Poesia-Pintura

TREME A TERRA, QUANDO PASSA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Perfil de Mulher”, 
JAS 2022. Original de minha autoria
(Colecção Privada). Dezembro de 2024
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“Perfil de Mulher”, JAS 2022 – 94×114, impressão Giclée em papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em mold. de madeira (Colecção privada)

POEMA – “TREME A TERRA, QUANDO PASSA”

SINTO UM CERCO
Muito quente
Que me envolve
O corpo
Quando ela passa
Na rua,
Mas o silêncio
É frio,
Não responde
Ao chamamento
Quando eu a desafio
A mostrar-se
Um pouco nua.

TREME A TERRA
Quando passa,
Passos lentos,
A olhar,
Como alguém
Que se perdeu...
........
E sofro
Porque esvoaça
Nesse céu
Que não é meu.

SILÊNCIO
É a palavra
E diz mais
Do que parece,
Eu vejo,
Quando ela passa,
Silhueta
De mulher
Que se esgueira
Ao olhar
De quem olha
E não esquece,
De quem sabe
O que é amar.

E MESMO QUE SE
Esconda,
Que finja
Que não é ela
E na multidão
Se dilua,
Quem sempre
 A vê
Da janela
Sempre a sente
Um pouco sua.

TREME A TERRA
Quando passa,
Mas não a sinto
Perdida
Pois se o cerco
É sempre quente
Quando passa
Dá-me vida.

NÃO É ACASO
(Não é),
Talvez seja
O destino
Ou desejo
Desigual,
Se a terra
Treme
Quando ela passa
Não é efeito
Banal
Pois também eu
Estremeço
Ao seu primeiro
Sinal.

TREME A TERRA
Quando passa,
Estremeço
Também eu,
É a vida,
Uma graça
Que vem
Lá de cima
Do céu.

PerfildeMulherRec

Notícia

NOTÍCIA

LANÇAMENTO DO LIVRO “POLÍTICA 
E IDEOLOGIA NA ERA DO ALGORITMO”
 (S. João do Estoril, 
ACA Edições, 2024), 
de JOÃO DE ALMEIDA SANTOS, 
NO SALÃO NOBRE DA CÂMARA 
MUNICIPAL DA COVILHÃ.

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NA PASSADA QUARTA-FEIRA, 27.11, às 18:30, foi apresentado o meu novo livro – Política e Ideologia na Era do Algoritmo, S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, 262 pág.s – no Salão Nobre da Câmara Municipal da Covilhã, em sessão presidida pelo Senhor Presidente da Câmara, Dr. Vítor Pereira. Apresentaram o livro o Dr. Alberto Costa, ex-Ministro da Justiça e da Administração Interna, e o Dr. José Conde Rodrigues, Presidente do Movimento Europeu (Portugal) e ex-Secretário de Estado da Cultura, da Justiça e da Administração Interna. Tive o gosto de contar com uma qualificada assistência de cerca de meia centena de personalidades da região.

1.

Trata-se de um livro sobre política e ideologia. Por que razão decidi publicá-lo? Porque as profundas mudanças que estão a ocorrer em todos os sectores da sociedade contemporânea não têm conhecido uma correspondente resposta no plano da política, a não ser nos seus aspectos mais instrumentais, ou seja, nas técnicas de captação do consenso, ficando, pois, confinada na mera ideia de poder. Por isso, o que está verdadeiramente a acontecer é uma autêntica regressão da política: a conquista e o uso do poder pelo poder. O assalto à cadeira do poder. O grau zero da política. O triunfo do poder como fim de si próprio. Exemplo? O plutopopulismo declarado e triunfante da dupla Donald Trump/Elon Musk, nos Estados Unidos, que não é um país qualquer (veja aqui o artigo de 20.11.2024 em torno do conteúdo do livro: https://joaodealmeidasantos.com/2024/11/19/artigo-178/)

2.

Na sua intervenção, o Senhor Presidente da Câmara, Dr. Vítor Pereira, traçou um quadro geral dos temas tratados no livro, numa análise que apreciei particularmente não só pela sua qualidade e pelo seu carácter exaustivo, mas também pela especial atenção que o livro lhe mereceu. Esta intervenção permitiu que o Dr. Alberto Costa evoluísse para um amplo enquadramento global da temática do livro e que o Dr. Conde Rodrigues o inserisse no quadro das investigações que há muito venho desenvolvendo, muito em particular a partir do Homo Zappiens (2000). No final, eu próprio tive ocasião de finalizar as intervenções de modo a que ficasse completo o quadro geral das matérias que integram este livro.

3.

Este livro foi publicado pela Editora ACA Edições e quero aqui deixar um especial agradecimento ao seu principal responsável, Eng. Ricardo de Almeida Santos, que também integrou a mesa da sessão de apresentação, tendo ocasião de anunciar para Março de 2025 um novo livro de minha autoria: FRAGMENTOS – Para um Discurso sobre a Poesia. Finalmente, quero agradecer à Câmara Municipal da Covilhã a oportunidade de lançar este livro no seu belíssimo Salão Nobre e ao Senhor Eng. Hélio Fazendeiro o eficaz acompanhamento do processo que levou a esta sessão. Ao Dr. Alberto Costa e ao Dr. Conde Rodrigues o meu obrigado pelas suas belíssimas intervenções. JAS@27.11-2024

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Artigo

REFLEXÕES EM TORNO DO SYMPOSION, DE PLATÃO

Por João de Almeida Santos

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“Aphrodite”. JAS 2024, baseada numa cópia romana da deusa (Museu Arqueológico de Nápoles)

REGRESSEI recentemente à filosofia grega, desenvolvendo uma reflexão em torno do Symposion, de Platão, uma obra do século IV a.C., num evento promovido pela prestigiada empresa vitivinícola Quinta dos Termos (Carvalhal Formoso, Belmonte), de certo modo inspirado no modelo grego. Symposion é o nome em grego do que nós designamos por Banquete, mas verdadeiramente ele refere-se mais ao momento da bebida (vinho) do que ao repasto propriamente dito, o deípnon, pois a palavra Symposion designa em grego precisamente bebida com, de syn + pósis, -eôs. Beber acompanhado, portanto.

1.

Naturalmente que, como é óbvio, algumas das características que estavam presentes naqueles banquetes gregos não são transponíveis para os dias de hoje – por exemplo, comiam deitados, em leitos, e os escravos lavavam os pés dos convidados. Mas, como veremos, há neste Symposion de Platão, muito de intemporal: por exemplo, a celebração da vitória do poeta Ágaton numa exigente competição literária entre tragédias. O sucesso muitas vezes é celebrado com banquetes. Mas nem sempre eles incluem, como este, o de Platão, momentos de cultura.

2.

A ideia de celebrar num banquete a vitória numa qualquer actividade humana é, pois, antiga e remonta não só à Grécia do século IV a. C, mas também à Florença do século XV, ao tempo dos Medici, como reposição integral e ao vivo do Symposion. Este género literário, o da tragédia grega, em que Ágaton, o protagonista, se destacou, é considerado por Nietzsche, em “A Origem da Tragédia”, o maior da arte grega por conseguir estabelecer uma harmonia perfeita entre o “espírito dionisíaco” e o “espírito apolíneo”, ou seja, entre o sentimento e a razão, entre as pulsões da alma e a sua estilização espiritual. E foi por Ágaton ter recebido este prémio que o Symposion foi realizado.

3.

Os banquetes eram uma prática institucionalizada na Grécia Antiga e este, o de Platão, viria a conhecer revisitações ao longo dos séculos, na literatura, na pintura, na música, na arte, em geral. Referências é possível encontrá-las no historiador e filósofo Plutarco, nos escritores Ateneu e Petrónio (séc.s I e II, d. C.); mas também na Florença renascentista e na iniciativa de Lorenzo de’ Medici de passar a celebrar o nascimento e a morte de Platão com um banquete, com a leitura integral deste texto e com representações vivas das intervenções dos participantes no Banquete; no humanista italiano Marsilio Ficino; nas inúmeras edições que conheceu em toda a Europa, no século XVI; na pintura de Botticelli, Rubens ou Canova; na filosofia de Kierkegaard; no romance; em Thomas Mann, como veremos, ou em André Gide; na música e até mesmo em televisão. Tudo isto apenas para sinalizar a importância do Symposion e a sua influência na cultura ocidental (2018: 35-39) *.

4.

Este Symposion ficou também famoso e celebrado porque nele entravam personagens de grande importância na vida cultural ateniense, logo a começar pelo famoso filósofo Sócrates, mas incluindo também o seu admirador Alcibíades e o comediógrafo e seu crítico Aristófanes (por exemplo, na comédia “As Nuvens”) ou Ágaton, o vencedor do prémio, entre outros, como Fedro ou Pausânias. E, claro, pela influência do seu autor, o grande Platão, além dos relatores Apolodoro e Aristodemo com os quais começa a obra.

