Poesia-Pintura

O TEMPO E A PALAVRA

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Palavras Deslaçadas”
Original de minha autoria
Poema inspirado numa 
pequena poesia de
Luciana Stegagno Picchio
Junho de 2024
Jas_Palavras2024Final3

“Palavras Deslaçadas”. JAS. 06-2024

(...) La vita che è stata   
un istante come un fumo  
scolora
e solo le parole creano il passato"
  
“Lotofagi”, 
In Luciana Stegagno Picchio, 
La Terra dei Lotofagi, Milano, 
Vanni Scheiwiller, 1993: 35

POEMA – “O TEMPO E A PALAVRA”

POR ESTRANHO
Que pareça
Já não me
Lembro
De ti,
Do teu corpo,
Do teu rosto,
Do que sempre
Neles vi,
Dos olhos
Negros,
Profundos
Que um dia
Abracei
E que no tempo
Perdi.

JÁ NÃO ME LEMBRO
De ti,
Apenas tenho
A imagem
Do que aos outros
Transmiti
Com palavras
Desenhadas
E do que nelas
Revi.

AGORA
És feita
De presentes
Vividos
Em ausência,
Em versos
Rimados
Ao sabor
Da melodia
Que trauteio
Em surdina
Nas quentes
Pautas
Desta minha
Fantasia.

OLHO-TE
Nos olhos
Quando desenho
A tua alma,
Não com riscos
Ou com cores,
Mas com palavras
Sofridas,
Já gastas,
Deslaçadas
Pelo tempo
Que passou,
Por emoções
Proibidas.

A VIDA QUE FOI
Esfumou-se
Num instante
Do passado
Já distante,
Esse tempo
Que perdi,
Mas com palavras
A trouxe
Pra reviver
Essa vida
Nos poemas
Que escrevi.

E É ASSIM
Que permaneces,
Em versos
Bem desenhada,
Hoje e sempre,
Sempre aqui,
A forma
De conservar
Esse tempo 
Que contigo
Eu vivi.
Jas_Palavras2024FinalRec

“Palavras Deslaçadas”. Detalhe

Artigo

FRAGMENTOS (XII)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

Oraculo2023_1805

“Oráculo”. JAS. 06-2024

RECUSA OU FALA DA MUSA?

HÁ SEMPRE UMA HISTÓRIA que inspira o poeta. Algo que a sua sensibilidade registou. De certo modo, as histórias são sempre também suas. Porque as assume poeticamente como suas, como expressão do seu sentir ou mesmo como grito de alma. Precisamente porque algo fez disparar a sua sensibilidade. Há silêncios, há palavras trocadas, “intensities” evocadas, há interpretação do silêncio (recusa ou a fala da musa?), há o seu eco nas palavras do poeta… Mas de nada vale perguntar-lhe sobre “estados de facto”, sobre referentes, porque a resposta será sempre a mesma. E isso não importa, porque o que importa é o que a sensibilidade registou e a fantasia recriou. É essa a conversa que importa. Os poetas não sabem falar em prosa. Não se ajeitam com a prosa. O poeta é como que um “constructo” da própria poesia, o seu correlato, um “derivado”. Não existe fora da poesia… e sem musa. Por isso, a sua existência é indissociável delas. Querer dar vida a um poeta fora da poesia é como alimentar um peixe fora de água. J´ºa se sabe o destino. Perante um estímulo, a sensibilidade só dispara se já estiver inscrita prévia e geneticamente no modo de ser poético. O registo sensível é poeticamente modulado. Não se pode pedir ao poeta que registe de outro modo e que fale noutra linguagem. Não saberia.

A VISITA DA MUSA

Ser um sonho de alguém que não existe… Oxímoro? Ou seja, será o poeta, ele próprio, o resultado da sua própria fantasia, lá onde habita a musa? Um “constructo” ou correlato da poesia? Uma ficção? A poesia antecipa a existência do próprio poeta que a compõe? De certo modo, sim, se o poema estiver já inscrito no registo sensível que lhe deu origem. Aqui, o poeta é somente o executor de algo que já aconteceu na sua sensibilidade. Coup de foudre. Um dom natural. Uma dádiva divina (ou da musa). Algo parecido com o que acontece na doutrina da predestinação. Com a graça. E, então, ele é somente o agente apolíneo da poesia, digamos assim. Existe poeta sem poesia e sem musa? Não. Da musa, da visita da musa, nasce o poeta. Isto dizia-o Eliot. E a poesia é a casa da musa. O poeta entra na casa da musa e engravida poeticamente. Os filhos são os seus poemas. Depois chegam os fantasmas. Isto dizia-o Kafka, nas “Cartas a Milena”. Estamos no terreno da fantasia. E no do desassossego, que suscita a intervenção da fantasia para o moderar e o tornar suportável. É claro que a visita da musa o põe em desassossego e o obriga a entrar na casa da fantasia que ela habita e que é também frequentada por fantasmas. Digamos que passa a ser um desassossego produtivo e criativo. Neste ambiente só a poesia o pode sossegar e resgatar. O poeta atormentado e inquieto. Ela é eficaz porque é altamente performativa. Mais do que as outras artes. Até mais do que a música. Introduz realismo no ambiente ficcional em que entrou. Sim, é natural que o Bernardo Soares apareça sempre, embora não se ajeite lá grande coisa com a poesia. Mas aparece muitas vezes a comentar a vida do poeta. O que se compreende, porque tem lá em casa muitos irmãos poetas. Eu creio que ele (o Pessoa e também o Shakespeare) também anda por aqui, neste poema, “O Poeta e o Silêncio” (09.06.2024).

DESTINO

Penduro o quadro, que fica a contemplar a melancolia do poeta, e sigo-o na sua caminhada de diálogo terapêutico com ela, a melancolia. Isto dizia um Amigo na sua habitual viagem por dentro dos meus poemas. Dizia, e bem. O que o poeta quer verdadeiramente é atingir um estado de doce melancolia. O que lhe resta. Mas para isso tem de interpretar o silêncio da musa e encontrar o seu eco em palavras com ritmo e melodia. É assim que ele tempera a melancolia e se instala suavemente nela. Uma coisa é certa: não acredita que haja recusa, mas sim que o silêncio seja a sua fala, a da musa, o seu modo de estar permanentemente frente a ele, à sua fantasia, sem o amarrar a palavras, que até poderiam ser mal interpretadas. Ou fazerem-lhe mal. E ele responde-lhe com as solícitas palavras de que sempre dispõe quando se trata dela, do seu silêncio. É claro que ele frequenta o oráculo. Nem de outro modo poderia interpretar o seu silêncio. E o oráculo diz-lhe que ela lhe fala através dele. E ele ouve-o e ouve-a, com a ajuda da deusa. E responde. Tinha razão o Eliot: a musa um dia visitou-o e o poeta nasceu. Agora tem de cumprir o seu destino: cantá-la.

