Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (IV)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

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“Campainhas do Paraíso”. JAS 2022 – 94×119, papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, mold. de madeira

I.

A PINTURA, em registo sinestésico com a poesia, acrescenta beleza à beleza do canto poético. É projecção sensorial e ajuda a colocar o canto poético na esfera da visibilidade sem perder a sua autonomia, a sua identidade estética, propondo-se para além do poema com o qual coopera. É a missão da arte: tornar a vida mais bela do que ela já é, com todas as suas inevitáveis imperfeições e cicatrizes, acrescentando-lhe sentido e valor estético. As imperfeições e as cicatrizes que a vida deixa como marca no ser humano são na poesia reconvertidas, transfiguradas com palavras e melodia – a tristeza torna-se doce melancolia, a dor leve e elegante suspiro. Não há bagas no azevinho do Jardim? Criam-se, ainda mais belas e fartas, mais quentes e da cor do nosso sangue. Mas o real ajuda. Ver e sentir a beleza das bagas vermelhinhas ajuda a recriá-las, estimula e inspira o poeta e o pintor. Quero-as porque um dia as vi e me fascinaram. Quem nunca amou talvez não consiga cantar o amor. Não o viu, não saberá que forma tem, não o reconhecerá. Permanece como algo externo, não interior. A palavra poética tem de trazer consigo, agarrada a si, a pulsão que a motivou.  Pulsão de vida, eros. E não a pode expulsar do perímetro da sua significação.  Mas também é verdade que quem amou, se não for favorecido pelo sopro de Apolo, não pode eternizar o amor. Não vou tão longe como Ágaton (o festejado poeta do Symposion de Platão) dizendo que basta ser atingido pelo Eros para se tornar poeta, mesmo que antes não fosse sensível ao olhar fatal das musas. Isso não acontece, seguramente, aos que se mantiverem confinados na circularidade do prazer físico, desconhecendo as exigências de Apolo.  De qualquer modo, quem o sofreu quer voltar a tê-lo, cantando-o, se for ajudado pelos deuses.  Por Dionísio, por Afrodite (celeste, não popular), por Athena, por Apolo. A poesia alimenta-se da perda, da ausência, da dor, do silêncio. E recria um mundo onde estes sentimentos surgem transfigurados. Do silêncio sai o eco que se pode ouvir e sentir na poesia. Da ausência, por perda, resulta uma recriação ainda mais bela porque o poeta conservou o melhor do ausente, aquilo que outros nunca conseguirão ver nele. São estes os caminhos que a poesia percorre e é daqui que o seu poder terapêutico nasce.

II.

Bagas foi mesmo o que, um dia, senti que fazia falta no jardim da minha inspiração. Acontece-me frequentemente sentir que ali me falta ainda alguma coisa. Neste caso, bem fui tentando que os azevinhos mas oferecessem, mas a vida (e a natureza) tem destas coisas. Muitas coisas nos recusa. Mesmo quando se tenta alcançá-las com todos os recursos de que dispomos. Mas felizmente que há a poesia e a pintura. A arte. Com ela, se a inspiração não nos faltar, podemos completar e tornar mais belo o real. Ser menos infelizes. Não se trata, todavia, de construir um mundo idílico, uma utopia onde tudo seja perfeito e indolor. Não, o poeta leva a dor consigo, acarinha-a, faz dela sua companheira íntima, numa tal cumplicidade que chega a parecer impossível ou, pelo menos, contraditória. Depois verbaliza-a amigavelmente, tradu-la em palavras melodicamente compostas, dotando-a de novas qualidades ancoradas na exigência estética. Qualidades emergentes. A arte não substitui o real, não o nega nem o reproduz. Projecta-o para uma sua nova dimensão com características muito especiais – as que falam directamente à sensibilidade. A arte sofistica a realidade e atinge dimensões que não são imediatamente visíveis, a olho nu. É ela que, com a sua linguagem, as torna acessíveis à sensibilidade. De almas sensíveis, naturalmente.

III.

