FRAGMENTOS (XI)
Para um Discurso sobre a Poesia
Por João de Almeida Santos

“La Diseuse” 2022. JAS. 06-2024
O POETA VAGUEIA POR AÍ
O POETA VAGUEIA por aí, ouve vozes, vindas lá dos confins da sua memória, vozes que o interpelam intimamente e às quais responde em público, embora de forma cifrada, ou seja, poética, mas comprometendo ou empenhando a sua palavra, na semântica e na estética. Sim, o canto do poeta é livre, mas a partir do momento em que lhe dá forma e o propõe à sensibilidade de outrem ele deixa de lhe pertencer e fica sujeito à sensibilidade de quem o ouve, de quem a ele acede. A poesia é partilha com regras, as que transformam um grito de alma em arte, pronto a ser interiorizado por quem o ouve, por quem o pode sentir como seu. Nesta passagem, o destino é o da universalidade, a partilha universal, a pertença a uma livre comunidade de sentimentos. Uma experiência que se pode transformar em discurso colectivo, em fala partilhada de uma comunidade, sem deixar de ser uma confidência, um segredo confessado a cada um dos amantes da poesia. A fala da sensibilidade. Só com este destino o canto pode cumprir a sua função de resgate e libertação. Um poeta tem sempre muito clara esta vocação, este destino da poesia. A consciência de si e de destino é uma característica essencial do poeta, enquanto tal. É mesmo por isso e para isso que ele compõe as suas partituras.
REVELAÇÃO I
Os poemas “contam” sempre uma história, mas não de forma descritiva. E o poeta, no poema “Revelação” (publicado a 12.05.2024), faz uma confidência, que é sobretudo um desabafo “sincero”: se interpela a musa (do canto silencioso) é para ouvir o eco do seu próprio chamamento poético (da sua dor, relativizando-a) e se a quer, à musa, é como objecto do seu olhar e da sua atenção, não como corpo para “possuir”. Possuir não o corpo, mas a alma, com o olhar interior, nesse movimento de recriação que a arte lhe concede. O lugar do poeta é, pois, mais o da janela do que o da porta ou o da rua. Refugia-se na janela para ver o seu mundo passar, em moviola, sendo, todavia, ele o realizador. Dir-se-á que ele também sai pela porta e anda na rua. Sim, é verdade, e é aí que ele sofre o peso de um real que não corresponde nem responde aos seus desejos. Então ele, melancólico, refugia-se na janela e enfrenta o real com o olhar poético e com as “armas” da poesia, devolvendo, com a ajuda do vento que passa, os seus desejos em forma de canto sedutor. Devolver a quem? A ninguém e a cada um. Mas sempre também a Ela. Sedução heterodirigida, pois. No outro poema da janela (“A Janela”) era ela, enquanto sujeito poético, que se colocava ali para o ver passar, era ali que ela mais se reconhecia nele, no amante. Neste (“Identidades”, publicado em 26.05.2024), é o próprio poeta que a situa no horizonte do seu olhar sobranceiro à rua por onde ela sempre passa. Se o lugar dela é a rua, o dele é a janela. Mas o poeta não é um “voyeur” porque a janela é simplesmente o lugar onde ele reconstrói, preserva e declara o seu afecto, é onde canta para que o mundo o ouça e o reconheça. E, claro, ela também. A janela está para a rua como a poesia está para formas de linguagem puramente descritiva. A poesia é sobretudo performativa. Exprime sentimentos, não os descreve. Sente melhor, dizendo. E, de certo modo, resolve. Pode haver distância no olhar ou somente um fio de horizonte, mas, sim, pode, pelo contrário, haver íntima proximidade no sentir (e no dizer), apesar da distância espacial. O olhar poético acontece em virtude da íntima proximidade no sentir. O olhar poético é apolíneo, mediado pelas categorias da arte, mas só é possível porque acontece em ambiente dionisíaco – para usar as categorias de “A Origem da Tragédia”, do Nietzsche. Primum vivere deinde philosophari.
REVELAÇÃO II
A revelação dos poetas é meia revelação porque é sempre cifrada. São cautelosos, os poetas. Quase timoratos, no meio de tanta nudez. Na verdade são tímidos, muito tímidos e é daí que lhes vem a necessidade de falarem poeticamente. A poesia como manto protector da timidez, mas, ao mesmo tempo, como arrojo e libertação, resgate, redenção. Sim, a revelação poética é sempre ficcionada, acontece sempre em ambiente de “fingimento”, como dizia o poeta. É ela e não é. Mas isto tem um preço: nunca acaba. É a poesia que alimenta o romance, a intimidade (e não só os fantasmas). É a continuação, por outros meios, de uma história inacabada. Vivida a solo. Por isso, o poeta tem o dever de se preservar. Para preservar a sua própria história, mas também o seu sofrimento, em diferido, já sob forma poética. Não é testemunho; é, sim, grito de alma, em surdina.