O POETA E O SILÊNCIO

Renovar e recriar o passado que subsiste na memória do poeta é (também) uma das suas missões. Muito importante porque é viajar no tempo e modulá-lo com a alma e com a fantasia, podendo assim resgatá-lo. É o poder da arte. Mas é na interpretação dos silêncios gerados por esse passado não resolvido, quase sempre não resolvido ou fracassado, que a missão do poeta mais se afirma… e a arte acontece. Rei do silêncio: parece ter sido o Shakespeare que usou esta expressão e ela adequa-se bem à condição do poeta. O passado é silencioso, mas não fica inactivo. Às vezes produz autênticas hecatombes, quando o que o sofre é incapaz de o verbalizar. O poeta, pelo contrário, dá-lhe voz num sofisticado processo de recriação. E preserva-o, mas convertendo-o. De resto, a linguagem poética é de todas a que mais se aproxima do silêncio, podendo ambos quase tocar-se e trocar-se. Um no outro. O silêncio em poesia e a poesia em silêncio. Há intercâmbio entre o silêncio e a poesia. Há, sim. Fácil, fácil é trocar palavras, difícil é interpretar os silêncios, dizia o Fernando Pessoa. Ir mais ao fundo, para além do virtuosismo. Difícil o deslizar das palavras sobre o silêncio e regressar a elas com o eco dele, com o sentido dele… para o cantar. Isso, sim, é difícil. Passa por grandes provações. Que o diga a musa.

O ECO DO SILÊNCIO

“Poeta de ser e de estar” – disse-me um Amigo quando comentava um poema meu. O tempo e o espaço na vida do poeta. Vai sendo, vai construindo a sua identidade no tempo à medida da criação poética. Tudo no espaço da sua intimidade partilhada. E os silêncios dizem sempre muito… ao poeta. Permitem-lhe completá-los com palavras.  Se forem pura ausência passam a ter um novo sentido. Mas nunca há pura ausência porque subsistem os registos da memória e é sobre eles que o poeta discorre. Como expressão subjectiva de um tempo reconstruído esteticamente com a sua sensibilidade. Como eco do silêncio vertido em palavras.

O LOUREIRO E O POETA

O loureiro não era o arbusto só dos vencedores, mas também dos poetas. E não deixa de ser curiosa esta dupla função. Os poetas são mais perdedores do que vencedores, porque se assim não fosse não sentiriam necessidade de “desabafar” em poesia, de se libertarem do insustentável peso do fracasso através da palavra poética.  De se libertarem do sufoco em que ficaram quando tropeçaram na realidade e se estatelaram.  É então que o seu espírito entra em acção e eleva a alma perdida nessa “selva oscura” da vida. Tornam-se, assim, vencedores. Com direito a folhas de louro. Mas talvez o louro em excesso os narcotize e os leve a perder o norte, “la diritta via”. E, todavia, sendo poetas, não sendo só filhos de Dionísio, mas também de Apolo, a sua redenção, a sua subida ao Parnaso, fica garantida. E com o triunfo, o acesso ao Parnaso, regressam as merecidas folhas de louro. A perdição, o resgate, o louro. Ecco.  

DELFOS

Em Delfos, junto ao Monte Parnaso, a morada das musas, havia construções com pedras vindas do Monte Parnaso. Tudo estava em ligação com tudo na mitologia grega. E  sobretudo na tragédia grega, onde o “espírito dionisíaco” estava em harmonia com o “espírito apolíneo”. Páthos, luz, sabedoria, poesia. Apolo. Mas também Dionísio e as libações. A ilustração do poema “O Loureiro” chama-se “Luz” (16.06.2024), a que chegou ao coração do loureiro (a forma é um coração). De outro modo, sem luz, como poderia ser o louro o símbolo da vitória? E a mancha (da pintura) é inspirada no loureiro que o poeta tem no seu inspirador jardim. Só que com cores aquecidas para melhor sintonizar com o poema e com o que o poeta sente. Apolo inspira a componente racional e espiritual da poesia. O templo de Apolo é o templo da sabedoria, a que espiritualiza as pulsões dionisíacas que estimulam no poeta o movimento apolíneo para o sublime. Para o resgate, para a redenção. O loureiro aqui cantado e pintado tem luz dentro de si e não só estimula o poeta-pintor como o protege e o inspira. Talvez a leitura (também aqui se trata de sinestesia) deva ser feita do poema para a ilustração e não da ilustração para o poema. Acho eu, mas cada um dos leitores segue as suas próprias intuições e o seu processo de descodificação da mensagem oracular do poema e da pintura. A poesia deixa-se seduzir pelo leitor e corresponde às suas inclinações. É feminina, a poesia.

TRANSE

Bem sei que as folhas de loureiro usadas em excesso podem tornar-se narcóticas. Pode-se entrar em transe, como acontecia lá em Delfos. Mas a verdade é que o poeta de certo modo vive sempre em estado narcótico ou em transe existencial. É neste chão que acontece a poesia. Será por isso que as folhas de loureiro estão também associadas aos poetas? Tudo parece estar ligado. E não era o Nietzsche que punha as libações dionisíacas como base necessária da arte? Dionísio, sim, para só depois intervir Apolo na espiritualização das pulsões. A verdade é que sem um doce estado de embriaguez existencial talvez nem seja possível poetar. Mas não sei. Não sei se será o caso do poeta que reflecte sobre a poesia. O que sei é que o loureiro que o inspira tem uma densa folhagem e, por isso, talvez o seu perfume lá no jardim seja tão intenso que chegue mesmo, às vezes, a pô-lo em estado de embriaguez. Em transe. Mistérios da arte. E do loureiro.

RENASCER

O poeta, com a sua arte renasce, tal como o loureiro, com a poda. Poda-se o loureiro e ele renasce e mais cresce ainda; o poeta poda as palavras e a poesia renasce e cresce. Um encontro feliz que merece ser cantado.

A PODA  

O loureiro também dá uvas, como um dia o poeta constatou, ao ver o enlace entre ele e uma videira cardinal, sua vizinha. Não dá, pois, só pequeninas bagas, quando rejuvenesce, e folhas. Mas poder-se-ia dizer, hoje, que “foi chão que já deu uvas”. Talvez porque a videira cardinal não tenha gostado do enlace e nunca mais voltou a acasalar com o loureiro. A verdade é que o loureiro continua atractivo, agora não com uvas, certamente, mas com tanta luz. Graças ao pintor. E um dia, levado pelo vento, foi até à Beira-Tejo, onde estava instalado um amante da poesia, iluminando-lhe a sala e o seu sempre atento espírito. Foi ter com ele, o loureiro. Pois foi. Mas posso confessar (embora este seja um segredo mal guardado) que ele, afinal, sempre gostou muito da Beira-Tejo. Disse-o um dia e o poeta registou. E, desta vez, chegou lá já podado, para não desmerecer as palavras, também elas cuidadosamente podadas. Ou terão elas sido podadas para não o desmerecerem a ele, o loureiro? Talvez seja mesmo assim. É a sua centralidade no jardim que exige todos os cuidados. Sobretudo quando o vento o leva para outras paragens. O poeta nunca quer que ele se queixe do canto com que o celebra nos dias de festa, lá no Jardim Encantado. E isso não muda, na mudança. Mesmo quando é podado e perde momentaneamente alguma pujança visual. Porque sabe que logo adquirirá “novas qualidades”. O que, naturalmente, faz o poeta feliz e o inspira para novos cantos. JAS@06-2024

Oraculo2023_1805Rec

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia-Pintura

NUVEM

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Travessia”, JAS 2022,
93x118, impressão Giclée
em papel de algodão e verniz
 Hahnemuehle (100% e 310gr),
Artglass AR70, mold. de madeira.
Original de minha autoria.
Junho de 2024.
Jas09ATravessia2022

“Travessia”. JAS 2022. 06-2024

POEMA – “NUVEM”

EM SOMBRA
Intangível
Se diluía
Esse corpo
Desejado,
Nuvem
No céu da
Fantasia,
A que ele
Mais queria
Ver-se sempre
Abraçado.