5.

Os banquetes tinham uma estrutura bem definida (as mulheres não era admitidas, a não ser, por exemplo, na qualidade de músicas ou noutras ocasiões muito especiais): o jantar propriamente dito, chamado deípnon, a que se seguiam as abluções (purificação), os cânticos aos deuses, as libações (a fase da bebida, o symposion propriamente dito) e a componente cultural, o debate acerca de temas de cultura.

6.

Neste caso, a tradição cumpriu-se, mas de forma moderada, na fase das libações, pois todos os intervenientes já tinham usado e abusado delas no dia anterior, e sempre na celebração da vitória de Ágaton, encontrando-se, por isso, fisicamente diminuídos, isto é, com ressaca, o que levou a que fosse aconselhado a todos os intervenientes beberem  somente de acordo com o apetite, mas moderadamente, pois iria ser privilegiado o debate cultural sob um tema proposto por Fedro, um dos convivas.

7.

Qual foi, pois, o tema proposto por Fedro (nome que dá título a um dos diálogos de Platão, precisamente sobre o amor) e quem eram os intervenientes no debate? O tema proposto, que foi imediatamente acolhido por todos, foi o elogio do amor, sendo os participantes no debate, por ordem das intervenções, Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Ágaton e Sócrates, este ajudado pelo relato que fez do que a sábia Diotima um dia lhe relatara acerca do amor. A última intervenção, já tardia, foi a do célebre Alcibíades (considerado como o amante de Sócrates), já um pouco embriagado, mas ainda lúcido, que se centrou exclusivamente no elogio sem limites, não do amor em si, mas de Sócrates, ou, se quisermos, do amor que ele próprio professava por ele, um amor incondicionado e de certo modo não correspondido na dimensão também física em que ele o desejava, como veremos. Este tipo de relação era muito comum e aceite entre os gregos, a chamada relação homoerótica, incluindo a própria pederastia, vista como relação de integração e de educação para os valores superiores dos jovens – desde que já maduros e conscientes, e não sujeita a impulsos menos nobres ou por pura lascívia – pelos adultos para que pudessem alcançar a virtude e a sabedoria.

8.

O Symposion termina com os últimos três resistentes: Agatón, Aristófanes e o próprio Sócrates, que foi o último a abandonar o Symposion, já pela manhã. Ele era, segundo Alcibíades, sempre e em tudo, o mais resistente.

9.

Qual é o interesse desta obra de Platão? A reflexão sobre o amor, algo que foi ao longo da história da cultura ocidental um dos temas mais tratados pelos maiores artistas da cultura ocidental, muitas das obras, como vimos, por influência desta obra de Platão. E, digamos, tema que tem dominado em absoluto a poesia ao longo dos séculos, não só devido à delicadeza, à centralidade, ao poder e à universalidade do amor, mas também por ter sido, et pour cause, sempre sujeito a um forte condicionamento social, precisamente devido à influência daquelas suas características na vida das sociedades, desde o plano público até ao plano da mais íntima relação. Se é verdade que a relação homem-mulher traduz ao longo dos séculos o nível de desenvolvimento civilizacional das sociedades (Marx, nos Manuscritos de 1844 assim a considera), também é verdade que os desvios à norma dominante, nesta relação, foram sempre objecto de sancionamento social e moral, de repressão, e, por isso, objecto de conversão estética, de fuga, de sublimação por parte dos que, sendo agentes de cultura, sofriam mais directamente na carne essa repressão. A história da poesia e a da pintura e as biografias dos seus maiores têm muito a dizer sobre isto, com poetas e pintores a encontrarem na arte uma  forma de superior resolução das suas próprias vidas e de libertação das amarras sociais à sua orientação amorosa ou sentimental.  A arte como salvação, sublimação dos infortúnios existenciais, sobretudo amorosos. Alguns nomes: Leonardo da Vinci (por exemplo, o seu amor pelo famoso “Salai”), Michelangelo Buonarroti (o seu colaborador Gherardo Perini), Caravaggio (os jovens de Roma), Óscar Wilde (que, por isso, foi preso), Walt Whitman, Paul Valéry, Verlaine, Rimbaud, Mário de Sá Carneiro  ou até, talvez, Fernando Pessoa (embora no caso do seu eventual homoerotismo se verifique uma certa nebulosidade, não sendo sequer a monumental biografia de Richard Zenith sobre Pessoa muito clara e definitiva sobre o assunto). E tantos outros. Génios da pintura e da poesia O mesmo se poderá dizer de Thomas S. Eliot, prémio Nobel da Literatura (1948), cuja orientação sexual (o homoerotismo) é ainda objecto de debate e de incerteza. E até se discute também a orientação sexual de Shakespeare (de novo o seu homoerotismo), encontrando-se nos seus Sonetos o elogio do amor por um jovem, “Fair Youth” (por exemplo, no CXVI Soneto). A que se poderia ainda juntar os amores heterosexuais frustrados ou inconsequentes, como, por exemplo, o de Stendhal ou o da nossa grande, mas tão infeliz, Florbela Espanca. Ou seja, a grandeza artística como superação das fracturas, das cicatrizes existenciais e sociais dos artistas. Através de um salto na eternidade. Em geral, na sociedade e na cultura gregas, o tema da pederastia e do homoerotismo era um topos habitual no debate, pela razão que já referi. E também aqui, no “Banquete”, com Alcibíades a contar, perante os convivas, os seus avanços falhados para com o amado mestre Sócrates.

10.

É claro que o elogio do amor tem em Platão uma clara dominante que tem a ver com a sua própria filosofia, pondo a visão de Sócrates, pela voz de Diotima (2018: 103) – chamada por ele ao discurso -, como a mais próxima da sua própria visão. Há uma passagem no Banquete, precisamente na fala de Diotima, muito elucidativa a este propósito, e que refiro textualmente. Cito:

E aqui tens o recto caminho pelo qual se chega ou se é conduzido por outrem aos mistérios do amor: partindo da beleza sensível em direcção a esse Belo é sempre ascender, como que por degraus, da beleza de um único corpo à de dois, da beleza de dois à de todos os corpos, dos corpos belos às belas ocupações e, destas, à beleza dos conhecimentos, até que a partir destes alcance esse tal conhecimento, que não é senão o do Belo em si, e fique a conhecer, ao chegar ao termo, a realidade do Belo” (2018: 122).

Belo em si e por si – a finalidade do amor superior, aquele que está alinhado com o Bem e com a Verdade, com a Aphrodite celeste, como diria Pausânias, e que não se reduz à beleza corporal, nem sequer à imortalidade que, por via do amor e do prazer que lhe está associado, pela procriação, garante a reprodução da própria espécie. Aliás, Thomas Mann (que também poderia ser incluído na lista de nomes que já citei),  em “Lotte em Weimar – O Regresso da Bem-Amada” (de 1939), identifica a procriação como luxúria, enquanto o amor expresso no beijo, diz, é alegria, é a “poesia do amor”. Ou então, como diria Honoré de Balzac, o amor é mesmo a poesia dos sentidos. Algo, que está, pois, para além do princípio do prazer. O livro de Thomas Mann “Morte em Veneza” tem muito daquilo que se encontra em Platão: a relação estilizada e homoerótica entre o aclamado escritor Gustav von Aschenbach e o jovem e belíssimo Tadzio. O belo em si e por si encarnado no corpo divino de um jovem polaco contemplado por um Aschenbach literalmente possuído por essa irresistível beleza que acabará por conduzi-lo à morte, nessa também bela Veneza, infestada com a peste (e que ele podia ter abandonado a tempo). O filme, com o mesmo nome, de Luchino Visconti (para mim um dos maiores realizadores de sempre, também ele integrando a fileira do homoerotismo) é absolutamente expressivo e belíssimo sobre esta relação homoerótica. “Ecos do Banquete platônico ressoam na escrita de Mann”, em “Morte em Veneza”, diz um autor brasileiro, Daniel Barbo (2014: 59) **. E diz mais: “Além do fundo comum classicista, Goethe, Nietzsche, Freud e Mahler integram a polifonia de Morte em Veneza. A obra simboliza paixão e degradação, Eros e Thánatos. Aschenbach é hipnotizado por Tadzio. Hýpnos, o irmão gêmeo de Thánatos, anda de mãos dadas com Eros” (2014: 61). O amor e a morte. Palavras certeiras, estas, pois a paixão de Aschenbach acaba por se situar numa esfera tão elevada que as circunstâncias terrenas (por exemplo a devastadora peste que assolava Veneza) já pouco importam…

11.

