Poesia-Pintura

O SONHO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Jardim Espectral”
JAS 2024
Original de minha autoria
Setembro de 2024
JardimEspectral2024

“Jardim Espectral”. JAS 2024

"Estamos perto do acordar, 
quando sonhamos que sonhamos"
(Wir sind dem Aufwachen nah, wenn
 wir träumen, dass wir träumen)
Novalis

POEMA – “O SONHO”

SONHEI,
Um sonho estranho
(Não sei porquê,
Mas os sonhos
São assim),
Que numa tarde
De outono
Eu te vi,
Silenciosa,
Etérea,
Ali,
A meu lado,
Sob o loureiro
Do meu Jardim
Encantado.

NÃO ERA RUBRO
De vida cheia
O teu rosto,
Olhar incerto
Em forma pura,
Retrato
Em papel baço
Ou escultura...
.............
De travertino,
Distante
Destes versos
Que na alma
São reversos
De um sofrido
Destino.

E EU ALI,
Nesse jardim
Espectral,
A sofrer-te
Em suave
Melancolia
Por só poder
Pressentir
Em palavras
A tua alma,
Talvez em fuga,
Talvez vazia.

ROSTO
Impenetrável
Que só ouvia
Interiormente
No que, afinal
Não dizia,
Intermitente,
Mudez gélida
Como o mármore
Do teu rosto
Em travertino,
Olhar vago
À procura
Não sei de quê,
Talvez de nada
Ou das marcas
Do destino.

PRESSENTIA-TE
Sem ouvir
A tua voz.
Era apenas
Desejo
Onírico
De alma
Vagante
E uma silhueta,
Talvez errante,
Em tarde
Já tardia
Na espessa
Neblina
Que me cobria.

DE TI
Sobrou-me
Um rosto,
Tudo aquilo 
Que me resta
Pra te sonhar
Neste intervalo
Tardio
Entre mim
E a tua vida,
Um eterno
Desencontro
Já gravado
Como ferida.

ESSE PERFIL
Marmóreo
Prenunciava
Um glacial
Silêncio que,
 Ao acordar,
Me há-de
Emudecer,
Tornando-me
Máscara gémea
Desenhada
Com palavras
Que eu nunca
Encontrarei,
Por te perder...
O rasto
E os olhos
Negros,
Esses
Que sempre
Para ti
Eu celebrei
Porque sempre
Te quis ter.

JardimEspectral2024Rec

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (I)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

ReflexosPublicado

“Reflexos”. JAS 2023 – 66×82, em papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em mold. de madeira.

1.

SENTIR COM A IMAGINAÇÃO

O Fernando Pessoa sentia com a imaginação, tarefa imensamente difícil, delicada e até perigosa.  Mas não nos esqueçamos que o poeta é um fingidor, como diz na Autopsicografia. Como poeta, ele sentia mesmo porque tinha a sensibilidade à flor… da imaginação. Os poetas são assim. A sensibilidade é o seu principal órgão cognitivo. Regista as mais leves vibrações. Sim, mas ele (pelo menos, o Bernardo Soares) não gostava de tocar a realidade sequer com a ponta dos dedos… a não ser a Ofélia, quando a levava para um vão de escada e se atirava a ela aos beijos. Fraquezas de um poeta, que sente sobretudo com a imaginação. Depois, não sei se se arrependia porque isso lhe tolhia os movimentos de imaginação, a liberdade de compor ao ritmo da fantasia. Não sei se foi por isso que a coisa falhou. O que sei é que para ele a realidade era uma galeria de arte, via-a com a sua sensibilidade poética como se ela já estivesse pré-ordenada esteticamente.  Via um rosto como se ele fosse uma pintura exposta na galeria da vida. Os óculos eram as suas lentes poéticas. Eles marcavam uma certa distância do real. Próteses da alma e seu escudo protector. O Pessoa vivia inteiramente no mundo da poesia. Mas o Bernardo Soares parece que não, era mais filósofo do que poeta, embora também recusasse essa condição. Mas, sim, os fragmentos do “Livro do Desassossego” são filosofia e se, como diz Novalis*, “a filosofia é a teoria da poesia” (veja-se Nietzsche, por exemplo), a coisa acaba por fazer sentido. Sim, é mesmo possível sentir com a imaginação, até mesmo ao nível físico, quanto mais ao nível poético.

MOVIOLA

Mas eu acho que o poeta se deixa ir ao sabor das suas memórias mais quentes – olha pra dentro, apesar de também ter óculos – e parte em quinta para o céu azul da sua fantasia. É o que lhe resta e tem de o aproveitar o melhor que sabe e que pode. Só assim não vive em permanente sobressalto. Mas que, no princípio, estremeceu, lá isso é verdade. E não foi só o verbo. Furon le cose, como gostava de dizer o Galileu. Que a musa o visitou, é verdade. Que, depois, passou a ser visitado pelos fantasmas, também é verdade.  E que sente vontade de levitar, depois da perda sofrida, disso não resta qualquer dúvida. É poderosa a memória quente dos afectos. E funciona como a moviola: o poeta põe-se a ver o filme da sua vida e começa a sentir com a imaginação, mas com a mediação do olhar interior. Como o Pessoa, afinal.  Não é bem como na pintura digital, onde há um IMac de 27 polegadas, um programa e fotografias para o início do voo. Não, aqui é tudo interior – chove-lhe na fantasia e nem sequer abre o guarda-chuva. Deixa-se molhar, lá em cima, no meio de nuvens carregadas ou mesmo quando está sentado num arco-íris a olhar cá para baixo. É neste estado que cria. Encharcado. As musas andam por lá. E os fantasmas também. Quando falo delas, das musas, quase sempre uso a palavra musa em minúscula para significar que não se trata da Erato, mas de seres reais que lhe deixaram marcas, ou até feridas, na memória. Uma? Várias? Não sei. Elas podem variar conforme as condições atmosféricas interiores na imaginação do poeta. Por isso talvez sejam várias ou, então,  uma só, mas com capacidade de se metamorfosear. Na imaginação do poeta. Sim, mas que aqui haja mesmo mistério parece não oferecer dúvidas. O mesmo que acompanha o sentimento do amor ou a vagueza da melancolia. Uma intensa neblina que quase não deixa ver um palmo à frente do nariz. Mas, sim, há sempre boas relações com a musa (ou com as musas), sobretudo porque elas estão ancoradas no silêncio. E o poeta não é precisamente o intérprete privilegiado dos ecos do silêncio?

O POETA É FELIZ?

Muitas vezes tenho dito que a poesia funciona como o divã dos psicanalistas, embora, claro, exiba uma beleza que aquele (e aquela, divã e psicanálise) não tem. Falo, por exemplo, da livre associação ou da interpretação dos sonhos. Por isso, o Pessoa não precisava da psicanálise para nada. Tinha poesia onde se deitar. Nem sequer o Bernardo Soares que, não se ajeitando com a poesia, tinha lá em casa os irmãos poetas que lhe davam o que ele dizia não ter. Uma casa cheia de palavras, de sonhos e de livres associações. Por isso, eu não acho que ele, o Pessoa, fosse infeliz. Creio mesmo que era mais feliz do que os outros. Quem, como ele, conseguia ser (sem sair de si ou, então, saindo de si para outro lugar em si) tantas e tão belas “Pessoas” ao mesmo tempo? Uma felicidade a que poucos podem aceder. Pelo contrário, a felicidade mais fácil é simplesmente curta e circular, redonda. A outra, a dele, é uma felicidade em espiral e sem fim. Lembram-se do que o Bernardo Soares dizia do sonho? O que no sonho há de mais reles é que todos o têm, que todos sonham. Mas os sonhos dele eram muito diferentes. Eram sonhos de poeta feitos de palavras. Musas e fantasmas reais? Sim. Vivem na alma do poeta e é por isso que ele lhes pode dar vida cá fora, com palavras. E a felicidade aumenta quando se espalham por quem delas pode fruir.

PRESSENTIMENTO

A musa faz parte integrante da identidade do poeta, que nasceu com ela e com ela vai continuar. Tinha razão o T. S. Eliot. Claro, depois surgem os fantasmas. Isso é inevitável num mundo de relações tão delicadas. Surge sempre um fantasma que ameaça perturbar as relações entre o poeta e a musa. Mas isso, sendo disruptivo, faz, por isso mesmo, parte do processo criativo. Haverá sempre um fantasma que quer beber os beijos que o poeta envia à silenciosa musa. E às vezes consegue. Consegue roubar os beijos. Paciência, diz o poeta. É roubo legítimo, reconhece o poeta, porque sabe que os fantasmas se alimentam de beijos ao longo do trajecto que percorrem para chegarem às musas. Por isso tem de continuar, pois nunca sabe se os beijos, levados pelo vento que passa, chegam à casa da musa. Bem sei que os ecos ressoam na alma do poeta e, por isso, ele consegue pressentir o que aconteceu. Mas não passa de pressentimento.