A virtude da poesia: eleva o que, às vezes, pode parecer somente negativo. Por defeito ou por excesso. Claro, a realidade tem todas aquelas impurezas e cicatrizes que a tornam, sim, realidade. A pureza é do foro do irreal. Vêm os pássaros e criam desordem naquilo que nós, seres humanos, queremos ordenado. Ainda bem que vêm. Mas, afinal, acabamos por construir espantalhos para que eles não roubem e desordenem aquilo que levou tempo e trabalho a criar e a ordenar. Mas é a vida, a impura vida, sempre sujeita a fenómenos disruptivos, a dinâmicas que escapam à nossa vontade de ordem, de harmonia, de paz. É essa vida que transpomos para a poesia como se se tratasse de uma logoterapia com perfil estético. Mas claro que é mais do que isso. É imperativo existencial. Resposta sentida a uma vida que parece estar a ser negada, neste caso na forma de um azevinho que não nos dá as desejadas bagas vermelhas ou, então, de um amor não correspondido. Ou de um jardim sem pássaros. Entre uma coisa e a outra, eu prefiro a desordem, o caos, os pássaros no jardim, com a desordem que possam provocar. Por exemplo, comendo as uvas da latada ou picando os pêssegos do pessegueiro.  Ou fazendo ninhos no loureiro e no telheiro. O que eu prefiro, realmente, são os “espantalhos” poéticos, feitos de palavras, com carinho. Os que não afastam os pássaros, mas, antes, os atraem. Os que até atraem amores improváveis. Os outros são injustos: os pássaros só “roubam” aquilo de que precisam. Nem roubo se pode considerar porque está inscrito na ordem natural. Eles vão ao jardim, fazem ninhos no telheiro e no imenso loureiro, pois fazem. Quando o podo, o loureiro, tenho sempre muito cuidado em preservar os ninhos. E gosto de ver e ouvir as crias que já crescem nos ninhos do telheiro até partirem rumo ao céu azul. A vida, portanto. Se tivesse bagas vermelhinhas teriam vindo mais pássaros ao jardim, certamente, e isso significaria trazer-lhe mais vida. E, se calhar, satisfeito, nem teria cantado as maravilhas das bagas que o azevinho não tinha. Foi a falta delas que me levou a cantá-las e a pintá-las. Como sempre e com tudo. Mas se não houvesse pássaros (coisa impossível) haveria de os cantar  O centro da questão é este: a dialéctica entre o belo e o feio, o puro e o impuro, o mortal e o eterno, o desordenado e o ordenado, a ausência e a presença, o silêncio e o som. A Diotima (o Sócrates e o Platão) dizia que o EROS estava entre uma coisa e a outra, por ser filho da Pobreza (Penía) e do Engenho (Poros). Uma dupla identidade que o torna divindidade, mas também mortal.  Daimon. Também a poesia é um compromisso entre uma coisa e a outra, sendo, em parte, cada uma delas. Irmanam-se, o amor e a poesia, e é por isso que um induz o outro. Mas é verdade: o amor é um poderoso propulsor de poesia. Ele liga os elementos, o mortal e o imortal. Nisso concordo com o poeta e dramaturgo Ágaton. Até porque, a crer nas palavras de Nietzsche, nas suas (dos gregos) tragédias existe sempre uma harmonia entre o “espírito dionisíaco” e o espírito apolíneo”, entre a alma e o espírito.

IV.

