Artigo

TRUMP É MESMO FASCISTA?

Por João de Almeida Santos

TrumpFinalAss

“S/Título”, JAS 2024

NA PRÓXIMA TERÇA-FEIRA vota-se nos Estados Unidos para eleger o Presidente do mais poderoso país do planeta, numa época em que se vive uma extrema instabilidade internacional e uma forte ascensão política da direita radical em todo o mundo, incluída a Europa. E também ali parece estar a jogar-se algo decisivo. Algo que até pode ser considerado como um processo onde se joga o futuro da democracia americana, tendo o candidato republicano evoluído, desde que perdeu as eleições em 2020, para uma visão cada vez mais radical, a ponto de se poder temer pela sobrevivência da própria democracia americana ou, pelo menos, para uma sua forte descaracterização. Muitos se têm interrogado sobre quais são as reais intenções de Trump e como poderá ser definida a sua visão da política e da democracia. Talvez a sua visão reduza a política ao exercício do poder, à sua conquista e preservação. E a nada mais, para além das proclamações eleitorais para obtenção do consenso. De resto, seguindo uma tendência que, infelizmente, me parece ser hoje dominante. Na verdade, do que se trata é de um autêntico plutocapitalismo. Se dúvidas houvesse, e não há, bastaria tomar em consideração a presença activa na campanha de Trump daquele que dizem ser o homem mais rico do mundo, Elon Musk.

1.

É frequente a identificação da extrema-direita ou direita radical, em que Trump se filia, e cada vez mais, com o fascismo. Ou seja, atribuir-lhe as características que tinha o velho fascismo italiano personalizado em Mussolini, “Il Duce”, também conhecido  como “Er Puzzone”, alguém não recomendável. De resto, a Itália dos nossos dias até já é governada por um partido cujo antepassado é o partido fascista de Mussolini, estando também na ordem do dia saber se o partido “Fratelli d’Italia”, de Giorgia Meloni, se identifica, ou não, com esse passado. Julgo ter respondido a esta questão no meu livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, pp. 101-118), que será lançado nos finais de Novembro, na Covilhã. Não é, pois, muito estranho que a pergunta formulada no título deste artigo se aplique também ao candidato presidencial republicano. Sobretudo depois de o general Mark Milley e o seu ex-chefe de gabinete, John Kelly, assim o terem qualificado, depois de Joe Biden e Kamala Harris terem retomado essa qualificação e de vários historiadores a terem também, finalmente, considerado adequada. Sobretudo se referida aos últimos tempos.

2.

E começo por reconhecer que, sem dúvida, comparações históricas é sempre possível fazê-las. Sim, mas salvaguardando as diferenças temporais, pois parece ser verdade que, não obstante os “corsi e ricorsi” de que falava, e bem, Giambattista Vico, a história não se repete, sendo cada acontecimento histórico único, na sua singularidade temporal. Neste caso, bastaria referir dois aspectos para concluir pela inadequação desta caracterização: por um lado, estávamos no período entre guerras, com os efeitos desastrosos da primeira Guerra Mundial e a experiência da Revolução soviética a influenciar a política europeia; por outro, o fascismo aconteceu no período florescente das grandes narrativas políticas e ideológicas, hoje em claro declínio, tendo ele próprio contribuído para dar consistência ideológica, e até artística (veja-se, por exemplo, o futurismo de Marinetti), a esta orientação política. Estes dois aspectos bastariam para limitar as tentativas de classificar a política actual da extrema direita com o termo “fascista”. Mas é claro que há no discurso de Trump elementos que remetem para o fascismo: o regresso aos velhos, gloriosos e heróicos tempos do império; o inimigo externo já infiltrado internamente que ameaça a pureza étnica da nação e a necessidade de o combater com a lógica e as armas da guerra (com as forças armadas); e, finalmente, a extrema personalização da política e do partido em Trump, identificado cada vez mais como um líder carismático que tende a apresentar-se como o intérprete único dos americanos: “I am your voice” e quero tornar “America Great Again”. Fazer renascer de novo a América humilhada, que lembra uma frase que surge no início do filme de Leni Riefenstahl, “Triumph des Willens”, sobre o regresso de Hitler a Nuremberg, “dezanove meses depois do início do renascimento da Alemanha” (em 1933), humilhada em Versailles. O que não parece ser muito estranho se nos lembrarmos do que seus colaboradores próximos disseram acerca da sua opinião sobre Hitler e sobre os seus generais e, ainda, do que disse, em “Madison Square Garden”, no dia 27.10, sobre os Estados Unidos como um país “ocupado” que ele irá “libertar logo no primeiro dia”. Uma espécie de “deus ex machina” a aterrar no palco americano, no dia 5 de Novembro. Poderá ser exagero, mas que os ingredientes e o simbolismo estão lá, isso é verdade. Uma pergunta legítima: e se perder as eleições, o que acontecerá? Novo e mais violento assalto ao Capitólio?

3.

Podemos dizer que é o regresso de uma grande narrativa política e ideológica, de uma doutrina, de uma visão do mundo estruturada com força normativa, ou seja, com o poder de ritualizar a vida dos americanos? Não creio. O que estamos a ver é a exploração de um discurso sobretudo instrumental dirigido às pulsões mais básicas dos cidadãos com vista a obter consenso para uma vitória eleitoral e o acesso ao poder. Não é tecnicamente inocente a linguagem disruptiva e até chocante de Trump – ela visa no essencial polarizar a atenção social sobre si, o que é considerado determinante no discurso político (veja-se a teoria do “agenda-setting” ou a teoria da “espiral do silêncio”).  Estamos a assistir a uma lenta caminhada para um regime de partido único? Também não creio. Aquilo a que estamos a assistir é à personalização extrema do partido republicano na figura carismática de Donald Trump e à evolução para o modelo populista de acção política e de governo. Nem grande narrativa nem partido único, portanto. Estamos a assistir ao triunfo da força sobre o consenso? Não creio, apesar dos passados distúrbios do Capitolio e da ameaça de deportações em massa. Sobretudo do que se trata é, por um lado, de uma linguagem truculenta centrada em temas fracturantes (como é o da imigração) e que apela aos instintos mais básicos dos eleitores e, por outro lado, a uma profunda viragem institucional própria da direita radical e que consiste na atrofia da separação dos poderes em benefício exclusivo do poder presidencial. Veja-se, a este propósito, o dossier publicado pelo New York Times (de 26.10.2024, na primeira página e nas páginas A10-A13) acerca do que aconterá se Trump ganhar as eleições. Cito um pequeno extracto “If Trump wins” – “Donald J. Trump and his associates have a broad goal to alter the balance of power by increasing the president’s authority over every part of the federal government that currently operates independently of the White House”. O NYT retoma um estudo feito por The Times. No meu livro Política e Ideologia na era do Algoritmo, já referido, explico em que consiste este modelo de concentração do poder no executivo já assumido de forma generalizada pela direita radical.

4.

Mas, mesmo assim, isto justifica que liquidemos o fenómeno Trump com a palavra fascismo? A verdade é que, fazendo isto, o que acontece é que se está a cobrir a realidade com um véu translúcido que não deixa ver com nitidez o que se está a passar na política americana. Li no “Público (de 28.10.2024) um artigo (“Sanewashing e a longa entronização de Trump”) de uma professora da Universidade de Boston, Daniela Melo, que discorre sobre uma fórmula, “sanewashing”, que exprime a lavagem linguística, pelo jornalismo, da linguagem disruptiva e desconexa de Donald Trump como inadvertido contributo para uma bonificação da imagem do famoso plutopopulista. O pudor jornalístico da melhor imprensa a impedir-se de transcrever a linguagem rude e truculenta de Trump como contributo não intencional para a sua entronização. Coisa antiga, diz a articulista. Pelo menos, desde os tempos de “The Apprentice”. Mas li também um pequeno ensaio, publicado no “Libération” (28.10.2024: 20-21), da autoria de Sylvie Laurent, professora em Sciences-Po, Paris, intitulado precisamente “Trump est-il fasciste?”, que acaba por dar uma resposta de certo modo positiva à pergunta formulada pelo título. Com efeito, ela termina o artigo da seguinte maneira: “Da primeira vez (2016), não se tratava senão daquilo a que se chamou um ‘fascismo inacabado, experimental e especulativo’. Mas, amanhã?”. Conclusão que se segue à descrição dos elementos considerados fascizantes no discurso e no projecto político de Trump: “medo eugenista de declínio moral e étnico do país, uso da violência política, racismo matricial, ódio aos movimentos sociais e à esquerda cultural e ressentimento em relação ao Estado e às instituições públicas consideradas corruptas e fracas”. Um horizonte contra-revolucionário que, de acordo com a autora, não visa somente a revolução igualitária dos direitos e liberdades dos anos ’60, mas a própria revolução liberal de 1776, que procedeu à separação dos poderes e que reconhecia o direito de voto e a soberania a cada um. A autora podia ter acrescentado a tudo isto, reforçando esta argumentação, o não reconhecimento da vitória de Joe Biden, em 2020, e o assalto violento ao Capitólio, que mais pareceu uma tentativa de golpe de Estado, ao estilo da farsa mussoliniana da “Marcha sobre Roma”.

5.