No Symposion, e em geral na filosofia de Platão, estamos perante uma dialéctica ascendente que, por intermédio de Eros, que não é mortal nem imortal, eleva até ao ideal supremo – ao Tò Agathón, o Bem. O amor que visa a imortalidade, não só pela descendência, mas também pelas obras e, destas, sobretudo, pelas obras do espírito, pela elevação espiritual. Uma dialéctica ascendente que não prescinde do mundo sensível (o Eros tem uma dupla condição, terrena e divina), mas que se eleva sobre ele até a um plano ideal, o que garante a imortalidade. E o Eros é, neste processo, o grande mediador entre deuses e homens, pela sua natureza híbrida, filho como é da Pobreza-Penía e do Engenho-Poros, mas que por isso mesmo pode conduzir, nesta dialéctica ascendente, ao ideal supremo – o Belo em si e por si (Tò Kalón), ou o Bem (Tò Agathón), valores que, de resto, em Platão são indissociáveis. O Eros tem uma natureza híbrida, sim, mas, no fim, por seu intermédio, a alma vence sobre o corpo e o espírito vence sobre a alma, a caminho da Beleza em si. Como exemplo prático e humano poderia referir a história contada por Alcibíades acerca de um encontro com o amado Sócrates, que, amando também ele, nunca se deixa, todavia, capturar pelos avanços sexuais de Alcibíades. Vejamos, por exemplo este passo muito significativo, no Symposion, do elogio de Sócrates por Alcibíades:

Pois certifico-vos, pelos deuses e pelas deusas, que, depois de passar a noite com Sócrates, nada mais tinha acontecido, ao levantar-me, do que se tivesse dormido com o meu pai ou com um irmão mais velho” (2018: 140)

O que aqui temos é uma valorização da esfera ética o sobre o corpo, personalizada em Sócrates, visão que esteve também presente nas intervenções dos outros convivas, e que espelha a própria visão de Platão. Visão quen poderá ser  melhor compreendida através da famosa “Alegoria da Caverna”, no início do Livro 7 da obra maior de Platão A República (Politeía): a realidade, para os confinados na caverna, confunde-se com imagens do que se passa fora da caverna onde estão os prisioneiros, imagens essas projectadas como sombras na parede do fundo da caverna, provocando um efeito de ilusão sobre a realidade. Como os que estão na caverna nunca de lá saíram, julgam, pois, que a realidade se identifica com as sombras que vêem projectadas na parede. E se algum deles sair verá como é difícil adaptar-se à luz do sol, acontecendo, com alguns, acabarem por preferir o reino das sombras, identificado, esse sim, com a realidade.  Transpondo para o amor: o amor carnal como ilusão do verdadeiro amor para os que nunca se libertaram das amarras do mundo sensível, do culto físico do corpo, do mero prazer como seu fim último.

12.

Esta dimensão ideal do amor encontra-se, pois, enquadrada de diversas formas nas intervenções dos participantes no Banquete. Vejamos.

  1. na inspiração divina e virtuosa do amante em relação ao amado e o heroísmo provocado pelo amor, o mais antigo dos deuses (Fedro);
  2. o amor celeste, inspirado na Afrodite celeste (a deusa do amor) – e não na Afrodite popular (o amor vulgar) -, centrado na alma (masculina, não feminina), e não no corpo. Amor que visa exclusivamente a virtude e a sabedoria e que permanece durante toda a vida (Pausânias);
  3. na dialéctica entre opostos visando, no amor, a harmonia entre eles, desde os corpos singulares até à própria natureza em geral (Erixímaco, médico);
  4. o amor que visa restaurar a nossa primitiva natureza como seres duplos (todos têm tudo em duplicado) masculinos, femininos e andróginos (metade homem, metade mulher), ao reencontrarmos a nossa outra metade, perdida por castigo dos deuses, e ao voltarmos a unir-nos a ela, depois de a procurarmos movidos pela saudade e pelo amor, como busca dessa parte da nossa identidade que perdemos (2018: 85; Aristófanes); Freud cita esta fala de Aristófanes no seu livro Além do Princípio do Prazer-;
  5. o amor, o mais feliz dos deuses (e o mais jovem), dotado de todas as qualidades que o tornam sofisticado e delicado, é impulsionador da beleza e da concórdia e anima no prazer e consola no sofrimento (Ágaton).

Portanto, visões ideais do amor que sobrelevam a sua dimensão puramente orgânica, circular e passageira, confundida simplesmente com o prazer. No fundo, a luxúria, como diria Thomas Mann.

13.

Diotima-Sócrates sublinha o desejo de imortalidade no accionamento do amor, seja ele físico e reprodutivo, seja ele espiritual e fautor de perpetuação do criador. O amor é, sim, filho da Pobreza e do Engenho e é desta sua dupla condição que resulta a sua qualidade de mediador (daímon, divindade que exerce influência sobre o destino dos homens) entre os homens e os deuses e a sua capacidade de nos impulsionar em direcção ao Belo em si, ao Bem, mas também à Verdade (Alêtheia, no sentido de desvelamento, não oculto), como vimos na passagem que já transcrevi.

14.

Este aspecto merece algumas considerações, um curto excursus elucidativo em relação à arte, às suas razões mais profundas. Muito se tem dito quando se fala do idealismo em filosofia, por exemplo, de Platão ou do próprio “amor platónico”, da sua aparente irrealidade, do seu carácter onírico. Não é o que eu penso e creio mesmo que não o pensam de igual modo os artistas, os poetas, os pintores, os romancistas, os compositores. Todos os que trabalham com a imaginação, a fantasia, com símbolos, com matéria intangível, com ideias e formas,  todos os que criam, com desejo de eternidade ou com desejo de resolver a própria vida com a arte, com a poesia, com a pintura, com a música, movidos pela dinâmica da sua própria relação com a vida – todos eles encaixam plenamente neste chamado idealismo que, frequentemente, também assume a forma do chamado “amor platónico”, o amor impossível, mas real, como teria sido o de Aschenbach. A um certo momento da sua vida, Beethoven ficou surdo, não ouvia o que compunha, perdeu capacidade sensorial, orgânica, mas continuou a compor e a “ouvir” com os sentidos interiores (a memória auditiva) o que compunha na pauta. Produzia arte com os sentidos interiores e com o espírito, através da notação musical. Por exemplo, a nona sinfonia. Estamos no domínio do imaterial, do intangível, sim, mas que faz parte da vida, talvez do seu lado mais belo. Um poeta que, carregando a dor do seu maior fracasso amoroso, homoerótico ou heteroerótico, decide transpô-lo para a poesia como forma de o resolver superiormente. Resolvê-lo, elevando-o. E são tantos os poetas nessas condições. A nossa fantástica Florbela Espanca, por exemplo, com os seus sonetos. O grande escritor francês Stendhal, que se apaixonou desesperadamente pela senhora Matilde Viscontini, carbonária e divorciada de um general polaco, até escreveu um livro sobre o amor “De l’Amour” (1822), inspirado nela, sendo também certo que ela está presente nos seus romances, designadamente em “Le Rouge et Le Noir” (Mathilde ou, sobretudo, Madame de Rênal).  É a resolução da vida pela escrita, como viria a dizer Robert Musil. E talvez não tivesse sido sequer o mesmo Stendhal se não se tivesse cruzado com a senhora Matilde Viscontini e com o fracasso que daí resultou (para ela Stendhal era eroticamente frívolo). A atenuação da sua infelicidade foi obtida certamente pela arte. Pois bem, na verdade, é possível reconhecer que o amor é o principal propulsor da poesia, como, de resto, diz Ágaton de Eros, o deus do Amor, no Symposion:

“e para que também eu preste as honras à minha arte (a poesia, a tragédia), tal como Erixímaco (médico) prestou à sua, começo por falar na sabedoria do deus como poeta: um poeta tão hábil que sabe, inclusive, transmitir a outros a sua arte! Certo é que todo o homem bafejado pelo Amor, ‘mesmo antes avesso às Musas’, adquire o dom da poesia… E eis o testemunho ideal para mostrar a excelência do Amor em todo o género de criação ligado às artes” (2018: 92).

Mais palavras para quê? O amor, homoerótico ou heteroerótico, concede o dom da poesia, diz Platão pela boca do anfitrião do Symposion.

15.

