1978, foi um ano especial em que Aldo Moro foi raptado e assassinado pelas Brigate Rosse, mas também o ano da eleição de Karol Woytila, como Papa Giovanni Paolo II. Foi também o ano em que la Repubblica deu um grande salto em frente em notoriedade e difusão devido, em parte, ao tratamento do caso Moro e até à célebre fotografia em que o prisioneiro das BR tinha este jornal nas suas mãos. Ficámos amigos e dialogamos regularmente sobre a situação política italiana e portuguesa. E não só.

1.

Em primeiro lugar, o conteúdo de “Il Romanzo del Giornalismo Italiano”, em 19 pontos.

  1. Filho de arte, o Pai, Oronzo Valentini, a Gazzetta del Mezzogiorno e a ida para Roma como correspondente no Parlamento (1972).
  2. Ingressa em Il Giorno (1956), em 1974. Um jornal de centro-esquerda, com colaboradores de prestígio como Umberto Eco, Pier Paolo Pasolini, Giorgio Bocca, Alberto Arbasino, Antonio Cederna ou Vittorio Emiliani (que viria a ser director de Il Messaggero de Roma – 1981-1987). O “Caso Mattei”, a suspeita morte do presidente de ENI relacionada com a sua política sobre o petrólio.
  3. 1975 – Ingressa no jornal la República, que estava a nascer. Valentini participa na elaboração do números experimentais do “semanário que sai todos os dias”, com a “falange macedone” que se prepara para lançar um jornal de opinião e de massas, liberal de esquerda, politicamente comprometido, mas independente. O nome, por influência do caso do jornal português “República”, no período revolucionário de Abril. O “compromisso histórico”. De Martino dá lugar à liderança de Craxi no PSI. A vitória de Zaccagnini na DC.
  4. A experiência de L’Europeo (1945-1995), entre 1977 e 1979. Angelo Rizzoli consulta os partidos políticos antes de convidar Valentini para Director. O caso Moro (1978). A morte de Papa Luciani e a chegada de Papa Woytila. A P2 de Licio Gelli. O conflito com o “piduista” Tassan Din e o regresso ao Grupo L’Espresso-Repubblica.
  5. Vai para Padova (1979) dirigir dois jornais do Grupo: “Il Mattino di Padova” e “Tribuna di Treviso”, onde fica até 1981. Padova, a capital política da revolta estudantil. Autonomia Operaia e Tony Negri.
  6. Vai para Milão dirigir a delegação de la Repubblica. Uma proposta de Berlusconi, que recusa, apesar de a proposta lhe duplicar o salário, para trabalhar com ele. O Cardeal Carlo Maria Martini, sobre o qual escreveria um livro. O jornal tem em Milão 14% da difusão nacional.
  7. Em 1984 vai dirigir “L’Espresso”, onde ficará sete anos. O comportamento indecoroso do director Livio Zanetti e o “cerchiobottismo” (“uma no cravo outra na ferradura”) de Paolo Mieli; a colaboração de Giuliano Amato, de Umbetco Eco (a famosa “Bustina di Minerva”) e dos escritores Alberto Moravia e Enzo Sicialiano; o jornalista Giampaolo Pansa e o excelente e imaginativo vinhetista Forattini. A operação TV de Silvio Berlusconi, que haveria de levar à criação de Canale 5, Retequattro e Italia Uno. A orientação ambientalista da revista.
  8. Os casos de Enzo Tortora (apresentador televisivo), o “spinello” (ou ganza) de Claudio Martelli (ex vice-primeiro-ministro de Craxi), Cossiga (ex Ministro do Interior e futuro PR) e a operação “Gladio” (uma organização militar secreta).
  9. O Grupo L’Espresso passa a Carlo de Benedetti.
  10. Valentini, em 1991, volta a la Repubblica e em 1994 torna-se vice-director de Scalfari, ficando até 1988, já com a direcção de Ezio Mauro. É criada a página digital do jornal.
  11. 1996 – la Repubblica muda de director e com Ezio Mauro, vindo de La Stampa, começa a entrada da FIAT. Para desgosto de Mauro, Valentini mantém-se como vice-director até 1998.
  12. Entrevista Antonio di Pietro, onde este avança com o conceito de “corruzione ambientale”, conceito-chave para compreender a atmosfera da Milão daquele tempo e Tangentopoli.
  13. Vai para a Tiscali, a empresa de Internet, de Renato Soru, mas, em 2004, regressa ao Grupo Editorial “L’Espresso” como “inviato editorialista” de AGL (a Agenzia Giornali Locali).
  14. Pacto financeiro entre Berlusconi, primeiro-ministro, e Carlo de Benedetti.
  15. “Il Mistero della Sapienza”  – a morte de uma jovem estudante na Cidade Universitária de Roma, sobre a qual haveria de escrever um livro de sucesso.
  16. A traição do jornal la Repubblica e o corte definitivo de Valentini com o jornal, já no fim da direcção de Ezio Mauro.
  17. De la Repubblica a Il Fatto Quotidiano, depois de consumada aquela que Marco Travaglio haveria de chamar “Stampubblica”, a “fusão” de La Stampa com la Repubblica, com a passagem do controlo proprietário à FIAT,  onde passaria a publicar a sua rubrica “Il Sabato del Villaggio”.
  18. “Barbapapà” – as suas relações com Eugenio Scalfari.
  19. Finalmente, reflexões sobre o jornalismo hoje e o jornalismo online, em dois subcapítulos diferentes.