Estas características podem muito bem ser enquadradas pela ideia de um plutopopulismo centrado no carisma e na figura de Trump e, já agora, pelos compagnons de route plutocráticos de que Elon Musk é o símbolo mais visível. Mas uma coisa há que perguntar: trata-se verdadeiramente de uma doutrina, de uma ideologia, de uma mundividência sólida ou simplesmente de um processo instrumental de pura conquista do poder no quadro de uma visão de tipo absolutista, perfeitamente alinhada com a que já é hoje claramente assumida pela direita radical-populista e que, noutros países com enquadramento constitucional diferente, podemos classificar como presidencialismo do primeiro-ministro e que, em Itália, já é conhecido como “Premierato”?

6.

A clarificação desta questão não é de somenos, pois o uso e abuso de certas fórmulas (por exemplo, esta de classificar como fascista ou como comunista tudo o que esteja fora do perímetro político do catalogador) para reconhecer e explicar a realidade política e para fazer combate político parece-me dever ter duas leituras: a) este exercício discursivo não só é cognitivamente ineficaz e incorrecto, b) mas ele também esconde uma técnica que é mais própria das autocracias do que das democracias, ou seja, a identificação de um inimigo interno e/ou externo não só para tocar a rebate e unir forças para o combate, mas também para esconder a pobreza doutrinária e cognitiva das forças que usam e abusam destas fórmulas. Em suma, uma lógica de guerra que não está alinhada com a natureza da democracia. A tendência para ver tudo a preto e branco não anuncia grandes resultados intelectuais nem políticos.

7.

Sylvie Laurent, para fundamentar a sua posição, lembra, e bem, o uso de determinadas expressões de Trump: o inimigo do interior; dia da libertação para uma América ocupada (o cinco de Novembro);  nós defenderemos o nosso território, as nossas famílias, as nossas comunidades, a nossa civilização; nós não seremos conquistados; não seremos invadidos; vamos recuperar a nossa soberania; recuperaremos a nossa nação – e eu devolver-vos-ei a vossa liberdade e a vossa vida; e, finalmente, algo que soaria bem em Mussolini: “nós temos entre nós pessoas nocivas, doentes, loucos radicais de esquerda… será necessário ocupar-se deles, se necessário, pela Guarda nacional e, porque não?, pelas forças armadas”. Poder-se-ia, para finalizar, acrescentar: “I am your voice!”

O que resulta de tudo isto é a ideia de que a América precisa de uma guerra de libertação porque se trata de um país ocupado (mas só nos últimos 4 anos, entendamo-nos). Trata-se de uma linguagem bélica e de uso daquela categoria que Carl Schmitt considerava ser a dicotomia central da política: a relação amigo-inimigo. Só que esta relação pertence mais à lógica da guerra do que à lógica da política democrática, onde não há inimigos, mas adversários em competição regulada por normas por todos aceites. O que, a considerar-se o que aconteceu com as últimas eleições e com o episódio do assalto ao Capitólio, parece não ser o caso de Trump. A verdade é que ele “evoluiu” muito (mas de forma regressiva) desde a sua Presidência, designadamente em relação ao próprio partido, que hoje controla totalmente. Controlo que, pelos vistos, aspira a projectar para dentro do Estado, intensificando o que já fizera na sua presidência. Ou seja, controlando as instâncias que em democracia funcionam como contra-poderes (os famosos pesos e contrapesos) e tratando como inimigos todos os que estejam fora do seu perímetro político, se preciso usando as forças armadas. Um discurso que radicaliza ainda mais aquela que foi a sua gestão entre 2017 e 2021. Por isso, também eu, tal como Sylvie Laurent, me interrogo: e amanhã? JAS@10.2024

Trump2Rec

Poesia-Pintura

TENTAÇÃO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Cristais”, JAS 2021
(67x89, papel de algodão, 310gr,
e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70,
 mold. de madeira). Colecção privada.
Outubro de 2024.
Jas16Cristais2022

“Cristais”. JAS 2021

“¡Quién fuera como tú,
fruta, / todo pasión
sobre el campo!”

Final do poema de
Federico García Lorca
“Canción Oriental” (1920),
dedicado à Romã.

POEMA – “TENTAÇÃO”

INQUIETO,
Como sempre,
Vi-te por dentro
Depois de te ter
Cantado
Por fora,
Feliz,
Mas um pouco
Triste,
Assim...
Como quem chora!

CONTEMPLEI
Teus cristais,
Vi cintilar
Tua alma
E logo te pintei
Por dentro,
Sem mais,
Numa tarde
Leda e calma.

E CEDI À TENTAÇÃO
De te oferecer
Aos lábios
Da minha amada,
Ao compromisso
Fatal,
Pra que ficasse
Enleada
E, como Deusa
Do Olimpo,
Se tornasse
Imortal.

MAS ELA É
Concha fechada,
Seus cristais
São ouro negro,
É mistério
Bem guardado,
Silêncio
É o seu lema
Porque, dizem,
É dourado.

MAS PARA MIM
É romã...
.............
Quando a chamo
Ao meu canto
E a pinto
Com afã,
Alma cheia,
Cresce
No meu Jardim
Como em ilha
Encantada
Nasce o canto
Da sereia.

NUNCA TOCOU
Teus cristais
Nem os comeu
Como eu queria
Para, qual Hades
Do poema,
A ter
Eternamente
Cada noite
E cada dia.

POR ISSO TE PROCUREI,
Fruto
De tentação,
Alimento
Dos deuses,
De Kore
A eterna
Perdição.

TALVEZ ME ACENDAS
O estro
E a vontade
De rimar
Pois silêncio
Não é ouro
Se me falta
A sua voz
E não a posso
Cantar.

Jas16Cristais2022Rec

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (III)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

EvocaçãodeumaMagnólia

JAS 2021

I.

Pergunto: não é o sonho que comanda a vida, como dizia o poeta? Que seria de nós se não pudéssemos sonhar? “La vida es sueño” e o sonho vida é, dizia, e bem, o Calderón de la Barca. E o poeta não é o grande intérprete, como se fosse o seu pianista, dos sonhos, bem mais eficaz do que o psicanalista? Ele interpreta e “toca” habilmente os sonhos, dando-lhes harmonia e beleza. A sua música seduz e faz vibrar a sensibilidade dos que a escutam, dando vida ao que sente. Se o segundo azevinho que tenho lá no meu jardim também não quiser, como o outro, dar bagas, recrio um novo com bagas ainda mais vermelhinhas. Sonho com bagas? Dou-lhes vida, com palavras, riscos e cores e partilho-as nos meus rituais. Assim pode ser com o amor.

II.

Na poesia o movimento é, primeiro, de fora para dentro e, depois, de dentro para fora. Começa sempre por ser sensorial, mesmo quando o estímulo já está localizado na zona quente da memória afectiva. Deste duplo movimento resulta o poema. Lá mais profundamente fervilham pulsões que só podem ser controladas e revividas através da sua conversão poética. Da sua verbalização poética, que é também musical. Elas, na origem, são accionadas por estímulos sensoriais. É assim que nasce a poesia. Arte que, pela sua performatividade, tem um elevadíssimo poder terapêutico. Em particular, sobre essa particular “maladie de l’âme” que tanto inspira e excita os poetas. Remédio da alma.

III.

Os poemas que parecem mais fáceis muitas vezes são os mais difíceis de compor. É verdade. A chegada auspiciosa da inspiração ajuda o poeta a não mais tropeçar. Ajuda, mas não resolve. Ou então a tropeçar com tal elegância que mais parece dança coreografada.

IV.

Às vezes parece mesmo que temos mais saudades do que não aconteceu do que do que aconteceu. Às vezes… ou sempre? Eu penso que, pelo menos, são mais intensas e até mais desafiadoras. Não houve? Não aconteceu e eu ainda sofro por não ter acontecido? Ah, sim? Então vou-me servir do poder performativo da poesia e vou fazer acontecer o que não aconteceu. Mãos à obra e, no fim, a obra nasce. “Às vezes” (título de um poema meu). E o poeta fica feliz e (quase) realizado. Não beijou? Envia beijos escritos à musa, na esperança de que os fantasmas não os bebam. Sim, porque há sempre fantasmas por aí. Não a vê? Canta-a. É isso: vê-a em palavras e impressa em pauta musical et plus belle qu’elle-même. Milagres da arte e da sensibilidade. De que pode, pois, queixar-se o poeta? Só se for de insuficiência da fantasia e da intensidade da pulsão… Ah, mas se fosse disso talvez não houvesse pressão suficiente para poetar. Porque não haveria dor que doesse. Poetou e pintou? Houve inspiração e tensão pulsional. Pelo menos, o suficiente para lhe baixar a tensão emocional para níveis suportáveis, pelo menos, que não provoquem danos, enfartes ou colapsos sentimentais.

V.