No Symposion encontramos, sim, esta tensão, presente no amor, que visa a superação do estado de facto daquele que ama, uma tensão que tende para a imortalidade, em diversas dimensões, desde a gestação para a reprodução da espécie até ao trabalho que produz obra que persiste para além da vida do seu criador, ao conhecimento, ao Belo, esse, sim, imorredouro e universal e que, por isso, torna imortal o seu criador. Trata-se, aqui, de um importante deus do Olimpo, Eros, deus todo-poderoso, que, segundo Fedro, o poeta grego Hesíodo e o filósofo pré-socrático Parménides consideravam primordial filho do Caos e contemporâneo da Terra (2018: 37), “o mais antigo e venerável dos deuses como o que tem mais poder para levar os homens a alcançar o mérito e a felicidade”, na vida e no além (2018: 61). Em todas as intervenções dos participantes no Banquete a dimensão espiritual sobreleva, domina, ficando a dimensão física, corpórea, sexual num plano inferior, mesmo aquela que supostamente leva à eternidade através da procriação e da reprodução da espécie. Mesmo essa que, afinal, era considerada por Thomas Mann (mas num romance, entenda-se) como Luxúria. Gustav von Aschenbach via em Tadzio, não a luxúria, mas a imagem ideal da Beleza no corpo divino do jovem Tadzio, pelo qual se apaixonou perdidamente até à morte. O amor superlativo (neste caso, homoerótico), o Eros, e a morte, Thánatos, que sobreveio, em Aschenbach, na fascinante cidade de Veneza. Palavras que poderiam ser subscritas por Freud. O belíssimo filme de Visconti permite uma extraordinária visualização de tudo isto.

16.

Eu creio que uma parte muito importante da filosofia só pode ser entendida com as categorias da arte porque é a arte que melhor interpreta a força existencial das ideias, nos leva a acreditar não só na sua existência como parte importante da vida, mas também no seu poder sobre ela, na sua capacidade de fascínio, de sedução e de mover o mundo numa direcção muito melhor do que aquela a que o puro pragmatismo nos conduz. O sonho comanda a vida, dizia o poeta. E basta pensar no poder da música. Mas esta dimensão pode estar presente na mais simples das actividades práticas: num quadro, num vinho, num livro, num objecto. Sim, mas como algo que transcende a sua mera função prática: o valor monetário; o mero prazer físico da bebida; as instruções práticas contidas num livro; o valor instrumental de um objecto. Não, algo que transcende estes valores meramente instrumentais, quando quem os executa põe neles algo a alma e a transcendência temporal.

17.

Um exemplo da relação entre a filosofia e a arte: a filosofia do grande Nietzsche que, no meu entendimento, só pode ser entendida com as categorias da arte. Ou a de Platão, que também era poeta. A filosofia tem na arte a sua mais potente aliada, aquela que lhe pode conferir realismo e poder de sedução.  O Nietzsche quando falava, em “A Origem da Tragédia”, na exigência de equilíbrio entre o “espírito apolíneo” e o “espírito dionisíaco”, o que estava a dizer é que o espírito é vazio se não tiver dentro de si as pulsões magmáticas da alma, o eros, porque é na alma que se localizam os sentimentos imprescindíveis para que a obra de arte, por exemplo, a poesia, já formalmente trabalhada pelo espírito, tenha sentido, não seja pura retórica, pura forma, puro virtuosismo de palavras e de ritmo. Puro exibicionismo. Mas isto é o que defende também o nosso famoso neurocientista António Damásio, por exemplo no livro Sentir e Saber (de 2020). Sim, o deus Dionísio, que é o deus do teatro, mas também o deus do vinho, as libações, os cânticos, o perfume inebriante da vida (ou do jasmim), o estremecimento da alma perante um clarão que quase cega (de amor), como no poema de Baudelaire “À une Passante”, em “Les Fleurs du Mal”, esse deus e essas pulsões têm de estar lá a estimular a vida que, depois, Apolo há-de sofisticar com a maquinaria poética, com o duro trabalho do espírito. No fundo, poder dar asas ao desejo, à vontade, ao sentimento, para além dos fins meramente pragmáticos, imediatos. Estes dois deuses, tal como a alma e o espírito, estão condenados a conviver e a cooperar para gerarem obras de arte que resolvam a vida, a imortalizem: como dizia a Marguerite Yourcenar, em Le Temps ce Grand Sculpteur, pela boca de Michelangelo Buonarroti, dirigindo-se ao seu amante: “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”. A minha obra de arte imortalizar-te-á naquilo que só eu pude ver em ti, porque te amei. E porque partes… Mas, assim, com a arte, na partida, eu não te perderei, pois (só) pela arte é possível possuir (isto dizia também o Pessoa do Livro do Desassossego) e só pela arte é possível ver aquilo que mais ninguém consegue ver, sobretudo quando o motor cognitivo é o amor. A arte ajuda-nos a ver o que, de outro modo, ficará oculto ao nosso olhar. E o tempo, esse grande escultor, torna-se assim cúmplice da arte e ambos retiram da vida passada e vivida o seu núcleo aurífero, aquele que resiste ao natural efeito de erosão, projectando-o na imortalidade, eternizando-o. A arte, por isso, é alquímica e o seu principal motor é o amor, a energia propulsora que projecta os seres humanos para um tempo e um espaço que já se situam para além deles próprios. É disto que, afinal, fala o Symposion, em diversas formas e discursos a que o pensamento de Platão dá unidade estratégica, que é esta que tenho vindo a referir. De resto, e para finalizar, sempre poderia recorrer à psicanálise, a Sigmund Freud, e referir as duas pulsões vitais que dominam a dialéctica da nossa existência: o thánatos, a pulsão da morte, e a pulsão representada pelo Eros, pelo amor, a pulsão da vida, que, felizmente, tende sempre a levar vantagem sobre aquela outra pulsão, mantendo-nos vivos, no presente e no futuro, através da procriação que, no meu entendimento, é mais do que luxúria, porque se inscreve na própria dialéctica da natureza. Esta relação está vitalmente muito bem retratada em “Morte em Veneza”: Aschenbach que, permanecendo em Veneza, pois é incapaz de renunciar à visão/paixão de e por Tadzio, o divino num corpo, acaba por morrer nesta cidade única no mundo. Thomas Mann e, depois, Luchino Visconti. Uma obra deste enorme romancista, Thomas Mann, que muito deve ao classicismo grego, designadamente a Platão. Também a psicanálise coloca o Eros no centro da nossa dinâmica vital. E, que mais não fosse, só esta conclusão de uma teoria que está reconhecida como uma importante especialidade médica bastaria para evidenciar a pregnância e o realismo da teoria que subjaz ao Banquete de Platão.

NOTAS

* Veja a introdução a Platão, O Banquete, Lisboa, Relógio d’Água, 2018, pág.s 35-39, de Maria Teresa Schiappa de Azevedo, que também o traduziu do grego e completou com um rico acervo de notas.  Mas veja também a excelente edição da Garnier-Flammarion (Paris, 1964, com tradução, introdução e notas de Emile Chambry, pág.s 5-29).

** Barbo, Daniel (2014). “Homosexualidade e Paiderastía em Thomas Mann”. In Calíope: Presença Clássica, 2014.2. Ano XXXI. Número 28. JAS@11-2024

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Poesia-Pintura

RITUAIS

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Catedral”, JAS 2024
Original de minha autoria
Novembro de 2024
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“Catedral”. JAS 2024

POEMA – “RITUAIS”

NESSE DIA,
Imaginei
Um templo
Revestido de vitrais,
Celebrações
Em palavras
E singelos rituais...

EVOCAVA,
Assim,
O tempo
Em que sempre
Me perdia
Nesse seu olhar
Esquivo
Que quase tudo
Dizia,
Em que os silêncios
Sobravam
Como se fossem
Castigo
De pecados
Em que nunca
Me revia.

O QUE RESTOU
É alimento
Da alma,
É fervilhar
De memórias,
Inscrições
Sensoriais,
Silêncio
Profundo
A poético
Chamamento
E nada mais...
.........
Um poema,
A catedral,
Invocação
Em tormento,
Oficiar
Rituais.

FUTURO
Imaginado
De voluntário
Amante
Construído
Nas ruínas
De um passado
Que já é
Muito distante.

O QUE SOBRA
É um brilho
Coado,
Melancólico,
Cinzento,
O negro
De seus olhos
Inquietos
E de seus cabelos
Fartos,
Ao vento...

TUDO A FERVILHAR
Na minha sofrida
Memória,
Delicada recriação
Em palavras
Com história.

DOU-LHE, ASSIM,
Nova vida,
Renovo-me
Também eu,
Falo ao mundo
Comovido
De um tempo
Que é só meu.