É este, numa curta descrição, o conteúdo do livro.

2.

Este livro é uma biografia de Giovani Valentini, ou GiV, mas contada a partir da sua experiência profissional, na qual, pela própria natureza da profissão, convergia uma parte importante da história de Itália, em particular da sua história política e editorial. Tendo trabalhado, como vimos, em Il Giorno, em la Repubblica, L’Europeo e L’Espresso, meios de comunicação muito relevantes no panorama editorial italiano, e, coisa não de somenos, tendo sido fundador e subdirector de la Repubblica e director dos dois semanários durante cerca de dez anos, pôde conviver com a maior parte dos protagonistas da vida política, editorial e económica italiana, chegando, assim, ao conhecimento dos seus mais importantes dossiers. E é precisamente isso que Valentini nos conta neste livro, que é mais um dos tantos que escreveu: “Um certo Carlo Maria Martini – La rivoluzione del Cardinale”, “Intervista su Tangentopoli”, “Il Mistero della Sapienza”, “Media Village”, “La Scossa”, “La Repubblica tradita”, para não citar os três romances publicados, de forte inspiração portuguesa, onde há vários anos vai vivendo de forma intermitente. Um dos romances, o primeiro, começa com um jantar que realmente aconteceu, no bairro lisboeta da Graça, com Valentini, a sua esposa, Anna Maria, e eu próprio e Teresina, a minha mulher, onde conhecemos o casal de jovens americanos que haveria de se tornar o centro da narrativa.

3.

Mas a sua profissão também lhe permitiu conhecer grande parte da elite política, jornalística, económica e intelectual italiana. Percorrendo o livro pude encontrar lá muitos dos personagens que eu próprio conheci, não pessoalmente, mas através da sua obra ou da sua acção. Seria demasiado referir aqui todos os nomes, mas permito-me referir alguns pelo seu relevo no livro, as funções desempenhadas ou a participação em episódios relatados: Eugenio Scalfari (Director de la Repubblica), Carlo Caracciolo (Presidente do Grupo L’Espresso), Umberto Eco (Filósofo, semiólogo), Giovanni Sartori (Cientista Político), Giampaolo Pansa (Jornalista), Forattini (Vinhetista), Angelo Rizzoli (Presidente do grupo Rizzoli), Maurizio Costanzo (Apresentador de televisão), Tassan Din (Empresário), Carlo Maria Martini (Cardeal), Paolo Mieli (Jornalista e ex-director do Corriere della Sera), Giuliano Amato (Ex-Primeiro-Ministro), Alberto Moravia (Escritor), Oscar Luigi Saclafaro (Ex-Presidente da República), Massimo D’Alema (Ex-primeiro-ministro), Berlusconi (Ex-primeiro-ministro), Enzo Tortora (apresentador de televisão, acusado de traficante de droga), Claudio Martelli (Ex-vice-primeiro-ministro), Carlo de Benedetti (Presidente do Grupo CIR – Olivetti), Carlo Azeglio Ciampi (ex-primeiro-ministro e ex-PR), Mario Segni (político da área DC), Mino Fucillo (Jornalista), Giuseppe Tatarella (vice-primeiro-ministro e membro de Alleanza Nazionale), Ezio Mauro (Jornalista), Antonio di Pietro (Magistrado Judicial – Mani Pulite), Water Veltroni (Ex-Secretário-Geral do PD), Renato Soru (Empresário), Giovanni Pitruzzella (Presidente Anti-Trust), Antonio Padellaro (Jornalista), Marco Travaglio (Director de “Il Fatto Quotidiano”). Estes nomes podem dar uma ideia da vastidão, da importância e do significado do que está em causa neste livro.

No livro não são referidos alguns nomes importantes da vida política italiana, porque não se cruzam com a evolução e a economia da narrativa. Cito somente alguns: Gianfranco Fini (Alleanza Nazionale), Beppe Grillo (M5S), Gianroberto Casaleggio (M5S), Matteo Renzi (Ex-primeiro-ministro), Matteo Salvini (ex-vice primeiro-ministro e líder da LEGA), Giuseppe Conte (ex-primeiro-ministro).

4.