Fazer da fraqueza força. Pode-se dizer isso do poeta: reconhece as suas limitações na lide com o real. Tem saudades dos seus irrealizados sonhos, mas não baixa os braços. Pelo contrário. Com as palavras de que dispõe, levanta-os bem alto a ponto de poder convocar outros para o ritual de celebração da “vitória” da fantasia sobre o real, mobilizando a comunidade poética. Vitória? Não, propriamente. Porque a arte não é desforra, mas enaltecimento da realidade falhada, humana e desejada. Recriação com maior peso estético e até densidade existencial. Milagre? Quem se pode queixar deste milagre? Só quem não o compreende. Só quem não consegue aceder-lhe. De certo modo, estamos num território de “iniciados”. A identidade do poeta é a de um ser imperfeito e, por isso, muito humano, demasiado humano. Alguém que teve necessidade de se iniciar no processo de acesso ao mistério da vida, tantos foram os seus fracassos, as suas derrotas, as suas perdas e os silêncios que se lhes seguiram. A iniciação poética… que não é menos do que as outras. Ou talvez seja mesmo uma iniciação maior, superior. Sem arte, morre-se de realidade, sem dúvida, como dizia um Amigo meu. Sem arte a vida seria um aborrecimento insuportável. Viveríamos de alma perdida ou nunca encontrada. Numa vertigem de fugas para a frente, mas sem saber para onde. Uma correria sem sentido. E circular, porque nunca se sairia do mesmo sítio. Ou talvez a realidade morresse de si própria, por depressão, por incapacidade de se superar e de se dizer. Talvez seja isso. Não sei, instalado, como estou, na poesia. Mas talvez a resposta só possa ser dada num poema. E seria resposta cifrada e incompleta.

VI.

Depois das Bagas de um Azevinho, o acre aroma de um jasmim. Resultado da permanente transumância poética. Parte do azevinho e vai até ao jasmim. Tão perto e tão longe. Tão longe e tão perto. O perfume – que se desloca com grande velocidade – embriaga os sentidos e funciona como propulsor da fantasia poética para descolar do jardim rumo ao cume da montanha. O necessário para que o poema nasça… já em voo. A simplicidade, meta difícil, somente atingida em velocidade de cruzeiro, não está ali ao nosso alcance, logo no começo da viagem. É preciso viajar muito para a alcançar. O jasmim, se o tivermos, ajuda, mas também é necessário ir lá ao fundo da memória para resgatar o que por lá foi ficando, inacabado, e que, afinal, merece ser trazido à consciência e cantado. É o perfume do jasmim o combustível necessário para a viagem. Mas também é preciso olhar para a vida como um jardim (e não tanto como um inferno) onde há jasmins e loureiros, beleza a rodos, onde há cores e aromas com os quais nos podemos alimentar. Mundo estranho aos que sempre estão sempre zangados com a vida. Mas, mesmo para estes, há um remédio eficaz: a arte. Se forem seduzidos. Sobretudo com a beleza da simplicidade de um discurso poético.

 VII.

A poesia é intensamente metafórica, move-se entre o dito e o não dito, é linguagem cifrada, mas fala da intimidade com a linguagem velada de quem tem que dizer, mas também de quem tem de calar, de ocultar, de silenciar. Alude, mas não cartografa, deixando a quem a visita a tarefa de interpretar e de se orientar no caminho a percorrer. Ela é mais do que um espelho, do que tradução do que vai na alma do poeta. Porque a alma poética aspira a ser universal, na intimidade, no desejo que a mobiliza. É ambiciosa, a alma poética. Só com a ambição se cura. Ela é estimulada sensorialmente, sim, mas depois eleva-se sobre a contingência do sensível. A poesia também está lá para devolver, como espelho, sentimentos do outro, que não somente os do poeta. Nos seus, ele também encontra os dos outros e só por isso consegue que eles lhe prestem atenção, como se fossem seus. A poesia é um espelho com duas faces.

VIII.

Há na poesia um certo hermetismo e uma vocação alquímica, com o poeta a ir ao centro da alma naquilo que ela tem de mais precioso e comum, daquilo que lhe permite a partilha, o intercâmbio. Processo aurífero. A poesia como o equivalente geral dos sentimentos. Por isso vai ao essencial, libertando-se do acessório. Inclusivamente do que é só seu. É claro que o jasmim, o perfume, o loureiro são metáforas de algo que é mais humano e a subida às alturas, depois de uma profunda embriaguez de perfume, só pode ser figurada com a centralidade do amor. Até do amor físico. Libações inspiradas em Dionísio. No jardim há arbustos que são musas, distantes fisicamente, mas íntimas espiritualmente. Poderosas. São elas a propulsão que permite o voo poético porque no processo de transfiguração disfarçam-se sob forma de perfume. No jasmim, há sempre musas por entre a sua densa folhagem verde. Pois há. E é por isso que o jardim representa a múltipla dimensão sensorial que estimula e anima o poeta, tornando viva a poesia. Se depois for possível, num gesto sinestésico, dar cor e perfume ao poema, através da pintura, a sensibilidade agitar-se-á mais intensamente e, então, entrarão em cena todos os sentidos, provocando uma girândola de sentimentos. Uma autêntica festa com palavras estrepitando no céu da fantasia. JAS@10-2024

EvocaçãodeumaMagnóliaRec

Poesia-Pintura

O JASMIM

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Rapsódia”
Original de minha autoria
Outubro de 2024
JAS_Rapsódia2024

“Rapsódia”. JAS. 10-2024

POEMA  –  “O JASMIM”

FLORESCEU
O meu jasmim,
Dele jorra
Poesia,
O seu aroma
Embriaga
E liberta
A fantasia.

DOU COR
Às minhas
Palavras,
O seu perfume
Ilumina,
Bate-lhe o sol
Na folhagem
E o poema
Germina...

JÁ NÃO É SÓ
O loureiro,
Agora canto
O jasmim,
É tão vivo
O seu perfume
Que o estro
Já cresce
Em mim.

INUNDO-ME,
Pois,
De palavras,
De aromas
E de cor,
Subo ao céu
De um poema
Com desejo
De o compor.

SOU ÍCARO
Lá no alto
E quando o sol
Bate forte
Caio em mim
Do poema
E no chão
Da minha alma
Fico perdido,
Sem norte.

LOGO INVOCO
O jasmim,
Para ganhar
Energia,
Volto a subir
Às alturas,
Renascer
Em poesia.

VEJO DE NOVO
O jasmim
Mesmo ao lado do
Loureiro,
Respiro fundo
O perfume
E torno-me
Seu jardineiro.

E ASSIM EU VOU
Vivendo
No jardim da
Minha vida
Onde as palavras
São cores
E os aromas
Melodia,
Os poemas
São canções,
Milagres
Da fantasia.

JAS_Rapsódia2024-Rec

 

 

 

 

 

Artigo

NOTAS SOBRE A CONJUNTURA POLÍTICA

Por João de Almeida Santos

UE

“S/Título”. JAS. 10-2024

1.

O RECENTE EPISÓDIO no Parlamento Europeu, com alguns deputados da esquerda a cantarem a “Bella Ciao” depois da intervenção de Viktor Orbán, suscitou-me algumas perplexidades quando a Presidente do Parlamento interveio, durante o canto, para dizer que o PE não era a Eurovisão e que o gesto mais parecia “La Casa de Papel”, a série televisiva adquirida pela Netflix, que integra, como fundo musical, a “Bella Ciao”.  Esta intervenção de Roberta Metsola suscitou-me uma dúvida que, a confirmar-se, representaria uma falha grave de quem ocupa tão alto cargo institucional na União Europeia. Saberá Metsola que a belíssima canção “Bella Ciao” era um canto da resistência italiana contra o fascismo de Mussolini? E, sabendo, faz algum sentido comparar o gesto dos deputados a “La Casa de Papel”, ultrajando dessa forma a resistência italiana e até a própria beleza da canção, designadamente a da própria letra? “La Casa de Papel” trata de assaltos a bancos, enquanto “Bella Ciao” representa a luta contra o fascismo e o invasor, a luta de um povo pela liberdade. A senhora poderia muito bem ter ouvido, ter dito que um canto tão belo, na música e no conteúdo, no PE seria sempre sinónimo de alegria e de liberdade, vista a função do Parlamento e a diversidade de valores e visões do mundo nele presente. Expressá-la através da música, ainda por cima bela, não deveria constituir motivo de desagrado presidencial.  Mas não, a senhora Presidente preferiu ignorar o hino da resistência italiana, degradando-o a uma qualquer casa de papel ou a um medíocre festival da canção. Intencionalmente ou por ignorância. Não acreditando, todavia, que tenha sido intencional, resta-me ficar convencido que a senhora Roberta Metsola Tedesco Triccas julga mesmo que “Bella Ciao” é somente uma das músicas originais de “La Casa de Papel”. O que, confesso, é espantoso para uma senhora natural de Malta e que tem no seu nome as palavras italianas “Roberta” e “Tedesco”. O que é curioso é que, sem saber o que estaria para acontecer nessa quarta-feira, eu publiquei aqui, nesse mesmo dia, um artigo sobre António Gramsci na prisão fascista de Mussolini. Curiosas coincidências.  Mas para que se entenda melhor a minha perplexidade, que é também estética, além de moral,  aqui deixo a letra de “Bella Ciao”:

«Una mattina mi son svegliato,
oh bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
Una mattina mi son svegliato
e ho trovato l’invasor.

O partigiano, portami via,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
O partigiano, portami via,
ché mi sento di morir.

E se io muoio da partigiano,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E se io muoio da partigiano,
tu mi devi seppellir.

E seppellire lassù in montagna,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E seppellire lassù in montagna
sotto l’ombra di un bel fior.

E le genti che passeranno
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E le genti che passeranno
Ti diranno «Che bel fior!»

«È questo il fiore del partigiano»,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
«È questo il fiore del partigiano
morto per la libertà!»

Uma letra destas, o contexto histórico em que era cantada e o próprio gesto – cantar – deveriam ter motivado a senhora Metsola, caso soubesse do que se tratava, a ter cuidado com os comentários que fizesse a propósito do gesto dos eurodeputados. Mas não. Infelizmente.

2.

