REFLEXÕES EM TORNO DO SYMPOSION, DE PLATÃO
Por João de Almeida Santos

“Aphrodite”. JAS 2024, baseada numa cópia romana da deusa (Museu Arqueológico de Nápoles)
REGRESSEI recentemente à filosofia grega, desenvolvendo uma reflexão em torno do Symposion, de Platão, uma obra do século IV a.C., num evento promovido pela prestigiada empresa vitivinícola Quinta dos Termos (Carvalhal Formoso, Belmonte), de certo modo inspirado no modelo grego. Symposion é o nome em grego do que nós designamos por Banquete, mas verdadeiramente ele refere-se mais ao momento da bebida (vinho) do que ao repasto propriamente dito, o deípnon, pois a palavra Symposion designa em grego precisamente bebida com, de syn + pósis, -eôs. Beber acompanhado, portanto.
1.
Naturalmente que, como é óbvio, algumas das características que estavam presentes naqueles banquetes gregos não são transponíveis para os dias de hoje – por exemplo, comiam deitados, em leitos, e os escravos lavavam os pés dos convidados. Mas, como veremos, há neste Symposion de Platão, muito de intemporal: por exemplo, a celebração da vitória do poeta Ágaton numa exigente competição literária entre tragédias. O sucesso muitas vezes é celebrado com banquetes. Mas nem sempre eles incluem, como este, o de Platão, momentos de cultura.
2.
A ideia de celebrar num banquete a vitória numa qualquer actividade humana é, pois, antiga e remonta não só à Grécia do século IV a. C, mas também à Florença do século XV, ao tempo dos Medici, como reposição integral e ao vivo do Symposion. Este género literário, o da tragédia grega, em que Ágaton, o protagonista, se destacou, é considerado por Nietzsche, em “A Origem da Tragédia”, o maior da arte grega por conseguir estabelecer uma harmonia perfeita entre o “espírito dionisíaco” e o “espírito apolíneo”, ou seja, entre o sentimento e a razão, entre as pulsões da alma e a sua estilização espiritual. E foi por Ágaton ter recebido este prémio que o Symposion foi realizado.
3.
Os banquetes eram uma prática institucionalizada na Grécia Antiga e este, o de Platão, viria a conhecer revisitações ao longo dos séculos, na literatura, na pintura, na música, na arte, em geral. Referências é possível encontrá-las no historiador e filósofo Plutarco, nos escritores Ateneu e Petrónio (séc.s I e II, d. C.); mas também na Florença renascentista e na iniciativa de Lorenzo de’ Medici de passar a celebrar o nascimento e a morte de Platão com um banquete, com a leitura integral deste texto e com representações vivas das intervenções dos participantes no Banquete; no humanista italiano Marsilio Ficino; nas inúmeras edições que conheceu em toda a Europa, no século XVI; na pintura de Botticelli, Rubens ou Canova; na filosofia de Kierkegaard; no romance; em Thomas Mann, como veremos, ou em André Gide; na música e até mesmo em televisão. Tudo isto apenas para sinalizar a importância do Symposion e a sua influência na cultura ocidental (2018: 35-39) *.
4.
Este Symposion ficou também famoso e celebrado porque nele entravam personagens de grande importância na vida cultural ateniense, logo a começar pelo famoso filósofo Sócrates, mas incluindo também o seu admirador Alcibíades e o comediógrafo e seu crítico Aristófanes (por exemplo, na comédia “As Nuvens”) ou Ágaton, o vencedor do prémio, entre outros, como Fedro ou Pausânias. E, claro, pela influência do seu autor, o grande Platão, além dos relatores Apolodoro e Aristodemo com os quais começa a obra.
5.
Os banquetes tinham uma estrutura bem definida (as mulheres não era admitidas, a não ser, por exemplo, na qualidade de músicas ou noutras ocasiões muito especiais): o jantar propriamente dito, chamado deípnon, a que se seguiam as abluções (purificação), os cânticos aos deuses, as libações (a fase da bebida, o symposion propriamente dito) e a componente cultural, o debate acerca de temas de cultura.