Ocorre também sublinhar, agora de forma mais analítica, os mais importantes acontecimentos que são objecto da atenção de Valentini. Antes de mais, todas as etapas de evolução da história de la Repubblica, desde a sua fundação pela dupla Caracciolo/Scalfari, até à sua passagem ao Grupo de De Benedetti, com a entrada como Director, vindo de “La Stampa”, do grupo FIAT, Ezio Mauro, dando início ao que depois viria a ser conhecido como Stampubblica (fórmula da autoria de Travaglio), até à passagem definitiva, em 2016, de la Repubblica ao grupo FIAT, primeiro com Mauro Calabresi e, depois, a seguir à curta direcção de Verdelli, a Maurizio Molinari (veja pp. 180-181). O autor conta o seu trajecto, nas relações com o grupo de Caracciolo/Scalfari, que se pode resumir ao seguinte: deixa la Republica para, depois da experiência de L’Europeo, dirigir dois jornais do Veneto, a que se segue a chefia da redacção de la Repubblica em Milão, seguindo-se, por sete anos, a Direcção de L’Espresso e o regresso a la Repubblica como vice-director (1994-1998) até ao corte radical com o jornal, em 2015, na sequência de um desagradável episódio (uma notícia plantada) sobre o Presidente do Anti-Trust Giovanni Petruzzelli, de que era porta-voz. Estas as passagens fundamentais de Valentini, depois uma curta experiência em Tiscali, a empresa de Renato Soru. Mas outros acontecimentos são, como vimos, objecto da atenção de Valentini neste livro na justa medida em que se cruzam com a evolução do seu percurso de vida e profissional, que correu na sua maior parte durante uma parte da história de Itália em que houve grandes mudanças e significativos acontecimentos: rapto e assassínio de Aldo Moro pelas Brigate Rosse, a morte de João Paulo I, Papa Luciani, e a eleição de Karol Woytila, como João Paulo II, a emergência do craxismo no Partido socialista italiano, a queda do muro de Berlim, Mani Pulite ou Tangentopoli,  o fim da DC e do PCI, a mudança no sistema televisivo italiano, com a Fininvest de Berlusconi e, depois, Mediaset, a entrada na cena política de Silvio Berlusconi em 1993-1994, com a subsequente formação do seu primeiro governo, a entrada em cena do Movimento 5 Stelle, em 2009,  a queda de Berlusconi em 2011, os primeiros passos de Fratelli d’Italia, o governo de Matteo Renzi, a estrondosa vitória do M5S, em 2018, e os dois governos de Giuseppe Conte, o Governo de Mario Draghi e a vitória de FdI, em 2022, com Giorgia Meloni hoje a governar esse grande e belo país chamado Italia.

5.

Quando cheguei a Itália, o jornal la Repubblica tinha sido fundado por Eugenio Scalfari há cerca de dois anos e 9 meses, em 1976, e Giovanni Valentini fora também um dos seus fundadores. E, por isso, quando nos encontrámos, contei-lhe o que de facto, acontecera: lembrava-me de ter lido artigos seus na primeira página do la Repubblica, jornal que adoptei, então, não só como meio de informação, mas também como “estrutura de opinião”, a forma como os fundadores o conceberam, e que integrava grandes nomes do jornalismo, da política e da cultura italiana. Aprendi muito com este jornal, que li diariamente durante mais de trinta anos. Situava-se, de facto, na área do centro-esquerda, mas cultivava uma rigorosa e brilhante independência em relação não só ao poder político, mas também aos outros poderes da sociedade italiana, designadamente o económico. Independência que era garantida sobretudo por duas personalidades de grande peso: Eugenio Scalfari, o Director, e Carlo Caracciolo, “il Principe Rosso”, presidente da “Società Editoriale la Repubblica”. Um grande jornal que deveria servir de modelo, ainda hoje, a toda a imprensa. Um jornal de opinião, mas também de massas, rigoroso, culto, de centro-esquerda assumido, liberal de esquerda, intelectualmente competente e independente. Disputava a hegemonia com o Corriere della Sera, mais conservador, batendo-se taco-a-taco, tendo chegado a superá-lo. Giovanni Valentini foi sempre, e é, um jornalista formado na “escola” do la Repubblica, a pesar de ser “figlio d’arte” e de ter sido “contaminado” pelo jornalismo logo desde casa, por seu pai, Oronzo Valentini, jornalista e director de um influente jornal do Mezzogiorno, la “Gazzeta del Mezzogiorno”. Valentini assume com orgulho essa sua originária identidade profissional, que tem em Eugenio Scalfari o seu mais ilustre representante. Isso pode ler-se no delicioso capítulo que lhe dedica mais explicitamente: “Barbapapà” (pp. 292-302).

6.

