Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (VIII)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

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"Cascata". JAS 2025
EXACTIDÃO

A QUESTÃO de alinhar (esta é mesmo a palavra) a poesia com a geometria, com a exactidão da geometria, é interessante. A exactidão é uma das seis categorias que Italo Calvino, nos anos oitenta do século passado, nas Lezioni Americane (Milano, Garzanti, 1988), propôs para a arte deste milénio em que já nos encontramos. E verifica-se que o terreno comum é precisamente o das linhas. É com elas que se formam as letras, as palavras, os versos, as estrofes e, finalmente, os poemas. Como uma partitura, uma notação semântica. Mas elas formam também as figuras geométricas: rectas, triângulos, quadrados, rectângulos, círculos. O chão é, pois, comum. A teia que suporta a formação de sentido e de som. Sinestesia matricial que facilita o alinhamento entre a poesia e a geometria. E daqui nasceu um poema (“Linhas”) e a procura, nele, da exactidão que encontramos num círculo ou num triângulo equilátero. Claro, sabendo bem que, como na vida, também há linhas tortas e sincopadas. Mas a beleza reside na evolução do que é imperfeito, logo, humano, para essa perfeição que só o espírito (ajudado por Apolo) nos pode dar. A vida, que é imperfeita, aspira à perfeição. É neste movimento ascensional que se inscreve a poesia, sem solução de continuidade. E pode gerar um autêntico poder de resgate pela força sensitiva ou sensorial que acompanha, na poesia, sobretudo através da sua componente melódica, a conversão estética. Rigor geométrico com força sensorial. No poema fala-se de milagre. E talvez seja. O poder da palavra, cifrada, mas exacta e musical. Uma espécie de confissão poética do fascinante pecado de viver. Quando se lhe acrescenta, na dinâmica sinestésica, linhas e figuras geométricas em perfeita simetria o resultado é verdadeiramente superior.

O VAGO E A EXACTIDÃO

Sobre a exactidão, cito, então, o que diz Italo Calvino, nas “Lezioni Americane”, sobre o poeta Paul Valéry, precisamente a propósito dela (a “esattezza”):

“Paul Valéry è la personalità 
del nostro secolo che meglio 
ha definito la poesia come
una tensione verso l’esattezza” 
(1988: 66).

Ou, então, referindo-se a Giacomo Leopardi:

“il poeta del vago può essere   
 solo il poeta della precisione” 
(1988: 61).

É preciso muita precisão no uso das palavras para aludir a estados de alma que são vagos e imprecisos. A sensação de uma doce melancolia, por exemplo. Depois, o geometrismo que evolui por dentro das letras a caminho das palavras, dos versos, das estrofes para que a produção de sentido seja universalmente partilhável. Desenhar rigorosamente estados de alma com letras que são compostas de linhas e de figuras geométricas. Depois, a exactidão melódica através de uma espécie de notação poética, que é feita com palavras – “melólogos”. Na verdade, a poesia exige um enorme rigor de composição. Às vezes pode parecer um amontoado de palavras, mas é exactamente o oposto. A poesia, não os exercícios de mera libertinagem linguística, de pura logorreia ou de exibicionismo linguístico e narcísico. Sentir é uma coisa, convertê-lo esteticamente é outra. Para a conversão é necessário sentir. E rigor, precisão. Trata-se de uma passagem da alma, que é vaga e imprecisa, ao espírito, que aspira à perfeição e à precisão. Alma e espírito não são a mesma coisa. E é por isso mesmo que até têm dois deuses inspiradores diferentes (Diónysos e Apólon) e que Nietzsche distingue com rigor entre “espírito dionisíaco” e “espírito apolíneo”. Referindo-se a Valéry, Calvino fala de “combater o sofrimento físico através de um exercício de abstracção geométrica”. É disto que o poema “Linhas” também fala.

POESIA E MELODIA

Um amigo que comentava um poema, citou uma interessante frase de Ludwig van Beethoven. Ela tinha sido dita por ele a Bettina Brentano, para que fosse referida a Goethe e tem a ver com as relações entre ambos os génios da poesia e da música. Ela refere-a numa carta a Goethe, de 28 de Maio de 1810. Beethoven queria compor sobre poesia de Goethe: “As poesias de Goethe têm sempre um grande poder sobre mim, não só pelo seu conteúdo, mas também pelo ritmo. Sinto-me induzido e estimulado a compor a partir desta língua que, como por obra de espíritos, se eleva a uma ordem superior e contém já em si o segredo da harmonia” (Braun, F. – a cura di -, Incontri con Beethoven, Milano, Il Saggiattore, 2020, pág. 34). Eles encontraram-se em Teplitz. Na carta, Bettina diz textualmente o que lhe foi referido por Beethoven:

“Sim, a música é precisamente a 
mediação entre a vida do espírito 
e a dos sentidos. Gostaria de 
discorrer com Goethe sobre isto” 
(...) “a melodia é a vida sensível 
da poesia. E o conteúdo espiritual 
de uma composição poética 
não se torna, talvez, sentimento 
palpável através da melodia?” 
(2020: 34-35).

Interessante, a relação da música com a poesia e com os sentidos, através do que dela diz Beethoven. A música confere poder sensorial à poesia, a melodia converte o conteúdo espiritual em sentimento palpável. Atinge os sentidos e gera efeitos físicos, corpóreos, em quem ouve. Ou a música (de Beethoven) como “uma nova base sensível para a vida do espírito” (2020: 32). Na visão de Beethoven, a música parece entrelaçar-se com a poesia, num efeito sinestésico, exactamente como acontece com a pintura, dando-lhe fisicidade melódica tal como a pintura o faz com a cor e a representação, tornando-se próteses para que outros sentidos a captem como totalidade expressiva. Sem dúvida, uma cooperação que dá poder sensorial ou sensitivo à poesia.

A SEMÂNTICA E A MELODIA

Pois bem, é isto mesmo que eu penso e tento concretizar na minha poesia, sem dúvida, mas não acoplando, do exterior, a música, antes incorporando-a no interior do próprio poema. Algo um pouco diferente do que acontece com a pintura, que uso sobretudo no interior de um processo sinestésico, embora também procure incorporar a cor no interior do poema, usando as palavras. Com a música é diferente pois ela percorre todo o poema como um manto acústico interno que a faz vibrar, a electriza. É a melodia inscrita num poema que lhe confere o poder de atingir directa e autonomamente a sensibilidade de quem o lê, o sente e o ouve. O poder sensitivo da poesia deve-se sobretudo à incorporação da melodia (e do ritmo) no seu interior. Afinal, o que dizia Aristóteles, na sua Poética?

“Há algumas artes que se servem de 
todos os meios mencionados, a saber, 
o ritmo, a melodia e o metro, 
tal como a poesia dos ditirambos 
e nomos” (Lisboa, FCG, 2018: 39).

Não é, pois, coisa recente esta ideia de incorporar a musica no interior da poesia.