IMAGINO
Esse templo
Sempre que
Regresso
Do meu Jardim
Encantado,
Vibrante de cores
E por fora
Perfumado,
Mas por dentro
Melancólico e
Sofrido
Por a ter,
Nesse tempo
Já passado,
Dolorosamente
Perdido...
Inscrições

“Inscrições”. JAS 2024

Artigo

“POLÍTICA E IDEOLOGIA NA ERA DO ALGORITMO”

UM NOVO LIVRO

(Apresentação no Salão Nobre da Câmara Municipal da Covilhã,
27 de Novembro, pelas 18:00)

De João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS 2024, inspirado numa imagem do documentário “The Social Dilemma”, da NETFLIX

De hoje a oito dias, 27.11, às 18:00, será apresentado este meu novo livro (Política e Ideologia na Era do Algoritmo, S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, 262 pág.s) no Salão Nobre da Câmara Municipal da Covilhã, em sessão presidida pelo Senhor Presidente da Câmara, Dr. Vítor Pereira. Apresentarão o livro o Dr. Alberto Costa, ex-Ministro da Justiça e da Administração Interna, e o Dr. José Conde Rodrigues, Presidente do Movimento Europeu (Portugal) e ex-Secretário de Estado da Cultura, da Justiça e da Administração Interna.

1.

É um livro sobre política e ideologia. Por que razão decidi publicá-lo? Porque as profundas mudanças que estão a ocorrer em todos os sectores da sociedade contemporânea não têm conhecido uma correspondente resposta no plano da política, a não ser nos seus aspectos mais instrumentais, ou seja, nas técnicas de captação do consenso, ficando, pois, confinada na mera ideia de poder. Por isso, o que está verdadeiramente a acontecer é uma autêntica regressão da política: a conquista e o uso do poder pelo poder. O assalto à cadeira do poder. O grau zero da política. O triunfo do poder como fim de si próprio. Exemplo? O plutopopulismo declarado e triunfante da dupla Donald Trump/Elon Musk, nos Estados Unidos, que não é um país qualquer.

2.

A ideia de autogoverno dos povos como eixo central dos regimes democráticos está a ser cada vez mais reduzida à de exercício do poder, não pelo povo, mas pelo mais forte, por aquele que dispõe de mais meios instrumentais para obter a delegação do poder. O que está a acontecer é um efectivo embrutecimento da política, onde já nem sequer parece ser necessário fingir. A própria brutalidade compensa porque apela aos sentimentos mais básicos e viscerais do ser humano. A política desligada da ética pública, dos valores sociais, de uma visão estratégica para o desenvolvimento  económico e civilizacional, onde os cidadãos são vistos como mera massa de manobra para fins puramente utilitários de poder e não como fim expresso da própria política. Plutocracia, não democracia. Guerras de conquista territorial na era da globalização. Uso e abuso da mentira e da força como eficazes meios para chegar ao poder. Instrumentalização do medo para fins políticos. Nacionalismo retrógrado sob forma de soberanismo.

3.

O que é muito estranho é que, dispondo, hoje, a cidadania de meios extraordinários para se informar e para condicionar, por essa via, a vida pública, o que, afinal, se está a verificar é que essa possibilidade se está a converter em regressão, dando razão a Giambattista Vico e aos seus “corsi e ricorsi”, com prevalência dos “ricorsi”. Ou seja, todas essas plataformas de comunicação hoje disponíveis parece terem sido convertidas em instrumentos de opressão simbólica, em vez de tecnologias de libertação, como no início eram conhecidas. Ainda está por fazer o estudo da sua utilização na recente campanha presidencial americana, mas já sabemos que a plataforma “X” foi usada despudoradamente pelo seu proprietário ao serviço da campanha de Donald Trump (tem cerca de 100 milhões de utilizadores nos Estados Unidos), sendo duplamente recompensado por isso: pela enorme subida do valor das acções da Tesla e pelo cargo para que irá ser nomeado pelo novo presidente (Departamento de Eficiência Governamental, DOGE). O que aconteceu em 2016 repetiu-se agora, mas em dose reforçada. O novo Steve Bannon, o da Cambridge Analytica, é agora o plutocapitalista Elon Musk e a sua plataforma Twitter/”X”. O poder económico já dispensa mediadores – assume ele próprio directamente o poder. Já tínhamos visto isto em Itália, com Berlusconi (modelo muito apreciado por Trump). Vêmo-lo agora, agora, outra vez, e sem disfarce, nos Estados Unidos.

4.

A verdade é que estamos a assistir a uma segunda fase de evolução das novas tecnologias, com a sua utilização massiva ao serviço de estratégias estranhas ao interesse dos seus utilizadores por parte das respectivas administrações, designadamente naquele processo nevrálgico que legitima o poder nos regimes democráticos: as eleições e os comportamentos eleitorais. O exemplo de “X” basta para ilustrar esta afirmação. E há uma diferença substancial relativamente às plataformas tradicionais (imprensa, radio, televisão): estas são directamente imputáveis pelas acções que praticam; aqui, só as administrações das grandes plataformas podem ser responsabilizadas genericamente pelo seu uso ilegal e ilegítimo, mas somente no plano comercial e concorrencial, não nos processos de condicionamento do comportamento eleitoral (e em tempo útil). A “mass self-communication” permite uma intrusão no comportamento individual de natureza subliminar, sem visibilidade pública e eventual imputabilidade, sendo também certo que os seus accionistas dominantes alinham politicamente muito à direita. Por exemplo, Elon Musk e  Mark Zuckerberg.

5.

E é esta a razão pela qual dedico, no livro, muitas páginas ao chamado “constitucionalismo digital” como modo de superior regulação do comportamento das grandes plataformas digitais. Não me incluo nos apocalípticos, os que vêem nestas plataformas exclusivamente uma nova forma de opressão, de capitalismo ou de imperialismo (a que Shoshana Zuboff, no seu livro A Era do Capitalismo da Vigilância, chama precisamente “Capitalismo da Vigilância”), porque elas vieram dar voz a todos os que não mereciam qualquer atenção por parte do establishment mediático, dos famosos guardiões do espaço público (gatekeepers), quer no plano da informação quer no plano da produção de conteúdos, tendo sido, por isso, conhecidas originariamente como “tecnologias da libertação. Reconheço, todavia, que estamos perante uma realidade altamente sensível e perigosa se as plataformas não estiverem enquadradas por normas rigorosas que delimitem e possam punir a sua acção, em caso de graves desvios, e em especial na área política. É neste sentido que falo em “constitucionalismo digital”. Sabemos que a Cambridge Analytica foi desmantelada, na sequência do escândalo que também viu envolvido o Facebook por ocasião do Brexit e da primeira eleição de Donald Trump. Mas agora também vemos o homem mais rico do mundo e dono do “X” (mas também da Tesla, de SpaceX, de xAI e de Neuralink) pôr ao serviço de Trump, e sem limites na forma como foi usada, a sua rede social. Depois de Steve Bannon, o estratega de 2016, veio Elon Musk, muito mais poderoso e perigoso. O poder do dinheiro e dos meios de condicionamento do comportamento eleitoral e o perfume do poder.

6.

Até agora, e ao que parece cada vez mais, estas plataformas têm sido usadas com mais eficácia pela direita radical (que analiso em três capítulos do livro), não só pela proximidade ideológica dos seus dirigentes, mas também porque as formas de actuação são mais adequadas à linguagem e às suas práticas do que às das formações políticas mais moderadas, designadamente do centro-esquerda. Isto para não falar do desejo de reproduzir o dinheiro e o poder. Algo muito diferente, certamente, mas equivalente ao tabloidismo que tem vindo a colonizar os meios de informação, em especial o audiovisual – o apelo ao negativo como processo mobilizador (de audiências). Um negativo que, no caso das redes sociais, já tem nomes próprios: “fake news” e “pós-verdade”. Disto falo abundantemente no livro, mas falo também, e pela positiva (na III Parte), de um processo em curso que pode ajudar a resolver a velha crise de representação, especialmente porque ele dá voz à cidadania num plano diferente e superior ao que se verifica precisamente no velho tabloidismo mediático. Falo da política deliberativa, que visa uma maior e mais esclarecida intervenção da cidadania nos processos decisionais, logo a começar nos processos eleitorais. Na verdade, já existem poderosas plataformas (ou mesmo partidos-plataforma) cujo objectivo é dar voz organizada à cidadania nos processos públicos, resolvendo o problema da hiperfragmentação e da comercialização da cidadania. Mas muito há a fazer para reorientar a política no perigoso caminho que está a percorrer nos nossos dias.

7.