SENHORES DO TEMPO

Li recentemente uma entrevista de Francis Ford Coppola no jornal francês “Libération” sobre o seu novo filme “Megalopolis”, onde dizia que os artistas são os senhores do tempo e que até o conseguem parar. Acho que ele tem razão porque a arte, e, portanto, também a poesia, consegue modelar o tempo, trazer o passado ao presente e até projectá-lo no futuro, levar o futuro ao passado e até tornar o presente um absoluto temporal. A arte é a senhora do tempo. E até admito que o próprio tempo seja o grande cúmplice da arte porque não só preserva o que a ela interessa, mas também a preserva a ela própria. O tempo escultor respeita a arte porque ela tem o poder de viajar nele livremente em qualquer uma das suas três dimensões. A arte liberta o espírito (do tempo cronológico) e cura as maleitas da alma. E o amor é uma delas (dizia o Stendhal e também o Novalis: “Liebe ist durchaus Krankheit”). E a poesia cura, cantando-as. “A poesia é a grande arte da construção da saúde transcendental. O poeta é, portanto, o médico transcendental” – isto dizia-o Novalis. Depois, a pintura, quando associada à poesia, dá-lhe maior realismo, beleza e até eficácia sensorial, para não dizer curativa.

POETAR

Poetar é voar mais alto, não ficar preso às exigências da rotina, ao circunstancial, à contingência, tantas vezes aos impulsos momentâneos, ruídos que nada têm a ver com o essencial. A vida é o que é. E deixa marcas profundas. O que o poeta tem de fazer é mesmo elevar-se sobre elas, sem fugir, mas metabolizando-as com arte e como arte. Aconteceram? Então, cantêmo-las. É isso a liberdade. É o que eu procuro fazer quando mergulho poeticamente. Cantar o que aconteceu. E propor o canto como forma superior de vida. Chega um momento em que podemos fazê-lo e, então, é pôr mãos à obra. Com alegria, com prazer e com elevação: a poesia é “Erhebung des Menschen ueber sich selbst” (Novalis). A poesia é elevação. Nela, o poeta supera-se.

VOAR

Voar é a palavra, quando se fala de poesia. Então tinha mesmo de ser o quadro intitulado “Voar” a ilustrar o poema com o mesmo título. A poesia é voo. É liberdade. Mas com ela, no voo, levamos também a nossa vida, os tropeções, o que perdemos ou nunca encontrámos, o que ficou registado e sublinhado na memória, quase sempre como ferida. Não é, pois, fuga, mas metabolização através da verbalização em pauta melódica e rítmica. É levitação, retira peso à existência. E só por isso se pode traduzir pela palavra “voar”. As palavras são as asas que sustentam o voo do poeta, mas a pintura, quando o processo é sinestésico, pode materializar melhor a metabolização. Palavras com cor e com movimento visível, maior poder sensorial. Palavras, música, cor, movimento. Está lá tudo e tudo é real. Assim, a performatividade da poesia é ainda maior. É por isso que eu procuro sempre a sinestesia perfeita. O poema é uma acção. Um acto pleno.

CRISTALIZAÇÃO

 Os meus poemas contam sempre uma história, não tanto como narrativa, mas mais como “grito” de alma. Lamento espiritual. Cifrado desabafo. Não se trata, pois, de artifício literário, embora, como é natural, haja sempre um duro e difícil trabalho estilístico. O poema sai da alma. E, como se sabe, e o disse também Novalis, “der Geist entsteht aus der Seele – Er ist die kristallizierte Seele”. Na poesia podemos encontrar a alma cristalizada, sob a forma de espírito materializado em pauta verbal e melódica, a dimensão apolínea da poesia. O Stendhal dizia coisa parecida do amor ao falar de “cristallisation”. E no poema cada palavra deve simultaneamente corresponder à exigências da semântica, mas também às da melodia e do ritmo, da toada, dando unidade e autenticidade ao poema. É esta conjunção entre a alma e o espírito que permite evitar a artificialidade. A “cristalização” nunca pode ser artificial. Não era por acaso que Nietzsche via a superioridade da tragédia grega na harmonia entre e “espírito dionisíaco” e o “espírito apolíneo”.

CANSAÇO

As palavras do poeta, às vezes, parecem cansadas, mas mais por terem sempre de estar a interpretar os ecos do silêncio da musa do que por serem convocadas para se perfilarem na pauta melódica e rítmica da poesia. Disso elas gostam. Gostam mesmo muito. Mas, como se sabe, até o poeta tem de lutar contra um certo cansaço, que não é poético, mas prévio, talvez precocemente melancólico, na fase da tristeza. Isto de ter sempre de subir (e descer, para logo voltar a subir) ao Parnaso com as palavras às costas para se libertar do peso remoto da memória também cansa. Mas ele é como Sísifo, os deuses assim determinaram e tem mesmo de ser… a caminho da doce melancolia. Nunca ele ousará desafiar a ira dos deuses… e talvez também a da musa. Mas, no fim, a recompensa enche-o de felicidade e dá-lhe forças para continuar o seu canto. E assim continuará a ser.

MISTÉRIO

Há sempre mistério na poesia. O poeta nunca diz tudo mesmo que diga demais. O simples facto de ser poesia induz esse sentimento de discurso velado. Depois há um intervalo entre o ser do poeta e o do sujeito poético e é nesse intervalo que se situa o discurso poético. Há um fragmento do Novalis que alude a uma relação próxima desta: “o lugar da alma está no ponto onde o mundo interior e o mundo exterior se tocam”. A poesia é primordialmente coisa da alma e reside na intersecção da vida interior com o mundo, o lugar da alma. E é também por isso que, na poesia, a paz coexiste com a inquietação – é essa coexistência que torna bela, mas também dinâmica, a poesia.

LAURA

À pergunta de uma Amiga sobre se a minha musa era a Laura do Petrarca respondi negativamente, mas deixando uma pista que pode ligar o poeta à amada de Petrarca. Respondi que tenho, sim, uma velha amiga italiana que se chama Laura e vive em Florença, mas que é de Veroli. E que não é ela, a musa. Que é somente uma querida amiga, e há muitos anos. O nome Laura vem do latim Laurus (Loureiro), o arbusto de Apolo, o saber e a glória. Teria podido, então, perguntar: é desta Laura que se trata? Eu responderia: talvez. O Olimpo, o Parnaso, Apolo, o louro, o saber e a glória dos vencedores. Neste caso, o poeta vence o quê? O poeta não vence nada. Limita-se a fazer da fraqueza força, ajudado por Apolo, isso sim. É daqui, desta ascensão ao Monte, que o poeta recebe o louro. O Petrarca amou Laura até ao fim dos seus, dele, dias. Mesmo quando ela já tinha partido, provavelmente em 1348. É este o destino dos poetas. Amar para além das contingências do tempo vivido. A seta atinge-os lá no centro e a ferida fica para sempre, mesmo quando o arco fica menos tenso, como Petrarca diz no poema que transcrevo. Laura, Beatrice? Talvez mais Laura. Até pelo nome e pela proximidade a Apolo e ao arbusto sagrado. Melancolia? Sim, não há poesia sem melancolia. Aqui deixo o soneto de Petrarca sobre Laura (século XIV):

“Erano i capei d’oro a l’aura sparsi
che ’n mille dolci nodi gli avolgea,
e ’l vago lume oltra misura ardea
di quei begli occhi, ch’or ne son sì scarsi;
// e ’l viso di pietosi color’ farsi,
non so se vero o falso, mi parea:
i’ che l’esca amorosa al petto avea,
qual meraviglia se di sùbito arsi?
// Non era l’andar suo cosa mortale,
ma d’angelica forma; e le parole
sonavan altro, che pur voce humana.
// Uno spirto celeste, un vivo sole
fu quel ch’i’ vidi: e se non fosse or tale,
piagha per allentar d’arco non sana.”

Também neste poema encontramos uma combinação entre um amor eterno (a Laura, identificada aqui, por alusão, como vento, l’aura), a beleza angélica e intemporal da amada que o recusou (era casada desde os 15 anos), os ingredientes que fazem deste poema de Petrarca uma poema profundamente melancólico – o amor eterno perante a beleza de Laura, mas, infelizmente, inacessível ao Poeta amoroso: um  sol resplandecente foi o que eu vi: e mesmo que já não fosse como era, a ferida não se curaria mesmo que o arco (de Cupido, entenda-se) já estivesse menos tenso. A poesia a projectar o amor impossível numa doce e eterna melancolia (o poema terá sido escrito, julgo, durante a vida de Laura).