UMA OPÇÃO INCONTORNÁVEL

No meu exercício poético, a componente melódica é sempre trabalhada especialmente na fase final do poema e se uma palavra, semanticamente perfeita, não é melodicamente tão adequada como outra que seja, todavia, semanticamente menos pregnante, adopto sem hesitação esta última devido precisamente à exigência melódica, que para mim é incontornável. A força de um poema deve-se em grande parte à sua melodia e ao seu ritmo sonoro, à sua toada. Depois, se a poesia é levitação, porque retira peso à existência, é leveza, como a dança, com os seus momentos “ballon”, a verdade é que a melodia lhe confere corporeidade, fisicidade, pois fala directamente à sensibilidade, aos sentidos de quem a lê, a sente e a ouve. Melodia que percorre todo o poema, do primeiro ao último verso. Na minha concepção, a relação entre a poesia e a melodia dá-se sobretudo internamente, o que confere grande autonomia e poder sensorial directo à poesia. Falando com um amigo sobre este assunto, ele dizia-me que sem melodia a poesia fica diminuída ou até desaparece. Concordei. Numa palavra, a poesia não é somente semântica, ela é, e talvez no mesmo grau, também melodia.

HIPPOCRENE

Pode ser “Voz em Silêncio” o título que um amigo me propôs para uma pintura ilustrativa de um poema a que dera o título “S/Título”. E até poderia ser “Grito em Silêncio” se só tomássemos em consideração a pintura e a criança que emerge do ventre de sua mãe. Na verdade, o que eu pretendi com o poema “As Fontes de Tivoli” foi fazer a passagem das Cem Fontes de Tivoli para a água da Fonte da Poesia, a de Hippocrene. O sujeito poético, Gianni della Rovere, saía de Roma e subia até Tivoli para dar voz ao seu desejo de libertação do amor, pela magia da água pura, de que ficara cativo. Sim, lá, na Villa D’Este, há uma escultura de Pégaso que, naturalmente, alude a Hippocrene, à sua água, às musas e à poesia. E ao desígnio dos deuses. A paixão de Gianni por Paola Valenzi exigia cura e talvez na água das Cem Fontes estivesse, por analogia com a de Hippocrene, a solução. Conjugadas, a primeira estrofe e a última são a chave do poema “As Fontes de Tivoli”. Em Roma, ficara a perdição. De resto, o Tibre, a que o poema também alude, é objecto de algumas canções dramáticas. “Er Barcarolo”, por exemplo, com o fim trágico de Ninetta… por amor. Uma vez mais, a poesia, associada à água pura das fontes e ao desígnio dos deuses, como resgate.

A fonte original é, pois, a de Hippocrene, a da inspiração poética, no Monte Hélicon, na Grécia. A inquietação do poeta leva-o até lá, onde vivem as musas e onde jorra água pura. Água pura que pode transformar a tristeza em doce melancolia. Claro, desde que seja água desta Fonte. Os poetas vão sempre bebê-la lá, no lugar onde habitam as musas. Para isso, devem levitar com a fantasia e voar até lá com a imaginação. Mas, para que a poesia aconteça, é preciso que se conjuguem algumas variáveis num súbito e preciso instante: Eksaíphnes.

A FONTE, O POETA E AS MUSAS

Viajar com os poetas em torno das raízes da sua inspiração pode ajudar a compreendê-los melhor. Durante anos, todos os dias, à hora de jantar, eu passava em frente da Fontana di Trevi, um privilégio, mas foram as fontes de Tivoli que mais me inspiraram. Claro, fontes, em Roma, há tantas quanto igrejas. Centenas. E há as que definem Roma. A “Fontana dei Quattro Fiumi”, do Bernini, na Piazza Navona, a sala de visitas de Roma, por exemplo. Aqui vivi dez anos, mesmo ali ao lado. Mas a água, ali, em Tivoli, é diferente e convoca-nos a poetar, sobretudo se levarmos connosco, na subida ao monte, a dor original do poeta, o desencontro, o fracasso amoroso, o silêncio, a ausência. Lá, nas Cem Fontes, acederemos à origem da poesia, porque esse é o seu ambiente de culto, desde as origens da Grécia antiga. Está lá a água, abundante e pura, e a escultura de Pégaso que nos lembra a origem de tudo: Hippocrene, a fonte que inspira os poetas e dá de beber às musas. Um poeta procura resolver, com a poesia, as dores de uma sensibilidade extrema, como é a sua, afinada que foi pela dor que o estimulou. E é junto da água abençoada pelos deuses e pelas musas que ele se realiza. Aqui, nestes jardins, vivem muitas musas. E é nos jardins que, por vontade dos deuses, acontece a poesia, como, creio, se diz no “Symposion” de Platão. De resto, sempre me inspirei na mitologia grega. Ela diz tudo. E ajuda a evoluir poeticamente até chegar à fonte mágica da poesia, que faz milagres na sensibilidade de quem nela bebe. E os poetas bebem nela. E povoam, desde sempre, a mitologia. Neste poema, “As Fontes de Tivoli”, evoco, muito superficialmente, uma história de amor contada no meu romance “Via dei Portoghesi”. Roma, Tivoli e a Grécia antiga, com a sua mitologia entrelaçada.

A CAMINHO DE TIVOLI

Sim, claro, compreendo que na subida de Roma para Tivoli alguém acabe por ficar ali, já perto de Tivoli, na Villa Adriana. A grande Yourcenar revigorou, com esse extraordinário romance, “Memórias de Adriano”, o interesse desta famosa Villa do Imperador Adriano. Mas Villa D’Este, com as suas Cem Fontes, é fascinante, não só pela beleza da avenida das fontes, mas também pelas obras de engenharia que lhe estiveram na base. Eu subi várias vezes de bicicleta (de corrida) de Roma até Tivoli. E sempre me fascinaram aquelas fontes. E lá está o Pégaso. E, por isso, a mitologia grega, onde gosto de me inspirar. Não sei, mas talvez seja devido à minha velha paixão pelo grego clássico, que, de certo modo, condicionou a minha vida profissional (comecei como monitor de filosofia antiga, ainda estudante devido ao domínio do grego). Aqui, neste poema um pouco introspectivo, interessou-me a ligação a Roma e à mitologia grega sobre a poesia, através das fontes de Tivoli e da presença alusiva de uma escultura de Pégaso que faz a ligação com a Fonte de Hippocrene, a fonte dos poetas e das musas. Depois, a alusão à história de amor entre Gianni e Paola no romance “Via dei Portoghesi”. Uma autêntica teia de relações num poema sobre a poesia. JAS@01-01-2025

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Poesia-Pintura

AS FONTES DE TIVOLI

Poema de João de Almeida Santos, 
inspirado no romance
"Via dei Portoghesi".
Ilustração: “S/Título”, JAS 2024.
Original de minha autoria.
Dezembro de 2024.
O ECO2022

“S/Título”. JAS 2024

POEMA – “AS FONTES DE TIVOLI”

FOI NAS CEM FONTES
De Tivoli,
Nos jardins
De Villa D’Este,
Que bebeu
Da água pura
E com ela
Transformou
Sua vida
Atormentada
Numa bela
Aventura.