Valentini, natural de Bari, foi jornalista e colaborador do la Repubblica durante quarenta anos, tendo sido também, como vimos, seu vice-director, entre 1994 e 1998. Mas esta não foi uma mera relação profissional. Iniciara a carreira de jornalista por influência (e contra o desejo) do Pai, também ele jornalista e futuro director da “Gazzetta del Mezzogiorno”, onde também trabalhou. Mas, em abono da verdade, e depois de ter trabalhado em “Il Giorno”, viria a construir-se verdadeiramente como jornalista na “escola” do la Repubblica, esse grande jornal que exibia uma solidez intelectual, cultural e política pouco comum no próprio panorama editorial mundial. Um jornal que se revia um pouco no “Le Monde”. Uma solidez que tinha no grande Scalfari o seu selo de garantia. Valentini reconhece-se, neste livro, como discípulo do “Maestro” Scalfari, também conhecido no círculo jornalista como “Barbapapà” (do francês “barbe à papa”: “algodão doce”), talvez pelas suas abundantes barbas brancas (ou “a sale e pepe”) e pela sua doce auctoritas, por todos reconhecida e aceite. Mas, ao ler este livro, de 334 páginas e 20 capítulos, acabei por verificar uma curiosa coincidência. Com a saída de Scalfari, em 1996, Valentini iniciara (silenciosamente) o seu processo de afastamento interior do la Repubblica quando Ezio Mauro, vindo do La Stampa, de Turim, foi, em 1996, nomeado seu director, tendo chegado a pôr o seu lugar à disposição, mas acabando por se manter até 1998, apesar da manifesta hostilidade de Mauro em relação a si, atitude que, de resto, acabaria por determinar a sua decisão de deixar o cargo de vice-director. A operação indiciava uma mudança no jornal, pois este fora durante vários anos director de La Stampa, o jornal do grupo Agnelli, conhecido como La Busiarda. Mudança que viria, de facto, a consolidar-se  com a entrega, em 2016, do jornal a outro director proveniente de La Stampa, quebrando-se, definitivamente, do ponto de vista editorial, a lógica de independência do jornal, o seu estatuto de jornal de “editoria pura”, apesar de a sua estrutura proprietária já ter mudado há muito, com a chegada de Carlo de Benedetti, em 1989. A situação iria consolidar-se com a entrada da FIAT logo em 2016 e a entrega total, em 2019, do grupo à FIAT de John Elkan.  Mas a ruptura definitiva de Valentini viria a acontecer em 2015, por ocasião de um “golpe baixo” desferido por duas jornalistas do la Repubblica contra o presidente do Antitrust Pitruzzella, de quem Valentini era porta-voz, já no fim da direcção de Mauro ( e a que este provavelmente não terá sido estranho). Com efeito, em 2016, viria a tomar posse como director do jornal Mario Calabresi, a que se seguiria, depois de um ano de Carlo Verdelli como director, Maurizio Molinari, outro homem do La Stampa, consumando-se, assim, definitivamente, a operação de mudança de orientação do velho la Repubblica (veja-se os capítulos 10 e 11, pág.s 165-198), quer em termos de estatuto proprietário quer em termos de gestão editorial. Também Scalfari viria a distanciar-se do jornal, mantendo apenas a relação através da publicação de artigos de cultura.

7.

Pois bem, também eu, por essa altura, no fim do mandato de Ezio Mauro, tinha deixado de ler, com a regularidade com que até então o fazia, o la Repubblica, por já não reconhecer nele o que me atraíra, quando em 1978 cheguei a Itália, e que vira confirmado não só durante os dez anos em que lá vivi, mas ainda por muitos mais anos, já em Portugal, tendo continuado a segui-lo diariamente, primeiro, em papel, e, depois, na internet. Até que chegou a desilusão e passei a ler com maior regularidade o jornal Il Fatto Quotidiano, fundado em 2009 pelo excelente jornalista e amigo de Valentini Antonio Padellaro (lia-o no Corriere della Sera), que foi seu director até 2015, sendo a partir de então dirigido pelo imparável e turbulento Marco Travaglio. Trata-se de um jornal independente que não recebe financiamentos estatais nem é, creio, de propriedade de um grupo financeiro ou económico. Um bom jornal, na minha opinião. Valentini é seu colaborador regular, com a sua já clássica rubrica “Il Sabato del Villlagio”, que, creio, iniciara em la Repubblica, título que homenageia o grande poeta italiano Giacomo Leopardi: “Questo di sette è il più gradito giorno, / Pien di speme e di gioa: / Diman tristezza e noia...” – estrofe de “Il Sabato del Villaggio”).

A minha reacção ao que estava acontecendo ao também “meu” jornal, a esta mudança profunda no seu perfil, foi quase de indignação pelo que estavam fazendo a uma jóia do jornalismo mundial. Pelo vistos, havia uma minha real sintonia com dois dos seus fundadores, Scalfari e Valentini: a identidade do la Repubblica fora radicalmente alterada… para pior. Tornara-se um “holograma” do que fora, como diz Valentini (pág. 302). Na verdade, ao ler este livro de Giovanni Valentini fiquei a conhecer melhor as razões da mudança, pois ele dedica uma parte consistente do livro à descrição da evolução do jornal.

8.