PALAVRAS

As palavras regressam sempre ao poeta que as diz. Gosto desta ideia de regresso das palavras. Mas não é boomerang. E não é só o seu eco que regressa. O sentido que, combinadas, delas resulta. Também é, mas não só. São elas mesmas, inteiras, porque o poeta precisa delas intactas, cheias de sentido próprio. Cada palavra é um mundo. Um poeta sem palavras, sem as suas palavras, seria como uma borboleta sem pólen. Ou, pior, sem pólen e sem asas. Sem elas ficaria aninhado num silêncio mudo e sofrido, incapaz sequer de emitir sinais. Paralisado. Falo, claro, de palavras com densidade, não das que compõem a tagarelice ou os jogos florais, o mero “divertissement”, ou de palavras que são pura arma de arremesso. Palavras há muitas, pois há, mas as palavras do poeta são de uma natureza especial. Glosando Novalis, diria que as palavras (como a linguagem, e como ele refere) do poeta são instrumentos musicais das ideias. Mas eu acrescentaria: sobretudo do sentimento. A poesia também é música e só isso (mas há mais, muito mais) faria a diferença. A poesia é o habitat natural das palavras. Nenhuma acção as valoriza tanto como o acto poético, onde uma palavra pode valer mais do que mil imagens. E são pautas musicais. E é com elas que o poeta beija. É com elas que age, que ama, que pinta, que sonha, que viaja, que canta e que se entrega ao mundo de forma desinteressada, sem pedir retorno. É com elas que se desnuda. Sim, mas é um striptease com véu translúcido espesso. Neblina que requer imaginação para se ver o que está para além dela. Murmúrios, estados de alma – tudo o que faz de nós seres humanos. A nossa identidade, como membros do género humano, algo para além da condição de membros da espécie, é-nos dada pelas palavras em acção. São elas que permitem o processo de espiritualização e até o acesso ao silêncio, ao eco do silêncio São veículos com propulsão anímica (são suspiros da alma) e ultraligeiros, capazes de viajar no tempo, para o passado e para o futuro. As palavras têm vida própria, mas precisam de quem as conduza. Do poeta, sobretudo do poeta. As palavras gostam da poesia e o poeta gosta das palavras.

FINGIMENTO

Na verdade, o chamado fingimento poético decorre das próprias características do discurso poético, que é cifrado, que obedece a critérios estéticos (e só isso o obrigaria a descolar do referente, por mais belo que ele fosse) e à exigência de musicalidade (toada, ritmo, leveza), ao uso de figuras de estilo. Numa palavra, o fingimento poético não é verdadeiramente fingimento e muito menos mentira. A poesia é livre e a sua liberdade reside na sua procura do belo e da universalidade, sem anular a dimensão subjectiva, sensível.  O dizer poético nunca é linear, é mais do que o eventual referente, responde a exigências estéticas e usa uma linguagem cifrada (com figuras de estilo e rupturas na lógica convencional). Foi por isso que o outro disse, na Autopsicografia, que o poeta é um fingidor. E fingir, no sentido em que o disse, não é, como se sabe, mentir, porque pode somente significar de forma não denotativa, aludir veladamente, não revelar explicitamente. “Palavras que o vento não leva”, disse um leitor. Gosto disto. Umas vão e outras ficam. E pode até dar-se o caso de que precise delas para responder a outra musa com outros tons e outras cores, volúvel como é. Mas a verdade é que algumas ficam resguardadas porque o poeta nunca se esgota num poema, embora tente sempre atingir o absoluto. Mas são tantas e tão densas, essas palavras, que nem todas vão com o vento. Ficam também como garantia segura das que vão com o vento. Uma espécie de apólice. Ou barras de ouro que garantem o valor das que vão ser trocadas por sentimentos. Como o dinheiro, embora mais preciosas. É inesgotável a fonte discursiva do poeta, apesar de, em cada acção poética que pratica, ele agir como se essa seja sempre a derradeira acção da sua vida. Procura sempre o absoluto… que nunca atinge. Se atingisse, ficava por lá. Felizmente que há palavras para todos os seus gostos. A poesia é um tónico vital feito de palavras.

NOTA

* O asterisco sinaliza a obra Fragmentos de Novalis, Porto, Assírio & Alvim, 2024, 3.ª edição. Edição bilingue, alemão-português, com selecção e tradução de Rui Chaves. Foi desta obra que retirei as citações e as referências a Novalis – Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (1772-1801). JAS@09-2024

ReflexosPublicadoRec

Poesia-Pintura

VOAR

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração - “Voar”, JAS 2023
Original de minha autoria
Setembro de 2024
VoarFinal

“Voar”. JAS 2023 (71×88, papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em moldura de madeira).

POEMA – “VOAR”

EU CANTO E PINTO 
Tudo o que sinto,
Sonhos velados,
O meu destino,
Versos e cores,
Os meus brocados,
É poesia,
É desatino,
Vivo na vida 
Meus sonhos 
Cantados.

É ASSIM, 
É a vida,
É um lugar
 De partida,
É viagem,
Nada mais...
.............
E quando parto
Lá pra cima,
Azul do céu,
É festa rija
Lá no meu cais.

VOU COM AS AVES
Voo pra longe
E com mais cor
Porque no céu
Há mais azul
E nos meus sonhos
A vida
Tem mais sabor.

POR ISSO VOO
Sempre mais alto,
Trepo nas cores
Pra lá chegar,
O vento 
Dá-me alento
Para voar...
............
E lá em cima,
Junto das nuvens,
Os meus segredos
Posso guardar.

POR ISSO
Eu canto,
Por isso subo
Lá para o alto,
Nada mais vejo,
Nada mais ouço
E assim não vivo
Em sobressalto.

LEVO PALAVRAS
E levo cores,
Levo tudo
Do mesmo jeito
E logo sinto,
Azul e leve,
Ar rarefeito
E menos peso
Na minha alma
E menos frio
Cá no meu peito.

CHAMO A MUSA
Pra ir comigo
E dou-lhe asas
Para voar
No infinito
Do céu azul...
.............
E liberdade
Para sonhar.

VOO COM ELA
Sem um destino
Na imensidão...
................
E lá bem alto,
Já de mãos dadas,
Voamos juntos
Ao ritmo certo
E bem marcado
Da emoção.

VoarFinalRec

Artigo

O ESPAÇO PÚBLICO E A LEGITIMIDADE DO PODER

O Espaço Digital

Por João de Almeida Santos

Ballot box

S/Título”. JAS. 09-2024

NUMA CURTA ENTREVISTA ao novo caderno do “Expresso”, “Ideias” (13.09.2024), a autora do famoso livro sobre o chamado capitalismo da vigilância, Shoshana Zuboff, diz, textualmente, que a) “nossa praça pública já não o é, é uma praça privada, é propriedade”; e que b) “a privacidade, como existia no ano 2000, já não existe, é uma espécie de palavra zombie”. Espaço público e privacidade, dois conceitos decisivos para identificar a civilização ocidental e da democracia representativa que parece estarem hoje em causa. Estranho, não é? Avança o privado e acaba a privacidade? Mais parece um oxímoro. Mas não é. Vejamos.

1.

A autora, filósofa de Harvard, faz estas afirmações no quadro da tese central do seu livro: a da desmontagem do modo de produção, existente à escala planetária, do capitalismo da vigilância, promovido pelas grandes plataformas digitais, ou seja, a transformação dos utilizadores em matéria-prima para a determinação preditiva de comportamentos futuros e ulterior venda aos grandes clientes, entre os quais podem estar precisamente as grandes organizações políticas (A Era do Capitalismo da Vigilância, Lisboa, Relógio d’Água, 2020). Utilizadores que, de clientes, acabaram por se tornar matéria-prima para modelar e vender como produtos preditivos de comportamento futuro aos novos clientes das plataformas. Uma viragem de cento e oitenta graus e uma profunda alteração do seu primeiro modelo, o que tinha os utilizadores como clientes primários.

2.

Ela não se refere, nesta entrevista, ao espaço público mediático, mas essencialmente ao espaço digital, ao das grandes plataformas digitais, sendo, todavia, evidente que mesmo o espaço público mediático se pode considerar, em certa medida, privado, pois o acesso a ele é gerido pelos famosos gatekeepers, os seus guardiões, e carece de autorização quer para nele intervir quer para a ele aceder (mediante pagamento ou contrapartidas publicitárias ou até também orçamentais, no caso das televisões em canal aberto, quando públicas). Sobretudo depois da privatização generalizada dos meios de comunicação. Sim, mas aqui, com o espaço digital, essa dimensão privada é alargada, aprofundada e reconfigurada pelas razões que passo a expor.

3.