6.
Neste caso, a tradição cumpriu-se, mas de forma moderada, na fase das libações, pois todos os intervenientes já tinham usado e abusado delas no dia anterior, e sempre na celebração da vitória de Ágaton, encontrando-se, por isso, fisicamente diminuídos, isto é, com ressaca, o que levou a que fosse aconselhado a todos os intervenientes beberem somente de acordo com o apetite, mas moderadamente, pois iria ser privilegiado o debate cultural sob um tema proposto por Fedro, um dos convivas.
7.
Qual foi, pois, o tema proposto por Fedro (nome que dá título a um dos diálogos de Platão, precisamente sobre o amor) e quem eram os intervenientes no debate? O tema proposto, que foi imediatamente acolhido por todos, foi o elogio do amor, sendo os participantes no debate, por ordem das intervenções, Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Ágaton e Sócrates, este ajudado pelo relato que fez do que a sábia Diotima um dia lhe relatara acerca do amor. A última intervenção, já tardia, foi a do célebre Alcibíades (considerado como o amante de Sócrates), já um pouco embriagado, mas ainda lúcido, que se centrou exclusivamente no elogio sem limites, não do amor em si, mas de Sócrates, ou, se quisermos, do amor que ele próprio professava por ele, um amor incondicionado e de certo modo não correspondido na dimensão também física em que ele o desejava, como veremos. Este tipo de relação era muito comum e aceite entre os gregos, a chamada relação homoerótica, incluindo a própria pederastia, vista como relação de integração e de educação para os valores superiores dos jovens – desde que já maduros e conscientes, e não sujeita a impulsos menos nobres ou por pura lascívia – pelos adultos para que pudessem alcançar a virtude e a sabedoria.
8.
O Symposion termina com os últimos três resistentes: Agatón, Aristófanes e o próprio Sócrates, que foi o último a abandonar o Symposion, já pela manhã. Ele era, segundo Alcibíades, sempre e em tudo, o mais resistente.
9.
Qual é o interesse desta obra de Platão? A reflexão sobre o amor, algo que foi ao longo da história da cultura ocidental um dos temas mais tratados pelos maiores artistas da cultura ocidental, muitas das obras, como vimos, por influência desta obra de Platão. E, digamos, tema que tem dominado em absoluto a poesia ao longo dos séculos, não só devido à delicadeza, à centralidade, ao poder e à universalidade do amor, mas também por ter sido, et pour cause, sempre sujeito a um forte condicionamento social, precisamente devido à influência daquelas suas características na vida das sociedades, desde o plano público até ao plano da mais íntima relação. Se é verdade que a relação homem-mulher traduz ao longo dos séculos o nível de desenvolvimento civilizacional das sociedades (Marx, nos Manuscritos de 1844 assim a considera), também é verdade que os desvios à norma dominante, nesta relação, foram sempre objecto de sancionamento social e moral, de repressão, e, por isso, objecto de conversão estética, de fuga, de sublimação por parte dos que, sendo agentes de cultura, sofriam mais directamente na carne essa repressão. A história da poesia e a da pintura e as biografias dos seus maiores têm muito a dizer sobre isto, com poetas e pintores a encontrarem na arte uma forma de superior resolução das suas próprias vidas e de libertação das amarras sociais à sua orientação amorosa ou sentimental. A arte como salvação, sublimação dos infortúnios existenciais, sobretudo amorosos. Alguns nomes: Leonardo da Vinci (por exemplo, o seu amor pelo famoso “Salai”), Michelangelo Buonarroti (o seu colaborador Gherardo Perini), Caravaggio (os jovens de Roma), Óscar Wilde (que, por isso, foi preso), Walt Whitman, Paul Valéry, Verlaine, Rimbaud, Mário de Sá Carneiro ou até, talvez, Fernando Pessoa (embora no caso do seu eventual homoerotismo se verifique uma certa nebulosidade, não sendo sequer a monumental biografia de Richard Zenith sobre Pessoa muito clara e definitiva sobre o assunto). E tantos outros. Génios da pintura e da poesia O mesmo se poderá dizer de Thomas S. Eliot, prémio Nobel da Literatura (1948), cuja orientação sexual (o homoerotismo) é ainda objecto de debate e de incerteza. E até se discute também a orientação sexual de Shakespeare (de novo o seu homoerotismo), encontrando-se nos seus Sonetos o elogio do amor por um jovem, “Fair Youth” (por exemplo, no CXVI Soneto). A que se poderia ainda juntar os amores heterosexuais frustrados ou inconsequentes, como, por exemplo, o de Stendhal ou o da nossa grande, mas tão infeliz, Florbela Espanca. Ou seja, a grandeza artística como superação das fracturas, das cicatrizes existenciais e sociais dos artistas. Através de um salto na eternidade. Em geral, na sociedade e na cultura gregas, o tema da pederastia e do homoerotismo era um topos habitual no debate, pela razão que já referi. E também aqui, no “Banquete”, com Alcibíades a contar, perante os convivas, os seus avanços falhados para com o amado mestre Sócrates.