SEDUZIDO
E abandonado
Por musa bela
E forte
Que o tornara
Cativo,
Sem saber
Por que razão,
Perdeu o rumo,
Perdeu o norte,
Seu castigo,
E caiu
Em profunda
Solidão.

NÃO FOI SONHO
De amante
Perder-se
Em fantasia,
Foi fogo
Vivo e cortante
Onde viver
Não podia.

PARTIU, POIS,
Pra encontrar
Novo rumo,
Nova via,
Palavras,
Versos,
Estrofes,
Essa bela
Alquimia...
.............
Mas esse era
Percurso
Que nem ele
Bem conhecia.

PÔS-SE, CONTUDO,
A caminho,
Subiu logo
Ao monte,
Bebeu cem vezes
Da água,
Vagueando
Por ali
Para afogar
Sua mágoa
Nas fontes
De Tivoli.

NO LUNGOTEVERE,
Onde vivia,
Só via as pontes
Por onde ela
Passava
Ao encontro
Do destino
No outro lado
Do rio,
Como quem já
Não tem rumo
E vive
Em desvario.

SALVOU-O
A água pura
Que tinha sempre
Consigo,
Bebia quando
A via
Pra se resgatar
Do castigo,
Do fogo
Que o consumia,
Era água
De poeta,
A que vem
De Hippocrene,
Que alimenta 
As musas
E liberta
 A fantasia.

O ECO2022Rec

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (VII)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

MagiaPublicado06_2021

“Magia”. JAS 2022, 77×90, em papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Arglass AR70 em mold. de madeira (Colecção privada).

ABALOS TELÚRICOS

Abalos telúricos. O poder da paixão – treme a terra, treme o corpo, estremece o poeta. Assim nasce a poesia: abalos telúricos. O estremecimento original, potente como aquele clarão que quase cega e incendeia, permanece inscrito na alma. E as réplicas não param. E a poesia também não.

"QUE ME IMPORTA, SEI CANTAR!"

Ah, esta mulher, com este perfil  tão belo, mas austero, faz mesmo tremer o chão do poeta. Ao vê-la, o chão foge-lhe dos pés e ele estremece. Este perfil  (o de “Perfil de Mulher”) acompanha-o sempre (perguntei-lhe e, excepcionalmente, ele confirmou). Não me disse, confesso, se foi ela própria a causa do estremecimento original. Isso não disse. Mas até podia ter sido. Se é verdade – e parece ser – que é na ausência que a posse se dá pela arte tudo fica explicado. Junta-se um poema a um perfil e a tristeza pode mesmo dar lugar à doce melancolia, num melódico poema. A vida também tem destas coisas: a uma perda, o poeta responde com a posse da alma através da arte. Ele aguenta o embate da única forma que pode: cantando (e animando o canto com a pintura). Dizia o Liolà  (personagem central da “commedia campestre in tre atti”, Liolà, considerada por Gramsci a “obra-prima” de Pirandello,) para o tio Simone:

“Io, questa notte, 
ho dormito al sereno;/ 
Solo le stelle 
m’han fatto riparo; (…)/ 
Angustie, fame, 
sete, crepacuore?/ 
Non m’importa di nulla: 
so cantare!”. 

Ecco. Sei cantar, dirá. É assim que o poeta se salva do silêncio da musa e acalma o espirito e a alma. E assim impede que o edifício possa ruir pela violência do abalo telúrico. O poeta como arquitecto de edifícios contra os tremores… de alma. Crepacuore? Que me importa! Felizmente, sei cantar e sei pintar. Por isso, digo (em nome do poeta): “sofrer por amor é poético e sadio”.

OLHAR

“Tensão erótica de um desejo insatisfeito” em forma de poema, como não poderia deixar de ser. E até poderia acrescentar: tensão erótica perfeita. Olhar a musa da janela sem lhe poder tocar. Mas o simples olhar tem força física e, assim, ele capta-a no poema, convertendo o olhar em palavras. Não importa se é um olhar interior ou um olhar exterior.  O que tem de ser é um olhar da alma. Dádiva do céu. Eu penso que o amor, quando é autêntico, é uma dádiva (do céu) que nem todos recebem. Predestinação? Não sei. Ele permite ver coisas no real que outros olhares não captam.  E nem falo do seu poder criativo. Só de a ver passar ele fica enredado num círculo de fios e de fogo que o aprisionam e do qual só a poesia o pode libertar. Eu acho que a poesia nasce do estremecimento: treme a terra para ele e treme ele perante ela. Eu acho que é por isso que o poeta é mesmo um arquitecto que constrói casas preparadas para os terramotos da alma, para os abalos telúricos. As palavras são as estacas que resistem aos abalos existenciais. Ele não desiste. Um poeta, de resto, nunca desiste por maior que seja a dor. Melhor, quanto maior for a dor mais ele é convidado a resistir. Ou seja, a poetar.

O “CHIP” DO AFECTO

Uma dádiva do céu é ter o “chip” do sentimento e usá-lo. Não há poetas sem este “chip”. Mas há quem não o possua. Às vezes – aqui está – a carga eléctrica é tão forte que o poeta estremece. E tem de poetar para aliviar a tensão. Ele tem uma sensibilidade muito apurada. A sua força, mas também a sua fraqueza.

SÓ PERDEMOS O QUE NUNCA TIVEMOS

Ritualizar e densificar os diálogos em torno da poesia e do que ela representa é tarefa gratificante para quem gosta de poesia. O poeta vai construindo o poema ao longo da semana para o oferecer à musa e aos amigos, ao domingo, muitas vezes com pinturas executadas com esse fim, outras, já existentes, mas que funcionam como sinestésica ilustração.

O José Régio, sobre perder o que nunca se teve, foi-me lembrado por um Amigo que comentava um poema meu. Sim, mas também o Bernardo Soares falava de intensa saudade do que nunca aconteceu. Ter ou  não ter, esta é a questão, que se segue à de ser ou não ser do grande Shakespeare.  O Régio falava de amigos. Tê-los, perdê-los?

“Nós julgamos perder
Mal se nos abre a mão;/
Mal a fechamos 
que julgamos ter./
Somos bem débil gente!
Dificilmente /
Podemos encarar 
a nossa solidão,/
Ou ver que só perdemos
O que jamais tivemos.”