COMPROMETIMENTO
Que o poeta não comprometa a musa, é só uma forma de dizer. Não é o corpo o que o poeta mais quer, mas a alma. E se for só a alma até parece que não compromete. A verdade é que os poetas só sabem possuir a alma. Mas não é isto comprometimento? Certamente que é, e maior, mas de outra dimensão, de outro nível. Porque cria – ou é resultado de – laços íntimos, interiores, invisíveis. Neste nível de relação entre o poeta e a musa tudo é mais complexo, delicado, menos linear, difícil e, por isso, pode suscitar mais interrogações. Como as que o poeta exprime no poema “Identidades” – Quem és tu? Quem sou eu?
"A OUTRA JANELA"
“A Outra Janela” é a que importa, no poema “Identidades”. Mesmo que seja a mesma (“A Janela”), mas agora vista de fora. A dialéctica a que alude o poema “A Janela” é entre a rua e a janela. Mas agora (no poema “Identidades” e na pintura “A Outra Janela”) o que conta é a visão da janela a partir de fora, da rua. Visão de quem? Talvez da musa. Ou sobretudo da musa. Mas não sei. Pode até ser que o poeta tenha momentaneamente descido à rua, não sei bem por que razão, e fixado o olhar na janela de onde ele próprio observa o mundo. O que sei é que o poeta interpela a musa e lhe diz que, afinal, o que quer é olhá-la da janela. Porque é essa a sua essência, enquanto poeta. Perscrutar-lhe a alma para a seduzir… com palavras ditas com a sensibilidade à flor da pele. Seduzi-la, assim, embora saiba que as musas, como os fantasmas, não se deixam seduzir. E ele diz que o segredo é esse: mais do que o corpo, o que lhe interessa é a alma. Vê-la com o olhar interior interessa-lhe mais, muito mais. Mas ele também sabe, e talvez ela nunca tenha ousado pensar que poderia ser assim, que só a arte pode conduzir a essa posse, à verdadeira posse… pela recriação. Mas que, para isso, é preciso estar à janela. Saber estar à janela. Num plano mais elevado, pois. Eu, sinceramente, não sei se ela, a musa, sabe isso. Se ela sobrevive sem nunca olhar o mundo de uma janela. Olhando-o só da rua (se isso for olhar), sem ver a floresta nem o horizonte. O que pode ser representado por uma porta por onde se entra e se sai… para a rua. Talvez essa seja mesmo a condição das musas. Andarem na rua para atormentar os poetas que por ali passam a caminho das suas janelas. E estarem ali sujeitas ao olhar dos poetas… É claro que o poeta reflecte sobre dois seres, sendo ele próprio um deles. Mas se o faz é porque ambos representam uma relação intensa, sim, embora frustrada ou inacabada ou mesmo nem sequer começada. Um olha da porta, o outro olha da janela. Um age, o outro observa, depois de agir sem consequência. Como podem entender-se, assim? Mas a poesia é isso mesmo: uma viagem da fantasia sobre ruínas com intuitos reconstrutivos. Para que da devastação sobre alguma coisa. Sobrará?