O que certamente não ajuda a uma evolução em direcção à democracia deliberativa é a nova e avassaladora onda ideológica promovida por aquela que eu designo por “esquerda identitária dos novos direitos” (wokismo, politicamente correcto, revisionismo histórico, etc.) e a que dedico criticamente cerca de 60 páginas (na parte IV do livro). De resto, esta onda ideológica multifacetada e em expansão tem constituído um alimento muito nutritivo e eficaz da direita radical para se afirmar perante uma cidadania que claramente não embarca no radicalismo e nas absurdas reivindicações e princípios desta doutrina identitária. E o que também não ajuda é a tendência do centro-esquerda e do próprio centro-direita a deixarem-se generosamente infiltrar por esta ideologia na ilusão de estarem a colmatar o seu evidente défice ou vazio doutrinário por um enganador progresso civilizacional e por um construtivismo social completamente absurdo. Um exemplo. Um site falso da campanha de Harris, criado e financiado por ordem de Musk, e muito divulgado, procurando enganar o eleitorado democrata e deslocar eleitores para Trump, dava a entender que a campanha democrata estava a promover comportamentos enquadrados nesta ideologia, ou seja a encorajar “a transição sexual nos menores da LGBTQIA”  (veja o artigo do matemático David Chavalarias, do CNRS francês, no Libération, de 18.11, pág. 20). É um mero exemplo, mas muito elucidativo. Esperemos que estudos sejam feitos sobre esta campanha porque o assunto é mesmo muito sério.

8.

A conversa sobre a inteligência artificial está a ocupar muito do debate acerca do futuro das sociedades contemporâneas, estando a ser sublinhada a intervenção dos processos automatizados de decisão, independentes da vontade e do processamento humano. O recente livro de Yuval Harari, Nexus, é disso que fala, alertando para os seus perigos. A distribuição e a reprodução digital alargada dos conteúdos pelos algoritmos segundo lógicas que radicam nos comportamentos dos utilizadores, mas que são finalizadas estrategicamente a critérios de programação predefinidos e orientados a objectivos exógenos à comunicação dos utilizadores é já uma constante que pode ser observada por quem se move na rede. Foi isto que aconteceu com os algoritmos da “X” de Musk nesta campanha. É aqui que, de resto, reside, por um lado, o imenso poder das plataformas e, por outro, a impotência do cidadão-utilizador, dedicando o livro muitas páginas a explicar este processo e as suas consequências, designadamente políticas. E todavia, não se trata, como já disse, de uma visão apocalíptica das redes sociais e das grandes plataformas digitais, como infelizmente – mas com alguma razão, pelo que se está a ver nesta segunda fase da evolução das TIC – parece já ser a tendência dominante no mainstream. No livro, procuro não só mostrar os riscos que ameaçam a democracia, mas também as enormes potencialidades que a rede apresenta para um futuro progressivo e amigo da cidadania e da democracia. Mas, como tudo na vida, isto não acontecerá se não lutarmos por um uso decente e positivo das possibilidades que a rede nos oferece, designadamente na política. JAS@11-2024

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Poesia-Pintura

CONFISSÃO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Perfil de Musa”
Original de minha autoria
Novembro de 2024
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“Perfil de Musa”. JAS 2023; 63×78, em papel de algodão (310gr) e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70 em mold. de madeira

POEMA – “CONFISSÃO”

COMO SABES,
E sabes como
(Ou talvez não),
Sou poeta
E sou pintor
Para pintar
O teu rosto
(Talvez em vão),
Com os riscos
E as cores
Que persistem
Na memória
(Mas talvez aches
Que não).

QUANDO QUIS
Pintar
Teus olhos,
Teus cabelos
E essa boca
Que nunca
Ousei beijar
Descobri
Que não sabia
Por onde dever
Começar.

TINHAM-SE
Diluído
Na memória
Visual
Os traços
Desse teu rosto
Fatal
Que sempre
Me encantou...
............
E como eram
Teus olhos
Nesse tempo
Já passado
Que há
Tanto tempo
Passou.

MAS NÃO FAZ MAL
(Disse pra mim
Em segredo),
Pinto-te como
Ainda te vejo,
Com a alma
Incandescente,
Cabelos negros
E olhos
Da mesma cor,
Lábios vermelhos
Que desafiam
O beijo
Que não ouso,
Por pudor.

MESMO ASSIM
(Talvez por isso),
Sinto
Uma branca
Neblina
Que cai leve
Sobre teu rosto
E não o posso
Pintar
Com o rigor
Que desejo,
Pois só com
A alma
O vejo
Para o poder
Desenhar.

AH, SIM,
Com ela
Há nitidez,
Sinto-te
Como te via
E por isso
Sei pintar-te
Com rigor,
Com palavras,
Com poesia,
Lá onde mora
A dor.

JAS_Perfil09_2023-Rec

Notícia

Novo LIVRO
de João de Almeida Santos
 
"POLÍTICA E IDEOLOGIA 
NA ERA DO ALGORITMO"
(S. João do Estoril, ACA Edições,
2024, 262 pág.s).
Já disponível na versão em papel.
Pode ser adquirido, enviando e-mail a acazarujinha@gmail.com.
Preço: 15 euros (mais custo de envio por correio registado).
 
A APRESENTAÇÃO será no dia 27 de Novembro, pelas 18.00,
no Salão Nobre da CÂMARA MUNICIPAL DA COVILHÃ,
em sessão presidida pelo Presidente da Câmara, Dr. Vitor Pereira.
O livro será apresentado pelo Dr. Alberto Costa, ex-Ministro da Justiça
e da Administração Interna e pelo Dr. José Conde Rodrigues,
Presidente do Movimento Europeu (Portugal)
e ex-Secretário de Estado da Cultura,
da Justiça e da Administração Interna.

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Artigo

O QUE PARECE É?

A Política e os Apóstolos 
do Humanismo Socialista

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS 2024

LI, COM ESTUPEFACÇÃO, um artigo de António Costa, Pedro Silva Pereira e José Leitão, no “Público” (de 6 de Novembro), “Em defesa da honra do PS”, partido supostamente desonrado pelo recentemente eleito Presidente da Federação Distrital de Lisboa do PS (cargo do qual, entretanto, se demitiu) e Presidente da Câmara Municipal de Loures, Ricardo Leão. Em causa uma Recomendação, proposta pelo Vereador do CHEGA (e as duras palavras de Leão), para alteração do Regulamento Municipal de Habitação que permite resolver o contrato de arrendamento dos que (sejam eles quem forem), dispondo de habitação municipal, sejam condenados, nos termos da lei, por infracção grave à ordem pública, à segurança e às regras da boa convivência. António Costa não desiste de subir permanentemente ao palco da política nacional, apesar de já designado Presidente do Conselho Europeu e de não desempenhar funções políticas institucionais, nem no PS nem no Estado, vindo agora lembrar a Ricardo Leão o longo património humanista do PS, como se este, militante e presidente da maior federação do PS, o desconhecesse e a transformar este seu camarada no grande polarizador da atenção social, depois da morte de Odair, causada por um jovem polícia, e dos graves tumultos que se lhe seguiram em toda a Área Metropolitana de Lisboa. A coisa não é de somenos, pela gravidade dos factos, mas também porque o artigo acaba por atingir o secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, e o próprio PS que dizem defender.

1.

Aconteceram, de facto, coisas muito graves que polarizaram a atenção social e mediática: morte e destruição. Algo que, felizmente, não é habitual entre nós. Eu teria gostado de ver neste artigo da honra ferida também uma palavra sobre as forças de segurança, sobre a morte do cidadão e sobre a fúria destruidora que assolou a área Metropolitana de Lisboa, designadamente no Município de Loures. Mas nada. O artigo é uma proclamação das políticas humanistas do PS sobre migrações e integração e sobre o Estado de direito. Como se não soubéssemos qual é a identidade do PS, que ninguém põe em causa, sequer os seus adversários. Mas ele é sobretudo um ataque violento a uma decisão da Câmara de Loures, aprovada pelo PS, pelo PSD e pelo CHEGA, com a única oposição do campeão dos direitos, liberdades e garantias, o PCP, relativamente a um Regulamento sobre habitação nas casas de propriedade da Câmara, visando pessoas condenadas por graves distúrbios cometidos naquele território.

2.