10.
É claro que o elogio do amor tem em Platão uma clara dominante que tem a ver com a sua própria filosofia, pondo a visão de Sócrates, pela voz de Diotima (2018: 103) – chamada por ele ao discurso -, como a mais próxima da sua própria visão. Há uma passagem no Banquete, precisamente na fala de Diotima, muito elucidativa a este propósito, e que refiro textualmente. Cito:
“E aqui tens o recto caminho pelo qual se chega ou se é conduzido por outrem aos mistérios do amor: partindo da beleza sensível em direcção a esse Belo é sempre ascender, como que por degraus, da beleza de um único corpo à de dois, da beleza de dois à de todos os corpos, dos corpos belos às belas ocupações e, destas, à beleza dos conhecimentos, até que a partir destes alcance esse tal conhecimento, que não é senão o do Belo em si, e fique a conhecer, ao chegar ao termo, a realidade do Belo” (2018: 122).
Belo em si e por si – a finalidade do amor superior, aquele que está alinhado com o Bem e com a Verdade, com a Aphrodite celeste, como diria Pausânias, e que não se reduz à beleza corporal, nem sequer à imortalidade que, por via do amor e do prazer que lhe está associado, pela procriação, garante a reprodução da própria espécie. Aliás, Thomas Mann (que também poderia ser incluído na lista de nomes que já citei), em “Lotte em Weimar – O Regresso da Bem-Amada” (de 1939), identifica a procriação como luxúria, enquanto o amor expresso no beijo, diz, é alegria, é a “poesia do amor”. Ou então, como diria Honoré de Balzac, o amor é mesmo a poesia dos sentidos. Algo, que está, pois, para além do princípio do prazer. O livro de Thomas Mann “Morte em Veneza” tem muito daquilo que se encontra em Platão: a relação estilizada e homoerótica entre o aclamado escritor Gustav von Aschenbach e o jovem e belíssimo Tadzio. O belo em si e por si encarnado no corpo divino de um jovem polaco contemplado por um Aschenbach literalmente possuído por essa irresistível beleza que acabará por conduzi-lo à morte, nessa também bela Veneza, infestada com a peste (e que ele podia ter abandonado a tempo). O filme, com o mesmo nome, de Luchino Visconti (para mim um dos maiores realizadores de sempre, também ele integrando a fileira do homoerotismo) é absolutamente expressivo e belíssimo sobre esta relação homoerótica. “Ecos do Banquete platônico ressoam na escrita de Mann”, em “Morte em Veneza”, diz um autor brasileiro, Daniel Barbo (2014: 59) **. E diz mais: “Além do fundo comum classicista, Goethe, Nietzsche, Freud e Mahler integram a polifonia de Morte em Veneza. A obra simboliza paixão e degradação, Eros e Thánatos. Aschenbach é hipnotizado por Tadzio. Hýpnos, o irmão gêmeo de Thánatos, anda de mãos dadas com Eros” (2014: 61). O amor e a morte. Palavras certeiras, estas, pois a paixão de Aschenbach acaba por se situar numa esfera tão elevada que as circunstâncias terrenas (por exemplo a devastadora peste que assolava Veneza) já pouco importam…
11.