VIA
A silhueta
Esfumar-se
Lá no alto,
Soprada
Pelo vento,
E desenhava
Com palavras,
Por entre
Silêncios
E murmúrios
Sincopados,
O que dela
Lhe sobrara
No seu
Mais íntimo
Recanto:
A luz do seu
Corpo,
Seus olhos
Negros
Flamejados.

AS PALAVRAS
Atropelavam-se
Para correr
Atrás dela
No céu
Quente
Da sua
Fantasia
Em pautas
Para música
De câmara
Com a sua
Melodia.

INTIMIDADE,
Era o que ele,
Nessa ausência
Sofrida,
Nesse silêncio
Fatal,
Mais desejava
E sentia,
Como se fosse
Carnal.

“NÃO ACREDITAS
Nisto, pois não?”
Perguntava-lhe
Em surdina,
Com a alma.
“Tanto de mim,
Neste excesso
De palavras
Sobre ti,
Como lava
De vulcão
A deslizar
Num poema
Pela encosta
Íngreme
Do teu corpo...”

"LÁ NO ALTO,
Posso olhar-te
Sem te ver,
Por fora,
Mas por dentro,
Com a alma,
Ondes me cresces
Em palavras
Sem que saibas
Que outras vidas
Nascem 
Como fruto
Do desejo
Proibido
E do tormento,
Até que um dia
Elas te cheguem, 
Assim,
Inesperadas
E levadas
Pelo vento."
Jas09ATravessia2022Rec

“Travessia”. Detalhe.

Artigo

OS PARTIDOS E A CRISE DE REPRESENTAÇÃO

A PROPÓSITO DE UMA INICIATIVA DO PS

João de Almeida Santos

AR2024_04AdaptSepia

“S/Título”. JAS. 06-2024

ANALISANDO A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS PARTIDOS e dos movimentos eleitorais, em geral, o que se verifica é que a bipolarização entre dois grandes partidos ou blocos políticos que, a seguir à segunda guerra mundial, se foi impondo até aos anos noventa começou a sofrer um lento desgaste a partir desta altura, dando lugar a uma progressiva fragmentação dos sistemas de partidos e à emergência de novas formações políticas, à esquerda e à direita. A causa geralmente atribuída a este desenvolvimento é a chamada crise de representação, associada à queda das ideologias, que alimentavam o sentimento de pertença, mas também às mudanças na middle class, que suscitaram a transformação dos chamados partidos-igreja em catch-all-parties, de baixa densidade e intensidade ideológicas, interclassistas e totalmente dependentes do aparelho de Estado. A lógica da alternância no governo entre estes dois partidos ou blocos de partidos levou à emergência de uma crescente endogamia que curto-circuitou progressivamente as suas ligações à sociedade civil. Entretanto, aconteceu uma profunda mudança na identidade da cidadania, sobretudo pela revolução tecnológica, pelo crescimento da middle class, pela globalização e pela profunda alteração e alargamento das plataformas de comunicação/informação, designadamente pela emergência da mass self-communication, pondo em crise o chamado sentimento de pertença, ancorado nas ideologias e na relação orgânica e territorial entre o cidadão e os partidos políticos. 

1.

E, todavia, no meio de todas estas mudanças e depois da transformação destes partidos em catch-all-parties, a política continuou a mover-se nos carris tradicionais, numa lógica equivalente à das grandes plataformas de comunicação tradicionais, dos mass media, a de broadcasting, vertical e hierarquizada, e a socorrer-se generalizadamente, e cada vez mais, de outsourcing comunicacional, deixando definhar lentamente, em várias frentes, o seu próprio corpo orgânico e territorial e tendo como estratégia central viver e reproduzir-se à custa do aparelho de Estado. 

2.

O que, entretanto, está acontecer, nos nossos dias, com a emergência de uma direita radical politicamente já muito forte, deve-se, por um lado, a esta crise de representação e, por outro, à capacidade desta direita de interpretar com eficácia os vários nódulos críticos da política desenvolvida pelos partidos da alternância ou do establishment, em particular o da redução da política a mera tecno-gestão ou management dos processos sociais e a generalizada assunção acrítica da ideologia identitária dos novos direitos, mas também a um uso competente e eficaz das novas plataformas comunicacionais digitais para fins políticos, como se viu no caso da vitória de Trump e do BREXIT, em 2016. Falo de tudo isto no meu mais recente livro Política e ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, 262 pág.s – já disponível na versão digital, em pdf). 

3. 

Sim, são estas as linhas de força da política contemporânea, sem dúvida, mas o que, concretamente, motiva este artigo é a iniciativa, em curso, do PS de abrir as suas sedes nos círculos eleitorais, regularmente, de modo a estabelecer um canal de comunicação permanente com a cidadania. E é claro que o que este partido pretende, com a iniciativa, é precisamente dar resposta à crise de representação e recuperar uma ligação orgânica e territorial mais sólida com a sociedade civil. A começar pelos cidadãos, singularmente considerados. É, quanto a mim, uma boa iniciativa, a que deveriam seguir-se outras na lógica bottom-up e numa dinâmica em rede, para além da lógica broadcasting ou one-to-many, que se continua a revelar, tal como na mass communication, como lógica dominante, mas cada vez mais unilateral e democraticamente pouco consistente. Creio que os anunciados estados gerais também se inscrevem nesta lógica e nesta dinâmica em rede. O que é muito positivo, desde que a pulverização de iniciativas não acabe por resultar numa perigosa fragmentação do discurso político do PS, como discurso para todos os gostos, ou mesmo num deslize fatal para esta insinuante e perigosa ideologia identitária dos novos direitos, com o seu cortejo de frentes centradas numa vasta fragmentação identitária. Risco que só poderá ser evitado se o PS tiver uma identidade muito bem definida – que não as gastas fórmulas que já nada dizem aos cidadãos e que até são partilhadas por outras forças políticas (por exemplo, a  ideologia das “contas certas”) -, em linha com as profundas mudanças que há muito se vêm verificando e que já mudaram o perfil da própria cidadania, designadamente, na sua relação com o novo perfil que o cidadão adquiriu na sociedade digital em rede (ou na nova sociedade algorítmica) globalizada, mas também na sua relação com a matriz da nossa própria modernidade, hoje fortemente combatida quer pela direita radical quer pela esquerda identitária dos novos direitos

4.

É neste quadro que se deve olhar para a iniciativa do PS, mas é também neste quadro que se deve pôr em destaque uma outra questão, sendo, de resto, o PS o partido que está em melhores condições de promover a sua resolução. Esta: os deputados, de acordo com o regimento da Assembleia da República, tendo mandatos universais e representando a nação (e não o respectivo círculo eleitoral), desenvolvem, todavia, o seu trabalho político também nos círculos eleitorais por onde foram eleitos, designadamente ouvindo os seus eleitores sobre aquilo que são as suas expectativas e os seus problemas (“constituency surgery”). Matéria prevista na Constituição (Art. 155.º) e no regimento da AR (Art.16, n. 2, al) a): “Compete ao Presidente da Assembleia da República, ouvida a Conferência de Líderes: a) Promover o desenvolvimento de ferramentas que visem o contacto direto ou indireto dos Deputados com os seus eleitores, nomeadamente a criação de formas de atendimento aos eleitores, a funcionar nos respetivos círculos eleitorais”.

5.