Fui ler a Recomendação em causa, tão vituperada neste estranhíssimo artigo. Fossem os três subscritores responsáveis autárquicos em Loures e, paladinos do humanismo socialista, teriam votado ao lado do PCP contra essa horda de anti-humanistas e racistas que ousaram aprovar a iníqua Recomendação. Vejamos, pois, o que ela diz (publico-a na íntegra no final deste artigo): no essencial, o proprietário (o Município de Loures), ao fazer uma alteração ao Regulamento Municipal de Habitação que visa regular a possibilidade de despejo dos arrendatários que comprovadamente sejam promotores de violência e destruição no território concelhio, comprometendo a segurança,  “a convivência pacífica e a qualidade de vida das comunidades”, visa, no essencial, e respeitando a lei, contribuir para a prevenção de futuros comportamentos violentos no território concelhio por parte de quem usufrua de habitação municipal. Isto como resposta (preventiva) ao que recentemente aconteceu em toda a área metropolitana de Lisboa, mas, como é óbvio, somente aplicável no futuro, a partir do momento em que seja aprovada a alteração ao Regulamento. Uma norma aplicável quer a imigrantes quer a nacionais. É claro que a introdução de uma alteração deste tipo só é aplicável no futuro, em homenagem à não retroactividade da lei, sendo, por isso, a sua aplicabilidade essencialmente um factor de prevenção, uma forma de dissuasão de futuros comportamentos violentos e destruidores. De resto, o regulamento em vigor é um regulamento aberto e sem cláusulas discriminatórias de qualquer tipo. Por outro lado, também é verdade que o Código Civil dispõe no seu artigo 1083, n.º 2, alínea a ) que “a violação das regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento de condóminos” (ao qual é aplicável este Regulamento Municipal, enquanto o proprietário é o Município) pode constituir fundamento para a resolução do contrato. Tendo lido a recomendação, eu próprio não hesitaria em subscrevê-la, ainda que soubesse que iria ser severamente verberado pelos apóstolos do humanismo deste partido, que é também o meu. A estes eu responderia que sei interpretar textos e que uma mensagem não pode ser interpretada a partir da qualidade daquele que a enuncia (neste caso, o vereador do CHEGA), mas sim pelo que ela é e significa efectivamente. Mas o que parece é que é isto mesmo que se verifica quer no artigo (na parte final) quer no imenso arraial, ou mesmo lamaçal, montado sobre uma Recomendação que provavelmente muitos dos seus críticos nem sequer leram. A cartilha politicamente correcta, ainda que sob forma de um proclamado humanismo socialista, vale sempre muito mais e é com ela que devemos interpretar a realidade. Assim seja.

3.

Do que se trata, efectivamente, é de matéria diferente da do processo penal, aplicável noutra sede, não constituindo, por isso, qualquer tipo de pena acessória. Até porque o arrendatário terá, doravante, conhecimento das condições em que poderá ver o seu contrato resolvido pelo Município. Por outro lado, o argumento de que a medida atinge inaceitavelmente a família do arrendatário, não culpada, ele é simplesmente absurdo. Imagine-se que um qualquer arrendatário, a viver com a respectiva família numa habitação, deixa pura e simplesmente de pagar a renda – o que acontece é que ele terá de deixar livre a casa por incumprimento dos termos do contrato. Mas se o argumento da família fosse legítimo e legal o que aconteceria é que passaríamos a viver num país onde, ao abrigo do princípio moral de protecção da família, quase ninguém poderia ser desalojado de uma habitação, ainda que não cumprisse os termos do contrato de forma reiterada. De norte a sul do país era o que aconteceria. E muito especialmente em habitações de propriedade pública. Se a moda pegasse o já grave problema do arrendamento ficaria muito pior porque não haveria quem se dispusesse a pôr no mercado casas para arrendar. Bom, o Estado-Caritas de António Costa sempre podia construir casas para oferecer à cidadania, matando o problema logo na raiz.

4.

   O tão invocado argumento da pena acessória é, pois, pura e simplesmente instrumental, errado e pouco convincente porque o direito a pôr termo ao contrato está previsto na lei e está abrangido por um ramo do direito diferente, o direito civil, aplicável subsidiariamente, no caso dos municípios, por via da remissão do direito administrativo, no âmbito do qual são resolvidos os contratos, e não o penal, aplicável aos desacatos públicos. O mesmo acontece, como já disse, para quem deixar de pagar a renda. Esta acção é, pois, completamente independente do julgamento por actos de vandalismo em geral e está prevista nos contratos. É uma acção totalmente autónoma, que nada tem a ver com o processo judicial instaurado por desacatos públicos. E a conclusão subsequente, de que, assim, a família também é atingida, e não só o titular do arrendamento, infelizmente é correcta, porque será isso que acontecerá. Mas isso é o que também acontece em qualquer parte do território nacional quando um arrendatário, por exemplo, deixa de pagar a renda e tem de libertar o imóvel. Também aqui, infelizmente, a família será atingida. Mas nada há a fazer, caso contrário, um dia destes, nenhum arrendatário pagará a renda sem que possa ser despejado… porque vive lá com a família. Uma bela maneira de resolver a falta de habitação para arrendamento em nome do humanismo. Quem o faria nestas condições?

5.

Estes três socialistas, com este artigo, estão a cavalgar deliberadamente  a onda avassaladora do politicamente correcto e do wokismo, cujos estragos acabam de ser bem visíveis nos Estados Unidos, ao vermos eleito o mais anti-wokista que é possível imaginar. Mas, sobretudo, parece que estão a combater mais o PS, este PS, do que a defender o seu humanismo; que estão a alinhar numa onda, recentemente interpretada por Vieira da Silva e por quantos apontaram o dedo em riste ao SG do PS a propósito das suas declarações em torno do orçamento; que se está a formar uma corrente para lançar uma alternativa à liderança de Pedro Nuno Santos, apeando-o da liderança. Isto para não falar da preciosa ajuda (talvez seja isso) que estão a dar ao seu próprio partido para as próximas eleições autárquicas de Loures. Mas verdadeiramente não sei se têm algum candidato alternativo que queira deslocar-se de Ferrari para a Presidência da Câmara insatisfeitos com o burro em que, nas próximas eleições, certamente se deslocará o candidato Ricardo Leão, depois de se ter demitido da distrital de Lisboa, para, mais uma vez, e ao contrário de Costa, ganhar a Câmara de Loures para o PS.

6.

António Costa faria melhor se se concentrasse nos dossiers da União Europeia e se tudo fizesse para ver esclarecida a sua situação no famoso inquérito em que continua envolvido. Até pela delicadeza da situação, inclusive no plano ético. O anúncio público do inquérito levou-o a entregar de imediato a maioria absoluta do PS nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa (e talvez a decisão tenha sido errada), mas já não fez o mesmo ao não entregar o convite para Presidente do Conselho Europeu nas mãos da senhora Ursula von der Leyen, apesar de se manter sob suspeita judicial (e também talvez a decisão tenha sido, de novo, errada). A verdade é que se trata de uma questão com relevo nacional e internacional e, ao contrário do que diz o novo Procurador-Geral, os responsáveis pela justiça têm o dever de se pronunciar rápida e definitivamente sobre o assunto, vista a relevância do cargo para que António Costa foi designado. Mas não, logo aceitou rapidamente o cargo ainda que o mesmo inquérito se mantivesse plenamente activo (como está). A ética que o moveu em Portugal para abandonar o cargo de PM deveria tê-lo movido também no caso da União Europeia. A ética do PS, que deve ser só uma, seria, assim, melhor defendida se António Costa não revelasse ter duas, de acordo com as suas conveniências pessoais: uma aqui e outra na Europa.

7.

Esta sua intervenção é verdadeiramente infeliz a todos os títulos pois constitui um grave ataque ao seu partido de sempre e uma bênção a um governo em graves dificuldades perante o que aconteceu na Área Metropolitana de Lisboa e, agora, ao que parece, com o socorro de emergência do SNS. Não me admiraria que, feitas bem as contas, no fim, o culpado disto tudo ainda acabe por vir a ser o Presidente da Câmara da Loures, Ricardo Leão. Luís Montenegro deverá estar radiante com esta generosa dádiva de António Costa. E, mais uma vez, Pedro Nuno Santos se sentirá visado com esta infeliz e inoportuna intervenção do antigo líder. E, com ele, o PS.

8.

Têm sido cometido erros, certamente, mas, quanto a mim, o maior deles foi o de António Costa ao entregar inopinadamente a maioria absoluta do PS nas mãos de MRS para que, assim, se abrisse, e sem obstáculos simbólicos, e até na condição de vítima inocente, uma clareira para a sua caminhada rumo a Bruxelas. Agora acrescentou-lhe mais este. Como disse, e bem,  Duarte Cordeiro: tratou-se de um acto arrogante e desnecessário.

9.

Depois, eu, que sou militrante do PS há várias décadas, confesso que não me revejo minimamente na defesa da minha honra política por esse arauto do socialismo mundial chamado Silva Pereira, porque de nada me lembro que possa fazer dele um autorizado apóstolo de uma qualquer fé socialista, a não ser da sua.

10.