Os amigos não se têm, logo, não se perdem. Eles são, não se possuem, não se têm e, por isso, a perda é outra coisa. Perdê-los porque partiram, por exemplo.  A perda de amigos não corresponde à perda de coisas. Será isso? Talvez, porque os amigos estão cá dentro. Verdadeiramente nunca se perdem. Há mudança de estado, isso pode haver.  Os amigos são. É como amar. Pertence à esfera do ser, não do ter. Ou à esfera do acontecer. Acontece por obra do destino ou por alinhamento dos astros. A posse não é coisa de amizade nem de amor. Ela só é possível pela arte. “Só perdemos o que jamais tivemos”. Partir é outra coisa. Partir é deixar de caminhar juntos, de um modo ou de outro. Perde-se, com a partida. Mas também é verdade que é a partida que move o poeta a conservar em si aquele que partiu, cantando-o e elevando-o ao sublime. Só assim se pode possuir. Mas há muitas formas de partir. Por exemplo, partir antes de chegarmos, juntos, a um determinado ponto do percurso que iniciámos. Caminhada interrompida. “Só perdemos o que jamais tivemos”. Outra versão: saudades do que não aconteceu, nem podia acontecer. Mas, muitas vezes, podia ter acontecido. E muitas vezes desejávamos intensamente que acontecesse. Chegar juntos a uma meta, por exemplo. E festejar a chegada. Por vezes, é a própria intensidade do desejo que nos inibe e nos impede de chegar juntos. Um estremecimento inibidor. E assim fica apenas como desejo. E é por isso que dói. Os desejos intensos não concretizados doem muito. E por isso há que encontrar uma cura para essa dor: a poesia. Saudade do que ficou por viver. Um vazio pleno e, por isso, doloroso. A saudade é como uma moinha que fica ali a moer sem poder ser removida, ou melhor, que nem sequer se deseja remover na esperança de que aconteça um milagre que a transforme em luz que ilumine o passado em direcção ao futuro. Os poetas não a removem porque ela, tal como a melancolia, inspira e ajuda a reviver de forma luminosa esse passado não vivido e sofrido por ausência. É por isso que a poesia faz bem, é remédio para o amor, como diria o Ovídio. É a única forma possível de posse. E ilumina o caminho do futuro, acende a tocha do tempo.

GOSTO AMARGO DE ACERBO ESPINHO

“Saudade! Gosto amargo de infelizes. / Delicioso pungir de acerbo espinho”. Como gosto desta forma de a traduzir, a saudade. Gosto amargo, sim. E acerbo espinho. Coisa de infelizes. Pois foi isso que o poeta sentiu quando se cruzou com ela num dia cinzento, característica própria da saudade, que é sempre um pouco cinzenta e amarga. Regressar ao passado e à interrupção da caminhada que haveria de conduzir à meta e à festa de júbilo que se seguiria. Regressa, pois, poderosa, a saudade. E logo se tem de a cantar para a afagar, a acarinhar e dulcificar o seu gosto amargo. Vem-me à mente a imagem do chocolate negro (é o chocolate de que mais gosto), que é um pouco amargo, mas não é de acerbo espinho, porque já pertence ao universo do gosto, como a poesia. “Dor que tem prazeres”. Ele é mais rijo do que os outros. Resiste melhor do que os outros, talvez também porque é amargo. Como a saudade no tempo, que é seu cúmplice. A saudade como o chocolate negro? Talvez só para os poetas, que vivem em ambiente sempre amargo e prisioneiros do tempo, mas sempre com sabor agridoce, acre e doce. O tempo é como uma estufa: ajuda a maturar os sentimentos. O tempo é cúmplice dos sentimentos que, no passado, não chegaram a maturar suficientemente. Depois, devolve-os ao futuro e ao poeta, que vagueia por aí. Neste vaguear acaba sempre por se cruzar com eles. Estremece e dá-se o início do processo criativo. É assim. Um qualquer sinal é suficiente para o pôr em estado de estremecimento visto que ele tem a sensibilidade à flor da pele, melhor, da alma.

A MUSA

“Põe-a com dono. Só te faz sofrer”, poeta! Ah, mas os poetas não controlam as musas. São elas que os encantam, os põem a cantar. Elas são como as sereias e não há quem possa tapar os ouvidos aos navegadores de palavras para que não fiquem enfeitiçados pelo seu (en)canto. Os deuses são seus cúmplices e os poetas, mortais, são seus súbditos. Nada a fazer. Sofrer: mas haveria poesia sem sofrimento, sem dor? E a dor é manipulável? Há remédios para esta dor, esta “maladie”, a não ser o poético? Bem insisto em ler o Ovídio, mas não funciona. Se calhar nem o poeta quer sair deste estado, dizendo ao passarinho “some daqui!”, já não há poeta nem poesia porque sou feliz (o poeta era o Vinicius). Não é possível pôr as musas com dono, simplesmente porque elas não são capturáveis. Bem sei que é uma “frase idiomática”, mas o poeta nem sequer consegue resistir-lhes. Aliás, quando esvoaçam para outros lugares, o poeta sofre e fica com dolorosos ciúmes. Não, ele nunca quererá “pô-la com dono”. Não pode nem quer. Elas são leves e rápidas como as fadas e só obedecem à sua própria fantasia. Estão sempre alinhadas com os deuses e com o vento que passa. E voltam a seduzir sempre que querem. JAS@12-2024.

MagiaPublicado06_2021Rec

Poesia-Pintura

LINHAS

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Linhas”, JAS 2020
Original de minha autoria
Dezembro de 2024
GeometriaFinal26

“Linhas”. JAS. 2020

POEMA – “LINHAS”

PROCURO,
Com apego,
A perfeição
Em cada verso
Que escrevo,
Movido
Por comoção.

E PERSIGO
A utopia,
Dando asas
Ao desejo
De plena
Harmonia
Nas palavras
Que escrevo
Com a minha
Fantasia.

É COMO A VIDA,
A poesia,
É incerto
Percurso
De linhas
Curvas,
Tortas
Ou sincopadas,
É procura
De formas
Que falem,
Com exactidão
De cristal,
Das mágoas
Sofridas
Em mágoas
Cantadas
Por inquieto
Jogral.

AS ESTROFES
São círculos
Que o poeta
Desenha
Com a alma,
Onde as letras
São linhas
À procura
De sentido
E em forma
De palavra.

MAS, POR VEZES,
Elas são
Emaranhados
Confusos
Que depressa
Se deslaçam,
Quais novelos
De fiar...

É CONSTANTE
Entretecer,
Um constante
Caminhar
Por linhas
Desencontradas,
Um luminoso
Viver
Em palavras
Inventadas.

E, ENTÃO,
Já no final,
Surge
O círculo
Perfeito
Que não se pode
Deslaçar,
É um eterno 
Retorno
Onde o fim
É sempre novo,
Mas um novo
Começar.

A POESIA
(Está bem
De ver)
Não é redonda
Como o círculo,
Não é...
..............
Mas é composta
Por linhas
Em movimento,
Já sopradas
Pelo vento
Em busca
D’exactidão,
Dom
Concedido
Somente
A quem sente
A sua dor
Como porta
De saída
Pra poética 
Evasão.

PALAVRAS
São linhas
Que se enlaçam
E deslaçam,
Frequente
Compulsão,
Sentimentos
Escritos
E desenhados
Com a alma
Em alvoroço
E com força
De vulcão.