O livro conta a história de cinquenta anos de imprensa em Itália, vistos por um dos seus principais protagonistas. O jornalismo italiano visto por dentro, em particular nas suas relações com a estrutura proprietária, mas também nas suas complexas, delicadas e difíceis dinâmicas internas, incluindo episódios de claro corporativismo, de inveja e desconfiança entre os próprios profissionais e também sobre as consequências, inclusive judiciais, da coragem de informar sem medo das represálias. Valentini experimentou isso na própria pele. Mas sobretudo visto a partir de uma visão bem precisa, assumida e argumentada do que é e deve ser o jornalismo. A posição de Valentini é clara, como resulta de todo o livro: a boa imprensa é aquela que é gerida por editores puros, não aquela que fica sujeita à estratégia de financeiros ou de grupos económicos que a vêem exclusivamente com a lógica do lucro e do poder, totalmente independente da sua função social e política, ao serviço da cidadania. Uma identidade que ele identifica em la Repubblica de Scalfari e de Caracciolo ou no seu L’Espresso. Esta sua posição está claramente formulada no livro: “Um vaudeville de directores, entre Torino e Roma, que marcou o jornal fundado por Scalfari” (…),  outrora “ancorado num editor puro,  mas agora “com o selo de fábrica da maior indústria privada italiana: o editor mais ‘impuro’, que mais não é possível” (pág. 181), chegando a propor, no livro, um “Statuto dell’Editoria” “para limitar as quotas das participações financeiras nas empresas editoriais”, “e, ao mesmo tempo, reservar os financiamentos públicos para as cooperativas de jornalistas”, evitando que “editores impuros” possam aceder aos financiamentos estatais (pág. 315), pela óbvia razão de que eles não cumprem o código ético a que funcionalmente  estariam obrigados – o de garantirem um rigoroso serviço público em que a informação deve instruir o cidadão nas matérias em que ele deve tomar as suas decisões, seja na política, na economia ou na cultura. E este é um ponto crítico do jornalismo actual, até porque “salvo raras excepções, doravante o chamado ‘editor puro’ é uma espécie em vias de extinção, que deveria ser protegida como o panda do Wwf” (pág. 313).

9.

A última parte do livro, depois de uma descrição da referência proprietária dos principais jornais italianos, à excepção do CdS (la Repubblica, La Stampa, Il Secolo XIX – Gruppo Gedi; Il Messaggero, Il Mattino, Il Gazzettino, Il Corriere Adriatico, Nuovo Quotidiano di Puglia, di Lecce e Bari – propriedade do construtor civil Francesco Gaetano Caltagirone; Il Giorno, Il Resto del Carlino, La Nazione – do Gruppo Monti-Riffeser; Il Giornale – da família Berlusconi; Libero, Il Tempo – do empresário da saúde e parlamentar de centro-direita Antonio Angelucci),  mostrando abundantes exemplos da chamada “editoria impura”, é dedicada a uma reflexão, totalmente partilhável, sobre a nova condição do jornalismo na era da Internet e sobre as tendências que determinam uma nova dinâmica da informação, em função da emergência das redes sociais, do algoritmo e, em geral, da inteligência artificial. Uma profunda alteração na relação do cidadão com as plataformas de comunicação, onde a lógica do broadcasting é substituída por uma lógica relacional, não vertical nem hierárquica, mas horizontal e aleatória. Uma lógica que interfere decisivamente na função jornalística. E a verdade é que, como diz Valentini, “hoje, no essencial, não se faz informação para informar o cidadão, mas sim para defender interesses estranhos aos que deveriam ser estritamente editoriais. Para fazer negócios, obter favores, concessões ou licenças. E quanto mais se reforçarem as concentrações, neste campo”, diz, “menos se salvaguardam o conhecimento, o debate, a liberdade de opinião e, portanto, a democracia” (pág. 316). Na verdade, enquanto a procura de informação cresce, a oferta está a diminuir, ou seja, diminui o número dos que estão em condições de a produzir de forma profissional, de conjugar informação e conhecimento, daqueles que, em suma, Valentini designa por pós-jornalistas, os de hoje, aqueles que já inscrevem a sua actividade na sociedade em rede ou na sociedade algorítmica. Aqueles que se inscrevem na nova lógica que determina as formas de comunicação. Ofício, o de jornalista, absolutamente necessário, sem qualquer dúvida, mas que deve adaptar-se às exigências de tempos que estão cada vez mais em forte aceleração histórica e tecnológica: “uma nova figura profissional mais evoluída e complexa do que a tradicional”, é o que os tempos estão a exigir (pág. 307).

10.

Trata-se, pois, de um livro muito rico de informações sobre a imprensa nos últimos 50 anos em Itália, mas também sobre a própria história política e económica italiana. Tudo contado a partir da sua própria história pessoal, enquanto jornalista. No meio de uma enorme massa de informações, é uma narrativa com um claro fio condutor: a vida profissional de Giovanni Valentini contada através do desempenho, do complexo ambiente em que teve de se mover e das decisões que teve de tomar, das relações com os editores e com os colegas de profissão, tudo filtrado por uma ideia clara a que a sua vida profissional deveria sempre realisticamente obedecer – a que construiu ao longo da sua experiência, em primeiro lugar, e sobretudo,  como membro da “escola” do La Repubblica, dirigida com sabedoria pelo “Maestro” Scalfari, e, em segundo lugar, como director de dois importantes semanários  italianos, palco especial de onde pôde acompanhar, por dentro, como activo interveniente, no plano das suas funções profissionais, a vida política, editorial, económica e social de Itália. Uma ideia que entroncava numa ética editorial que sempre defendeu e que quis cumprir rigorosamente, em nome da cidadania – “editoria pura” e rigoroso cumprimento do código ético do jornalismo. Um desempenho independente de interesses que pudessem pôr em causa o exercício de informar e de descodificar o que de importante ia acontecendo nesse grande e belo país que é a Itália. A Giovanni Valentini foi atribuído o Prémio Saint-Vincent do Jornalismo, em 2000. É também romancista. JAS@05-2024.