As presidenciais americanas de Novembro assumem um relevo excepcional não só por se tratar da maior potência mundial, mas também, por um lado, pelo estado actual da política internacional, com duas situações altamente explosivas, na Ucrânia e no Médio Oriente, e, por outro, por um dos contendores, Donald Trump, representar o que há de mais regressivo na política, representando o que já aqui designei por “plutopopulismo”. Um desbragado “plutopopulismo” sem limites na linguagem e nas referências caluniosas à sua adversária. Basta pensar que não aceitou a derrota, oficialmente reconhecida, nas eleições de 2020 e que, ao que parece, patrocinou o assalto ao Capitólio. Kamala Harris mantém uma dianteira de cerca de três pontos, mas nos swing states verifica-se um empate. Além disso, o radicalismo da campanha de Trump tem agora um novo intérprete, o senhor Elon Musk, que considera Kamala Harris, candidata e actual Vice-Presidente dos Estados Unidos, comunista e extremista, utilizando a sua rede social X/Twitter para alimentar a campanha de Trump. Uma conta, a de Musk, no X,  com 200,8  milhões de seguidores (Le Monde, 11.10.2024, p. 19). Não sei se alguém já se tinha apercebido de que os Estados Unidos têm sido governados, desde 2021, por uma Vice-Presidente comunista. Nada menos. Sinceramente, vem-me vontade de perguntar aos comunistas o que pensam da declaração de Musk sobre Kamala Harris. Mais palavras para quê?

3.

A ditadura do senhor Maduro prossegue com uma estratégia semelhante à que utilizou com Juan Guaidó: a de uso do tempo a seu favor e da saída do caso Venezuela da agenda política internacional quer por “cansaço” e esgotamento noticioso quer pela emergência de outros temas, que passem a dominar a agenda política internacional. E os temas não faltam. Com as costas guardadas pelos generais das forças armadas, que fazem parte orgânica e interessada do poder de Maduro, acabará por ver firmar-se um silêncio que favorecerá a sua permanência no poder, ainda por cima com o vencedor das eleições (parece não haver dúvidas disso, uma vez que o regime, ao contrário da oposição, não consegue demonstrar que ganhou) exilado em Espanha, país que parece ter-se agora convertido no seu inimigo externo, com a Assembleia Nacional a propor a Maduro um corte total de relações com Espanha. Só falta mesmo inventar umas Malvinas venezuelanas para completar a estratégia. As ditaduras sempre precisaram de um inimigo (não adversário) externo, além do interno, que aparece sempre como uma projecção, por infiltração, do inimigo externo. Na Venezuela, o partido bolivariano parece estar destinado a identificar-se eternamente com o Volksgeist venezuelano… para sempre ou até quando os generais acharem que Maduro já não consegue exibir legitimidade suficiente para defender os seus (deles) interesses.

4.

Em França continua o processo de afirmação da direita através de um pacto de estabilidade do governo Barnier com o Rassemblement National (RN), que já se traduziu em nomeações na Assembleia Nacional de membros deste partido e do bloco de governo com os seus votos e os daquele bloco. Aquilo a que se está a assistir é a uma real erosão do chamado “cordão sanitário” em torno do RN. A dinâmica em curso parece ter sido bem resumida por um deputado do RN, Jean-Philippe Tanguy: “D’un côté, il faut se normaliser. D’un autre côté, il ne faut pas s’embourgeoiser non plus…” (Le Monde, 11.10, pág. 13). Interessante, esta frase, “il ne faut pas s’embourgeoiser non plus”, vinda de onde vem. O que apetece, pois, dizer à esquerda do senhor Mélenchon (e, já agora, ao senhor Olivier Faure), depois do processo a que assistimos (e sobre o qual tenho vindo aqui a escrever), é que quem tudo quer tudo perde, embora não se possa ainda prever as consequências, provavelmente politicamente fatais, dos seus actos. Mas creio que uma coisa é certa: o RN tem vindo progressivamente a ganhar influência e a normalizar-se perante a sociedade francesa. Acresce, agora, aos significativos resultados eleitorais obtidos nas europeias e na primeira e na segunda volta das legislativas, a partilha de cargos institucionais e de políticas que lhe são caras. A verdade é que o RN se tornou indispensável para a sobrevivência do governo e para a constituição dos poderes intermédios que governam o sistema institucional. E é muito provável que o processo de normalização da direita radical prossiga e que em 2027 possa mesmo vir a ganhar as eleições presidenciais, com a chamada frente republicana já completamente esfacelada. Não me parece que com esta situação Mélenchon tenha a vida facilitada para as presidenciais, mesmo numa segunda volta. Entretanto, aconteceu, como se sabe, mais uma nova vitória da direita radical na União Europeia: o Partido da Liberdade ganhou as eleições na Áustria, com 28,85%, dos sufrágios, depois de uma consistente participação de austríacos nas eleições, 77,68%. A normalização parece estar a impor-se na União, e agora também na França. Era esta a manchete do “Le Monde” de 11 de Outubro: “Assemblée: le cordon sanitaire autour do RN abîmé”. Este processo em França foi claramente favorecido pela posição maximalista da NFP, inspirada pelo subjectivismo político do senhor Mélenchon. Concordo, pois, com a posição do socialista e ex-ministro do PS, Vieira da Silva, no seu recente artigo no jornal Público, “Marcelo&Mélenchon” (14.10,2024, pág. 10), bem diferente da que defendeu a líder do GP/PS, Alexandra Leitão sobre o mesmo assunto, tendo eu próprio tido ocasião, em vários artigos aqui publicados, de fundamentar detalhadamente a minha crítica (veja sobretudo o artigo “A Democracia Roubada?”, de 11 de Setembro: https://wordpress.com/post/joaodealmeidasantos.com/15819).

5.

Por cá, alguns processos que estão a ocorrer merecem considerações de natureza crítica. Em primeiro lugar, todo o processo de discussão do orçamento de Estado, em particular o carácter público das negociações entre o PSD e o PS. Não parece ser próprio de negociações sérias elas serem feitas na praça pública, por uma simples razão: transformam-se em peças teatrais para a plateia dos eleitores. Depois, não me parece muito normal que o orçamento seja construído em parceria entre os dois partidos da alternância (a não ser em situações excepcionais ou, coisa absurda, pouco ou nada distinguindo os dois partidos) porque, a ser assim, ele também deveria ser executado em parceria, tendo como consequência a formação de um bloco central (como já aconteceu), com efeitos governativos. O que já não parece ser muito lógico é que a executá-lo seja somente um dos partidos. Estranhas parece serem, pois, certas posições que, ao contrário do que já disse, no passado fim-de-semana, o próprio SG do PS, consideram que o Orçamento do PSD tem uma indelével “marca socialista” (Zorrinho) ou que ele deva ser aprovado por ambos os partidos do sistema para, assim, impedirem que o CHEGA se torne imprescindível na política nacional (Sousa Pinto), incorrendo, deste modo, numa clara petição de princípio – o PS e o PSD conduzirem-se politicamente tendo como objectivo essencial impedir a centralidade do CHEGA (uma espécie de bloco central contra este partido) significa, ipso facto, elevá-lo a pilar central da política nacional, exactamente o contrário do que pretendem. Ou seja, fazer entrar pela janela o que se quis afastar pela porta. Este equívoco de determinar a política nacional pelo imperativo de combater o CHEGA tem sido fonte de graves erros do PS. Mas há quem continue a lutar por eles. Ou, então, a posição radical e frontal de José António Vieira da Silva acerca do orçamento ou das próprias palavras de Pedro Nuno Santos, mais parecendo um anúncio de próximo combate à liderança do actual SG do que uma proposta de solução para a difícil situação em que se encontra, neste momento, o PS.  Terão sido cometidos erros até agora, mas esta posição de Vieira da Silva não ajuda o PS a encontrar o caminho certo para o seu essencial desempenho político.  Tudo isto, para não falar das famosas reuniões secretas do PM (o autor do “não é não”) com André Ventura, ainda por esclarecer cabalmente. A situação parece estar a tornar-se politicamente muito nebulosa e, por isso, uma clarificação eleitoral poderia vir a tornar-se útil para que tudo pudesse ficar mais claro e menos nebuloso.

6.

A recente questão levantada pelo SG do PS acerca do dever de reserva dos dirigentes e deputados comentadores do PS acerca do Orçamento, que está a provocar uma onda de declarações contra e a favor, merece clarificação. Sempre achei estranho que o espaço mediático de comentário político fosse ocupado por agentes concretos da política nacional que ocupam posições políticas institucionais quer no partido quer no Estado. A fórmula que sempre me pareceu boa era a do debate entre eles, não a do comentário, por uma razão: os ditos comentadores tenderão sempre a não procurar a objectividade devido às suas directas responsabilidades políticas. Ora o comentário, destinando-se a esclarecer a cidadania deve, na medida do possível, ser objectivo, imparcial e neutro (categorias dos códigos éticos), e não de parte. É para isso que servem os media, para ajudar o cidadão a tomar boas decisões através de boa informação e boa opinião (de factos, descodificadora e reflexiva). Se assim fosse, uma parte do problema ficaria resolvida. Por outro lado, é compreensível que quem ocupa posições de responsabilidade nos partidos (ou no Estado) deva temperar as suas convicções com o sentido de responsabilidade, remetendo as suas convicções para as instâncias próprias do partido e respeitando funcionalmente os que estão vocacionados para gerir o discurso público, logo a começar no mais alto dirigente, no caso do PS, no Secretário-Geral. Esta lógica, no meu entendimento, não se aplica a mais nenhum membro/militante partidário desde que não desempenhe altas funções de responsabilidade política, designadamente executivas. Utilizar o espaço público para condicionar a gestão política do próprio partido, quando tem direito a expressar a sua posição e a decidir nos principais órgãos de decisão nacionais, ou, em certos casos, para se promover e sobreviver pública e politicamente, não me parece ser politicamente muito saudável.