Se o primeiro era um espaço de mass communication aberto, embora sob as condições acima referidas, onde o emissor estava claramente identificado e regulado por lei e por códigos éticos (as clássicas plataformas: imprensa, rádio, televisão) e onde os conteúdos eram produzidos sob o seu directo controlo e difundidos uniformemente, o segundo, ou seja, o espaço digital, não obedece a estas características. Em primeiro lugar, trata-se somente de infraestruturas abertas de acesso livre quer para a produção de conteúdos quer para obtenção de informação; em segundo lugar, já não se trata de mass communication, mas sim de mass self-communication (Castells), comunicação individualizada de massas (o conceito de massas é aqui transformado em multiplicidade de indivíduos singularmente considerados e não massa homogénea, mesmo quando seja classificada por targets) num espaço aberto onde se regista uma participação (navegação) bidireccional activa e individualizada (o utilizador como livre produtor e livre receptor, o já famoso prosumer); em terceiro lugar, e no seu mais recente desenvolvimento, a relação entre as plataformas digitais e os utilizadores está a ser, como vimos, sujeita a um processo de pré-determinação dos seus perfis para futura devolução individual de conteúdos devidamente formatados e tipificados, tendo como objectivo a sedução, por identificação com as próprias idiossincrasias, dos utilizadores. Uma função de natureza especular. Neste processo, verifica-se como que uma relação contratual tácita entre as plataformas e os utilizadores (a plataformas oferecem o serviço e os fruidores autorização para uso dos seus dados pessoais), numa espécie de constituency que vê como protagonistas as plataformas e os utilizadores individuais, num processo paralelo ou lateral ao espaço público político normativamente regulado pelo Estado. Uma terceira constituency, portanto: um imenso espaço privado onde acontece o processo informal, e pilotado, de conquista do consenso, com base numa lógica de contrato privado. É esta a diferença fundamental e é neste sentido que se pode dizer que estamos perante um gigantesco espaço privado subliminar que funciona como um ilimitado território de conquista do consenso para, neste caso, fins directamente políticos. Ou seja, as plataformas digitais são sucedâneos muito mais sofisticados e radicais das clássicas plataformas de comunicação: mass self-communication. Um aprofundamento da lógica que já se insinuava no velho espaço público, sobretudo a partir do momento em que, como disse, se deu a privatização generalizada dos meios de comunicação. A diferença abissal é a que vai do marketing clássico (concebido para os media e os respectivos consumidores) ao marketing 4.0, concebido para o universo digital (Kotler).

4.

Daqui, mas não só, decorre uma intervenção fortemente intrusiva na privacidade, pois para determinar preditivamente os comportamentos é necessário traçar os perfis dos utilizadores, o que é feito pelas plataformas e pelos algoritmos: toda a sua actividade na rede é estudada, seleccionada e desenhada para efeitos de previsão dos seus comportamentos futuros. Se a isso juntarmos a informação registada por todos os dispositivos usados na rede (e autorizada explicitamente pelos utilizadores) e geridos pelas plataformas (por exemplo, pela Google), é, sim, possível dizer que a ideia de privacidade já é pura ficção. Ou seja, que a “soberania digital” do utilizador desapareceu.

5.

Shoshana Zuboff apela a uma intervenção dos poderes públicos para repor o espaço público no seu devido lugar, mas, a verificar-se o que já acontece com as plataformas tradicionais – o crescente uso e abuso de um tabloidismo desbragado e o uso instrumental da informação -, há muito pouco a esperar, ainda que já tenha havido iniciativas positivas como, por exemplo, o código assinado entre a Comissão Europeia e as maiores plataformas, Facebook, Google, Twitter e Youtube, por ocasião das europeias em 2019, com resultados muito significativos e interessantes (tratou-se de apagar a desinformação circulante). Mas, na verdade, será deveras preocupante se os senhores das plataformas, Mark Zuckerberg, Sundar Pichai ou Pavel Durov, por exemplo, seguirem o exemplo do senhor Elon Musk e desatarem a promover, ajudados pelos famosos “engenheiros do caos” (Da Empoli) ou spin doctors 4.0, as campanhas dos populistas de direita ou mesmo dos ditadores, intervindo maciçamente, e de forma subliminar, nos processos eleitorais, quer de forma activa e directa quer de forma indirecta, por exemplo, orientando arbitrariamente o processo de difusão e reprodução das mensagens nas redes sociais e condicionando fortemente os cidadãos não só nos processos eleitorais, mas também ao longo do tempo não eleitoral (permanent campaigning). Quando Shoshana Zuboff fala de privatização da praça pública é a este território digital que se está a referir. De resto, este território também já absorveu as tradicionais plataformas, pelo que é possível identificar quase todo o espaço público com o espaço digital e constatar que, sim, já se trata mais de espaço privado do que de espaço público, quer no plano da gestão quer no plano do acesso. É de um espaço intermédio que estou a falar, o que se localiza entre a cidadania e o poder político. Um espaço que deveria conter as duas características de espaço público e de espaço privado, uma conjunção indissociável entre o público e o privado naqueles processos que  são funcionais à construção do autogoverno dos povos. Ora se este espaço for subtraído à esfera pública e ficar totalmente sob a alçada dos poderes privados e da correspondente lógica contratual (alheia ao dispositivo político previsto constitucionalmente, sendo precisamente por isso que hoje já se fala da necessidade de um constitucionalismo digital) a política democrática sofrerá consequentemente danos irreversíveis (com o Estado a ser transformado em pura longa manus do poder privado). É claro que também a faixa privada deste vasto espaço intermédio não pode ser anulada sob pena de a política sofrer danos opostos, mas igualmente danosos: a subordinação integral da sociedade civil ao Estado. Por exemplo, nas ditaduras. A verdade é que este espaço intermédio se estende entre o território privado e o território público na medida em que é nele que se estabelece a ligação interactiva entre um e outro, entre o privado e o público, entre o indivÍduo singular e o Estado. Os partidos políticos são claros exemplos desta dupla natureza (e é considerado desvio quando eles se entregam nos braços do Estado, apagando a sua natureza civil). E é precisamente neste território que acontece a luta pelo consenso, com regras específicas e de forma transparente, procedimentos rigorosos, definidos pelo Estado e aceites pelos competidores, numa dialéctica que deverá decorrer à luz do dia e que deve garantir condições equitativas para todos. Um processo que não pode, pois, ser integralmente capturado pelas plataformas e gerido de acordo com a lógica contratual puramente privada.

6.

Nada disto seria assim se as plataformas digitais tivessem mantido a sua original vocação como tecnologias de libertação e não estivessem a enveredar pela construção de um mundo paralelo cada vez mais pilotado, não só pelo que Zuboff refere no livro “O Capitalismo da Vigilância”, mas agora também pela intervenção despudorada nos processos políticos nacionais (como já o tinham sido no Brexit e na eleição de Trump, por Steve Bannon e pela Cambridge Analytica e com dados fornecidos pelo Facebook), como está a acontecer com o senhor Elon Musk e a promoção descarada de Donald Trump (mas, diz ele, em nome da liberdade de expressão), como parece ter já também acontecido, mas agora de forma mais disfarçada, com Zuckerberg (ao referir, dirigindo-se aos republicanos, em plena campanha para as presidenciais, que a administração Biden/Harris o pressionou insistentemente em relação ao COVID 19), aparentemente a favor de Trump, ou como pode também acontecer com o senhor Pavel Durov, da Telegram (embora não se conheça directas razões de natureza política, mas somente de natureza criminal, para a sua detenção em França).

7.

No meu livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024) discorro abundantemente sobre aquilo que designo por uma terceira constituency, a das plataformas digitais, depois da do cidadão contribuinte e da das plataformas financeiras internacionais (referidas no excelente livro de Wolfgang Streeck, Tempo Comprado, Coimbra, Actual, 2013) que financiam as dívidas públicas e impõem autênticos programas de governo (veja-se o caso de Portugal, da Grécia e da Irlanda). Se for verdade que já estamos perante uma privatização ou apropriação privada do espaço público pelas plataformas digitais, mas também, afinal, pelas plataformas tradicionais de comunicação, embora em menor grau (o gatekeeping e o pagamento para o acesso), o que acontece é que o conhecimento focado dos perfis dos eleitores, conseguido pelo estudo das suas preferências no uso das plataformas, numa injunção inaceitável sobre as suas vidas na rede, permite um forte condicionamento em larga escala do seu próprio comportamento eleitoral, designadamente através da determinação preditiva dos comportamentos eleitorais futuros e daquele que hoje já é designado como marketing 4.0 (que se segue ao estudo dos comportamentos na rede e à determinação dos perfis, para posterior devolução em pacotes informativos que contêm as suas preferências) e que até integra processos de participação voluntária dos utilizadores na relação comunicacional. Por aqui podem correr os processos eleitorais e a construção da opinião pública, deslocando a formação da opinião política para este espaço privado e deixando na superfície apenas o processo formal de decisão eleitoral, como mera confirmação do que subliminarmente e substancialmente foi entretanto conseguido. Assim, é esta constituency, a terceira, que importa evidenciar aqui. Uma constituency sem território, sem fronteiras, sem promotores visíveis e reconhecidos formalmente, sem accountability, sem procedimentos pública e institucionalmente vinculantes, mas com impacto directo e profundo nos processos eleitorais e de formação do consenso. Espaço público totalmente privatizado e a “privacidade” usada como mera matéria-prima para a construção de estereótipos focados (individualizados) com vista à conquista e à manutenção do poder.

8.

Radicalizando um pouco, o que se verificará é que a democracia representativa se encontrará, assim, esvaziada de conteúdo, de sentido e, pior, de transparência na imputação das responsabilidades aos detentores formais do poder e da representação, decorrendo o essencial da formação do consenso numa vastíssima e influente  zona de sombra. Tudo passaria ao lado dos procedimentos formais da democracia representativa, que se limitariam a ser um mero simulacro de processo democrático.