ASSIM É A POESIA,
Levitação,
Almas inquietas
Em intensa
Propulsão,
Linhas
Que são palavras
Que resgatam
Os que sofrem
De perpétua
Comoção,
Os que as procuram
Em busca
De um milagre,
Em busca
De redenção.

Linhas

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (VI)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

Noite0905

“S/Título”. JAS 2024

LUZ

UM CERTO POEMA, não importa qual, poderia chamar-se “Sonho”. Chamei-lhe “Luz” porque, afinal, no sonho sempre se acende uma luz (ele acontece sempre no escuro do sono). Ou o sonho é ele próprio essa luz. Talvez. O sonho é uma luz no escuro do sono. Qualquer que ele seja. É uma brecha que se abre. Sonho também está por poesia, que é sonho de olhos abertos, de palavras cifradas e de melodia que embala – uma luz que nos guia no caminho luminoso dos afectos. Da saudade ou da melancolia. Ou do amor. E o jardim é pista de onde o poeta descola em direcção ao paraíso, onde a luz é tão forte que há sempre o risco de encandeamento. E, neste caso, de queda. Os olhos do poeta são faróis cuja luz se reflecte no espelho mágico da poesia e, por reflexo, pode mesmo encandear e provocar uma queda no real. Sim, uma queda no real. Mas a queda acabará sempre por ser no jardim, de onde partiu, onde uma densa nuvem aromática e acre de jasmim atenuará o seu impacto. Das libações se parte, às libações se regressa. Vias oníricas para o desejo. Poéticas, porque a poesia é sonho. Sem remorsos. O poeta sonha e não é culpado disso. Acontece-lhe sonhar. Felizardo, mesmo quando o sonho é parecido com um pesadelo. Parecido, digo, porque o sonho poético acrescenta beleza e leveza ao que pode parecer pesadelo pela intensidade da dor que lhe esteve (está) na origem. O poeta desabafa esteticamente e não lhe pode ser imputada culpa por dizer o que talvez não devesse. Mesmo em forma cifrada.  Acontece-lhe.  E ainda bem, dirão alguns, os que se revêem no espelho mágico da poesia.

MUSA

Também a musa é uma luz que se acende à medida do desejo do poeta. Reacende-se na fantasia. Quando ele a procura porque entra em nostalgia ou em sofrida melancolia. Começa o canto e ela vai-se acendendo lentamente até atingir luminosidade máxima. A musa. No fim do poema. E há um ambiente especial onde tudo acontece mais naturalmente. O do jardim. No Symposion do Platão um dos intervenientes dizia que o Eros, que concede o dom da poesia, só se instala onde houver flores e perfumes. E é para lá que os poetas tendem a ir, porque é lá que acontecem as libações com os perfumes mais intensos, abrindo caminho à inspiração. Faz pensar, a poesia? Sim, mas ela realiza-se melhor se se fizer sentir na alma ou até no corpo.

ZÉFIRO

“Eu acho que Zéfiro passou por ti” – disse eu a um Amigo que comentava um poema meu – “como leve brisa que deu asas ao desejo em forma de poético comentário”. Pelo menos, digo eu, levou-o lá para dentro do poema e pô-lo a navegar nele, como habitualmente lhe acontece. Deixar-se ir ao sabor das ondas e da maresia poética.  Sem Zéfiro não sei se isso poderia acontecer. Claro, as palavras têm vida própria e muitas vezes vão por ali sem pedir licença ao condutor que as pôs a caminho. Mas a verdade é que a via já está traçada e elas bailam nas rectas e nas curvas do caminho ou nas ondas de mar encrespado. Sem se desviarem. Por isso, qual perdão, qual quê! – respondi-lhe. O que, mais uma vez, ele fez foi uma viagem por dentro do poema, só que, desta vez, caminhando, ia, poeticamente, dizendo que não, que não estava a caminhar como gostaria de o fazer, que o Zéfiro propulsor não o impulsionava com suficiente energia. E, assim, caminhando com palavras pelos sendeiros abertos pelo poema, ia timidamente invocando a divindade para que soprasse com um pouco mais de energia. “Mas” – disse-lhe eu – “sabes por que razão ela não o faz? Para te obrigar a caminhar lentamente ao sabor da brisa poética que já te sopra na alma, em partilha com o poeta que te chamou ao habitual ritual”. Cumplicidade benéfica. Só isso. Entre o poema e o comentário sopra a brisa da inspiração, que faz feliz o poeta e, espero, o comentador.

A DIALÉCTICA DO SONHO

Oh, mas essa, a dialéctica do sonho, é própria da poesia – exclamei, quando alguém me falou dela. O poeta, depois de declarar o seu fascínio pela musa, termina dizendo que lhe basta o sonho. Pois. Mas o que ele está a dizer é que ela lhe falta e que só por isso é que a sonha. Se a tivesse não a sonharia? Talvez. Ao dizer que o sonho lhe basta, o que está a dizer é que não lhe basta. E que é por isso que tem de continuar a cantá-la (a sonhá-la) para que ela o ouça. Essa é que é essa. Para que ela o ouça. É para isso que ele canta para o vento que passa. Aqui ele não é como o Pessoa, que só sabe amar em poesia, apesar dos beijos apaixonados que, pelo menos uma vez, deu à Ofélia num vão de escada. A verdade é que o poeta tem sempre uma referência. E, se não a tiver, inventa-a. De carne e osso. Há sempre uma Ofélia, mesmo que não haja um vão de escada. Bem sei que ele, o poeta, compõe a poesia partindo do princípio de que a musa o está a ver e a ouvir. É por isso que a sedução faz parte do seu poetar. E só por isso é que ele pode dizer que cantá-la lhe basta. Pudera! Assim é fácil. Digo eu (mas não é). Porque é uma ficção, por mais poder performativo que tenha. E tem (e atenua a dor). Mas a dor continua lá, obrigando-o a continuar poeta e a compor sem parar.

DESEJO

A linguagem do sonho é a linguagem própria do poeta. Para ele, “la vida es sueño” e “el sueño vida es”. Calderón de la Barca. E o sonho comanda a vida, como dizia o nosso Gedeão na “Pedra Filosofal”. E a vida é um longo desejo que se vai cumprindo à medida da ambição de cada um. Do sonho de cada um. Cumpre-se mesmo quando o desejo não se cumpre. A negação também faz parte da vida. E o modo como se reage a ela, à vida, determina o próprio percurso vital. É nesta encruzilhada que se situa o caminhar do poeta.

ESPELHO MÁGICO

Na verdade, o poema funciona como um espelho onde é possível encontrar os nossos próprios sentimentos. Um espelho mágico. Quanto mais isso acontecer maior valor tem um poema. Por isso, é verdade que o leitor pode sentir o poema de forma diferente da do próprio poeta. Quanto mais a construção de um poema lhe der forma de espelho mais possibilidades há de nele sentir o que vivemos ou sofremos. Um poema tenderá sempre a ir ao fundo do sentimento e assim poder ser sentido a partir de experiências diferentes. Mas terá de funcionar como um espelho que devolve a imagem já transfigurada. Um espelho mágico.