7.

Depois, a questão das eleições presidenciais. O líder do PS, Pedro Nuno Santos, a uma pergunta sobre eventuais candidatos da área socialista, respondeu referindo alguns nomes, incluído, agora, também o de António José Seguro, além dos que já circulavam. Não me parece que o devesse ter feito, não só porque se trata de uma candidatura pessoal, mas também para não interferir publicamente no processo de eventual candidatura de figuras afectas ao PS, abrindo o leque de possíveis candidatos em condições de obterem o seu apoio. Também aqui, a haver algum activismo do partido, ele deveria ocorrer de forma não pública. Publicamente, a resposta do Secretário-Geral deveria anotar que a candidatura não é de partido, mas pessoal, pelo que só perante o facto o PS se iria pronunciar. Apoiar um candidato, sim; apontar publicamente nomes de possíveis candidatos, seguramente não.

8.

No passado dia 12 tomou posse o novo Procurador Geral da República. Uma escolha de Luís Montenegro, acolhida imediatamente por Marcelo Rebelo de Sousa, mas, ao que se sabe, uma escolha que não foi precedida de consultas aos principais parceiros institucionais e, em primeiro lugar, ao Partido Socialista. Depois, uma escolha alinhada plenamente com as expectativas do Ministério Público, sendo certo que o PGR pode ser escolhido livremente pelo governo mesmo fora do poder judicial. Este alinhamento foi confirmado pelo novo PGR no seu discurso de posse ao dizer, nas barbas do poder político, que recusará alterações à natureza do Ministério Público, sem que tenha legitimidade para isso (falou, designadamente, se não erro, de independência, quando do que constitucionalmente se trata é de autonomia, estando a independência, nos termos constitucionais, reservada aos tribunais, ou seja, à magistratura judicial). Uma posição em tudo idêntica à que, se não erro, já tinha sido tomada publicamente pelo presidente do sindicato dos magistrados do Ministério Público, Paulo Lona. Duas opções, estas (não preceder a escolha do PGR de consultas aos parceiros institucionais e entregar a PGR ao MP), que dizem tudo sobre o que o PM pensa da justiça, em particular depois de o Ministério Público, incluída a própria Procuradora Geral, ter sido posto publicamente em causa por vários sectores da sociedade. É de recordar a demissão do Primeiro-Ministro, seguida de eleições, a seguir a um estranho comunicado da PGR, sem que até hoje esse processo tenha sido clarificado e concluído, e apesar de o autodemitido PM, António Costa, já ter sido declarado Presidente do Conselho Europeu, sem que o famoso inquérito que o levou à demissão tenha sido concluído ou sequer clarificado. Algo muito estranho, pelo menos tão estranho como o silêncio público e mediático que existe sobre este assunto.  Isto para não referir a tão criticada ida de meios militares à Madeira no âmbito de um processo judicial, a prisão excessiva de indiciados ou a escuta telefónica de um agente político durante quatro anos ou, ainda, o uso e abuso de prisões preventivas e de escutas telefónicas. Esta nomeação mais parece ser uma confirmação do governo de que, mesmo assim, está tudo bem, devendo, por isso, o Ministério Público ser premiado com a nomeação de um dos seus como PGR, apesar de jubilado e de fazer 70 anos em Janeiro (o que levanta sérias dúvidas sobre a possibilidade de se manter como PGR depois dessa data, se a lei não for alterada). E causa ainda estranheza que o principal partido da oposição, o PS, se tenha limitado a desejar bom trabalho ao indigitado, sem nada acrescentar.

9.

A política nacional (e internacional) não conhece os seus melhores dias, sendo, pois, pela sua importância e pelos seus efeitos sobre as nossas vidas, dever dos que a estudam e analisam reflectirem, livremente e de forma o mais possível objectiva e imparcial, sobre o que nela está a correr bem e sobre o que está a correr mal. É o que eu aqui tenho procurado fazer, evitando observar a realidade com as minhas próprias idiossincrasias pessoais ou interesses de parte. As idiossincrasias existem, claro, mas procuro que fiquem fora das minhas análises. Só assim se pode dar um contributo positivo a essa política que a todos condiciona, quer no presente quer no futuro. JAS@10-2024UERec

Poesia-Pintura

ÀS VEZES

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “A Lua Desceu sobre Mim”
JAS 2024
Original de minha autoria
Outubro de 2024
JAS1AluaDesceuSobreMim

“A Lua Desceu sobre Mim”. JAS. 10- 2024

POEMA - "ÀS VEZES"
ÀS VEZES 
Tenho saudades
Do tempo
Que não vivi,
Dos encontros
Que falhei,
Das coisas
Que já não fiz
Ou que, fazendo,
Errei.

CONSTRUÍ-ME
Como quis,
À medida
Do desejo
E em cada passo
Que dava
Fazia nascer
Um passado
Que neste poema
Não vejo.

MAS TENHO MESMO
Saudades,
Que mais posso
Eu fazer?
Quem vive
Daquilo que faz
E dá uma voz
Ao que sente,
Vai construindo
O futuro
Pra libertar
O presente.

NÃO ME QUEIXO
Do passado,
Do que nele
Construí
E da vida
Que levei...
.............
Contra ventos
E marés
Muitas vezes
Eu falhei...

HUMANA
Imperfeição,
Quero dizer,
Porque se fosse
Perfeito
Não estaria
O poema
Pronto
Para nascer
Com palavras
Que resgatam
Do que não soube
Fazer.

É VERDADE,
Eu bem sei
Que um dia
Tropecei
E me perdi
No caminho,
Procurava,
Procurei,
Fazendo o percurso
Sozinho...
...........
Mas voltava
A tropeçar,
Até que um dia
Parei
Para não
Recomeçar...

MESMO ASSIM,
Recomecei
E voltei
A caminhar,
Mas não mais
Eu tropecei
Porque em palavras
Peguei
Pra me poder
Resgatar...
..........
Foi assim
Que me salvei.

SALVARAM-ME
Essas palavras
Compostas
Em poesia
Porque fiz
Do tropeçar
Matéria
De fantasia.

JAS1AluaDesceuSobreMimRec

Artigo

UMA HISTÓRIA COMOVENTE

Gramsci, a Prisão e o Fascismo

Por João de Almeida Santos

antonio-gramsci2024_2COR

“Gramsci”. JAS 2024

HÁ MUITO que não escrevia sobre um político e intelectual de grande projecção mundial ao qual dediquei alguns anos da minha vida. Trata-se de Antonio Gramsci, um marxista atípico, líder do partido comunista italiano, deputado e, com trinta e cinco anos, preso nas cadeias do fascismo italiano, onde viria a morrer, em 27 de Abril de 1937. Mais exactamente, partiu já em liberdade condicional, devido às suas gravíssimas condições de saúde, estando internado numa clínica privada  de Roma, Quisisana. Nascera em 1891, na Sardenha, Ales. Personagem fascinante política e intelectualmente, Antonio Gramsci deixaria uma obra relevante e algumas importantes inovações sobre a política, que continuam plenamente actuais. Melhor: que deveriam integrar o melhor património da política actual, mas que infelizmente estão esquecidas pelos partidos que tem dominado a cena política nos últimos decénios. E, em particular, os de centro-esquerda. Falo, por exemplo, da conjunção da política com a ideia de hegemonia ético-política e cultural, ou seja, da ancoragem da política a uma visão do mundo estruturada que possa ser assumida e partilhada interiormente pela cidadania e que garanta estabilidade ao exercício ao poder, fundado numa adesão consciente e critica e na partilha de valores políticos e sociais articulados com coerência. Em palavras mais simples: uma política que não fique reduzida à mera conquista, conservação e reprodução instrumental do poder. Mas Gramsci não pode ser lido com as categorias do marxismo-leninismo porque, assim, o seu pensamento seria distorcido. Trata-se de um pensamento complexo e original em relação à tradição marxista clássica.

1.

Por que razão volto a Gramsci? Porque tive conhecimento de que, recentemente, foram publicadas textos de Gramsci, em Portugal, depois de um longo período de abandono do pensamento deste personagem tão relevante na história do século XX, embora não seja o caso de outras zonas do mundo onde Gramsci continua a ser objecto de grande atenção. Falo, por exemplo, da América Latina. Publiquei vários estudos sobre Gramsci (em particular o livro O Princípio da Hegemonia em Gramsci, em 1986, mas também dois capítulos do meu livro Os Intelectuais e o Poder, em 1999, e outros dois capítulos inseridos no livro colectivo Da Gaveta para Fora – Ensaios sobre Marxistas, em 2006), mas, desta vez, regressei a um livro que me comoveu, quando foi, em 1991, publicado por Valentino Gerratana para as edições Riuniti. Trata-se da obra “Piero Sraffa, Lettere a Tania per Gramsci” (Roma, Riuniti, 1991, 276 pág.s). Uma publicação que torna públicas 79 cartas do grande economista italiano à cunhada de Gramsci, Tatiana Schucht, que servia de mediadora das relações entre os dois amigos. Estão ainda publicadas outras cartas, sobretudo de Tatiana, ou seja, nove; duas de Sraffa a Togliatti e três a Elsa Fubini e  Paolo Spriano; uma de Camilla Ravera a Júlia Schucht, sendo, em notas de Gerratana, ainda transcritas outras cartas, sobretudo de Tatiana). Valentino Gerratana, o responsável pela  fabulosa edição crítica, em quatro volumes, dos Quaderni del Carcere (e com quem iniciei, em 1978, os meus trabalhos sobre Gramsci no Instituto Gramsci de Roma, tendo depois passado a desenvolver o trabalho com Umberto Cerroni), oferece-nos uma excepcional obra, não só pelo valor testemunhal das cartas, dos personagens envolvidos e do contexto em que ocorrem, mas também pelas riquíssimas notas explicativas de Gerratana, que as acompanham.