Ora acontece que em Portugal os deputados não têm nos círculos eleitorais um espaço institucional para receberem os cidadãos. Antes, podiam usar os governos civis para esse efeito (o que representava somente um espaço físico disponível, mas não mais do que isso, e uma gentileza do poder executivo para com o legislativo). Agora nada existe. E não se pode argumentar dizendo que há as sedes dos partidos porque os deputados representam a nação, não os partidos e nem sequer os círculos que os elegeram. Têm, todavia, o dever de ouvir os cidadãos e, na lógica de uma divisão técnica do trabalho político da Assembleia, entende-se que o trabalho dos deputados se exerça também no seu próprio círculo eleitoral, por imperativo constitucional (art. 155.º da Constituição: “1. Os Deputados exercem livremente o seu mandato, sendo-lhes garantidas condições adequadas ao eficaz exercício das suas funções, designadamente ao indispensável contacto com os cidadãos eleitores e à sua informação regular “). Só que para que esse trabalho seja eficiente tem de haver, como indica a Constituição, condições para isso. Condições com dignidade e eficazes. Nesta ocasião, em que o PS avança com a iniciativa que referi, deveria ser ele a promover a resolução desta falha inacreditável junto da Presidência da Assembleia, tornando-se seu promotor. Nem sequer seria nova a iniciativa, pois há mais de dois anos um deputado do PS, António Monteirinho, apresentou um requerimento (1/AR/XV/1, de 28.04.2022) ao Presidente da AR, Augusto Santos Silva, precisamente neste sentido, tendo merecido acolhimento e tendo-lhe sido dado andamento administrativo para os serviços com vista ao estudo técnico das soluções possíveis. Iniciativa que, todavia, não teve, até ao momento, sequência prática (que eu saiba).

6.

Parece-me, pois, que esta iniciativa deveria ser assumida pelo próprio PS uma vez que se trata de aperfeiçoar o funcionamento da democracia, melhorando as condições de exercício do mandato de todos os deputados, e não só dos do PS, e podendo, assim, dar resposta às expectativas dos eleitores. Afunilar no espaço político do PS a acção dos seus próprios deputados parece-me desadequado, até porque a acção de um deputado da nação não deve ficar confinada nas fronteiras do seu próprio partido. Pela simples razão de que o seu mandato, enquanto titular de um órgão de soberania, é mais vasto do que o raio de acção do respectivo partido, que é uma organização privada (embora com fins públicos e relevante inscrição constitucional).  Trata-se, pois, de separar o que é do foro partidário – e a iniciativa partidária anunciada é de louvar, como disse – daquilo que é do foro da representação nacional, extra e suprapartidária. De resto, as duas iniciativas complementam-se e não se anulam, porque se trata de realidades muito distintas, embora convergentes em relação ao mesmo fim: a superação da crise de representação

7.

Confesso que não compreendo a existência desta falha, que é total e até desrespeitosa em relação à Constituição, pelo menos desde que foram extintos os governos civis. E se muitos se interrogam sobre a real consistência das representações parlamentares, devido à forma como os candidatos a deputados são recrutados e ao funcionamento do sistema de poder interno, esta situação ainda vem reforçar mais essa dúvida ou mesmo a crua descrença no valor do trabalho dos representantes. O que espero, pois, é que o PS tome mesmo em consideração esta questão e promova a sua resolução. Seria um bom sinal da nova liderança do PS. A democracia ficar-lhe-ia devedora de uma boa iniciativa para melhorar a sua qualidade, demonstrando ao mesmo tempo que não identifica a acção política como exclusiva de uns tantos iluminados que, sentados em torno do líder, tudo decidem, em nome de toda a sua representação parlamentar. Os estados gerais não se podem confinar a uma grande operação de marketing para efeitos eleitorais. Ela deve combinar ampla auscultação da cidadania com reflexão aprofundada sobre o que são a política, a democracia e a cidadania, hoje, mas deve também promover mudanças concretas que melhorem o sistema em geral, incluído o próprio. E eu creio que a qualificação da democracia pode beneficiar, por si mesma, as forças da esquerda. Não sendo por isso que ela deve ser melhorada e aprofundada, como é evidente, também creio que os seus efeitos sentir-se-ão mais à esquerda do que à direita. Pela óbvia razão de que a esquerda é mais subsidiária de uma política qualificada do que a direita, mais vocacionada para, através da política, defender os interesses instalados do que para transformar a sociedade, designadamente na sua dimensão política, social e cultural. JAS@06-2024

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IDENTIDADE

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: "Eu - Nos Tempos de Roma"
Original de Pedro de Almeida Santos
18 de Junho de 2024

Jas2024_PAS

“Eu – Nos Tempos de Roma”. Por Pedro de Almeida Santos. 18.06.2024

POEMA – “IDENTIDADE”

EU SOU QUEM SOU,
Dizia Jahvé,
Mas eu,
Que também sou,
Sou aquele
Que, afinal,
Ainda não sabe
Quem é.

OU SABE,
Ao ter sido,
Pois cada um
É o que é
Pelo que foi
E será,
Pela vida
Que fizer,
Do que da vida
Fará.

PARA ALÉM
Do que eu sou,
É para fazer
Que existo,
Pois o simples
Existir
Não chega
Pra definir
Da vida
O seu registo.

O QUE FOR
Ver-se-á
No caminho
Que escolher...
.............
Mas, vagando
Pela vida,
Serei só
O que fizer?

MAS QUEM SOU EU,
Afinal?
Sou somente
O que já fui
Ou continuo
O caminho,
Com os outros
Ou sozinho,
Como desejo
Constante
De me encontrar
Por aí,
Sempre livre,
Sempre errante
Desde que
De mim eu saí?

SOU POETA?
Sou pintor?
Vivo feliz
Na cidade?
Sou
Cidadão
Do meu mundo
Com incerta
Identidade?

NÃO SEI,
Como dizia
O poeta,
Mas se só for
O que fiz
Não existo
Como tal,
Não sou mais
Que cena nua,
Desenho
Feito a giz
Por pintor
De qualquer rua,
Filho de arte
Banal.

EU EXISTO,
Ou não existo,
Para além
Do que já faço
E do que outros
Vêem fazer?
Só existo
Em seu olhar?
Sou aquilo
Que pareço
E nada mais
Posso ser,
Nada mais
Posso criar?

A VIDA É MAIS
Do que aquilo
Que pareces
E se não fores
O que és
Nunca ela
Te dará
O que, afinal,
Não mereces...

OS OLHOS
Dos outros
Teus espelhos
Sempre serão,
Ajeitas-te
Para lá fora
Ver
O que, afinal,
Pode ser
Uma pura ilusão,
Pois quando
Regressas a ti
Quebra-se
Esse espelho
E regressa
A solidão.

EU QUERO SER
O que sou
E também o que
Pareço
Mas para ser
O que quero
Só a mim
Eu obedeço.

SER E PARECER
A uma só vez
Eis a minha
Solução,
Mas se o parecer
Me domina
É melhor que
Diga não.

Inspiração15_10_2023Final_4-cópia

Poesia-Pintura

O LOUREIRO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Luz”
Original de minha autoria
Junho de 2024

Licht2024Trab1

“Luz”. JAS. 06-2024

POEMA – “O LOUREIRO”

CRESCEU MUITO
O Loureiro,
Cresceu, cresceu,
É assim,
Cresce por dentro
E por fora,
E cresce
Dentro de mim.

AGORA TEM LUZ
Por dentro,
Vem lá do alto,
Do céu,
Ilumina o Jardim
Que, antes,
Era só meu.

UM GIGANTE
À minha frente,
Apontando
Para o céu,
Eleva-se,
É imponente,
No jardim
Que já é seu.

QUANDO TENHO
De o podar
Dói-me a alma...
..............
Mas tem de ser,
Da poda
Ninguém se salva
Pra com ela
Renascer.