9.

Na verdade, eu não me incluo na fileira dos novos apocalípticos e tenho vindo, frequentemente, a sublinhar os aspectos positivos das plataformas digitais, sobretudo na sua primeira fase de implantação. Mas tenho bem consciência dos perigos que espreitam e que podem desvirtuar o essencial do processo democrático, transformando-o em pura ficção, em puro simulacro. É aqui que deve entrar o poder político legítimo para reconduzir as plataformas à sua essencial função original, desenvolvendo um constitucionalismo digital e negociando, neste quadro, com aquelas a sua própria esfera de acção e de intervenção, em particular, na política, não usando prevalecentemente os instrumentos coercivos ou punitivos (excesso de leis, “gold plating” e 270 “regulators active in digital networks across all Member States”) de que os Estados ou a União Europeia dispõem, e até atendendo a que não é possível regredir para uma fase pré-digital. Por exemplo, no recentíssimo Relatório Draghi, acima citado, fala-se de iniciativas da União para garantir “sovereign cloud” – não só através da promoção de uma “cloud industry” própria, mas também através de uma cooperação com “fornecedores de cloud UE e extra-UE” (“The future of european competitiveness”, CE/EU, 09.2024, parte A, p. 30). Um só dado a este respeito, citado no Relatório: o maior operador cloud europeu só dispõe de 2% de quota de mercado na EU. A União Europeia não possui uma plataforma digital (como, de resto, nem sequer possui uma agência de rating), mas este seria um importante instrumento que ajudaria a promover uma melhor regulação do universo digital, interna e externa (o Relatório refere a necessidade de criar um “digital transatlantic marketplace”). De resto, o Relatório Draghi insiste muito na promoção do investimento no digital e em IA e na criação de, neste sector, uma economia de escala europeia (pondo fim à excessiva fragmentação existente), maior financiamento e de natureza comunitária, redução da carga administrativa e normativa, maior investimento público, para melhor enfrentar o futuro, desde a protecção da soberania digital europeia à sua competitividade no mercado global.

10.

Parecendo ser complexa esta situação, ela é, afinal, muito simples. O cidadão, claro, decide na sua esfera privada quem o deve governar. É a esfera da sociedade civil. Sem dúvida. Mas esta decisão deve acontecer à luz do dia, num sistema devidamente regulado pelo Estado, e não num imenso subterrâneo de manipulação científica das consciências, sem qualquer accountability ou imputabilidade das mensagens enviadas para orientação directa ou indirecta dos eleitores. O espaço público político tem, de facto, duas dimensões, uma pública e outra privada. Por exemplo, os partidos políticos, sendo organizações privadas, são constitucionalmente reconhecidos de interesse público, sendo-lhes inclusivamente reconhecida, entre outras importantes prerrogativas, a exclusividade de propositura nas candidaturas à representação política nacional. É disto que se trata. Não aceitando o radicalismo da análise de Shoshana Zuboff, reconheço a pertinência da sua análise neste livro, tal como me acontecera em relação a Naomi Klein e à perspectiva desenvolvida no seu excelente livro No Logo, considerado a bíblia dos movimentos anti-globalização. Um livro talvez mais partilhável do que o de Shoshana Zuboff ou do que a filosofia implícita no célebre documentário da NETFLIX sobre as redes sociais, em que ela própria participou. Nem apocalípticos, mas também não integrados – entre uns e outros é possível desenvolver uma lógica crítica, mas de bom senso, realista e pragmática.

11.

Posto isto, julgo que seria altura de os partidos políticos democráticos de centro-esquerda ou de centro-direita se debruçarem sobre estas questões em vez de continuarem a fazer política como se nada, entretanto, tivesse acontecido, queixando-se, apenas, do perigo do populismo emergente, sem se interrogarem sobre o grau de responsabilidade que lhes cabe e sobre as razões do seu aparente falhanço. JAS@09-2024

Ballot box

Poesia-Pintura

CONFISSÕES IMPROVÁVEIS
Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “La Peccatrice”, JAS 2023
 Original de minha autoria
Setembro de 2024
LaPeccatrice2024Pub

“La Peccatrice”, JAS 2023 – 57×88, papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, mold. madeira.

POEMA – “CONFISSÕES IMPROVÁVEIS”

RESISTO 
(Como se vê)
Ao cansaço
Indesejado
De te recriar
Aqui,
No meu Jardim,
Busca
Incessante
De palavras
E de cores
Que parece
Não ter fim...

ATÉ AS PALAVRAS
Já nada querem
Dizer,
Braços caídos,
A esvaecer...
E cores
Rasgadas
A desbotar
Em cenários
De abraços
Feridos
Para esquecer.

CANSAÇO,
Melancolia,
Também prazer,
Recriar-te com
Palavras
Em poesia
Pra não sofrer,
Desejo vivo
De sentir
A pulsação
Da tua alma
E com ela
Reviver.

MAS DE NADA VALE
Pedir sinais,
Que os manejas
Com mestria,
Talvez sageza,
Ao sabor
De teus caprichos
Venais,
Mas de inabalável
Dureza.

TALVEZ ANDES
Perdida
Com futilidades
Da vida,
Sem conhecer
O que digo,
Tão alheia
Aos meus desejos
Que até me sabe
A castigo.

NÃO FOSSEM
As cores
Reconstruídas
Do arco-íris
Que tenho
No meu jardim
A pintar o rio
Da tua vida
E talvez eu
Navegasse
Pra outra foz,
Talvez
No meu cais
De partida
Te desse
O derradeiro
 Adeus
De despedida
Do pouco 
Que ainda
Resta de nós.

SIM, MAS VERIA
Sempre a tua
Réplica,
Veria sempre
O cintilar
Dos teus sinais...
...............
E, então,
Ponho-me
A viajar
Em fantasia,
A criar imagens
Com a luz filtrada
Dos meus vitrais,
A ver pleno
Onde há vazio...
.............
E, assim, eu
Já nem sinto
Na minha alma
Aquele frio
Dos teus silêncios
Glaciais.

NarcisaRec

Artigo

A DEMOCRACIA ROUBADA?

O CASO FRANCÊS

Por João de Almeida Santos

La République2

“La République” – JAS 2024

DEPOIS DA ESCOLHA DE MICHEL BARNIER como primeiro-ministro, e não da candidata Lucie Castets, proposta pela Nova Frente Popular (NFP), Emmanuel Macron está a ser acusado pela esquerda de ter roubado a democracia em França. O raciocínio é este: sendo a NFP o bloco político de maioria relativa, saída das eleições, deveria ser ela a responsável pela formação do governo. Mas não foi e daí a acusação feita pelas forças que integram a NFP, A França Insubmissa (LFI), o Partido Socialista, os Verdes e os Comunistas. Mas não se trata só disto: irá ser proposta à Assembleia Nacional (AN), ao abrigo do art. 68 da Constituição francesa, uma resolução para a formação de uma “Haute Cour” com vista à destituição do presidente. Nada menos. Puro maximalismo, ilegítimo e inconstitucional, a evidenciar ódio político a Macron e uma perigosa irracionalidade. A estas acusações acrescem duas críticas ao Presidente: ter decidido, erradamente, ir para eleições legislativas a seguir às europeias e, depois, ter levado cerca de dois meses para indicar um novo primeiro-ministro, como se não fosse mais do que habitual a formação de governos saídos de eleições levar o mesmo tempo ou muito mais (aconteceu recentemente entre nós, como tem vindo a acontecer em Itália desde o pós-guerra e como aconteceu nos países baixos – a formação do último governo levou cerca de sete meses desde as eleições de novembro de 2023). E esta situação até é facilmente explicável se atendermos à nova composição da AN saída das eleições, ou seja, fragmentada em três grandes blocos. Mas a verdade é que o caso francês é tão interessante e elucidativo que vale a pena clarificar o que esteve realmente em causa, para evitar juízos apressados como os que circulam em abundância por aí. E, em particular, na área do centro esquerda. É o que me proponho hoje fazer.

1.

As europeias realizaram-se em Junho e foram ganhas de forma muito significativa pelo Rassemblement National (RN) da senhora Marine Le Pen e do senhor Jordan Bardella. O RN obteve 31,37% e 30 eurodeputados contra 14,6% e 13 eurodeputados do bloco presidencial (“Besoin d’Europe”) ou do partido socialista (“Reveiller L’Europe”), com 13,83 % e 13 eurodeputados, não tendo a LFI sequer atingido os 10% (9,89% e 9 eurodeputados). Note-se que a taxa de participação dos franceses nestas eleições foi de 51,49%, portanto, muito significativa, devendo suscitar por isso ilações políticas fortes, como, aliás, aconteceu. E note-se, também, que o sistema eleitoral é, nas europeias, proporcional.