2.

O livro voltou a impressionar-me porque, apesar de conhecer muito bem toda a história de Gramsci (aconselho, a propósito, a leitura do belíssimo livro de Giuseppe Fiori “Vita di Antonio Gramsci. Roma-Bari, Laterza, 1977), me lembrou, de novo, a lenta e trágica degradação física de Gramsci nas prisões de Mussolini (1926-1937) – Regina Coeli, em Roma, San Vittore, em Milão,  Turi, na Puglia, Civittavecchia, até morrer na clínica privada de Quisisana, em Roma, depois de ter passado um curto período numa clínica de Formia, Latina. E tocou-me particularmente por poder acompanhar a abnegada dedicação de Sraffa e de Tatiana ao longo do penoso processo da prisão de Gramsci. Três personalidades de raras qualidades humanas, de coragem, sensibilidade e inteligência, apesar do lamento, sentido e de profundo pesar, de Tatiana: “abbiamo fatto tanto e non siamo riusciti a fare nulla” (1991: 184).

3.

Um inacreditável artigo do Jornal “Il Messaggero”, de Roma, de 12 de Maio de 1937, “Una sparizione e uma morte” (procurando comparar a morte de Gramsci com o desaparecimento de uma cidadã italiana na União Soviética), quinze dias depois da morte de Gramsci, diz o seguinte sobre ele:

“… o chefe intelectual dos bolcheviques de Itália (…) refugiou-se em Moscovo, de onde saiu oportunamente devido à sua fidelidade a Trotsky. E regressou a Itália, onde pôde acabar os seus dias numa solarenga (soleggiata) clínica de Roma (…) De qualquer modo, na Rússia os adversários desaparecem (e Deus sabe como), enquanto em Itália os mais loucos, fanáticos comunistas (e Gramsci, nisso, não ficava atrás de ninguém) encontram aquela paz que alhures é negada até ao limite da própria morte” (Gerratana, 1991: 265, n. 2).

Esta transcrição aparece quase no fim do livro e é chocante (embora não surpreenda) para quem leu o que estava escrito antes, ou seja, o processo de degradação da saúde de um génio nas implacáveis e desumanas prisões de Mussolini. Um político que era líder de um partido com representação parlamentar, membro do executivo do Komintern, deputado, eleito em 1924, tendo regressado da URSS (e da Áustria, Viena), onde vivera entre 1922 e 1924. Mas quem quiser saber melhor do que falo, e da inconsistência do que diz o articulista acerca da “paz” que se vivia em Itália nessa altura (para não falar das outras mentiras do artigo), pode consultar os dois artigos que aqui publiquei sobre Mussolini e como neles é referido o que é descrito por Antonio Scurati, ao longo de 1924 páginas, nos três volumes sobre o Duce (M. Il figlio de Secolo; M. L’Uomo della Provvidenza; e M. Gli Ultimi Giorni dell’Europa), em particular sobre a violência em que se baseou a formação e a consolidação  desse “solarengo” e resplandecente regime fascista (https://joaodealmeidasantos.com/2021/10/25/artigo-52/; mas sobretudo, porque analisa os três volumes, https://joaodealmeidasantos.com/2023/07/03/artigo-109/).

4.

Este livro mostra de forma comovente a relação entre estas três personagens: Piero Sraffa, o grande economista italiano, professor no Trinity College  de Cambridge, amigo e parceiro intelectual de Keynes, Wittgenstein e Blackett; Tatiana Schucht, irmã mais velha da mulher de Gramsci, Júlia Schucht; e António Gramsci, na condição de prisioneiro político do regime fascista. Foram Sraffa e Tatiana Schucht os grandes apoios materiais, morais e intelectuais de Gramsci desde que entrou na prisão, em Novembro de 1926, até 1937, ano em que viria a falecer. Tatiana era o seu grande, enorme, suporte e funcionava também como mediadora das relações entre os dois amigos. Foi ela que salvou os Quaderni del Carcere. Estas cartas publicadas neste livro dão bem conta da dimensão da amizade dos três e permitem ter uma visão muito clara da lenta evolução da situação de Gramsci, mas permitem também conhecer a solidez moral do político e intelectual sardo. E confesso que da sua leitura (neste caso, releitura) sai reforçada a imagem com que fiquei de Tatiana depois da leitura das Cartas do Cárcere – uma dedicação sem limites. Há uma sua carta, de 1 de Julho de 1937, a Sraffa (Sraffa, 1991: 184-185, em nota) que é um autêntico poema dramático escrito e sofrido depois da morte de António Gramsci. Dor, angústia, desespero infinitamente mais intenso quando pensa nele, “em tudo o que ele perdeu (…), irremediavelmente perdido, pobrezinho, sempre paciente até ao inverosímil, extremamente simples, afectuoso, atencioso como ninguém, como ninguém sensível a qualquer manifestação de afecto, de devoção. Creio que haja bem poucos que, como ele, saibam ser assim tão profundamente reconhecidos e gratos, sem limites, por cada atenção que lhes dispensem, como sempre se mostrou, até ao fim, aquele ser tão nobre, tão excelso, cuja vida e trabalho tinham um valor inestimável”. Há nestas palavras uma profunda estima, um amor e um enorme reconhecimento pela figura daquele homem excepcional. Alguém que resistiu, que manteve uma frieza de razão às vezes inacreditável, dada a sua situação, um sentido de responsabilidade admirável e uma profunda e sincera humildade em relação a todos os que se encontravam na sua situação. Que resistiu, sim, enquanto pôde, conjugando a resistência com um gigantesco trabalho intelectual que chegou até nós como Quaderni del Carcere, uma obra monumental em fragmentos que se viria juntar aos brilhantes escritos anteriores à sua prisão, último dos quais o que aborda a relação dos intelectuais com o Mezzogiorno, de 1926 (Alcuni Temi della Quistione Meridionale).

5.

Não foi longo este tempo de escrita porque já em 1932 os problemas de saúde se avolumavam de tal modo que o impediam de trabalhar ou sequer de estar tranquilamente em paz. É esta lenta progressão para o abismo, testemunhada por estes dois amigos incansáveis, que a tentavam travar de todos os modos possíveis, que este livro documenta e que nos leva a abominar ainda mais um regime que o foi anulando lentamente até à morte, prematuramente anunciada. Um regime que tinha na sua sua matriz a violência. O veredicto do procurador Michele Isgró teria de se cumprir: “devemos impedir este cérebro de funcionar durante vinte anos!”. Prenderam-no e mantiveram as condições que o haveriam de levar à morte, mas não conseguiram anular o seu pensamento, paralisar o seu cérebro, impedir a sua obra, que hoje continua a ser uma das mais influentes obras da esquerda de inspiração marxista. Gramsci tinha bem consciência de que o que estava a fazer (sobretudo entre 1929 e 1933) era fuer ewig, para sempre, para além da conjuntura política. Preso, mas livre naquilo que ele mais valorizava na sua vida: o pensamento virado para a acção e para o futuro. E assim foi e assim é. Até a direita, aquela que ele combatia com tenacidade e inteligência acabou por valorizar a sua obra, em particular a sua teoria da hegemonia. Sobre isso escrevi no capítulo publicado em 2006 na obra já referenciada (“Hegemonia: o primado do consenso na teoria política de Gramsci”; in Neves, 2006: 79-107). Uma teoria que liga a política à história, com profundidade temporal, valorizando a adesão consciente da cidadania a uma determinada concepção do mundo que lhe é proposta, mas que está radicada na melhor tradição nacional: nacional-popular. Infelizmente, a esquerda moderada deixou-se enredar em fórmulas ideológicas sem pregnância histórica (e até contrárias à melhor inspiração iluminista) e num pragmatismo descarnado historicamente em vez de valorizar a política com dimensão ético-cultural, enraizada em “blocos históricos”, socialmente consistentes, com horizonte ideal estruturado e capazes de se sedimentar historicamente, trazendo substância à política e novos horizontes à cidadania.

6.