A PORTA

Na verdade, o jardim (o meu jardim) existe, mas o jardim poético, esse, é fruto da fantasia. A porta, essa, a da pintura (“Paraíso”), também existe, como acesso ao jardim encantado, não como acesso directo ao cintilante céu onde a fantasia do poeta navega. É sempre necessário descolar com a fantasia a partir do jardim. Digamos que aqui se aplica a natureza híbrida da poesia (como é a do Eros), entre os homens e os deuses, entre o finito e o infinito, entre o jardim terreno e o Éden. Neste sentido, essa porta é a entrada para este espaço intermédio, para esta pista de descolagem da fantasia.

ROUQUIDÃO DA ALMA

Rouquidão da alma, dizia, de si, uma Amiga que comentava um poema meu. É verdade que podemos ficar roucos, por exemplo, quando usamos em excesso as cordas vocais. Dado físico. E podemos ficar roucos de espírito – não de alma, que é diferente – quando usamos em excesso as cordas mentais? Há simetria? Sim, há, e por isso há que moderar o seu uso? No aspecto físico, temos de falar pouco e baixinho para não agredir as cordas vocais. No caso do espírito, mais do que de rouquidão, talvez se deva dizer cansaço, fadiga, havendo pois que moderar a actividade mental. Mas também há espíritos roucos. A rouquidão da alma é estrutural, embora haja quem nunca esteja rouco de alma, por escassez de sensibilidade. No caso da rouquidão do espírito o que é preciso é verbalizar menos, até porque a rouquidão do espírito torna baça e de difícil compreensão a própria expressão. Os que são roucos de espírito são sempre um pouco confusos, sentimentalmente turvos e escuros de alma. O problema é que se não verbalizarmos, não dermos forma às “intensities”, podemos “explodir”, como uma panela de pressão. É por isso que a “rouquidão” da alma é mais perigosa. Os poetas estão sempre em risco e por isso estão sempre em modo poético, não vá a pressão explodir. A poesia de certo modo nasce de uma permanente rouquidão de alma. E é por isso que a sua linguagem é tão minimalista, suave e delicada. Para conter a rouquidão e não “arranhar” as almas, a do poeta e a dos outros.

LIBAÇÕES

Reflecti sobre se uma pintura que ilustrava um poema devia ter título ou não ter. Optei por não ter, porque o título seria o próprio título do poema. Redundância. Mas, pensando no que me disse um Amigo, poderia encontrar uma solução de compromisso, “Rosto para um Poema”, que era “Poema para um Rosto”. E assim decidi mesmo alterar a publicação. Já sobre o nariz do rosto que pintei, ele não é objecto das palavras do poeta, embora o olfacto seja central para a pulsão poética, para as libações aromáticas. Mas está lá. A embriaguez de perfumes do jardim (por exemplo, o do jasmim) é decisiva no seu poetar e ela acontece sensorialmente através do olfacto. Que é, neste caso, tão importante como a boca o é para o beijo, a “poesia dos sentidos”. O poeta, todavia, sente-o como esteticamente pregnante e motivador. Trata-se de libações aromáticas.

Mas ainda há uma outra razão para me ter decidido por não titular a ilustração, nesta “aguarela de palavras”: a sinestesia é intensa e, por isso, deixar a titulação confiada somente ao poema pareceu-me adequado. Mas a solução motivada pela observação pareceu-me que preservaria ou aumentaria mesmo essa intensidade sinestésica daquela “aguarela de palavras”. Por isso, decidi-me pelo título. Não é coisa de somenos, porque do que se trata é da dialéctica da sinestesia.

ROSTO

Comentando uma pintura (“Rosto para um Poema”)  que ilustrava o poema (“Poema para um Rosto”), um Amigo dizia-me que havia ali algumas “parecenças”, como se diz entre nós, com a Amália. “Mas não é ela, a Amália”, respondi-lhe. Essa senhora que também dizia que o canto lhe acontecia. Não é. Aliás, no fado, eu só gosto de alguns poemas cantados e de algumas vozes extraordinárias. Como a dela. Este rosto, disse, é o que eu canto e procura dar forma à alma que seduz ou seduziu o poeta deste poema. O rosto é uma projecção do poema e vice-versa. Há um referente? Não sei. O poema e o rosto valem por si. JAS@12-2024

Noite0905Rec

Poesia-Pintura

A SAUDADE

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Melancolia”, JAS 2022
Original de minha autoria
Dezembro de 2024
JAS_Melancolia2023_12

“Melancolia”. JAS 2022. 80×88, em papel de algodão (310gr) e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em mold. de madeira

POEMA – “A SAUDADE”

NUM DIA
Cinzento
Da vida
Cruzei-me
Com a saudade,
Estava vestida
De negro
E não soube
Que fazer,
Perdido
Lá na cidade,
Nesse triste
Entardecer...

FINGI
Que não a via,
Mas olhei-a
De través,
Sem saber
Por que o fazia
Ou receio
De um revés.

MAS ELA
Entrou em mim
Porque de mim
Não saíra,
Memória
Incompleta
De algo
Que não partira.

É SAUDADE
Do que nunca
Aconteceu
E por isso
Atinge forte,
Como raio
E trovão,
Quem revive
O que viveu
Em sofrida
Solidão.

A SAUDADE
Aparece
Onde menos
Se espera,
Ela sempre
Acontece,
Redonda
Como esfera.

E É NOS DIAS
Cinzentos
Que ela
Sempre
Aparece
Disfarçada
De acaso...
.......
É assim
Que acontece,
É destino
A caminho
Do ocaso.

A SAUDADE,
Imprevisível
E forte,
Encandeia
Quem a sente,
Qual clarão
Em noite escura
Nos dias
Cinzentos
Da vida,
Sempre intensa,
Sempre impura,
Uma infinda
Despedida...
................
Que já nem o tempo
Cura.

QUANTO MAIS 
O tempo passa
Mais a saudade 
Dura 
E cresce
Pois se o passado
Não cura
Para sempre
Permanece.