ARBUSTOS
Flores
Ou frutos,
Tudo muda
No Jardim,
Tudo está
Em movimento
E também eu
 Me sinto assim 
Quando sopra
Forte
O vento.

SÓ UMA COISA
Não muda
Pra que tudo
Possa mudar,
Não muda
A minha vontade
Nem a forma
De o cantar.

Licht2024Trab1Rec

“Luz”, Detalhe

Artigo

AS EUROPEIAS 2024

E suas consequências

João de Almeida Santos

JAS2024_06

“S/Título”. JAS. 06-2024

SE ANTES DAS ELEIÇÕES é sempre conveniente formular a pergunta “Para que serve o meu voto?”, depois do voto ainda o é mais. Votei e, agora, o que irão fazer do meu voto os representantes e os seus proponentes? Uma primeira resposta é óbvia: o voto serve para eleger representantes para a instituição em causa no processo eleitoral. Neste caso, para o Parlamento Europeu. Sim, mas a questão não se esgota nisto. O voto serve também para legitimar (ou para pôr em crise de legitimidade) as forças políticas proponentes, os partidos, ou seja, tem efeitos decisivos a montante. O voto tem, pois, duas funções essenciais: a da designação dos representantes e a da legitimação dos mandatos e das forças políticas proponentes que, de acordo com a Constituição, se mantêm decisivas no processo político. O mandato é não imperativo, sim, mas ele tem uma correspondente a montante, naquelas instâncias que detêm o monopólio da propositura, ou seja, nos partidos políticos. Este segundo aspecto é mais relevante no caso das eleições europeias por uma razão essencial: não tendo os 21 mandatos atribuídos, numa câmara com 720 mandatos, a importância que têm quando se trata de um parlamento nacional, a expressividade do voto recai também com muita intensidade sobre as forças políticas proponentes, conferindo-lhes ou retirando-lhes legitimidade e densidade política para efeitos de participação no processo político nacional. Não creio que seja muito difícil de perceber isto. A legitimidade é mais ampla do que a que fica inscrita em cada mandato, porque é ela que confere consistência e credibilidade às forças políticas e à sua expressão institucional para prosseguirem numa determinada direcção política. Sendo certo que os mandatos são autónomos e universais, a legitimidade decorrente da atribuição do número de mandatos retroage sobre as forças políticas proponentes na exacta medida em que a constituição prevê uma relevante função dos partidos políticos no sistema democrático, mas também por serem eles que detêm o monopólio de propositura e por a escolha se efectuar (no boletim de voto) sobre a sigla partidária e não sobre os concretos candidatos. O voto tem, pois, estes efeitos: a designação dos representantes, a gestação de um governo, com base no princípio da maioria, e a legitimação dos mandatos e das forças políticas proponentes.

1.

Assim sendo, tendo a AD perdido estas eleições quando quase 4 milhões de eleitores se pronunciaram, fazendo a sua escolha precisamente numa sigla (não num nome), é claro que estas eleições têm um impacto político interno e directo sobre uma maioria e um governo que já exibiam uma legitimidade eleitoral extremamente frágil (assente em menos de um ponto percentual, se comparada somente com a do PS) e que agora ainda fica mais diminuída. Subtraídos os votos do CDS/PP e do PPM, o PSD (sobre o qual recai a responsabilidade do governo) fica a quase 300 mil votos do PS nestas eleições (cálculo baseado nos resultados do CDS e do PPM nas eleições europeias de 2019), o que representa cerca do 7,5% dos votantes nestas eleições. Não é coisa de somenos, do ponto de vista da legitimidade. A AD perdeu e o PSD, comparado com o PS, perdeu muito mais, não se vislumbrando, pelo que já se viu, grandes melhorias na sua acção política.

2.

Para que serve, pois, o voto? Serve para clarificar a situação política global de um país quando se trate de milhões de cidadãos a manifestarem a sua confiança numa determinada marca ou sigla política, ou seja, numa determinada proposta política. Por isso, a legitimidade do actual governo, depois desta clarificação, ainda ficou mais frágil na medida em que não tem a preferência da maioria dos eleitores intervenientes nestas eleições (e o mesmo já se verificara em relação ao PSD nas eleições legislativas). Digamo-lo de forma mais clara: este é um governo do PSD e este partido, que já não era o partido mais votado, viu mais diminuída ainda a sua dimensão depois das eleições, e nos termos que acima referi. Não tendo, como é óbvio, estas eleições aplicação directa em matéria de governação, ficará para o momento decisivo da discussão do orçamento a pronúncia sobre a legitimidade (a que resulta do voto e a que resulta do exercício) e da densidade política desta maioria de governo, sendo certo que, não considerando a posição do CHEGA, do que se trata é, de facto, de uma minoria que pode ver o orçamento recusado pela maioria relativa de esquerda que existe no Parlamento. Macron, vistos os resultados das europeias, não hesitou e decidiu, de imediato, perguntar aos franceses o que querem em matéria de formação de um novo governo. Foi uma decisão sensata (perguntar ao povo soberano o que é que, afinal, quer) e não é seguro que o vencedor destas eleições, o Rassemblement National do senhor Jordan Bardella, confirme em eleições legislativas a vitória, tendo em conta o sistema eleitoral francês, maioritário em duas voltas. Poder-se-á, todavia, dizer que a hecatombe do SPD de Scholz (ficou em terceiro lugar, com 13,9% contra 30% da CDU/CSU e 15,9% do AfD) nestas eleições europeias não o levou à demissão, apesar de a soma da coligação semáforo que sustenta o seu governo ter ficado somente um ponto acima da CDU/CSU, ou seja, 31%, ou seja, tendo-se verificado uma fortíssima quebra na legitimidade da coligação. Sim, mas Scholz ainda dispõe de 416 deputados num Parlamento com 736 deputados, ou seja, ainda dispõe de uma robusta maioria absoluta no Bundestag. Gasta, sim, mas efectiva, o que não acontece entre nós – aqui temos uma dupla minoria, em relação ao número total de deputados e em relação aos deputados da esquerda.

3.

Por cá, de facto, isso não se verifica, tendo a esquerda a maioria, desde que o CHEGA não entre na equação, proibida que está pelo “não é não” de  Luís Montenegro. A clarificação da situação fica assim dependente de uma posição favorável no orçamento ou mesmo de uma integração daquele partido na solução de governo, o que não é certo que aconteça. É claro que o fraco resultado obtido por este partido nestas eleições pode levar André Ventura a temer uma ida às urnas por risco de perder a força de que dispõe actualmente no Parlamento. Sim, é verdade, mas parece ser útil lembrar que também a AD e o PS perderam, relativamente às eleições de Março, 585.704 votos (AD) e 545.655 (PS), o que, sendo, em ambos os casos, menos do que aquilo que o CHEGA perdeu, ou seja, 783.154 votos, não deixam também de ser perdas significativas. Pelo menos, perdas que relativizam a perda do CHEGA. Ou seja, se a comparação com as legislativas é válida para o CHEGA, manda a coerência que também seja válida para os dois maiores partidos.

4.