Foi este resultado  que levou Macron a convocar eleições para que houvesse uma clarificação política, sob pena de, mantendo-se a situação política inalterada depois das europeias, a política francesa ficar inevitavelmente capturada pela sensação pública de ser o RN a força política com maior legítimidade para determinar o destino político de França, ficando consequentemente o governo francês altamente fragilizado.  E não serão os resultados verificados nas legislativas a servir de grelha analítica para avaliar da bondade da decisão de Macron, até porque a primeira volta os confirmou, embora com valores muito mais aproximados. Mas não é necessário frequentar a Sorbonne para perceber que os resultados avassaladores das europeias teriam efeitos políticos disruptivos sobre a evolução da opinião pública e, consequentemente, sobre a política francesa. Efeitos claramente favoráveis ao RN, dada a dimensão da vitória eleitoral. Um resultado tão expressivo como este justificaria, por isso, perguntar aos franceses se confirmavam esta orientação eleitoral em eleições legislativas, mostrando o devido respeito pela cidadania. Por isso, na minha opinião, Macron fez o que devia, tendo esta tendência sido confirmada na primeira volta das legislativas, com o RN a ser de novo o partido mais votado, mas com valores muito inferiores aos registados nas europeias. Um primeiro passo, pois, para relativizar a força eleitoral do RN. Na minha opinião o que Macron fez foi exactamente recusar-se a meter a cabeça na areia para não ver o gigante político que se estava a aproximar cada vez mais do centro do poder.

2.

Com efeito, o RN venceu as eleições na primeira volta, contra as duas coligações União de Esquerda e Ensemble, obtendo 29,28% e 37 mandatos contra 27,99% e 32 mandatos, da primeira, e 20,04% e dois mandatos, da segunda. Não é por acaso que o RN se está a bater por uma alteração do sistema eleitoral com a introdução de um sistema proporcional. Lembro que o sistema eleitoral é, nestas eleições, maioritário em duas voltas. O partido de Marine Le Pen e de Bardella mantém-se, pois, como o maior partido francês e só a natureza do sistema eleitoral francês o viria a impedir de voltar, pela terceira vez, a ganhar eleições. Por isso, não creio que fosse sério continuar, depois das europeias e do nível de participação que tiveram, como se nada tivesse acontecido em Junho. E foi por isso que Macron decidiu, e bem, dar a palavra aos franceses.

3.

Só na segunda volta das legislativas o RN seria remetido para a terceira posição em número de deputados, fruto de uma aliança entre a NFP e o Ensemble que determinava que só os candidatos que estivessem em condições de derrotar os candidatos do RN se apresentariam a eleições. E assim foi, embora este partido (e a fracção dos Republicanos do senhor Ciotti, aliada ao RN) tenha sido o partido que obteve mais votos: cerca de três milhões mais do que o vencedor da segunda volta, a NFP. Mas é preciso não esquecer que o RN ganhou a primeira volta das legislativas, embora não já de forma tão significativa como nas europeias. E isso tem relevância.

4.

O RN é, pois, hoje, politicamente, a força maioritária em França, apesar de ter menos deputados 142 (RN + UXD) do que o bloco de esquerda e do que o bloco de Macron (estes, respectivamente, com 193 e 166 deputados). Mas tem menos deputados porque, como disse, na segunda volta teve contra si uma aliança destes dois blocos centrada numa política de desistências a favor do candidato que estivesse em melhores condições de derrotar o seu candidato. Ou seja, a configuração parlamentar actual decorreu mais da aplicação de uma lógica negativa usada contra o RN do que dos programas que os candidatos propuseram aos eleitores ou da sua exclusiva identidade política. E é este facto incontestável (relembrado na parte final do comunicado da presidência da República) que torna mais frágil a reivindicação da NFP porque não bate certo com a política de compromisso que levou a este resultado final. Não fosse esta orientação eleitoral e o partido que ganharia as eleições teria sido provavelmente o RN (tal como aconteceu na primeira volta e nas europeias).

5.

A lógica ditaria, pois, que a mesma política de compromisso fosse aplicada na formação do governo e na constituição de uma maioria parlamentar que garantisse a estabilidade governativa, respeitando a orientação política que levou à derrota do RN. E sabe-se que o projecto de Macron era precisamente o de promover um governo que integrasse membros da NFP, do seu bloco político e dos Republicanos. Não era visto com bons olhos, ao que parece, que a LFI integrasse o novo bloco governativo, mas nem o senhor Mélenchon se importaria com isso, a crer literalmente na declaração que fez a este respeito (não considerando, pois, que foi uma declaração táctica e puramente retórica ou até mesmo um pouco cínica). Uma solução deste tipo teria uma maioria de apoio na Assembleia Nacional. Mas a verdade é que esta solução ficou imediatamente impossibilitada quando a NFP apresentou a sua candidata a Matignon publicamente e, mais, ameaçando o presidente de destituição se não a nomeasse. Esta decisão não só prescindiu do que acontecera antes, na segunda volta, e recusava o projecto de Macron, mas também o obrigou a optar, em coerência com a sua própria estratégia, por uma solução que não encontrasse resistências significativas à direita (a solução que lhe restou), passando, pois, a incluir na equação a posição do próprio RN, o mesmo que na segunda volta fora combatido quer pelo bloco do Presidente quer pela NFP. Não parece ter, pois, fundamento dizer que, no fundo, era mesmo isto que Macron queria.  Não o quis na primeira volta e voltou a não querê-lo quando esteve disposto a nomear o senhor Cazeneuve, ex-primeiro ministro de Hollande, que Faure não quis. Uma autêntica reviravolta, contrária ao espírito que norteou a segunda volta das legislativas.

6.

Não nego, naturalmente, que a NFP tivesse toda a legitimidade para, em negociações não públicas, digo, não públicas, com o Presidente vir a propor a senhora Castets como candidata a PM. Certamente. Mas também não é possível negar a legitimidade de o presidente querer uma solução mais alargada ao seu bloco político e à direita moderada. Esta diferença poderia ter sido objecto de negociações desde que não fossem públicas e não aparecessem como uma imposição da NFP a um presidente ao qual a constituição dá o poder de nomear o PM (omitindo a obrigação de ter em conta os resultados eleitorais, ao contrário do que estipula a nossa CRP) e atribui a competência de presidir ao conselho de ministros. Em poucas palavras, a iniciativa pública da NFP produziu de imediato um curto-circuito no processo negocial, apoucou a figura do presidente francês e as suas competências constitucionais, anulou o significado do processo que esteve na génese da eleição da maior parte dos seus deputados e fechou os olhos ao mais que certo ao chumbo parlamentar de um governo liderado por Lucie Castets. Em nome de quê? Que o senhor Mélenchon, com o seu radicalismo inconsequente e o exclusivo interesse presidencial que o move, pareça querer tudo isto não me admira, mas que o senhor Olivier Faure o siga espanta-me e, por isso, não lhe auguro um futuro muito interessante no próprio PSF. De facto, tenho a convicção de que Faure não irá ter vida fácil no seu próprio partido, se considerarmos que a sua posição sobre o processo (a recusa de Cazeneuve) acabou por passar no partido (no Bureau National) somente por um voto. A situação pode muito bem ser resumida pelo que disse Nicolas Mayer-Rossignol, socialista e presidente da câmara de Rouen: “À força de querer uma esquerda pura, temos  [ agora ] uma direita mais dura” (El País, 08.09.2024, p. 3).

7.

Na verdade, se Macron teve de alterar a sua estratégia, passando a depender da “condescendência” política do RN (“bienveillance” é a palavra usada por “Le Monde”, porque, segundo Marine Le Pen, este é o “mal menor” e evita a paralisia do país, embora não lhe mereça um “cheque em branco”), isso deve-se em grande parte à intransigência e à arrogância da NFP que, no processo de formação do governo, contrariou a lógica que lhe deu a maior parte dos deputados e ao mesmo tempo criou condições para que entrasse pela janela um partido que a política de aliança com o bloco de Macron fizera sair pela porta, na segunda volta. Como já se diz, o grande ganhador desta intransigência e arrogância não é Macron nem a NFP, mas sim o Rassemblement National e a senhora Marine Le Pen, a caminho das presidenciais de 2027. Veremos se as suas exigências irão, ou não, ser cumpridas para que não votem uma moção de censura ao governo Barnier: fim da discriminação do RN; resposta ao problema da imigração; debate sobre a introdução do proporcional no sistema representativo. Barnier já mostrou abertura em relação a estas exigências do RN. E uma coisa é certa: a não oposição activa do RN é condição sine qua non para a sobrevivência do governo. O RN é hoje o árbitro da política nacional e a NFP a oposição. Que efeitos terá isto nas próximas eleições presidenciais não se sabe, mas uma coisa já se sabe: deu-se início à normalização da extrema-direita em França.

8.

Uma bela lição a retirar sobretudo pelos partidos sociais-democratas ou socialistas. Sobre o que não se deve fazer.  Na verdade, o sectarismo nunca leva a bom porto, a confusão entre o adversário principal e o adversário secundário também não (sobre isso aconselho a leitura do interessante livro de Mao Tse Tung:  Da Contradição) e a falta de racionalidade em política nunca é produtiva nem benéfica. Estas três variáveis podem claramente ser aplicadas à NFP e, em particular, à LFI do senhor Mélenchon e ao PSF do senhor Olivier Faure.