NOTA
  • Em português, deste autor: Corrado Calabrò, A Penúria de ti enche-me a alma. Poesia 1960-2012. Edição bilingue (Lisboa, 2014). Edição bilingue, tradução e pós-fácio de Giulia Lanciani. Prefácio de Vasco Graça Moura.

Valentini_Il-romanzo-del-giornalismo-cópia

Poesia-Pintura

MÃE

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Mãe”.
Original de minha autoria.
5 de Maio de 2024.
Domingo, Dia da Mãe.

Mãe2024_05COR

“Mãe”. JAS. o5-2024

POEMA – “MÃE”

GUARDO-TE
Desde sempre
Aqui,
Na galeria
Íntima
Dos afectos.

FIXEI-TE MELHOR
Naquele dia
E guardei
Na memória
Profunda
O teu rosto
Quando te vi
Um pouco perdida,
Por encanto,
A olhar-me
Como se fosse
A primeira vez.

UM BRILHO QUIETO
Em teus olhos,
Suspensa
Nas nuvens,
A suave paixão
Maternal,
Inefável,
Que não há palavras
Que cheguem
Para a contar
Com a alma,
De tão cheia
De mim estares,
Quase
A transbordar...

A AUSÊNCIA
Permanente,
Tão cortante
E insistente,
O preço que
Pagavas
Para que eu
Me tornasse
No que mais
Querias que fosse
Fazia crescer
Em ti
O encantamento
Que tinhas
Contigo
Desde o dia
Em que te nasci
E comigo
 Renasceste.

AQUI SEMPRE
A meu lado,
Esse teu rosto
Sedutor
Nunca me
Despertara
O desejo
De o cantar
Em palavras,
Em riscos
E cores,
Para além da
Memória
Remota
Do afecto,
Melodia
Em surdina,
Contraponto
Do silêncio.

PALAVRAS, SIM,
Esse olhar
Penetrante
Da alma,
Esse canto
Devotado
A tocar,
Em cada dia
Que passa,
As fronteiras
Intangíveis
Do sagrado.

FOI PRECISO
Aprender
Os delicados
Ofícios
Da arte
Para te poder
Celebrar
E dizer
De todas as formas
Que sei
O que não quero
Calar.

E AQUI ESTOU.
Esse dia
Haveria de
Chegar.
E chegou.

Mãe2024_05CORRec

Artigo

NOTAS DO PRIMEIRO DE MAIO

Por João de Almeida Santos

Sil&Temp2023

“Tempo”. JAS 2024

1.

DO 25 DE ABRIL AO 1.º DE MAIO, uma semana de liberdade, o valor central das nossas vidas. Simbolismo a conservar. Pelo meio, o dia mundial da dança, que simboliza a liberdade e a leveza das almas e dos corpos em festa. Uma feliz conjunção. Um registo que nunca devemos abandonar, mesmo ou sobretudo no meio das maiores dificuldades. O registo da liberdade, dos direitos e da responsabilidade.

2.

Neste dia também devemos olhar para a nossa história na perspectiva de quem olha interessado para o passado, esse tempo bem ou mal conduzido pelos nossos antepassados. Mas passado que passou neste tempo que agora, sim, é nosso. Neste caso, trata-se de um passado mais próximo, aquele em que um punhado de heróis meteu mãos à obra e derrubou um regime onde a liberdade estava sufocada com a delação e a violência. Mas também este já passou. E passa tanto mais quanto nós soubermos construir o presente para um futuro melhor. Os historiadores ajudarão a olhar para ele, o passado, com a necessária distância, mas também com a objectividade possível, a que respeita a temporalidade histórica. A diferença temporal. A do passado que não volta e que só assim é possível revisitar. Diferença que é também uma diferença ontológica, da esfera do ser, não do nossa subjectividade, pessoal ou colectiva. Mas não – isso é que não -, não devemos olhar para o passado como pecadores colectivos que haverão de se resgatar, fustigando-se, chicoteando-se pelas remotas maldades cometidas e pagando eternamente o preço de os nossos antepassados terem agido em sintonia com o tempo em que viveram e que é diferente do nosso. Aprender com a história também é aprender a viver o presente com as lições do passado: corrigir os erros para melhorar o futuro. Mas não pretender mudar o passado com os remédios da redenção, como se fôssemos portadores de uma culpa original. E isso significa respeitar o passado, ou seja, fazê-lo passar, sobretudo quando ele teima em não passar nalgumas mentes alucinadas. A dos que cantam os feitos e a dos que cantam os pecados. Aquelas que querem conduzir o veículo da história olhando somente pelo retrovisor. Sabe-se bem o que acontece a quem conduz assim. Em Portugal, parece que o revisionismo histórico de inspiração wokiana já chegou ao mais alto representante da nação portuguesa. Por isso, é preciso que alguém lhe explique o que parece não ter compreendido ao longo de tantos anos de carreira universitária e política. E nem sequer acredito que seja um problema subjectivo de culpa, própria ou familiar. Porque nem essa valeria. 