O que pretendo dizer com tudo isto é que a legitimidade política da minoria que suporta o governo se já era pífia, depois destas eleições mais fragilizada ainda fica, sendo, pois, necessário evidenciar ou sublinhar esta situação. Eu não acho que o PS deva estar constantemente a afirmar-se como o partido da estabilidade, o partido da responsabilidade ou então ter medo de ir para novas eleições se a actual situação de crise de legitimidade do governo se mantiver. A verdade é que a direita tem a possibilidade de construir uma maioria estável no parlamento (esta solução já existe em vários países da União Europeia, por exemplo, na Suécia e na Finlândia, para não falar da Hungria, da Holanda ou da Itália), sobretudo agora, depois destas eleições, podendo hoje o CHEGA estar ainda mais disponível para a integrar, pese o famoso “não é não” de Luís Montenegro, cujas performances eleitorais não parece estarem a ser muito consistentes e auspiciosas. Ou seja, o sistema democrático ganharia com uma clarificação da questão da legitimidade: ou através de eleições ou através da conjunção das forças da direita moderada e radical como suporte do governo.

5.

Visto isto, não compreendo a atitude do Secretário-Geral do PS, precisamente na noite em que este partido ganhou as eleições, de se apressar a dizer que não será o PS a pôr em causa a estabilidade política, querendo, talvez, com isso significar que, afinal, já está disponível para aprovar o orçamento, cedendo a chefia da oposição ao CHEGA, o que contraria a posição antes afirmada pelo próprio Pedro Nuno Santos. De resto, bem vistas as coisas, será mais provável que nestas circunstâncias o CHEGA não esteja interessado em provocar eleições e, por isso, esteja mais disponível para aprovar o orçamento do que para o chumbar, o que deixaria o PS na confortável posição de exprimir, com o voto no Parlamento, a sua diferença programática relativamente ao PSD. A verdade é que este governo, sem consistente legitimidade, tendo o orçamento aprovado terá ipso facto uma vida prolongada pelo menos até 2026, a não ser que, entretanto, uma moção de censura seja aprovada pelo Parlamento ou uma moção de confiança do governo seja recusada. O que me parece é, pois, que o momento decisivo para a clarificação política seja o da apresentação do orçamento. E muito mais na circunstância de, no momento em que for apresentado o orçamento para 2026, o Parlamento já não poder ser dissolvido pelo PR.

6.

O que está aqui em causa é a questão da legitimidade. Bem sei que esta questão da legitimidade está hoje muito desvalorizada (as eleições servem sobretudo para designar os representantes), tendo dado lugar, sim, à chamada legitimidade de exercício ou, como eu prefiro, à legitimidade flutuante. Mas esta última acaba de ser posta à prova nesta mega-sondagem das eleições europeias e com resultado negativo. Ora, combinando ambas as legitimidades (a que resulta do voto e a que resulta do exercício governativo) o que parece ser mais evidente é uma efectiva crise de legitimidade deste governo. E, como diz o povo, para grandes males, grandes remédios. Que seja o povo a dizer claramente o que pretende ou então que a direita se assuma como bloco na sua compósita configuração. JAS@06-2024.

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Poesia-Pintura

O POETA E O SILÊNCIO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “A Melancolia do Poeta”
Original de minha autoria
Junho de 2024

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“A Melancolia do Poeta”. JAS. 06-2024

POEMA – “O POETA E O SILÊNCIO”

TEM RAZÃO
O poeta que quer
Ser rei
Dos silêncios
E não ficar
Escravo
Das palavras
Que ela diz...

ESCUTAR
O silêncio
Da musa
É a missão
Do poeta,
O eco
Das palavras
Em surdina
Com que ele
O interpreta.

FÁCIL É TROCAR
As palavras,
Difícil é
Interpretar
Os silêncios
Em que a musa
Se instala
Sem saber
Se são recusa
Ou se são
A sua fala.

MAS ELE SOFRE,
Entre os silêncios
Expressos
E as palavras
Trocadas,
O acre sabor
Da pura
Melancolia,
O passado
Que passou
E que agora,
Com as palavras
Que tem,
Ele renova
E recria.

FOI NESSE
Intervalo
Entre as palavras
E os silêncios
Que um dia
Se abrigou
Quando por essas
Palavras
Trocadas
De afecto
Soçobrou.

MAS LEVANTOU-SE
Pra dos silêncios
Ser rei,
Recriando
 O passado
Em poéticos
Rituais
Pra não ficar
Prisioneiro
De um tempo
Que não volta...
............
Nunca mais.

DOS SILÊNCIOS
Das suas musas
Ele é rei,
Ele é jogral,
Só ele
Os pode ouvir
Como ecos
Do seu canto
Nos dias
De ritual.

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Informações

“POLÍTICA E IDEOLOGIA NA ERA DO ALGORITMO”

de João de Almeida Santos

JÁ DISPONÍVEL EM VERSÃO DIGITAL

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A CAPA do LIVRO. JAS. 06-2024

JÁ PODE SER ADQUIRIDA a versão digital (PDF) do livro “POLÍTICA E IDEOLOGIA NA ERA DO ALGORITMO”, de João de Almeida Santos, junto da ACA Edições: acazarujinha@gmail.com.

Pode ter uma ideia do livro (Ficha técnica, Índice e uma Nota do Autor sobre o conteúdo) aqui: https://joaodealmeidasantos.com/2024/05/28/artigo-noticia/.

Envie já um e-mail à Editora e receberá toda a informação sobre a aquisição do livro. JAS@06-2024.

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Artigo

FRAGMENTOS (XI)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

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“La Diseuse” 2022. JAS. 06-2024

O POETA VAGUEIA POR AÍ

O POETA VAGUEIA por aí, ouve vozes, vindas lá dos confins da sua memória, vozes que o interpelam intimamente e às quais responde em público, embora de forma cifrada, ou seja, poética, mas comprometendo ou empenhando a sua palavra, na semântica e na estética. Sim, o canto do poeta é livre, mas a partir do momento em que lhe dá forma e o propõe à sensibilidade de outrem ele deixa de lhe pertencer e fica sujeito à sensibilidade de quem o ouve, de quem a ele acede. A poesia é partilha com regras, as que transformam um grito de alma em arte, pronto a ser interiorizado por quem o ouve, por quem o pode sentir como seu. Nesta passagem, o destino é o da universalidade, a partilha universal, a pertença a uma livre comunidade de sentimentos. Uma experiência que se pode transformar em discurso colectivo, em fala partilhada de uma comunidade, sem deixar de ser uma confidência, um segredo confessado a cada um dos amantes da poesia. A fala da sensibilidade. Só com este destino o canto pode cumprir a sua função de resgate e libertação. Um poeta tem sempre muito clara esta vocação, este destino da poesia. A consciência de si e de destino é uma característica essencial do poeta, enquanto tal. É mesmo por isso e para isso que ele compõe as suas partituras.