“A Outra Janela”. JAS 2024
O POETA, A FONTE E A NEVE (I)
A fonte, a água, a montanha, a neve, elementos matriciais, alimento do poeta. Movemo-nos entre eles, nós, os de lá, como numa cenografia natural que temos também inscrita na alma. Beber dessa água na fonte primordial é como continuar a incorporar a montanha em nós. Perder-se na neblina cintilante da neve é como dissociar-se desse mundo demasiado sinalizado e entrar em estado de imanência total na natureza. Desapossar-se de si para entrar em relação orgânica com a natureza. O poema (“A Fonte e a Neve”, publicado em 19.05.2024) refere-se a uma experiência vivida e sentida profundamente, não como descrição, mas como recomposição e revivescência poética dessa experiência, dando-lhe unidade, expressividade, coerência, ritmo…beleza. A mesma que foi sentida nesse andamento existencial a caminho da montanha, mas reconstruída com a sensibilidade já em quietude, em repouso. Para não a perder nas grutas escuras da memória. Reforça-se assim a cada regresso a essa fonte do Vale Glaciar a densidade da experiência. Falta pintá-la, mas de modo a que a pintura apenas aluda a ela, à fonte, em tonalidades e formas que consagrem o que sinto interiormente quando me sacio com aquela água gelada que jorra lá do alto a caminho do Zêzere que está ali a nascer, rumo a sul. Mas, claro, nem sempre é possível suspender a viagem até ela para ir lá mais acima ser abençoado pelos farrapos brancos que caem do alto, no topo da montanha. Sim, é verdade, mas como a guardei na alma, a neve, sempre posso fazer nevar “na alta fantasia”, para glosar o grande Dante Alighieri. Assim, depois, posso convidar os amantes da poesia a levarem, também eles, a montanha e a neve guardadas na alma, embora para isso seja sempre necessário entrar em sintonia com elas… e amá-las.

“Pasárgada II”. JAS 2022.
O POETA, A FONTE E A NEVE (II)
Sim, regressa-se sempre com a montanha na alma. É um ritual, a ida à fonte. Um rio de água gelada que cai lá de cima… Até sinto remorsos por a aprisionar em garrafas para a ter sempre comigo, a montanha em estado líquido. E gosto daquela geometria do Vale Glaciar. Às vezes saio de lá completamente molhado tal a força com que a água cai lá de cima. Cai-me a montanha em cima (e neve em estado líquido) e eu gosto. Durante um ano não pude lá ir. Os acessos estavam fechados. E isso custou-me. Mas agora, sim, vou sempre. Com o corpo e com a alma. À espera que neve, mesmo no Verão. Pelo menos, que me neve na alma…
O POETA, A FONTE E A NEVE (III)
Saudades de mim, diz-me um Amigo, também ele lá de cima, da montanha. Saudades daquele que esperava sempre a neve e a via chegar farta e fria naqueles vales de montanha. Tenho saudades do que me ficou inscrito na alma e me acompanha sempre, mas sem vir à tona, porque escasseia. Mas agora vou à procura desse eu cada vez que me dirijo àquela fonte, neve e montanha em estado líquido, na esperança de que lá mais no alto ela se anuncie tal como é, em farrapos brancos. Sei que é o mesmo que sentem os filhos da montanha. Mas, se não chegar, faço-a chegar em cores e em palavras para a poder reviver e partilhar. Canto-a e peço ao vento que passa que a leve, a neve… branca e leve, branca e fria. Maravilhas da arte.
O POETA, A FONTE E A NEVE (IV)
Ah, sono montanaro – cos’altro potrei essere? Nato in montagna, mi piace la montagna e la neve. Ci ritorno spesso, corpo e anima. Fiuto la neve quando sta per nevicare. Ho, dentro di me, un sensore per fiutarla. Sì, il poeta si sente proprio un montanaro… anche in mezzo alla città. Ed è proprio nella città che ne sente più bisogno. Musica e contrappunto.
MUSAS
As musas são o alimento da poesia, tal como os versos são alimento dos fantasmas. Sobretudo os que levam mensagens de amor. Ou beijos escritos, desenhados com letras deslaçadas na pauta poética. Para orquestra. É pelas musas que os poetas se apaixonam irremediavelmente. É por elas que eles sofrem. Mas elas são fugidias e obrigam-nos a tentar alcançá-las permanentemente. Com poemas. Mas elas fogem-lhes. Ainda por cima os fantasmas interpõem-se e bebem os beijos que os poetas lhes enviam. É por isso que a sua tarefa nunca tem fim. Sabem que há fantasmas esfomeados de beijos, arriscam, ou são mesmo cúmplices do fantasmático assédio, e nunca sabem se os seus foram interceptados. E às vezes a intersecção provoca danos irreversíveis, interrompendo o contacto com as musas. Mas é raro acontecer. Todavia, se acontecer o poeta tem de se esforçar de forma redobrada para reinventar a musa como novo eco da sua voz.