JAS_Melancolia2023_12Rec

Artigo

GRAMSCI E OS INTELECTUAIS

Por João de Almeida Santos

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“Gramsci”. JAS 2024

HOJE, dia 11.12, terei o gosto de participar, na Associação José Afonso, em Lisboa (Rua de S. Bento), na apresentação do livro de Antonio Gramsci, Os Intelectuais e a Organização da Cultura (Lisboa, Relógio d’Água, 2024), juntamente com a tradutora, Prof.ra Rita Ciotta Neves, a Prof.ra Raquel Varela e o Prof. Roberto della Santa.  Trata-se de uma parte dos Cadernos do Cárcere, na edição originária da Einaudi em seis volumes, que ocorreu entre 1948 e 1951 (as Cartas do Cárcere são de 1947), organizada por Felice Platone e Palmiro Togliatti. Foi assim que começou a enorme expansão dos escritos de António Gramsci, com uma reorganização temática dos aparentemente fragmentários Cadernos do Cárcere (escritos entre 1929 e 1935). Digo aparentemente porque sob essa forma existe uma unidade e uma coerência conceptuais verdadeiramente impressionantes, como veremos. Esta forma de organização temática permitiu um mais fácil acesso e uma melhor divulgação da obra (veja Bobbio, 1990: 116-124). A edição crítica dos Cadernos, publicados por ordem cronológica, só aconteceria em 1975, pelo Instituto Gramsci e sob a responsabilidade de Valentino Gerratana  (Gramsci, 1975).

Este livro que hoje apresentamos é o segundo livro de Gramsci que a Prof.ra Rita Ciotta Neves traduz para português, depois de, em 2012, ter traduzido (e com uma excelente introdução) uma selecção de escritos a que deu o título de Gramsci, a Cultura e os Subalternos (Gramsci, 2012), em cuja apresentação, de resto, também tive o gosto de participar. Aplaudo esta nova edição num país em que Gramsci pouco tem sido estudado, traduzido e divulgado, apesar da sua reconhecida importância no panorama mundial.

1.

Três dados, meramente quantitativos, bastariam para mostrar a importância do pensamento de Gramsci (são cerca de seis mil páginas) a nível mundial: 1) são mais de 20.000 os textos sobre o pensamento de Gramsci; 2) são 1544 os livros publicados sobre o político e pensador sardo; 3) são cerca de 40 as línguas em que o pensamento de Gramsci é tratado. Estes dados constam da Bibliografia Gramsciana, fundada por John Cammett, da responsabilidade da Fundação Instituto Gramsci, e agora ao cuidado, em particular, de Maria Luisa Righi. Mas uma visão mais completa da presença de Gramsci no mundo pode ser consultada no riquíssimo volume Gramsci nel Mondo, com textos de 27 importantes autores e sobre os países de língua inglesa e de língua alemã; sobre a África do Sul, Argentina, Brasil, China, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Japão, México; sobre Gramsci no mundo árabe; sobre Gramsci na cultura soviética; e outros temas relacionados com a presença de Gramsci no mundo. O Brasil consta, através de um artigo de Carlos Nelson Coutinho, mas Portugal não consta deste livro  da FIG, com organização de Maria Luisa Righi (Righi, 1995).

2.

Mas os dados quantitativos, que são impressionantes, podem ser um sinal de que algo mais importante está em causa na obra de Gramsci. E está. E não falo da exemplaridade da sua curta vida (morreu com 46 anos na sequência de cerca de 10 anos na prisão, onde as suas já precárias e congénitas condições de saúde se agravaram até à morte), da disciplina interior, do rigor e da verticalidade moral de um homem que em condições verdadeiramente desastrosas consegue produzir uma obra imorredoura, “fuer ewig”, como ele dizia, os Cadernos do Cárcere, contrariando as palavras assassinas do Procurador Michele Isgrò que, durante o “processone” de 1928, afirmara que teriam de impedir que o cérebro de António Gramsci funcionasse durante vinte anos, o tempo de prisão a que foi efectivamente condenado. Ele ficou, sem dúvida, como um dos mais importantes membros do chamado marxismo ocidental, muito mais sofisticado e complexo do que o marxismo ortodoxo, oficial ou institucional, ao lado dos intelectuais da Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Walter Benjamin, Marcuse ou Habermas) do estruturalismo francês ou da italiana escola de Della Volpe; ele inspirou os Cultural Studies, de Stuart Hall; a esquerda latino-americana tem nele um dos mais importantes e divulgados inspiradores; e até a direita o estuda com o objectivo de tentar consolidar uma hegemonia conservadora nas democracias representativas; uma jornalista do New York  Times, Flora Lewis, atribuiu-lhe, em 1989, a introdução do conceito de sociedade civil na política moderna; no mesmo ano, Michael Novak, um ex-embaixador e membro do conservador American Enterprise Institut, escrevia um artigo na revista Forbs com o título “The gramscists are coming” e até o ditador Pinochet afirmaria, em 1992, numa entrevista à Konsomolskaya Pravda que “a doutrina do comunista Antonio Gramsci é o marxismo com fato novo” e que ele “é perigoso porque penetra na consciência das pessoas e, em primeiro lugar, na dos intelectuais” (Santos, 2006: 98); foi notória a influência de Gramsci no pensamento de Louis Althusser (veja-se Lire le Capital e sobretudo o ensaio “Idéologie et appareils Idéologiques d’Etat”), ainda que mediado pelo seu estruturalismo e anti-historicismo e por uma clara distanciação crítica; a famosa obra de Edward Said, Orientalismo, foi escrita sob influência do pensamento de Gramsci, sendo Said confessadamente gramsciano e tendo a ideia central do livro certamente encontrado nos escritos de Gramsci sobre a questão meridional, nas suas relações com o norte industrializado, a sua própria matriz (1); como sublinha, e bem, a Prof.ra Rita Ciotta Neves no livro sobre Gramsci e os subalternos, também os estudos subalternos, designadamente de Ranajit Guha e de Gayatri Spivak, devem a sua inspiração a Gramsci (Neves, 2012: 29-38);  isto para não falar da sua poderosa influência na cultura e na política italiana ou do que sobre dele disse, Peter Glotz, que foi director executivo federal do SPD, governante e deputado ao Bundestag durante dezoito anos: “este homem (…) era dotado de uma visão realista superior à da maior parte dos dirigentes políticos da esquerda de hoje”, tendo ainda formulado a proposta de passar, na esquerda alemã, do “Kautsky que está em nós” para um Gramsci mais moderno e eficaz, metabolizando politicamente conceitos tão originais como “moderno príncipe” (o partido), “intelectual orgânico”, “bloco histórico”  ou “hegemonia”; estes dois últimos “conceitos capazes de assumir significado determinante nos conflitos sociais dos anos oitenta” e de “importância vital para a esquerda europeia” (Glotz; 1987: 24-25). E a lista poderia continuar, mas creio que para o meu objectivo isto chegue.

3.