REVELAÇÃO I

Os poemas “contam” sempre uma história, mas não de forma descritiva. E o poeta, no poema “Revelação” (publicado a 12.05.2024), faz uma confidência, que é sobretudo um desabafo “sincero”: se interpela a musa (do canto silencioso) é para ouvir o eco do seu próprio chamamento poético (da sua dor, relativizando-a) e se a quer, à musa, é como objecto do seu olhar e da sua atenção, não como corpo para “possuir”. Possuir não o corpo, mas a alma, com o olhar interior, nesse movimento de recriação que a arte lhe concede. O lugar do poeta é, pois, mais o da janela do que o da porta ou o da rua. Refugia-se na janela para ver o seu mundo passar, em moviola, sendo, todavia, ele o realizador. Dir-se-á que ele também sai pela porta e anda na rua. Sim, é verdade, e é aí que ele sofre o peso de um real que não corresponde nem responde aos seus desejos. Então ele, melancólico, refugia-se na janela e enfrenta o real com o olhar poético e com as “armas” da poesia, devolvendo, com a ajuda do vento que passa, os seus desejos em forma de canto sedutor. Devolver a quem? A ninguém e a cada um. Mas sempre também a Ela. Sedução heterodirigida, pois. No outro poema da janela (“A Janela”) era ela, enquanto sujeito poético, que se colocava ali para o ver passar, era ali que ela mais se reconhecia nele, no amante. Neste (“Identidades”, publicado em 26.05.2024), é o próprio poeta que a situa no horizonte do seu olhar sobranceiro à rua por onde ela sempre passa. Se o lugar dela é a rua, o dele é a janela. Mas o poeta não é um “voyeur” porque a janela é simplesmente o lugar onde ele reconstrói, preserva e declara o seu afecto, é onde canta para que o mundo o ouça e o reconheça. E, claro, ela também. A janela está para a rua como a poesia está para formas de linguagem puramente descritiva. A poesia é sobretudo performativa. Exprime sentimentos, não os descreve. Sente melhor, dizendo. E, de certo modo, resolve. Pode haver distância no olhar ou somente um fio de horizonte, mas, sim, pode, pelo contrário, haver íntima proximidade no sentir (e no dizer), apesar da distância espacial. O olhar poético acontece em virtude da íntima proximidade no sentir. O olhar poético é apolíneo, mediado pelas categorias da arte, mas só é possível porque acontece em ambiente dionisíaco – para usar as categorias de “A Origem da Tragédia”, do Nietzsche. Primum vivere deinde philosophari.

REVELAÇÃO II

A revelação dos poetas é meia revelação porque é sempre cifrada. São cautelosos, os poetas. Quase timoratos, no meio de tanta nudez. Na verdade são tímidos, muito tímidos e é daí que lhes vem a necessidade de falarem poeticamente. A poesia como manto protector da timidez, mas, ao mesmo tempo, como arrojo e libertação, resgate, redenção.  Sim, a revelação poética é sempre ficcionada, acontece sempre em ambiente de “fingimento”, como dizia o poeta. É ela e não é. Mas isto tem um preço: nunca acaba. É a poesia que alimenta o romance, a intimidade (e não só os fantasmas). É a continuação, por outros meios, de uma história inacabada.  Vivida a solo. Por isso, o poeta tem o dever de se preservar. Para preservar a sua própria história, mas também o seu sofrimento, em diferido, já sob forma poética. Não é testemunho; é, sim, grito de alma, em surdina.

COMPROMETIMENTO

Que o poeta não comprometa a musa, é só uma forma de dizer. Não é o corpo o que o poeta mais quer, mas a alma. E se for só a alma até parece que não compromete. A verdade é que os poetas só sabem possuir a alma. Mas não é isto comprometimento? Certamente que é, e maior, mas de outra dimensão, de outro nível. Porque cria – ou é resultado de – laços íntimos, interiores, invisíveis. Neste nível de relação entre o poeta e a musa tudo é mais complexo, delicado, menos linear, difícil e, por isso, pode suscitar mais interrogações. Como as que o poeta exprime no poema “Identidades” – Quem és tu? Quem sou eu?

"A OUTRA JANELA"

A Outra Janela é a que importa, no poema “Identidades”. Mesmo que seja a mesma (“A Janela”), mas agora vista de fora. A dialéctica a que alude o poema “A Janela” é entre a rua e a janela. Mas agora (no poema “Identidades” e na pintura “A Outra Janela”) o que conta é a visão da janela a partir de fora, da rua. Visão de quem? Talvez da musa. Ou sobretudo da musa. Mas não sei. Pode até ser que o poeta tenha momentaneamente descido à rua, não sei bem por que razão, e fixado o olhar na janela de onde ele próprio observa o mundo. O que sei é que o poeta interpela a musa e lhe diz que, afinal, o que quer é olhá-la da janela. Porque é essa a sua essência, enquanto poeta. Perscrutar-lhe a alma para a seduzir… com palavras ditas com a sensibilidade à flor da pele. Seduzi-la, assim, embora saiba que as musas, como os fantasmas, não se deixam seduzir. E ele diz que o segredo é esse: mais do que o corpo, o que lhe interessa é a alma. Vê-la com o olhar interior interessa-lhe mais, muito mais. Mas ele também sabe, e talvez ela nunca tenha ousado pensar que poderia ser assim, que só a arte pode conduzir a essa posse, à verdadeira posse… pela recriação. Mas que, para isso, é preciso estar à janela. Saber estar à janela. Num plano mais elevado, pois. Eu, sinceramente, não sei se ela, a musa, sabe isso. Se ela sobrevive sem nunca olhar o mundo de uma janela. Olhando-o só da rua (se isso for olhar), sem ver a floresta nem o horizonte. O que pode ser representado por uma porta por onde se entra e se sai… para a rua. Talvez essa seja mesmo a condição das musas. Andarem na rua para atormentar os poetas que por ali passam a caminho das suas janelas. E estarem ali sujeitas ao olhar dos poetas… É claro que o poeta reflecte sobre dois seres, sendo ele próprio um deles. Mas se o faz é porque ambos representam uma relação intensa, sim, embora frustrada ou inacabada ou mesmo nem sequer começada. Um olha da porta, o outro olha da janela. Um age, o outro observa, depois de agir sem consequência. Como podem entender-se, assim? Mas a poesia é isso mesmo: uma viagem da fantasia sobre ruínas com intuitos reconstrutivos. Para que da devastação sobre alguma coisa. Sobrará?

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“A Outra Janela”. JAS 2024

O POETA, A FONTE E A NEVE (I)

A fonte, a água, a montanha, a neve, elementos matriciais, alimento do poeta. Movemo-nos entre eles, nós, os de lá, como numa cenografia natural que temos também inscrita na alma. Beber dessa água na fonte primordial é como continuar a incorporar a montanha em nós. Perder-se na neblina cintilante da neve é como dissociar-se desse mundo demasiado sinalizado e entrar em estado de imanência total na natureza. Desapossar-se de si para entrar em relação orgânica com a natureza. O poema (“A Fonte e a Neve”, publicado em 19.05.2024) refere-se a uma experiência vivida e sentida profundamente, não como descrição, mas como recomposição e revivescência poética dessa experiência, dando-lhe unidade, expressividade, coerência, ritmo…beleza. A mesma que foi sentida nesse andamento existencial a caminho da montanha, mas reconstruída com a sensibilidade já em quietude, em repouso. Para não a perder nas grutas escuras da memória. Reforça-se assim a cada regresso a essa fonte do Vale Glaciar a densidade da experiência. Falta pintá-la, mas de modo a que a pintura apenas aluda a ela, à fonte, em tonalidades e formas que consagrem o que sinto interiormente quando me sacio com aquela água gelada que jorra lá do alto a caminho do Zêzere que está ali a nascer, rumo a sul. Mas, claro, nem sempre é possível suspender a viagem até ela para ir lá mais acima ser abençoado pelos farrapos brancos que caem do alto, no topo da montanha. Sim, é verdade, mas como a guardei na alma, a neve, sempre posso fazer nevar “na alta fantasia”, para glosar o grande Dante Alighieri. Assim, depois, posso convidar os amantes da poesia a levarem, também eles, a montanha e a neve guardadas na alma, embora para isso seja sempre necessário entrar em sintonia com elas… e amá-las.

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“Pasárgada II”. JAS 2022. 