Na verdade, não correm bons tempos para o centro-esquerda. Parece ser evidente a existência de uma crise generalizada e que, se não for reconhecida, não será possível encontrar as respostas necessárias, vendo-se, portanto, sujeita a um inevitável declínio.

O caso francês é muito instrutivo sobre a actual filosofia dominante do centro-esquerda, quer quando se torna maximalista quer quando cede às exigências dos neoliberais, variáveis daquela que é a tendência deletéria que, em geral, se tem vindo a verificar nesta área política. E foi esta, sim, a razão que me levou a voltar analisar, com o máximo de objectividade possível e sem “parti pris” (apesar da minha filiação neste espaço político), o caso francês. Um caso tão evidente que espero que mereça a atenção do nosso próprio centro-esquerda, em particular do PS. JAS@09-2024

Presidenciais2021Rec

Poesia-Pintura

PALAVRAS

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Fascínio”, JAS 2023
Original de minha autoria
Setembro de 2024
Fascínio09_2024_2

“Fascínio”, JAS 2023, 68×88, papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em mold. de madeira

POEMA – “PALAVRAS”

PARA QUE SERVE
O poema,
Meu amor?
“Para nada!”,
Dizes tu,
“São palavras
Que usas
Pra te sentires
Menos nu”.

MAS PALAVRAS
São como o vento
(Respondi-lhe
Com verdade),
Vão,
Voltam
E mudam
De intensidade,
Sopram forte
Ou de mansinho,
São volúveis,
Ilusão,
Vão para sul
Ou vão pra norte,
Encontram
O seu caminho,
Mas cruzam
O meu destino
Mesmo que eu diga
Que não.

SÃO INTANGÍVEIS,
São sinais,
Podem ferir
Como espada,
Às vezes,
Como silêncio,
Ou até
Um pouco mais,
Outras, pior,
Como nada,
Nem sequer
Como sinais.

AS MINHAS
Dizem sempre
O que sinto,
Parecendo
Não o dizer,
Mas, às vezes,
É proibido,
Outras simplesmente
Por não querer,
Mas se te escrevo
E até minto
(O que até bem
Pode ser)
É por ser forte
O desejo
De um dia
Eu te ter.

ESTE POEMA
Que te envio
Escrevi-o
Com o vento,
Mas nele eu
Também minto
E até o vermelho
É cinzento,
Pra esconder
Aquilo que eu
Já não sinto,
Pelo menos
No momento,
Pelo menos 
Até ver.

MAS É ESCRITA
Inocente
Que quer chegar
Ao destino,
Como o Sol
Vai a poente
Num poema
Cristalino.

SÃO PALAVRAS,
São sorrisos
E, às vezes,
 Fingimentos,
São murmúrios,
Sentimentos
Daquele que
Sempre te quer,
São o sonho
Do poeta
Quando a vida
Adormece
No rosto
De uma mulher.
Foto_Palavras2024

“S/Título”, JAS 2024

Artigo

DEZ FRAGMENTOS

SOBRE A MELANCOLIA

Por João de Almeida Santos

JAS_Melancolia3_2024

“S/Título”. JAS. 09-2024

1.

No Texto “A Filosofia da Composição”, Edgar Allan Poe diz o seguinte:

A beleza de qualquer tipo, no seu desenvolvimento supremo, invariavelmente excita a alma sensível até às lágrimas. A Melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos”.(Poética, Lisboa, FCG, 2016, 2.ª ed., p. 40).

Tem razão o poeta, a melancolia é o sentimento poético por excelência. O húmus da poesia. Aquele que tem mais afinidades com ela. Talvez pela sua ambiguidade, nebulosidade, indeterminação, vagueza, mas também pela profundidade, pela delicadeza e complexidade dos seus efeitos espirituais, mais do que anímicos, já que, como sabemos, a alma não se confunde com o espírito. É como a poesia, que nunca parece esgotar o sentido do que diz,  que procura dizer o inefável, que só alude e não descreve, que é conotativa e não denotativa, expressividade anímica em linguagem espiritual que deixa o sentido a pairar como neblina ou chuva miudinha sobre as palavras (mesmo quando o objecto de atenção do poeta parece ser concreto, definido, determinado), que molha a alma de quem escuta e que actua como estimulante sensitivo para a partilha de sentimentos e emoções. A melancolia é irmã gémea da poesia.

2.

A poesia é transfiguração e no processo criativo transforma o referente, tornando-o maior do que é, mais profundo e mais belo, como quando se extrai de um mineral o seu núcleo “aurífero”, se purifica e se transforma em jóia, em obra de arte. Italo Calvino, falando de arte e de poesia, refere-se ao cristal, “con la sua esatta sfaccettatura e la sua capacità di rifrangere la luce”, como “il modello di perfezione che ho sempre tenuto come un emblema” (Lezioni Americane, Milano, Garzanti, 1988, p. 69). Falando de Leopardi, diz que “il poeta del vago può essere solo il poeta della precisione” (1988: 61) e considera Paul Valéry como a personalidade do século XX que melhor definiu a poesia como uma tensão para a exactidão (1988: 66).  Pode parecer estranho, um oxímoro, mas a vagueza só pode ser dita com o máximo de exactidão, de precisão cirúrgica. Por exemplo, a extrema vagueza da melancolia. Demasiadas palavras ou um discurso analítico não a captam, desfiguram-na. Por isso a poesia é a linguagem apropriada para falar da melancolia. Em registo de minimalismo discursivo quase a deslizar para o silêncio. Ou, então, como eco do silêncio. O Poe falava de 100 versos, no máximo. A poesia é, pois, alquimia. E o poeta um aurífice. Do ouro informe resulta uma jóia exacta como um cristal. Tal como da melancolia um poema. Um cristal lapidado com a exactidão das palavras cinzeladas. Uma vasta superfície que se oferece à sensibilidade do poeta, a da melancolia, e da qual este extrai o núcleo aurífero para o lapidar com a exactidão das palavras escolhidas, pela sua força expressiva, pela sua musicalidade, pela sua forma.

3.

Como obra de arte, o poema não é redutível a nenhum referente porque ele dá voz a qualidades esteticamente emergentes que não existiam nele ou existiam apenas “in nuce”, em embrião, somente disponíveis, para ganharem forma, ao olhar comprometido do poeta ou do artista – “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”. Repito sempre, a propósito da criação artística, esta fórmula fabulosa da Yourcenar/Michelangelo, em “Le Temps ce grand Sculpteur”.

4.

É difícil dizer o vago sem correr o risco de o caracterizar excessivamente, acabando por negá-lo, anulá-lo, contradizê-lo. O vago vale precisamente porque é vago, porque é a sua vagueza que estimula o poeta. A poesia sente-o, o vago, e procura pintá-lo com palavras, em polissemia melódica e rítmica. A melancolia é vagueza e é leveza. É mais do que tristeza, mais do que saudade ou do que sentimento intenso e incerto de um vazio que não é possível preencher.  É mais porque atinge já o nível espiritual. É por isso que é terreno fértil para a injunção poética, para a captação exacta da vagueza de um sentimento que resiste a deixar-se capturar na forma ou pela forma. A poesia, que é a menos formal das artes, transforma a tristeza em melancolia, tal como a arte transforma o cómico em humour (Calvino) ou como o aurífice converte o ouro em jóia pronta a ser usada universalmente porque portadora de beleza incondicionada, que pode ser apreendida pelo dispositivo estético, pela sensibilidade educada de que os seres humanos dispõem. O Kant falou de dispositivo universal-subjectivo: o juízo de gosto (quando se trata do belo), não sendo movido por interesse, sendo “contemplativo”, funda a sua validade, não no objecto, mas em algo que é universal, que existe nos sujeitos do juízo estético e que se pode identificar como o livre jogo entre duas faculdades, o intelecto e a imaginação: “o juízo de gosto deve ter a pretensão de uma universalidade subjectiva” (Kant, Crítica do Juízo, I. I. I, § 6; e Della Volpe, Opere, V, Roma, Riuniti, 1973: 26-30 e 456-457). Estamos, pois, a falar de algo aparentemente contraditório, de um aparente oxímoro: a “universalidade subjectiva” que acontece no terreno do sentir, da harmonia sentida interiormente, na livre dialéctica entre faculdades que são comuns a todos os seres humanos. Não se trata, pois, num juízo estético, para o dizer em palavras mais simples, nem de representações conceptuais nem de reconhecimento de qualidades do objecto digno de atenção estética e considerado belo. Trata-se dos sentidos interiores, do sentimento, de algo que, sendo subjectivo, alcança na beleza uma dimensão universal, sim, mas sempre ancorada na imaginação e no sentimento.  Algo que não é muito difícil de entender porque deste jogo resulta uma forma que pode ser apreendida universalmente. Por isso Kant fala da intervenção do intelecto neste processo, nesta dialéctica entre faculdades. Algo, dizia, que a precisão e o minimalismo poéticos propõem eficazmente ao juízo estético, garantindo-lhe essa dupla qualidade – universal e subjectiva. A melancolia pertence a esta esfera da imaginação e do sentimento e é o terreno onde acontece a transfiguração poética, já com dimensão espiritual (correspondente à parte desempenhada pelo intelecto). Falando da sua irmã gémea, a tristeza, poderia dizer que a melancolia é um seu sofisticado upgrade. Como diz Calvino: “la melanconia è la tristezza diventata leggera”, por obra da arte. É esta leveza que a torna universal, retirando-a da esfera individual, a da tristeza, puramente subjectiva ou psicológica.  E a leveza só lhe pode ser dada eficazmente pela poesia (mas também na pintura o tentei fazer com um rosto de mulher, projectando na pintura a semântica do poema). E diria até que a “universalidade subjectiva” de que fala Kant se dá nesse intervalo, nesse “mundo intermédio”, nessa brecha entre o puramente sensível e sensorial e o universal que é o território próprio da arte. Um território que exige precisão, a que se oferece ao juízo estético, como veremos em “O Corvo”, do E. A. Poe. Só a arte pode manter este contacto ou esta fusão entre o sensível e o inteligível (na dialéctica entre a imaginação e o intelecto), nesse instante oportuno (o instante criativo) que os gregos traduziram pela palavra kairós. É isso que faz dela a mais humana das actividades. Eu creio mesmo que a autêntica arte é necessariamente alquímica. E é nesse movimento em direcção ao essencial que se inscreve a sua potencial “universalidade subjectiva”, quando o sentir do poeta pode ser compartilhado universalmente sem lhe retirar o carácter subjectivo, ou seja, a sua dimensão sensível.