Não sei, mas esta iniciativa mais me parece um teste à liderança de PNS e à consistência dos seus apoios no interior do próprio partido e até da sua própria maioria. Se pensarmos no modo como, ainda recentemente, certos socialistas encartados se referiram à sua liderança a propósito da questão do orçamento não parece ser desadequada esta leitura, reforçada agora pelas divisões internas que o assunto já está a provocar, inclusivamente na área da própria maioria do secretário-geral, onde infelizmente pululam muitos defensores acirrados do politicamente correcto, do wokismo e da ideologia de género. E esta é uma matéria que deveria merecer a mais atenta das reflexões. No que me toca, a ela me dedico detalhada e criticamente na obra que apresentarei no Salão Nobre da Câmara Municipal da Covilhã, no dia 27 de Novembro, pelas 18.00 (em particular na parte IV): “Política e Ideologia na Era do Algoritmo” (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, 262 pág.s). Se se quiser assim entender, este meu livro poderá ser considerado como um humilde contributo para os novos Estados Gerais do PS.

NOTA

O texto integral da Recomendação, proposta pelo CHEGA, aprovada em sessão de Câmara com os votos favoráveis do PS, do PSD e do CHEGA e com o voto contra do PCP. Texto:

76.ª Reunião Ordinária
30/10/2024
N° 696/2024
Recomendação
 Alteração do Regulamento Municipal de Habitação.

“Nos últimos dias, temos assistido a um aumento preocupante de atos de vandalismo e desacatos em diversos bairros municipais de Loures e não só, perpetrados alegadamente por indivíduos que habitam estas áreas. Os distúrbios em vários concelhos da Área Metropolitana de Lisboa acontecem após a morte de um homem baleado pela PSP, no bairro do Zambujal, no concelho da Amadora. Segundo a PSP, o homem pôs-se “em fuga” de automóvel depois de ver uma viatura policial e “entrou em despiste” na Cova da Moura, onde, ao ser abordado pelos agentes, terá resistido à detenção. É imperativo que a gestão da habitação municipal leve em consideração a responsabilidade cívica dos inquilinos. A manutenção da ordem e da tranquilidade nas nossas comunidades deve ser uma prioridade. Esses comportamentos não apenas comprometem a segurança dos moradores, mas também prejudicam a convivência pacífica e a qualidade de vida nas comunidades. Na madrugada da passada quinta-feira, dia 24 de outubro, um autocarro foi incendiado em Santo António dos Cavaleiros, após o arremesso de diversos cocktails molotov, tendo o motorista da Caris Metropolitana sofrido ferimentos graves no tórax eno rosto, e está agora na unidade de queimados do Hospital de Santa Maria. Neste episódio para além deste autocarro, foram incendiados mais dois carros. Na noite anterior já tinham sido registados desacatos em várias localidades do concelho;

Considerando que a habitação municipal deve ser um direito acessível a todos, é fundamental garantir que os recursos habitacionais sejam destinados a cidadãos que repeitam as normas sociais e legais. A presença de indivíduos que cometem actos ilícitos pode comprometer a segurança e a qualidade de vida de todos os lourenses. Assim, considera o vereador do partido CHEGA, e como forma de dissuadir a prática de quaisquer tipos de ilícitos, por parte dos arrendatérios das habitações municipais que, ao ser provada a participação e/ou incentivo nestes ilícitos, que seja dada imediata ordem de despejo, recomendando para isso ao executivo municipal que seja feita a segunda alteração ao Regulamento de Habitação do Município de Loures”. JAS@11-2024Costa2024_3Rec

Poesia-Pintura

LUZ

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Paraíso”, JAS 2022
Original de minha autoria
Novembro de 2024
Paraíso

“Paraíso”. JAS 2022 – 68×84, papel de algodão (3210gr) e verniz Hahnemuehle, Artglass AR 70, em mold. de madeira

POEMA – “LUZ”

TANTA LUZ
Neste meu céu,
Esse imenso
E cintilante
Mar
Que um dia
Foi todo meu
E deu asas
Ao olhar,
Espelho
Dos sonhos
De amante
Onde a fantasia
Nasceu
Pra lá poder
Navegar.

ESPELHO
 Branco
Que te ilumina
Na noite escura
E fria
Onde brilham
Os teus olhos,
Luar
Prateado
Desta minha
 Fantasia.

E QUANDO
Nos sonhos
Te vejo
Iluminada,
Entro na porta
Branca
Que me leva
Ao paraíso...
.......
Levado
Por uma fada.

E VOO, VOO,
Deixando
Para trás
 O meu jardim
Encantado,
Os bailéus
Da casa-mãe
Desenhados
A rigor,
A quelha da minha
Infância,
Manhãs brancas
De surpresa
Em puríssimo
Alvor.

NOS SONHOS,
(Em todos eles)
Caio das nuvens
Brancas
Como Ícaro,
Quase cego
Da sua luz
Até te encontrar
No jardim
Vestida de todas
As cores
Que povoam
As cidades
Dos poetas
E pintores
Com aromas
De jasmim.

É ESSA
Cintilante
Luz
Que ilumina
O que me sobra
De ti,
O que ainda
Me seduz
Nos sonhos
Em que te pinto
E que sempre
Me sorri.

É SONHO,
É tudo quanto
Me basta
E nada mais,
É tudo
O que eu preciso
Pra te sonhar
Comovido
À beira
Do nosso cais.

ParaísoRec

Notícia

“SYMPOSION” NA QUINTA DOS TERMOS

Por João de Almeida Santos

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Imagem da minha intervenção sobre o “Symposion”, de Platão

ONTEM, 8 de Novembro, tive o gosto de participar numa interessante iniciativa da QUINTA DOS TERMOS (QT), em Carvalhal Formoso (Belmonte): um Jantar-Debate sobre O VINHO e sobre o “SYMPOSION”, de Platão.

1.

Numa interessante, e muito ilustrada, conferência sobre “Vinho é Civilização”, o Prof. Doutor Virgílio Loureiro, consultor da QT desde a sua fundação, propôs-nos uma viagem no tempo centrada sobretudo nos primórdios da cultura e da arte de fazer vinho, muitos séculos antes de Cristo, mas também sobre a cultura do vinho até aos nossos dias. Uma intervenção que ajudou a criar um belo enquadramento para a conferência que se seguiria, a meu cargo: O “SYMPOSION”, de Platão. Tive, então, oportunidade de discorrer sobre o “Symposion” (do séc. IV a.C), de certo modo o modelo destes jantares culturais que a QT passará a organizar no âmbito daquela que virá a ser a sua futura Academia, uma organização que passará a promover eventos que associarão a cultura ao vinho. De resto, a própria palavra Symposion, que nós traduzimos por Banquete, refere-se mais ao momento da bedida do que ao da comida: symposion é composto pela preposição syn (com) e pelo substantivo pósis, -eôs, que significa precisamente bebida (aqui, o vinho). Beber acompanhado era, pois, o significado da palavra que nós traduzimos por banquete. Houve também música, no início e no fim do jantar:  piano e flauta, respectivamente por Inês Andrade e por Marina Camponês. Foi também apresentado um excelente novo vinho da QT, o “Lúcifer”.

2.

Sou um regular consumidor dos produtos da QT e amigo de longa data dos seus proprietários, Engenheiros João Carvalho e Lurdes Carvalho, e foi com muito gosto que, por ocasião do Banquete da QT, regressei à filosofia antiga e a esta belíssima obra de Platão, tão celebrada ao longo dos tempos, podendo partilhar algumas ideias sobre a filosofia, a arte e o amor aos longo dos séculos com os cerca de 60 convivas presentes, inspirado em Platão.

3.

O pretexto para a realização do famoso SYMPOSION, de Platão, foi a vitória do poeta grego Ágaton numa exigente competição entre tragédias, o género literário mais celebrado na Grécia antiga e que Nietzsche considera o modelo perfeito de arte, devido à perfeita harmonia entre o “espírito dionisíaco” e o “espírito apolíneo”, tendo-se reunido neste jantar-homenagem importantes personagens da cultura grega, como Sócrates, Aristófanes, Alcibíades, Fedro, Erixímaco, Pausânias e, naturalmente, o homenageado Ágaton. Todos eles falaram sobre o tema proposto. E o tema do debate foi, não o vinho, que, todavia, sempre acompanhava estes banquetes, mas o ELOGIO DO AMOR. Na minha intervenção, tive ocasião de evidenciar a influência que esta obra teve na cultura ocidental, em especial na arte, até aos nossos dias e a centralidade do tema AMOR na expressão artística, muito em particular na poesia e na pintura.

4.

Tratou-se, pois, de um excelente jantar, acompanhado de demonstrações de vinhos da QT  – brancos e tintos das três quintas de onde provêm as uvas, Carvalhal Formoso, Castelo Branco e Pocinho. Por isso, os meus parabéns ao director-geral, o meu querido Amigo Pedro Carvalho. Serei, naturalmente, membro da futura Academia e terei ocasião de propor um Symposion sobre vinho e poesia. Afinal, Platão também era poeta.

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