O POETA, A FONTE E A NEVE (II)

Sim, regressa-se sempre com a montanha na alma. É um ritual, a ida à fonte. Um rio de água gelada que cai lá de cima… Até sinto remorsos por a aprisionar em garrafas para a ter sempre comigo, a montanha em estado líquido. E gosto daquela geometria do Vale Glaciar. Às vezes saio de lá completamente molhado tal a força com que a água cai lá de cima. Cai-me a montanha em cima (e neve em estado líquido) e eu gosto. Durante um ano não pude lá ir. Os acessos estavam fechados. E isso custou-me. Mas agora, sim, vou sempre. Com o corpo e com a alma. À espera que neve, mesmo no Verão. Pelo menos, que me neve na alma…

O POETA, A FONTE E A NEVE (III)

Saudades de mim, diz-me um Amigo, também ele lá de cima, da montanha. Saudades daquele que esperava sempre a neve e a via chegar farta e fria naqueles vales de montanha. Tenho saudades do que me ficou inscrito na alma e me acompanha sempre, mas sem vir à tona, porque escasseia. Mas agora vou à procura desse eu cada vez que me dirijo àquela fonte, neve e montanha em estado líquido, na esperança de que lá mais no alto ela se anuncie tal como é, em farrapos brancos. Sei que é o mesmo que sentem os filhos da montanha. Mas, se não chegar, faço-a chegar em cores e em palavras para a poder reviver e partilhar. Canto-a e peço ao vento que passa que a leve, a neve… branca e leve, branca e fria. Maravilhas da arte.

O POETA, A FONTE E A NEVE (IV)

Ah, sono montanaro – cos’altro potrei essere? Nato in montagna, mi piace la montagna e la neve. Ci ritorno spesso, corpo e anima. Fiuto la neve quando sta per nevicare. Ho, dentro di me, un sensore per fiutarla. Sì, il poeta si sente proprio un montanaro… anche in mezzo alla città. Ed è proprio nella città che ne sente più bisogno. Musica e contrappunto.

MUSAS

As musas são o alimento da poesia, tal como os versos são alimento dos fantasmas. Sobretudo os que levam mensagens de amor. Ou beijos escritos, desenhados com letras deslaçadas na pauta poética. Para orquestra. É pelas musas que os poetas se apaixonam irremediavelmente. É por elas que eles sofrem. Mas elas são fugidias e obrigam-nos a tentar alcançá-las permanentemente. Com poemas. Mas elas fogem-lhes. Ainda por cima os fantasmas interpõem-se e bebem os beijos que os poetas lhes enviam. É por isso que a sua tarefa nunca tem fim. Sabem que há fantasmas esfomeados de beijos, arriscam, ou são mesmo cúmplices do fantasmático assédio, e nunca sabem se os seus foram interceptados. E às vezes a intersecção provoca danos irreversíveis, interrompendo o contacto com as musas. Mas é raro acontecer. Todavia, se acontecer o poeta tem de se esforçar de forma redobrada para reinventar a musa como novo eco da sua voz.

ETERNA DESPEDIDA, A DO POETA

Uma eterna despedida… Afinal, é a forma de nunca a perder, a sua musa. Por isso, ele continua a cantá-la e a pintá-la com as cores quentes da saudade. Elas, as musas, são delicadas e um pouco (só um pouco) pérfidas. Insinuam-se para logo se afastarem, deixando o poeta no limbo. É assim que a musa o inspira. Oh, se é. Diz ao poeta que lhe pode dizer que a ama, para logo a seguir dizer que já não se lembra de o ter dito, deixando o poeta entre o dito e o não dito. Num intervalo ambíguo, onde o sofrimento aumenta em intensidade, provocando falta de equilíbrio, como se o chão lhe fuja dos pés. O que lhe vale é que, sendo poeta, acaba por navegar bem nesse intervalo. O intervalo até é mesmo o terreno em que ele melhor se move. Essa instabilidade aparente cria chão à criatividade. Quanto mais intensa é a dor e o desequilíbrio, mais cresce a necessidade de poetar, de recriar um novo chão mais sólido, embora intangível. Mas não deixa de ser doloroso porque lhe sabe a castigo. A vida de poeta é assim. Não é cheia de facilidades e de rotinas. Não é de assobiar para o lado. De fazer-de-conta que nada se passa. Bem pelo contrário, anda sempre em contraponto, com as palavras a rimarem com o silêncio insinuante da musa ou com as suas contradições. Os seus ditos e não-ditos. Sim, a poesia é o contraponto do silêncio que vem do outro lado da fala e da rua. Seja ele pura ausência, castigo ou indiferença. É uma dança que nunca termina. E os “penchés” não são fáceis de fazer. A poesia é como a dança: requer muita técnica para interpretar a melodia e o ritmo das musas, sendo que às vezes o poeta, tal como as bailarinas, tem de fazer 32 “fouettés” com palavras até quase cair, prostrado, no solo, no linóleo da sua vida e dos seus amores. Mas lá se levanta, sempre, agarrado a alguma palavra que ficou por dizer. Eterna despedida.

QUEM É ELA?

À pergunta, recorrente ou sempre latente, sobre quem é e como será a sua musa inspiradora, ele responde com a linguagem da poesia, que não é descritiva ou reveladora do referente, mas sim exclamativa e libertadora. Dionisíaca, sim, mas também apolínea. A poesia evoca e invoca ao mesmo tempo, onde a invocação, só por si, altera a forma de evocar. Lembra, mas suplica, ao ser evocado, inspiração. A invocação é, de facto, dominante, porque é ela que dá forças ao poeta. É certo que a linguagem poética não pode ficar prisioneira de um qualquer referente porque aspira a ser universal, como, de resto, é a pretensão de qualquer arte. Mas, de certo modo, fica, como estímulo e remota inspiração. A universalidade acontece, sim, na forma, mas sobretudo na partilha, num momento posterior à evocação/invocação. Muito do que se lê nos poemas, certamente já foi sentido na própria experiência existencial. Mas o que fica dito é mais do que aquilo que se viveu como experiência.

AMORES INACABADOS

Os amores dos poetas são sempre inacabados. Ou fracassados. É assim que nasce a poesia. para concluir o que não foi concluído. Ou resgatar o fracasso. E é por isso que eles precisam da poesia. Que, todavia, nunca consegue acabar o que um dia começou. Ela vai atenuando a dor do inacabado, mas não a resolve. Assim, o poeta fica condenado a subir ininterruptamente o Monte Parnaso, com as palavras às costas. E algumas pesam mesmo muito… tão carregadas de sentido que estão.

LIBERDADE

O poema que tem este título foi escrito para o 25 de Abril a pedido de uma leitora, para ser lido numa cerimónia de comemoração do 25 de Abril. Pintei também este quadro infra: “Liberdade”. Mas também poderia ter sido o meu “Pássaro de Fogo”, o pássaro da liberdade, na mitologia russa, que mais tarde viria a usar para ilustrar o mesmo poema. Mas também quis associar o amor entre um homem e uma mulher à liberdade conquistada de um povo, humanizando ainda mais a própria ideia de liberdade: dar-se as mãos e voar de mãos dadas no céu azul de um poema, tendo como horizonte a montanha e o seu ar frio, mas puro. Respirar liberdade com a alma, lá no alto. Um poema do Paul Eluard sobre a liberdade, relembrado por um Amigo, é muito belo porque escreve o nome da liberdade em cada sopro de vida, em cada gesto, em cada momento, “sur les champs de l’horizon /sur les ailes oiseaux /et sur le moulin des ombres”, sobre a lâmpada que se acende como sobre a lâmpada que se apaga… sobre tudo. E, tinha de ser, também, “sur le sable” e “sur la neige” – para recomeçar a vida com o poder de uma só palavra: liberdade. Belíssimo. JAS@06-2024

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“Liberdade”. JAS 2024