5.

Edgar Allan Poe desenvolve uma interessante e minuciosa descrição do processo de construção do seu famoso poema “The Raven”, onde, como vimos, o tom determinante é o da melancolia. Ele diz que é assim em geral e, claro, neste concreto também, como ele próprio o reconhece. E é o recorrente refrão, “nevermore”, que alude à mais radical das ausências de um ser amado – a que é devida à morte. Melancolia levada ao extremo porque morre a amada, que, ainda por cima, é bela. A morte e a beleza como os dois ingredientes fatais da melancolia, quando combinados: “a morte, então, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tópico mais poético do mundo” (2016: 42). O pássaro de mau augúrio, o corvo, repete cruelmente no poema para o sujeito poético que sofre de profunda melancolia: nevermore.  Uma só palavra para dar todo o sentido ao poema, indo ao essencial: a melancolia sofrida (e o poema seria a levitação desejada). Precisão, exactidão. Minimalismo discursivo (embora o poema tenha 108 versos). É neste sentimento de impossibilidade que está ancorada a melancolia – “nevermore”. A morte da mulher amada, a sua beleza, o destino, o reencontro impossível, revelado pelo corvo, aprofundam a melancolia . O refrão é o par inelutável da melancolia. Uma só palavra: “nevermore”. Mais precisão do que isto é impossível. Não foi casual o sucesso e a importância deste poema.

6.

O paralelismo entre o poema “Melancolia” e o que diz D. Duarte no “Leal Conselheiro”, pode ser feito, como fez um companheiro de viagem poética : “humor menencorico”. Tristeza, que outros dizem ser depressão. Doença, “voontade desconcertada”. Claro, pois a vontade, se for concertada, dirigida pela razão, se for apolínea, pode ajudar a resolver o “humor menencorico”. Por exemplo, através da poesia. E curou-se, mas não foi através da poesia, cheio de trabalho que andava, D. Duarte. Ou, então, porque não tinha recebido esse dom da poesia, lhe faltou esse sobressalto do estremecimento suscitado pela musa fatal (como diz Eliot). Interpretado o texto, nesta parte (no capítulo XIX), conclui-se que não foi, de facto, a poesia que o “guareceu”. Guarecer, guareceu, mas não através da poesia. Mas podia ter sido, ou não fosse, ou não seja, o “humor menencorico” o “mais legítimo de todos os tons poéticos”, como diz Poe. Tornada leve, por força da levitação poética, a tristeza torna-se melancolia. O poder catártico da arte de que D. Duarte não se socorreu, apesar de ter, exactamente como fazem os poetas (e é isto que é interessante), partilhado a sua dolorosa experiência em prosa e também, de certo modo, como resgate, seu e de outros afectados pelo mesmo mal. Permaneceu a tristeza, mais como depressão do que como melancolia, apesar de a ter qualificado como “humor menencorico”. E, no entanto, sentiu necessidade  de complementar a superação da tristeza depressiva com o uso da palavra, embora em prosa. Mais uma vez a palavra e o seu poder catártico. O facto parece não ser estranho à vocação catártica da poesia. Essa, sim, mais eficaz do que a prosa. Porque ela é provavelmente a mais performativa das artes. Portanto, o paralelismo funciona, precisamente pela intervenção da palavra catártica no processo. E bem, no meu entendimento.

7.

Quanto ao poema “Melancolia”, o poeta, não tendo certezas, pois a poesia não lhas dá, suspeita que seja já melancolia o que, também a ele, afecta, por perda ou tristeza,  por ausência ou vagueza sentimental, já transfiguradas pelo poema reparador em curso (no processo de criação) e animado, o poeta, pela “sombra luminosa” do ausente, do que foi perdido. “Sombra luminosa” na fita turbulenta da memória. Essa luz, que também é sombra, que o poeta assume como sua “fiel amante”. Da perda à doce melancolia – é o trajecto que o poeta percorre graças a essa luminosidade onde lhe acontece a criação, a poesia, e onde a leveza do ser ocupa o lugar do insustentável peso da existência. Acho feliz esta expressão (creio que é do R. Barthes, em “La Chambre Claire”, de 1980) porque conjuga a ideia de sombra (a perda, a ausência) com a de luz (a inspiração, a poesia). O passado mantém-se como sombra, como simulacro que só pode ser acedido favoravelmente pela poesia, como uma luz que o traz à consciência do poeta. O que ganha ainda mais sentido se a conjugarmos com a outra ideia (de Kierkegaard) de “fiel amante” (a melancolia, derivada da ausência, por perda). Um mundo todo ele reconstruído pelo poeta e que lhe permite evitar a depressão e converter a (originária) tristeza em doce melancolia.

8.

Sim, sempre as palavras a desempenharem um função essencial de elevação sobre o mar encrespado da vida. Mas aqui, neste poema, “Melancolia”, também o pintor, que acompanha o poeta há anos, já tinha ajudado um pouco ao dar forma visual à melancolia com um rosto, não seu, claro, mas de mulher. Afinal, a melancolia é feminina, tal como a poesia. E é por isso que ela é tão sensível e se pode tornar “fiel amante” do poeta (a mulher do quadro “Melancolia”). O estado melancólico, afinal, é próprio da condição de poeta, condição quase maternal, poder-se-ia dizer.

9.

A Joke Hermsen cita, no seu livro sobre a melancolia (Melancolia em tempos de perturbação, Lisboa, Quetzal, 2022, p. 186), Ernst Bloch e o texto “A Melancolia do Cumprimento”: para Bloch, diz, não há “entrada no paraíso sem a sombra da perda” (palavras de E.B.). O que me lembrou de imediato a “sombra luminosa” do ausente, de que fala Barthes, e o acesso ao paraíso através da poesia. E, claro, a melancolia. Só a sombra da perda, precisamente a melancolia, que é sombra de algo que se perdeu e que se mantém precisamente como sombra, dá acesso ao paraíso, sim, mas só se iluminada pela poesia no instante oportuno. Uma espécie de moinha que exige cuidados, não primários, mas espirituais, para a resolver.  O que poderia também equivaler a uma declarada condição de acesso à poesia. A sombra da perda que se torna luminosa através da inspiração poética. Uma linha evolutiva: perda, sombra, luz, paraíso. É isso. A poesia é uma luz que se acende sobre um passado sombrio. E que, num passe de magia, nos leva ao paraíso. Et voilà.

10.

E diz mais, a Hermsen, referindo-se a Bloch e ao princípio que é o objecto central do seu fabuloso “Das Prinzip Hoffnung”: a esperança é a outra face da melancolia. É, aliás, do estado melancólico que resulta a vontade de futuro, onde a dor seja matizada,  mas também de um futuro desenhado com palavras sob forma de utopia. A melancolia que resulta da falta de “Heimat”, da pátria, leva Hannah Arendt (o que bem se compreende historicamente) a dizer que esses, os que a não têm, são bem-aventurados porque continuam a vê-la e a vivê-la nos sonhos. E a elevá-la para além de si própria, pois sentida em estado de melancolia, de perda, de ausência. O sentimento de perda gera esperança, a esperança gera vontade de ter algo novo e mais perfeito, gera vontade de construir a utopia. E o que é a poesia senão utopia em construção infinda? JAS@09-2024

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