No Symposion, e em geral na filosofia de Platão, estamos perante uma dialéctica ascendente que, por intermédio de Eros, que não é mortal nem imortal, eleva até ao ideal supremo – ao Tò Agathón, o Bem. O amor que visa a imortalidade, não só pela descendência, mas também pelas obras e, destas, sobretudo, pelas obras do espírito, pela elevação espiritual. Uma dialéctica ascendente que não prescinde do mundo sensível (o Eros tem uma dupla condição, terrena e divina), mas que se eleva sobre ele até a um plano ideal, o que garante a imortalidade. E o Eros é, neste processo, o grande mediador entre deuses e homens, pela sua natureza híbrida, filho como é da Pobreza-Penía e do Engenho-Poros, mas que por isso mesmo pode conduzir, nesta dialéctica ascendente, ao ideal supremo – o Belo em si e por si (Tò Kalón), ou o Bem (Tò Agathón), valores que, de resto, em Platão são indissociáveis. O Eros tem uma natureza híbrida, sim, mas, no fim, por seu intermédio, a alma vence sobre o corpo e o espírito vence sobre a alma, a caminho da Beleza em si. Como exemplo prático e humano poderia referir a história contada por Alcibíades acerca de um encontro com o amado Sócrates, que, amando também ele, nunca se deixa, todavia, capturar pelos avanços sexuais de Alcibíades. Vejamos, por exemplo este passo muito significativo, no Symposion, do elogio de Sócrates por Alcibíades:
“Pois certifico-vos, pelos deuses e pelas deusas, que, depois de passar a noite com Sócrates, nada mais tinha acontecido, ao levantar-me, do que se tivesse dormido com o meu pai ou com um irmão mais velho” (2018: 140)
O que aqui temos é uma valorização da esfera ética o sobre o corpo, personalizada em Sócrates, visão que esteve também presente nas intervenções dos outros convivas, e que espelha a própria visão de Platão. Visão quen poderá ser melhor compreendida através da famosa “Alegoria da Caverna”, no início do Livro 7 da obra maior de Platão A República (Politeía): a realidade, para os confinados na caverna, confunde-se com imagens do que se passa fora da caverna onde estão os prisioneiros, imagens essas projectadas como sombras na parede do fundo da caverna, provocando um efeito de ilusão sobre a realidade. Como os que estão na caverna nunca de lá saíram, julgam, pois, que a realidade se identifica com as sombras que vêem projectadas na parede. E se algum deles sair verá como é difícil adaptar-se à luz do sol, acontecendo, com alguns, acabarem por preferir o reino das sombras, identificado, esse sim, com a realidade. Transpondo para o amor: o amor carnal como ilusão do verdadeiro amor para os que nunca se libertaram das amarras do mundo sensível, do culto físico do corpo, do mero prazer como seu fim último.
12.
Esta dimensão ideal do amor encontra-se, pois, enquadrada de diversas formas nas intervenções dos participantes no Banquete. Vejamos.
- na inspiração divina e virtuosa do amante em relação ao amado e o heroísmo provocado pelo amor, o mais antigo dos deuses (Fedro);
- o amor celeste, inspirado na Afrodite celeste (a deusa do amor) – e não na Afrodite popular (o amor vulgar) -, centrado na alma (masculina, não feminina), e não no corpo. Amor que visa exclusivamente a virtude e a sabedoria e que permanece durante toda a vida (Pausânias);
- na dialéctica entre opostos visando, no amor, a harmonia entre eles, desde os corpos singulares até à própria natureza em geral (Erixímaco, médico);
- o amor que visa restaurar a nossa primitiva natureza como seres duplos (todos têm tudo em duplicado) masculinos, femininos e andróginos (metade homem, metade mulher), ao reencontrarmos a nossa outra metade, perdida por castigo dos deuses, e ao voltarmos a unir-nos a ela, depois de a procurarmos movidos pela saudade e pelo amor, como busca dessa parte da nossa identidade que perdemos (2018: 85; Aristófanes); Freud cita esta fala de Aristófanes no seu livro Além do Princípio do Prazer-;
- o amor, o mais feliz dos deuses (e o mais jovem), dotado de todas as qualidades que o tornam sofisticado e delicado, é impulsionador da beleza e da concórdia e anima no prazer e consola no sofrimento (Ágaton).