Houve quem achasse que a relação de Gramsci com o grande economista Piero Sraffa era uma relação de simples, embora forte, amizade, mais significativa do que a relação intelectual.  Por exemplo, Perry Anderson. Mas não é verdade, como, de resto, o reconhece (e prova) Valentino Gerratana e como se vê pela correspondência trocada, através de Tatiana Schucht (para uma crítica das posições de Anderson sobre Gramsci veja o meu O Princípio da Hegemonia em Gramsci,  Lisboa, Vega, 1986, pp. 117-129). Para começar, ambos se inscreviam, de forma assumida, na mundividência comunista, embora um valorizasse mais a intervenção orgânica (designadamente do partido) do que o outro, que era um comunista independente. Independente, sim, mas colaborador com o partido, designadamente com o seu centro político localizado em Paris. Há neste livro duas cartas de Sraffa a Togliatti. Depois, sendo naturalmente Sraffa um economista puro e analítico (embora de vasta formação cultural), diferenciava-se do posicionamento intelectual de Gramsci, que exprimia um pensamento de natureza mais ampla e abrangente, mas também socialmente mais concreto, prático e pragmático nas suas análises. É conhecido o diálogo entre ambos sobre a estratégia política a seguir durante a vigência do fascismo. E, todavia, a formação económica de Gramsci era regularmente alimentada por Sraffa, designadamente por via bibliográfica, mas também por troca de opiniões directa. Sim, é verdade, mas, nestas cartas, o que, além disto, sobressai é a dimensão humana de Sraffa e a sua inabalável amizade, consideração e respeito por Gramsci, uma relação que era acarinhada e alimentada por uma mulher incansável e extraordinária, mesmo quando, pela delicadeza, exigência e complexidade da situação, às vezes surgiam discordâncias, formuladas até com alguma dureza, mas rapidamente superadas pela grandeza de alma de ambos e pela comum dedicação a Gramsci.

7.

A vontade de escrever sobre este livro veio-me, mais uma vez, naturalmente, da relação de proximidade que continuo a manter com o pensamento de Gramsci, mas também da minha profunda admiração por este exemplo de solidariedade incondicional e abnegada, em situação altamente perigosa, difícil e delicada, por parte de Sraffa e de Tatiana para com esse génio da política e do pensamento que tive oportunidade de estudar aprofundadamente durante anos e que continua a constituir para mim uma fonte inesgotável e permanente de ensinamentos sobre as matérias acerca das quais ele se debruçou. E não só as que são objecto de reflexão nos “Quaderni” (tenho a edição original, mas deverei adquirir uma nova pelo desgaste que esta edição sofreu ao longo do tempo, devido às permanentes consultas), mas também os inúmeros escritos que integram toda a sua obra, desde os escritos de juventude. Posso, para terminar, dar como exemplo os seus inovadores e precursores escritos de juventude sobre Luigi Pirandello, que, de resto, tive ocasião de expor no capítulo sobre “O Teatro de Luigi Pirandello, segundo Gramsci” no livro já referido: Da Gaveta para Fora. Ensaios sobre Marxistas (Org. de José Neves, Porto, Afrontamento, 2006, pp. 109-117). Mas poderia enumerar tantos outros se não se desse o caso de sobre eles já ter abundantemente escrito e publicado. JAS@10-2024

antonio-gramsci2024_2CORRec

Poesia-Pintura

AS BAGAS

Arietta
Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “O Jardim”, JAS 2024
Original de autoria
Outubro de 2024
Pasárgada2024Corte2805

“O Jardim”. JAS 2024

POEMA - "AS BAGAS"
Arietta
AO RAIAR
De um belo dia
Visitei
O meu jardim...
Havia
Algumas rosas,
Um azevinho
Sem bagas,
Três cameleiras
Frondosas
E tudo ali
Para mim.

VI DEUSA
Desnudada
Por entre verde
Folhagem,
Uvas frescas
De latada
E o jardim
Como imagem.

MAS AS BAGAS,
As bagas do azevinho,
Vermelhas,
Cor do meu sangue,
Não as tinha,
O pobrezinho,
Era um arbusto
Exangue.

E EU, TRISTE
Por não as ter
A fazer-me
Companhia,
Quis um novo 
 Azevinho
Com bagas
Como as queria.

PEDI LOGO 
Ao jardineiro
Que o encontrasse
Pra mim,
Sem elas
Era mais pobre
O meu bonito 
Jardim.

MAS O TEMPO,
Ah, o tempo,
Não as traria
Até o azevinho
Crescer...
Por isso, pus mãos
À obra
Para em versos
As ter.

EM VERSOS...
Também em cor,
Era assim
Que as teria,
Quisesse
O meu pintor
Ilustrar 
A poesia.

BAGAS
Na fantasia,
Ali prontas
Para criar,
Não as tendo
O azevinho
Desenhei
Um novo arbusto
Para bagas
Ele me dar.

E ASSIM FIQUEI
Feliz
Por ter bagas
Vermelhinhas...
...........
Não sendo
Do azevinho,
Mas da minha
Fantasia,
Todas elas
Eram minhas,
As bagas
De minha cria.

Pasárgada2024Corte2805Rec

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (II)

Para um Discurso sobre a Poesia 
(Em torno de Novalis)

Por João de Almeida Santos

Pasárgada2024Corte2805

“S/Título”. JAS 2024. 10-2024

1.

Dá que pensar esta enigmática frase de Novalis: “Man ist allein mit allem, was man liebt” *. Está-se só, com tudo o que se ama. Amar é, pois, absoluta solidão, a que resulta de isolamento em relação ao mundo circunstante? No amor suspende-se a comunidade de vida? Se o amor for “realmente (wirklich) uma doença” da alma (Novalis, 2024:145; e Stendhal, em “De l’Amour”, no prefácio da edição de 1826), esta solidão é como a que sofremos com a doença física? A verdade é que ninguém pode estar doente por nós e, por isso, ninguém pode amar por nós. O amor e a doença não se podem delegar. O amor, sendo “uma doença da alma”, convoca irremediavelmente a solidão?

2.

Na doença, a solidão dita lei. E no amor, sendo uma “doença da alma”, também? No amor estamos sós, mesmo quando temos à nossa frente o ser amado? Ou a solidão é relativa ao mundo circunstante e exclui o ser amado?  A verdade é que quando se trata de dois seres humanos já não é solidão. Mas a partilha só pode acontecer se for como sentimento, não como doença, a mesma doença, mesmo que essa seja “doença da alma”, não do corpo, seja de amor. Eu sinto-me doente porque tu estás doente. Sentir-se doente significa uma forma de partilha. O que não se poderá dizer é “eu amo-te porque tu me amas”. Mas também é verdade que o amor não é uma relação entre casulos incomunicáveis, onde cada um está encerrado em si próprio. Se fosse, não haveria amor. E também é certo que o amor não é dádiva, por generosidade. Simplesmente, acontece. Exactamente como a poesia. É o próprio poeta que o diz (Pessoa). O amor e a poesia acontecem. Não são objectivos pré-determinados, resultado da vontade. Simplesmente, acontecem.

3.

Alguns chamam platónico ao amor não correspondido. É este o que é vivido em solidão? Ou é o amor em si que induz solidão absoluta, mesmo quando é correspondido? Solidão daquele que ama. A solidão integra o próprio acto de amar? De cada um dos dois que se amam? O amor seria um círculo fechado sobre si mesmo onde o outro seria, sim, imprescindível, mas como  pura ilusão? Mas é difícil que aconteça uma dupla e recíproca projecção da ilusão na relação amorosa. O outro ser para cada um deles a respectiva ilusão especular. Pura projecção noutra pessoa do seu eu mais profundo. Até há a ideia de que o ser amado é, afinal, a ressonância, em diferido, de algo com que nos identificámos na infância ou até mesmo da afeição materna. O ser amado seria, então, como que um espelho. O espelho perfeito. Não sei. Talvez não. Talvez seja mais do que isso. A dialéctica identidade-alteridade talvez possa explicar, em parte, a relação amorosa. Mas sabe a pouco.

4.

Será o amor uma forma de resgate, com força pulsional, do que ficou recalcado na nossa zona de sombra primordial?  O amor é uma pulsão que se basta a si própria e que apenas se serve de outrem para se concretizar? Vulcão que se cristaliza onde a lava parar? Ou amar é sair de si e dissolver-se no outro, ficando por lá, prisioneiro? Como a vela que morre para dar luz, para iluminar (Goethe)? Consumir-se em fogo ateado pelo destino para iluminar? O amor autêntico talvez seja isso: fogo que arde sem se ver, mas que consome interiormente até à anulação total. No fim, cera derretida. Amar é perder-se para si, entregando-se ao outro. O poder avassalador da pulsão.  Por isso, o fim de um amor é insuportável porque parece que já não há regresso possível à condição de partida. A vela que ardeu já não pode ser restabelecida. Porque só ficaram cinzas. Melhor, uns restos de cera ardida. Perante uma entrega total já não há retorno. E não há cartografia que possa repor a “diritta via” (Dante). Por isso, é mais grave do que a solidão. É perdição. Retorno impossível. Dupla perda: do ser amado e de nós próprios. Já não é, pois, solidão. É mais grave. Lembro-me sempre dos versos de Dante Alighieri no começo do “Inferno”, na “Divina Commedia”: “Nel mezzo del cammin di nostra vita / mi ritrovai per uma selva oscura / ché la diritta via era smarrita”. Sim, a partir desse momento é pura errância e perda de sentido, com o chão a perder firmeza e a fugir dos pés. É como entrar num território vazio e escuro.  Ou, então, “selva oscura”.  Sobrevêm a tristeza, a nostalgia, a melancolia. Um sentimento de impotência. Felicidade suprema, dor insuportável. E não há cura para este amor de entrega total?

5.