Excursus ou uma introspecção literária. Nesta escrita dos fragmentos combino sempre duas coisas: o sentido dos comentários dos leitores ao poema em causa e as minhas respostas, logo no momento em que os leio. Depois, passado algum tempo, vem a livre reelaboração das respostas, autonomizando-as dos comentários e da referência directa ao poema. É nesta fase que posso avançar para a dimensão mais teórica e reflexiva, libertando-me completamente, a ponto de, por vezes, acabar, inadvertidamente, por regressar à poesia, mas em prosa, apercebendo-me disso só após a leitura do próprio fragmento. Momentos de especial inspiração. Para reflectir acerca da génese ou da matriz da poesia parto sempre da minha própria experiência, enquanto poeta (se é que já tenho esse estatuto). O que não significa que, depois, não me confronte com o que os grandes poetas disseram da sua própria arte. Com o que cada um pensa (analiticamente) do que faz. Fi-lo em “A Dor e o Sublime”. Lembro-me sempre do Edgar Allan Poe e da sua bela exposição acerca de “O Corvo” no seu texto sobre a Filosofia da Composição. Depois, regresso ao meu próprio mundo, certamente mais rico com o que aprendi. É uma dialéctica progressiva. Mas o que é decisivo é sempre o exercício poético e a causa do poetar. Escrever sobre o que faço não é certamente tão importante como o próprio poetar. É nesse acto que verdadeiramente me liberto e me realizo. E é assim porque a poesia é verdadeiramente uma arte extraordinária, sobretudo pela sua dimensão altamente performativa.

V.

“É exactamente a isso que o poema-arietta alude”, respondia assim a um comentário que falava em tornar os sonhos palpáveis e as ilusões esperança. Eu sempre sonhei ter no meu jardim azevinhos com muitas bagas vermelhinhas. E a musa está sempre lá, onde o poeta caminha com a sua fantasia. Faltam, no jardim, as tão desejadas bagas vermelhinhas da cor do seu sangue? Pede-as à musa e ela dá-lhas, sob forma de estímulo inspirador. E o pintor, também ele seduzido, ajuda. Num quadro alusivo a uma poesia há uma folha de azevinho e muitas, mesmo muitas, bagas. Um excesso, quase uma compensação pela recusa dos azevinhos, que não dão bagas. Na fantasia, a abundância cresce, tem de crescer, porque quem não é rico em fantasia fica ainda mais pobre na realidade. Ora aqui está algo que muitos não sabem, acabando por transportar para a fantasia a pobreza com que lidam no real e com que vão sobrevivendo. Acabam por não chegar lá, ao Monte Parnaso. Mas também há os que querem lá chegar com retórica em excesso, transcurando o que deve sempre estar com eles, essa alma ferida. Mas, assim, também esses não chegam lá porque tudo aquilo que transportam é simples virtuosismo, exibicionismo, puro contorcionismo verbal. Na viagem o poeta vai sempre carregado e pesado sendo necessário uma forte propulsão. Não era assim que Sísifo ia? E o poeta tem muito de Sísifo…

VI.

As bagas, afinal, são a ponte entre o real e o fantástico. Como, aliás, a poesia. A história tem um referente na realidade: procurei um novo azevinho para o meu jardim porque o outro não as tinha, as bagas. Só que o novo também as não tem. Pois bem, se as bagas não nascem faço-as eu nascer. Poeticamente. E muitas mais do que as que o novo azevinho daria, mas não deu. Assim pode ser também no amor: “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”. A poesia pode dar-nos o que não temos, em beleza e em dimensão ainda superiores. A abundância poética recobre a escassez do real. Entre uma e outra está a fantasia. E ela pode produzir um efeito de arrastamento, levando consigo o que perdeu, o ausente e o seu silêncio, como eco, e repor a esperança onde só parece existir pobre ilusão. É este o seu poder. E é ainda maior quando se trata das coisas da alma. Ela pode curar essa “maladie de l’âme” que é o amor, elevando-o e preservando-o da erosão do tempo. Imortalizando-o, pela arte. Como dizia o Honoré de Balzac: o amor é a poesia dos sentidos. Que mais não seja do que por isso, é legítimo o que Ágaton disse da relação entre o amor e a poesia.

VII.

Se o ser humano fosse perfeito não seria humano nem haveria necessidade de arte para tornar o imperfeito suportável e até belo. A arte é resultado da imperfeição humana. Uma elegante prótese humana. Mas nem todos podem criar, sendo, todavia, certo que a fruição estética é também ela parte integrante e indissociável da arte. A arte também nasce para ser partilhada, comunicada e só quando é objecto de partilha se realiza plenamente. A partilha, de resto, é como que a sua própria certificação. Afinal, através do que outros escrevem, sempre é possível contemplar esteticamente o que nós próprios sentimos. É essa a beleza da arte. Um espelho mágico.