Portanto, visões ideais do amor que sobrelevam a sua dimensão puramente orgânica, circular e passageira, confundida simplesmente com o prazer. No fundo, a luxúria, como diria Thomas Mann.
13.
Diotima-Sócrates sublinha o desejo de imortalidade no accionamento do amor, seja ele físico e reprodutivo, seja ele espiritual e fautor de perpetuação do criador. O amor é, sim, filho da Pobreza e do Engenho e é desta sua dupla condição que resulta a sua qualidade de mediador (daímon, divindade que exerce influência sobre o destino dos homens) entre os homens e os deuses e a sua capacidade de nos impulsionar em direcção ao Belo em si, ao Bem, mas também à Verdade (Alêtheia, no sentido de desvelamento, não oculto), como vimos na passagem que já transcrevi.
14.
Este aspecto merece algumas considerações, um curto excursus elucidativo em relação à arte, às suas razões mais profundas. Muito se tem dito quando se fala do idealismo em filosofia, por exemplo, de Platão ou do próprio “amor platónico”, da sua aparente irrealidade, do seu carácter onírico. Não é o que eu penso e creio mesmo que não o pensam de igual modo os artistas, os poetas, os pintores, os romancistas, os compositores. Todos os que trabalham com a imaginação, a fantasia, com símbolos, com matéria intangível, com ideias e formas, todos os que criam, com desejo de eternidade ou com desejo de resolver a própria vida com a arte, com a poesia, com a pintura, com a música, movidos pela dinâmica da sua própria relação com a vida – todos eles encaixam plenamente neste chamado idealismo que, frequentemente, também assume a forma do chamado “amor platónico”, o amor impossível, mas real, como teria sido o de Aschenbach. A um certo momento da sua vida, Beethoven ficou surdo, não ouvia o que compunha, perdeu capacidade sensorial, orgânica, mas continuou a compor e a “ouvir” com os sentidos interiores (a memória auditiva) o que compunha na pauta. Produzia arte com os sentidos interiores e com o espírito, através da notação musical. Por exemplo, a nona sinfonia. Estamos no domínio do imaterial, do intangível, sim, mas que faz parte da vida, talvez do seu lado mais belo. Um poeta que, carregando a dor do seu maior fracasso amoroso, homoerótico ou heteroerótico, decide transpô-lo para a poesia como forma de o resolver superiormente. Resolvê-lo, elevando-o. E são tantos os poetas nessas condições. A nossa fantástica Florbela Espanca, por exemplo, com os seus sonetos. O grande escritor francês Stendhal, que se apaixonou desesperadamente pela senhora Matilde Viscontini, carbonária e divorciada de um general polaco, até escreveu um livro sobre o amor “De l’Amour” (1822), inspirado nela, sendo também certo que ela está presente nos seus romances, designadamente em “Le Rouge et Le Noir” (Mathilde ou, sobretudo, Madame de Rênal). É a resolução da vida pela escrita, como viria a dizer Robert Musil. E talvez não tivesse sido sequer o mesmo Stendhal se não se tivesse cruzado com a senhora Matilde Viscontini e com o fracasso que daí resultou (para ela Stendhal era eroticamente frívolo). A atenuação da sua infelicidade foi obtida certamente pela arte. Pois bem, na verdade, é possível reconhecer que o amor é o principal propulsor da poesia, como, de resto, diz Ágaton de Eros, o deus do Amor, no Symposion:
“e para que também eu preste as honras à minha arte (a poesia, a tragédia), tal como Erixímaco (médico) prestou à sua, começo por falar na sabedoria do deus como poeta: um poeta tão hábil que sabe, inclusive, transmitir a outros a sua arte! Certo é que todo o homem bafejado pelo Amor, ‘mesmo antes avesso às Musas’, adquire o dom da poesia… E eis o testemunho ideal para mostrar a excelência do Amor em todo o género de criação ligado às artes” (2018: 92).