Este estado de alma pode ter redenção se for cantado e verbalizado em pauta musical e em estado de levitação. Perda sofrida, levitação desejada (Calvino). O desejo. Força arrancada das vísceras da alma. Parece ter sido esta a origem da poesia. Um clarão, estremecimento e queda num buraco negro. Esse instante de que fala Baudelaire no poema “À une Passante”. Um clarão seguido de encandeamento e de despiste existencial: ausência, silêncio, solidão, tristeza, nostalgia, melancolia, dor. Dor pelo que não aconteceu, mas que poderia ter acontecido se essa mulher não tivesse sido engolida  rapidamente pela multidão. Coisa grave, muito grave, se for verdade que, afinal, “o amor” não é só “doença da alma”, porque é “o objectivo final da história do Mundo” (Welgeschichte) – “das Amen des Universums” ( 2024: 92-93). O amen do universo. E, por isso, que o senhor esteja com o poeta, perante tamanha perda, diria um religioso, crente num além promissor, na redenção, no sagrado. Mas não é esta a reacção do poeta. Talvez este seja, afinal, o amor cantado por ele, aquele que está mais próximo  do invisível do que do visível. A cura e, por isso, o “amen do universo”. A doença que, na poesia, se transforma em aleluia, em alegria, júbilo.  Ele tem um remédio terreno (remedium amoris), no lado de cá, que o eleva para além da doença e da dor: a poesia, “a grande arte da construção da saúde transcendental” (2024: 47). Sim, saúde transcendental para esta “maladie de l’âme”. Estranha esta formulação, não é? Não, porque a poesia funciona mesmo no território transcendental (que não se confunde com o transcendente). Este território é o das condições de possibilidade que, a um certo ponto, podem ser assumidas como reais e determinarem comportamentos. O poeta ama com palavras e é um amor efectivo, não inferior, em densidade existencial, ao amor corpóreo. As palavras são o corpo da alma. E têm som, melodia e ritmo. São vivas. O ser amado está ali em frente, na imaginação do poeta, e este dirige-se-lhe com palavras. A performatividade é total. Só assim a dissolução do eu se pode converter, transformar em sublimação, apesar de a solidão ser irremovível. Dissolução-sublimação, a equação poética. E mantém-se a solidão porque a poesia é solidão, ainda que a comunhão exista como processo diferido no espaço e no tempo. O que lhe dá ainda mais realismo. Como possibilidade, como comunhão transcendental. O poeta age como se o ser amado esteja à sua frente. O beijo escrito é beijo dado (se não for bebido pelos fantasmas, ou mesmo assim). O centro da filosofia de Novalis: a poesia como o verdadeiro real absoluto. Por isso, quanto mais poético mais verdadeiro (2024: 77). O que vale também para o amor cantado poeticamente. A cura da “maladie de l’âme”. O poeta antecipa uma comunhão de destino ao lançar os versos ao vento que passa, aparentemente sem destino. Fica só e espera que eles lhe sejam devolvidos como eco. E como acto de amor. A poesia é o eco do silêncio com um imenso poder performativo. É sobre o silêncio que o poeta viaja à procura de sentido. “Desejos e apetites são asas”, diz Novalis (2024: 25). E mais leves quando se reproduzem em palavras. As asas da poesia. É esta a condição da cura, provisória, até à próxima recaída, pois a “doença” nunca se cura totalmente. Afinal, ela é condição de sobrevivência da própria poesia. A pena de Sísifo, para quem a tristeza se torna doce melancolia sempre que atinge o Monte Parnaso.

6.

Parece, pois, legítimo perguntar se o poeta espera resultados práticos da sua interpelação poética. A resposta é fácil. Como em todas as artes, as suas propostas são desinteressadas, não visam efeitos práticos que não sejam o ressoar das palavras na sua alma e no ambiente circunstante. Ele canta, pois, por cantar? Não, ele canta porque a vida o interpela e o convoca para cantar. É neste sentido que se pode dizer que a poesia lhe acontece, ao poeta, e que não resulta de um acto voluntário, de um acto de vontade, de uma deliberação. Ela simplesmente acontece-lhe. Mas só lhe acontece porque já existe pré-disposição: “Hauptsatz – Man kann nur werden insofern man schon ist” (Novalis). Só podemos tornar-nos se já formos. Digo muitas vezes que quando falta o “chip” do sentimento nunca será possível a emoção. Nestas condições, ela nem sequer poderá ser induzida. Ao poeta acontece-lhe a emoção sublimada em palavras porque já está marcado (o estremecimento perante um clarão), como destino. Mas se as palavras lhe faltarem a doce melancolia em que se encontra instalado sofre uma regressão e volta a ser tristeza, luto, depressão. Um poeta em falência a regredir para o fracasso existencial, sem redenção. A morte do poeta.

7.

“O poeta utiliza as coisas e as palavras como teclas e toda a poesia repousa sobre uma activa associação de ideias – uma espontânea, deliberada e ideal produção do acaso” (2024: 125). Sim, mas não se trata, como pode parecer, de puro virtuosismo de execução porque, como ele diz, só o artista (e, portanto, também o poeta) é capaz de adivinhar o sentido da vida (2024: 53) e porque o verdadeiro poeta é “omnisciente” (allwissend), enquanto “é um mundo real em pequeno” (2024: 59). Conjugando quanto diz Novalis, verifica-se que a poesia possui densidade ontológica e, através de uma exímia manipulação da sua matéria-prima (coisas sentidas e palavras), consegue produzir conscientemente “acaso”, resultados aleatórios que resultam da sua fecunda imaginação poética, a tal que pode substituir todos os sentidos. Muitas vezes tenho comparado a poesia com as técnicas da psicanálise, designadamente a interpretação dos sonhos e as livres associações de palavras-ideias. Encontrei em Novalis esta formulação, que parece confirmar esse mecanismo poético. Na verdade, ambas, poesia e psicanálise, se alimentam de matéria constante da zona de sombra da consciência, accionando o processo da verbalização. Neste processo a poesia acciona as categorias da arte não só para trazer à consciência, de forma cifrada, os estados de alma, mas também para os projectar esteticamente e assim os partilhar. A natureza da poesia, no seu conceito, garante que não se trata de artificialismo, mas sim de algo vital. Diz ele: “a pura linguagem poética deve ser (…) organicamente viva” (2024: 37). Mais claro do que isto não é possível. De resto, para ele a poesia é a “arte de excitar o ânimo” (2024: 135). 

8.

Lembraram-me que o Bernardo Soares disse que de tanto sonhar ele próprio se tornou um sonho, o sonho de si mesmo. Parece estranho, mas não é. Vejamos por que razão o que ele diz tem fundamento. Sobretudo se for poeta, o que não era o caso do Bernardo Soares. Tem fundamento porque poetar é sonhar. E a figura do poeta é indissociável do sonho/poema. Não era o grande Calderón de la Barca que dizia que “la vida es sueño”. E que o sonho vida é. A vida em palavras, que são o que de mais humano o ser humano tem. Ando às voltas com o Novalis e verifico que ele diz algo que pode ajudar a compreender esta afirmação do Bernardo Soares: “a imaginação é esse sentido prodigioso que pode substituir (em itálico: ersetzen) todos os nossos sentidos” (2024: 78-79). A imaginação com o mais completo poder sensorial. É daqui (e da sua musicalidade) que vem o poder performativo da poesia. Que trabalha com a imaginação, sim, mas com a que está ancorada na alma (não é, pois, um mero exercício estilístico). Só depois ascende ao espírito, que é “a alma cristalizada” (2024: 127). Mas ele diz outra coisa que, essa sim, completa a explicação: “Os verdadeiros produtos devem produzir, novamente, o que os produz. Do produzido nasce, de novo, o produtor” (2024: 87). É só substituir produto por sonho/poesia e produtor por poeta. É a poesia em acto que produz o poeta. Do sonho nasce, pois, o poeta que o escreve. Em cada poema o poeta renasce. Tem, pois, razão o Bernardo Soares. Portanto, mais uma vez de acordo com esse artista que dizia que não se ajeitava com a poesia… e que nem sequer era, dizia ele também, filósofo, apesar de, curiosamente, se identificar ele próprio como sonho sonhado da poesia. Ele era, sim, as duas coisas. Pelo menos porque também era Fernando Pessoa e porque escreveu o “Livro do Desassossego”.

9.

Confesso que já nem sei se viveria em paz comigo próprio sem poesia. O ritual do domingo ajuda. Dá-lhe forma, materializa-a, partilha-a. É a um tempo “durée”, mas também acontece no tempo cronológico.  A minha missa laica. A melancolia é o estado de alma permanente do poeta e os poemas são sempre inspirados na musa do suave, mas inebriante, perfume. Por isso, o lugar de inspiração é (quase) sempre o jardim. Um perfume que excita a imaginação do poeta, aquela que, segundo Novalis, concentra em si todos os poderes dos sentidos. Sim, o poeta viverá sempre nos seus versos porque foi assim que ele nasceu. E é por isso que renasce em cada canto. Há um período de delicada (e sempre difícil) gestação e há a apoteose final – o poema. O poema já é festa, celebração e, de certo modo, redenção, resgate. O ritual integra tudo isto e, no fim, o poeta já é outro. Renasceu.  

NOTA

* Uso a edição da Assírio&Alvim dos Fragmentos de Novalis (Porto, 2024, 3.ª edição, pág. 150), com selecção, tradução e desenhos de Rui Chafes. Trata-se de uma edição bilingue, mas esta frase tem uma gralha no texto alemão, ou seja, onde se lê “mit allein” deve ler-se “mit allem”. JAS@10-2024

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