3.

Neste intervalo entre o 25 de Abril e o 1.º de Maio, li um interessante artigo do público (29.04.2024, de Sérgio Aníbal) sobre os impostos, que dizia coisas que é útil reter. Por exemplo, que os impostos indirectos (os que atingem todos por igual, ricos e pobres) atingem 41,9% da carga fiscal e que, em Portugal, estão 8,7 pontos acima da média europeia (que é de 33.2%). Mas é também conveniente dizer que quase metade dos agregados fiscais não paga IRS, sendo a carga fiscal relativa a este imposto (mais o IRC), em 2022, correspondente a 29,6%, quase 5 pontos abaixo da média europeia (que é de 34,3%). Percebe-se bem por que razão isto acontece: o valor total dos impostos indirectos é muito superior aos dos impostos directos, até porque todos os pagam (ao contrário do que acontece com o IRS): mais de 12 pontos. Apesar de a diferença em relação à União Europeia, relativamente aos impostos directos, ser de quase 5 pontos, a menos, é preciso fazer outras distinções. Aparentemente, Portugal faz boa figura nos impostos directos e na sua progressividade, a que é directa e individualmente mais fácil de verificar por cada contribuinte. Mas, olhando mais de perto a realidade fiscal, segundo a OCDE, e em relação ao imposto cobrado a partir do salário médio, Portugal está acima da média europeia (até nos que auferem 67% do salário médio: 0,7%). Por exemplo, quando o salário é “correspondente a 167% do salário médio” (que é de 1270 euros) a tributação em IRS é superior em 1,5% em relação à média da União Europeia. Globalmente, a carga fiscal é inferior em 4,2% à média da UE, de acordo com os dados apresentados, mas, pelo que se vê, algo não está bem em termos de justiça fiscal. Portugal penaliza mais os cidadãos com rendimento médio, em termos de tributação directa, e muito mais, em termos de tributação indirecta, do que a UE. O que é incompreensível. Por isso, considero que é necessário fazer uma reavaliação global da carga fiscal. E, todavia, para isso será necessário fazer também uma reavaliação do Estado Social e, sobretudo, das funções e fronteiras de intervenção do Estado, para que não se sobrecarregue os cidadãos, em geral, com os impostos indirectos, nem os cidadãos de rendimento médio ou superior com os impostos directos. Um cuidadoso trabalho de filosofia política que ilumine um pouco os que têm o poder de decidir politicamente sobre os custos de cidadania. Em Portugal, leis acrescentam-se a leis, sem que nunca haja (por parte de quem decide) uma avaliação global do sistema. E urge fazê-lo, agora que se completam 50 anos do 25 de Abril. O PS, agora na oposição, deveria, na minha modesta opinião, desde já, fazê-lo, ao mesmo tempo que deveria fazer uma avaliação da eficácia operativa de funcionamento do Estado (que não fosse somente no plano fiscal).

4.

São já inúmeras as instituições e as personalidades que se interrogam sobre a operação “Influencer”, que levou à queda do governo. O Presidente da AR pediu explicações, a dar na AR. A Provedora da Justiça também, considerando ter havido, pelo que já se sabe, “erro grosseiro” do Ministério Público, sublinhando que não poderes ilimitados e que ninguém está isento de prestar contas ao país. Dois tribunais consideraram pouco ou nada consistentes as provas invocadas que, supõe-se, estiveram na base do famoso parágrafo que levou à saída do PM e à convocação de eleições. O silêncio da Procuradora-Geral da República já está a fazer um ruído ensurdecedor. A não audição em tempo razoável do ex-primeiro-ministro (já lá vão cerca de seis meses) está a tornar-se escandalosa. O PS, pela voz do seu Secretário-Geral, a manifestar, finalmente, perplexidade perante o que já é conhecido e a pedir explicações, “dadas as suas consequências gravosas”. Tudo isto requere uma urgente explicação cabal sobre o que aconteceu. E, imagine-se, até na vizinha Espanha alguém vaticinava a influência do “Influencer” na decisão de Sánchez ponderar demitir-se por causa de um processo levantado contra a sua esposa Begoña Gómez, desencadeado por uma denúncia da organização de extrema-direita “Manos Limpias”, baseada em informações surgidas em “cabeceras digitales” também de extrema-direita e, entretanto, cavalgadas pela direita institucional, PP e VOX. Tal não viria a acontecer, como noticiado na passada segunda-feira, depois de cinco dias de reflexão, tendo Pedro Sánchez decidido manter-se no cargo, “com mais força”, dizendo, sobre a campanha de descrédito contra a mulher, “podemos com ela”. Também aqui o assunto tem toda a aparência de um processo de “lawfare”, o uso do direito como instrumento político para derrubar governos. Como teria gostado de ter visto, aqui, entre nós, António Costa dizer o mesmo, defendendo o robusto mandato que os portugueses lhe confiaram e sendo leal à sua máxima “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça”. Assim, deixou que o que é da política passasse a ser também (ou sobretudo) da justiça, num ambiente onde o que é da justiça continua a ser totalmente independente (ou seja, mais do que autónomo) da política – a separação dos poderes a funcionar somente num sentido. O resultado está à vista.