Mais palavras para quê? O amor, homoerótico ou heteroerótico, concede o dom da poesia, diz Platão pela boca do anfitrião do Symposion.
15.
No Symposion encontramos, sim, esta tensão, presente no amor, que visa a superação do estado de facto daquele que ama, uma tensão que tende para a imortalidade, em diversas dimensões, desde a gestação para a reprodução da espécie até ao trabalho que produz obra que persiste para além da vida do seu criador, ao conhecimento, ao Belo, esse, sim, imorredouro e universal e que, por isso, torna imortal o seu criador. Trata-se, aqui, de um importante deus do Olimpo, Eros, deus todo-poderoso, que, segundo Fedro, o poeta grego Hesíodo e o filósofo pré-socrático Parménides consideravam primordial filho do Caos e contemporâneo da Terra (2018: 37), “o mais antigo e venerável dos deuses como o que tem mais poder para levar os homens a alcançar o mérito e a felicidade”, na vida e no além (2018: 61). Em todas as intervenções dos participantes no Banquete a dimensão espiritual sobreleva, domina, ficando a dimensão física, corpórea, sexual num plano inferior, mesmo aquela que supostamente leva à eternidade através da procriação e da reprodução da espécie. Mesmo essa que, afinal, era considerada por Thomas Mann (mas num romance, entenda-se) como Luxúria. Gustav von Aschenbach via em Tadzio, não a luxúria, mas a imagem ideal da Beleza no corpo divino do jovem Tadzio, pelo qual se apaixonou perdidamente até à morte. O amor superlativo (neste caso, homoerótico), o Eros, e a morte, Thánatos, que sobreveio, em Aschenbach, na fascinante cidade de Veneza. Palavras que poderiam ser subscritas por Freud. O belíssimo filme de Visconti permite uma extraordinária visualização de tudo isto.
16.
Eu creio que uma parte muito importante da filosofia só pode ser entendida com as categorias da arte porque é a arte que melhor interpreta a força existencial das ideias, nos leva a acreditar não só na sua existência como parte importante da vida, mas também no seu poder sobre ela, na sua capacidade de fascínio, de sedução e de mover o mundo numa direcção muito melhor do que aquela a que o puro pragmatismo nos conduz. O sonho comanda a vida, dizia o poeta. E basta pensar no poder da música. Mas esta dimensão pode estar presente na mais simples das actividades práticas: num quadro, num vinho, num livro, num objecto. Sim, mas como algo que transcende a sua mera função prática: o valor monetário; o mero prazer físico da bebida; as instruções práticas contidas num livro; o valor instrumental de um objecto. Não, algo que transcende estes valores meramente instrumentais, quando quem os executa põe neles algo a alma e a transcendência temporal.
17.