ETERNA DESPEDIDA, A DO POETA
Uma eterna despedida… Afinal, é a forma de nunca a perder, a sua musa. Por isso, ele continua a cantá-la e a pintá-la com as cores quentes da saudade. Elas, as musas, são delicadas e um pouco (só um pouco) pérfidas. Insinuam-se para logo se afastarem, deixando o poeta no limbo. É assim que a musa o inspira. Oh, se é. Diz ao poeta que lhe pode dizer que a ama, para logo a seguir dizer que já não se lembra de o ter dito, deixando o poeta entre o dito e o não dito. Num intervalo ambíguo, onde o sofrimento aumenta em intensidade, provocando falta de equilíbrio, como se o chão lhe fuja dos pés. O que lhe vale é que, sendo poeta, acaba por navegar bem nesse intervalo. O intervalo até é mesmo o terreno em que ele melhor se move. Essa instabilidade aparente cria chão à criatividade. Quanto mais intensa é a dor e o desequilíbrio, mais cresce a necessidade de poetar, de recriar um novo chão mais sólido, embora intangível. Mas não deixa de ser doloroso porque lhe sabe a castigo. A vida de poeta é assim. Não é cheia de facilidades e de rotinas. Não é de assobiar para o lado. De fazer-de-conta que nada se passa. Bem pelo contrário, anda sempre em contraponto, com as palavras a rimarem com o silêncio insinuante da musa ou com as suas contradições. Os seus ditos e não-ditos. Sim, a poesia é o contraponto do silêncio que vem do outro lado da fala e da rua. Seja ele pura ausência, castigo ou indiferença. É uma dança que nunca termina. E os “penchés” não são fáceis de fazer. A poesia é como a dança: requer muita técnica para interpretar a melodia e o ritmo das musas, sendo que às vezes o poeta, tal como as bailarinas, tem de fazer 32 “fouettés” com palavras até quase cair, prostrado, no solo, no linóleo da sua vida e dos seus amores. Mas lá se levanta, sempre, agarrado a alguma palavra que ficou por dizer. Eterna despedida.
QUEM É ELA?
À pergunta, recorrente ou sempre latente, sobre quem é e como será a sua musa inspiradora, ele responde com a linguagem da poesia, que não é descritiva ou reveladora do referente, mas sim exclamativa e libertadora. Dionisíaca, sim, mas também apolínea. A poesia evoca e invoca ao mesmo tempo, onde a invocação, só por si, altera a forma de evocar. Lembra, mas suplica, ao ser evocado, inspiração. A invocação é, de facto, dominante, porque é ela que dá forças ao poeta. É certo que a linguagem poética não pode ficar prisioneira de um qualquer referente porque aspira a ser universal, como, de resto, é a pretensão de qualquer arte. Mas, de certo modo, fica, como estímulo e remota inspiração. A universalidade acontece, sim, na forma, mas sobretudo na partilha, num momento posterior à evocação/invocação. Muito do que se lê nos poemas, certamente já foi sentido na própria experiência existencial. Mas o que fica dito é mais do que aquilo que se viveu como experiência.
AMORES INACABADOS
Os amores dos poetas são sempre inacabados. Ou fracassados. É assim que nasce a poesia. para concluir o que não foi concluído. Ou resgatar o fracasso. E é por isso que eles precisam da poesia. Que, todavia, nunca consegue acabar o que um dia começou. Ela vai atenuando a dor do inacabado, mas não a resolve. Assim, o poeta fica condenado a subir ininterruptamente o Monte Parnaso, com as palavras às costas. E algumas pesam mesmo muito… tão carregadas de sentido que estão.
LIBERDADE
O poema que tem este título foi escrito para o 25 de Abril a pedido de uma leitora, para ser lido numa cerimónia de comemoração do 25 de Abril. Pintei também este quadro infra: “Liberdade”. Mas também poderia ter sido o meu “Pássaro de Fogo”, o pássaro da liberdade, na mitologia russa, que mais tarde viria a usar para ilustrar o mesmo poema. Mas também quis associar o amor entre um homem e uma mulher à liberdade conquistada de um povo, humanizando ainda mais a própria ideia de liberdade: dar-se as mãos e voar de mãos dadas no céu azul de um poema, tendo como horizonte a montanha e o seu ar frio, mas puro. Respirar liberdade com a alma, lá no alto. Um poema do Paul Eluard sobre a liberdade, relembrado por um Amigo, é muito belo porque escreve o nome da liberdade em cada sopro de vida, em cada gesto, em cada momento, “sur les champs de l’horizon /sur les ailes oiseaux /et sur le moulin des ombres”, sobre a lâmpada que se acende como sobre a lâmpada que se apaga… sobre tudo. E, tinha de ser, também, “sur le sable” e “sur la neige” – para recomeçar a vida com o poder de uma só palavra: liberdade. Belíssimo. JAS@06-2024

“Liberdade”. JAS 2024