5.

As eleições europeias vêm aí. Mais eleições. E repito o que disse acerca das legislativas: espero que os partidos não se ponham a escrever livros sobre a União Europeia, mas digam o fundamental, o que é preciso dizer sobre a União Europeia e sobre os candidatos, tratando-se de listas fechadas e da exclusiva responsabilidade das direcções dos partidos (com excepção do Livre, que viu eleger como cabeça de lista um candidato não indicado pela direcção do partido). Mas há algo que sinto dever dizer: três candidatos do PS (Marta Temido, Francisco Assis e Ana Catarina Mendes) foram eleitos, em 10 de Março, para a AR, preparando-se para trocar o mandato de deputado pelo de eurodeputado. No mínimo, isto representa falta de respeito pelos eleitores e pelo mandato. Tiveram a possibilidade de não se candidatar à AR se queriam ser candidatos ao PE e não o fizeram, sendo legítimo pensar que só o fizeram por uma questão de segurança pessoal (não fosse o diabo tecê-las). Até parece que um grande partido como o PS não tem outras pessoas tão, ou mais, competentes para candidatar ao PE. Um vício antigo do PS: esse de ter sempre os mesmos a passarem pelas portas giratórias do poder. Exemplos não faltariam, mas não vale mesmo a pena. Depois, as próprias escolhas também não me parecem muito justificadas. Uma candidata fará 73 anos este ano e tem um ano e meio de mandato autárquico para cumprir (teria 74, em 2025, data das eleições autárquicas) e não se lhe conhece curriculum nesta área. É um mero exemplo (nada de pessoal, bem pelo contrário) e nem sequer digo que todos tenham a mesma idade, a mesma leveza e rapidez que o inefável Sebastião Bugalho. Não entendo mesmo, as razões da constituição desta lista, caro Secretário-Geral. Talvez seja mesmo uma injustificada desvalorização da importância do Parlamento Europeu no sistema institucional da União Europeia. Gostei da renovação, mas, no fim, até preferia que continuassem os que já lá estavam. Sinceramente.

6.

A NATO, segundo Nuno Melo, está regulada por um Tratado do Atlético Norte. Fosse a primeira vez e poderia desculpar-se-lhe o mimo. Mas o indivíduo começa a ser demasiado frequente em calinadas. Ou será que a NATO é forte porque é atlética? Ou é atlética porque é forte? E, ainda, a vingarem as doutrinas de Melo, não se tornaria ainda mais atlética, logo, mais forte, se os condenados fossem cumprir as penas servindo, armados, como soldados? A doutrina parece ser governativa, a crer nas palavras da senhora Ministra da Administração Interna, que parece, também ela, ver a proposta com bons olhos.  Melo não é um qualquer, pois conseguiu, com o ventilador do PSD, ressuscitar um CDS moribundo, não só no plano nacional, mas também no plano europeu. Perfilhou a doutrina do PCP e passou a ser como os verdes (verdes por fora, vermelhos por dentro): azuis por fora e cor-de-laranja por dentro. Quanto a mim, nunca mais se atreverão a ir sozinhos a votos. O CHEGA tratará do assunto e, se não for suficiente, lá estará a Iniciativa Liberal para completar a obra. 

7.

Finalmente, a política em Portugal não conhece grandes dias. E ninguém ajuda. Nem sequer o PS, que tinha obrigação de o fazer. Estas opções sobre os candidatos ao PE podem não ajudar a fazer o que é preciso: derrotar um PSD (na forma tentada de AD) que já está a dar, e cada vez mais, provas de arrogância governativa e de pressa em tomar nas mãos o aparelho de Estado, confirmando e tornando ainda mais claro, com um bom resultado eleitoral, que o PS é o maior partido português e que a dialéctica política terá de tomar na devida conta esse facto. A situação política que deu origem ao governo do PSD (porque é disso que se trata, governo do PSD) é tudo menos clara e límpida, a começar logo pelo facto que deu origem à queda do governo e à convocação de eleições e a terminar na própria configuração política do Parlamento. Na verdade, o PSD está a virar, aparentemente, as costas ao CHEGA, mas, na prática, é com ele que conta para sobreviver, o que, aliás, foi visível logo na própria investidura. Se assim não for, este governo não passará do próximo orçamento. E, pelo que se está a ver, não merecerá sequer passar daí. Mas as europeias também poderão servir para dar uma lição a esse arremedo de partido que integra AD, esse simulacro que, ao abrigo de uma risível sigla, sobreviveu: o CDS (PP?). Isto para não falar do PPM, que também por lá tem um candidato em lugar absolutamente inelegível. AD oblige. Talvez haja neste processo demasiados personagens à procura de autor. Que não encontram, porque eles escasseiam cada vez mais. Mas a comédia segue em frente mesmo assim… JAS@05-2024

Sil&Temp2023REC