VIII.

Atrever-me-ia a dizer que às vezes certos comentários, muito breves, mas certeiros, são também eles “sinestéticos” porque em poucas palavras conseguem sintetizar o encontro entre a pintura e a poesia. Perfeitos. Por exemplo: A lua que desce sobre o poeta, lhe ilumina a fantasia e recria (ao luar) o que não aconteceu, mas podia ter acontecido. Doce melancolia, a que a poesia e a pintura oferecem ao poeta.

IX.

Sim, fazer da vida jardim e do jardim lugar de poesia – é essa a meta do poeta. De resto, segundo Ágaton, em “O Banquete”, de Platão, o amor (Eros) “não toma por morada o que não floresce ou já está murcho, trate-se de corpos, almas ou seja o que for… Só quando encontra um sítio adornado de flores e perfumes, então pousa e se instala” (Platão, O Banquete, Lisboa, Relógio d’Água, 2018: 90). Século IV, a.C. Tudo converge para aí. Até porque é lá que se encontram os estímulos que levam o poeta a cantar. Entre eles, o loureiro, de Apolo, e o jasmim de que Dionísio gosta. O aroma deste é tão potente que o poeta fica embriagado (as libações, neste caso de intensos aromas) e voa com palavras tão alto, tão alto que acaba por lhe acontecer o mesmo que a Ícaro. Mas sem consequências fatais. E felizmente que o jasmim volta a dar-lhe energia para voar no céu de um poema. E é assim que o poeta vai vivendo e é feliz. E note-se o que Ágaton ainda diz do poder do Amor: “e para que também eu preste as honras à minha arte (a poesia, a tragédia), tal como Erixímaco (médico) prestou à sua, começo por falar na sabedoria do deus como poeta: um poeta tão hábil que sabe, inclusive, transmitir a outros a sua arte! Certo é que todo o homem bafejado pelo Amor, ‘mesmo antes avesso às musas’, adquire o dom da poesia… E eis o testemunho ideal para mostrar a excelência do Amor em todo o género de criação ligado às artes” (2018: 92). Mas eu acho que EROS precisa da ajuda de Apolo para levar a bom porto a sua missão. Que pode terminar com uma coroa de louros concedida por Apolo, lá no Parnaso, quando a obra for merecedora. JAS@11-2024

Campainhasdo ParnasoRec

Poesia-Pintura

POEMA PARA UM ROSTO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Rosto para um Poema”
Original de minha autoria
Novembro de 2024
S:Título2024Pub

“S/Título”. JAS 2024

POEMA  – “POEMA PARA UM ROSTO”

EU CANTO
Esses teus olhos,
Ah, eu canto
A sua luz,
A sua cor
Transparente
Como mel.
Este pintor
Que é poeta
Desenhou-os
Com um secreto
Pincel
Que era, sim,
Uma caneta.

PALAVRAS
Leva-as
O vento
(Eu bem sei),
Mas coladas
À cor
Desses teus olhos
(Como eu os
Desenhei)
São asas
Que me livram
Do tormento.

AGUARELA
De palavras,
Quero dizer,
Galeria
De um rosto
Só,
O pintor que é
Poeta
Assim desata
Seu nó
E deixa
Mensagem
Discreta.

TUA BOCA
É de púrpura
(É, sim)
Como eu
Sempre a vi,
Ao rubro
De uma intensa
Paixão,
Energia
Para voar
Por aí
Em acesa
Combustão.

HÁ VIDRO
Que a separa?
Pois há,
Mas se murmurar
O teu nome
Essa tela
Que é poema
Será sempre
A minha ara
No fogo
Que me consome.

CRESCEM FLORES
A teus pés,
Pintei-as
De todas as cores
Colhidas
No meu Jardim,
Anunciam
Novos aromas
E outros tantos
Sabores
Pintados todos
Pra mim.

S:Título2024PubRec