Um exemplo da relação entre a filosofia e a arte: a filosofia do grande Nietzsche que, no meu entendimento, só pode ser entendida com as categorias da arte. Ou a de Platão, que também era poeta. A filosofia tem na arte a sua mais potente aliada, aquela que lhe pode conferir realismo e poder de sedução. O Nietzsche quando falava, em “A Origem da Tragédia”, na exigência de equilíbrio entre o “espírito apolíneo” e o “espírito dionisíaco”, o que estava a dizer é que o espírito é vazio se não tiver dentro de si as pulsões magmáticas da alma, o eros, porque é na alma que se localizam os sentimentos imprescindíveis para que a obra de arte, por exemplo, a poesia, já formalmente trabalhada pelo espírito, tenha sentido, não seja pura retórica, pura forma, puro virtuosismo de palavras e de ritmo. Puro exibicionismo. Mas isto é o que defende também o nosso famoso neurocientista António Damásio, por exemplo no livro Sentir e Saber (de 2020). Sim, o deus Dionísio, que é o deus do teatro, mas também o deus do vinho, as libações, os cânticos, o perfume inebriante da vida (ou do jasmim), o estremecimento da alma perante um clarão que quase cega (de amor), como no poema de Baudelaire “À une Passante”, em “Les Fleurs du Mal”, esse deus e essas pulsões têm de estar lá a estimular a vida que, depois, Apolo há-de sofisticar com a maquinaria poética, com o duro trabalho do espírito. No fundo, poder dar asas ao desejo, à vontade, ao sentimento, para além dos fins meramente pragmáticos, imediatos. Estes dois deuses, tal como a alma e o espírito, estão condenados a conviver e a cooperar para gerarem obras de arte que resolvam a vida, a imortalizem: como dizia a Marguerite Yourcenar, em Le Temps ce Grand Sculpteur, pela boca de Michelangelo Buonarroti, dirigindo-se ao seu amante: “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”. A minha obra de arte imortalizar-te-á naquilo que só eu pude ver em ti, porque te amei. E porque partes… Mas, assim, com a arte, na partida, eu não te perderei, pois (só) pela arte é possível possuir (isto dizia também o Pessoa do Livro do Desassossego) e só pela arte é possível ver aquilo que mais ninguém consegue ver, sobretudo quando o motor cognitivo é o amor. A arte ajuda-nos a ver o que, de outro modo, ficará oculto ao nosso olhar. E o tempo, esse grande escultor, torna-se assim cúmplice da arte e ambos retiram da vida passada e vivida o seu núcleo aurífero, aquele que resiste ao natural efeito de erosão, projectando-o na imortalidade, eternizando-o. A arte, por isso, é alquímica e o seu principal motor é o amor, a energia propulsora que projecta os seres humanos para um tempo e um espaço que já se situam para além deles próprios. É disto que, afinal, fala o Symposion, em diversas formas e discursos a que o pensamento de Platão dá unidade estratégica, que é esta que tenho vindo a referir. De resto, e para finalizar, sempre poderia recorrer à psicanálise, a Sigmund Freud, e referir as duas pulsões vitais que dominam a dialéctica da nossa existência: o thánatos, a pulsão da morte, e a pulsão representada pelo Eros, pelo amor, a pulsão da vida, que, felizmente, tende sempre a levar vantagem sobre aquela outra pulsão, mantendo-nos vivos, no presente e no futuro, através da procriação que, no meu entendimento, é mais do que luxúria, porque se inscreve na própria dialéctica da natureza. Esta relação está vitalmente muito bem retratada em “Morte em Veneza”: Aschenbach que, permanecendo em Veneza, pois é incapaz de renunciar à visão/paixão de e por Tadzio, o divino num corpo, acaba por morrer nesta cidade única no mundo. Thomas Mann e, depois, Luchino Visconti. Uma obra deste enorme romancista, Thomas Mann, que muito deve ao classicismo grego, designadamente a Platão. Também a psicanálise coloca o Eros no centro da nossa dinâmica vital. E, que mais não fosse, só esta conclusão de uma teoria que está reconhecida como uma importante especialidade médica bastaria para evidenciar a pregnância e o realismo da teoria que subjaz ao Banquete de Platão.
NOTAS
* Veja a introdução a Platão, O Banquete, Lisboa, Relógio d’Água, 2018, pág.s 35-39, de Maria Teresa Schiappa de Azevedo, que também o traduziu do grego e completou com um rico acervo de notas. Mas veja também a excelente edição da Garnier-Flammarion (Paris, 1964, com tradução, introdução e notas de Emile Chambry, pág.s 5-29).
** Barbo, Daniel (2014). “Homosexualidade e Paiderastía em Thomas Mann”. In Calíope: Presença Clássica, 2014.2. Ano XXXI. Número 28. JAS@11-2024