Gramsci foi, sem dúvida, um marxista original e é necessário sublinhar que o seu pensamento, sobretudo o dos Cadernos, não se identifica com o marxismo oficial ou ortodoxo. Sabemos que este marxismo só viria a ser codificado em 1938, no n.º 2 do capítulo IV da História do Partido Comunista (Bolchevique) da URSS, dois anos depois da primeira e decisiva Constituição da URSS, de 1936: o DIAMAT e o ISTMAT, o materialismo dialéctico e o materialismo histórico (que se tornaria a bíblia marxista-leninista, divulgada em todo o mundo). Gramsci morrera um ano antes, a 27 de Abril de 1937, na clínica Quisisana, de Roma. Por isso, a sua posição sobre este marxismo pode definir-se não a partir deste texto oficial (atribuído a Stalin), mas, sim, a partir da sua crítica a uma obra muito mais sofisticada da autoria de um importante intelectual e político soviético, Nikolai Bukárine: Teoria do Materialismo Histórico. Ensaio popular de sociologia marxista, de 1921, e que também conheceria uma grande divulgação, inclusivamente em Portugal (Bucharin, 1977; e Santos, 1986: 40-61). A crítica de Gramsci é simples: trata-se de uma visão centrada num materialismo positivista e metafísico inspirado mais em Engels (na Dialéctica da Natureza e no Anti-Dühring) do que em Marx. Há uma passagem  muito elucidativa a este respeito no Q., 4, § 11, 433: “Di questa espressione ‘materialismo storico’ si è dato il maggior peso al primo membro, mentre dovrebbe essere dato al secondo. Marx è essenzialmente uno ‘storicista’ “. Fica tudo dito. Daqui o historicismo de Gramsci, mas não o que do assunto pensa Althusser, em Lire le Capital (2). Uma análise aprofundada da crítica de Gramsci a Bukárine fi-la no meu livro O Princípio da Hegemonia em Gramsci (Santos, 1986: 40-61). Não se trata, todavia, de uma mera divergência filosófica, mas estrutural, centrada numa rede conceptual inovadora e muito diferente da de Bukárine. De resto, poderíamos recuar até 24 de Novembro de 1917 para vermos como Gramsci se apercebera de imediato das características da revolução russa e da sua diferença relativamente às teses de Marx, ao escrever um famoso artigo no “Avanti!” sobre a Revolução de Outubro: “La rivoluzione contro il ‘Capitale’ ” – de Marx, entenda-se  (Gramsci,1958: 149-153). Uma exaltação da vontade colectiva contra um certo determinismo de inspiração positivista. Mais tarde, explicará que a revolução russa foi desencadeada como “guerra de movimento”, que, pela natureza da sociedade civil russa, podia ser desencadeada sem que fosse atingido o grau de desenvolvimento previsto por Marx para acontecer. Diria também que nas sociedades onde a sociedade civil é mais robusta já não é possível uma “guerra de movimento”, mas, sim, uma “guerra de posição”, aquela que deve estar virada para a conquista da hegemonia e para a formação de um sólido e compacto bloco-histórico. E é aqui que ele verdadeiramente centra o processo político nas sociedades mais desenvolvidas.

4.

Não é, pois, difícil perceber que Gramsci via mais longe e isso poderá ser confirmado quando na famosa carta do PCd’I ao Comité Central do PCUS, de outubro de 1926, pede que seja superada a grave divisão interna entre a maioria e a minoria chefiada por Trotsky, Zinoviev e Kamenev e sobretudo que “Il Comitato centrale  dell’URSS non intenda stravincere nella lotta e sia disposta ad evitare le misure eccessive” (Spriano, 1988: 133; e Gramsci, 1978: 124-137 ). Todos viriam a morrer por ordem de Stalin, incluído, depois, o próprio Bukárine. Quem ler as duas cartas trocadas entre Gramsci e Togliatti poderá verificar a diferença radical de posições dos dois líderes a propósito da famosa carta. Embora Paolo Spriano, o historiador oficial do PCI, autor dos 5 volumes da História do PCI (Spriano, 1970), no livro acima citado, procure demonstrar o alinhamento entre Gramsci e o partido, e designadamente com Togliatti, a verdade é que a divergência com o futuro líder do PCI já era efectiva. Togliatti era um homem completamente alinhado com Moscovo e até viria a ser autor do relatório que levou à expulsão, em 1948, da Liga dos Comunistas da Jugoslávia do Kominform, tendo sido convidado por Stalin, em 1951, para presidir ao Kominform e aceitado a intervenção soviética na Hungria em 1956. Stalin diria, por ocasião do seu 70.º aniversário, que Togliatti viria a ocupar “um lugar que, até agora, poucos ocuparam na história da humanidade” (Santos, 2003: 171). Diga-se, todavia, e em abono da verdade, que esse mesmo Togliatti, já líder incontestado e reconhecido do PCI,  haveria de promover activamente a obra de Gramsci logo a seguir ao fim da guerra. Mas é verdade que as diferenças do pensamento de Gramsci em relação ao marxismo oficial são claras e profundas e podem ser compreendidas a partir dos conceitos de ideologia, guerra de movimento, guerra de posição, hegemonia, bloco histórico, partido como “moderno príncipe”, intelectual orgânico, nacional-popular, Estado, bloco intelectual, revolução passiva, materialismo histórico.

5.

Não é o caso de aqui esmiuçar todos estes conceitos, mas é possível assinalar alguns aspectos, para além do que já referi acerca do conceito de materialismo ou de guerra de movimento e guerra de posição. Evidencio, todavia, os conceitos de ideologia, de hegemonia e de intelectual, na sua profunda articulação. O conceito de hegemonia difere do conceito leniniano porque é mais amplo, tratando-se de uma realidade ético-política e cultural e não somente de supremacia política. Só uma ideia de ideologia como vasta esfera onde os indivíduos reconhecem e identificam a realidade, desde os níveis mais elementares (como, por exemplo, o do folclore ou o do dialecto) até aos níveis mais elevados da filosofia pode articular um conceito de hegemonia como ele a concebe. Em A Ideologia Alemã, a ideologia era considerada como falsa consciência, ilusão, inversão do real na consciência dos indivíduos e, de qualquer modo, imputável aos “ideólogos activos” como seus agentes. Não é esta a concepção de Gramsci, uma vez que lhe atribui uma tripla dimensão: cognitiva (o reconhecimento do real por seu intermédio), ontológica (esfera real que tem como expressão orgânica as ideias, a filosofia, os valores, as crenças, as religiões, as atitudes, as tradições, a língua, os dialectos, etc., etc,) e normativa (poder de levar à acção). Estas dimensões positivas da ideologia, como um vasto e diferenciado campo significante com dimensão ontológica, e não como realidade simulacral, é que constituirão o universo onde ocorre o processo hegemónico, a dimensão ético-política da história, e é nelas que intervêm os intelectuais enquanto mediadores entre a sociedade civil e a superestrutura política e jurídica, capazes, pois, de conquistar a hegemonia e de promover um sólido bloco histórico. Ele difere também daqueles – e são muitos; por exemplo, Althusser – que consideram que o seu uso do conceito de sociedade civil é impróprio do marxismo, apesar de ele o ter ido buscar ao pequeno volume Zur Judenfrage, de Marx (Santos, 1986: 129-152).  Mas é precisamente na sociedade civil, nos organismos da sociedade civil (e não aparelhos ideológicos de Estado, como quer Althusser, que considerava a sociedade civil como um conceito próprio dos escritos de juventude de Marx), enquanto esfera privada, que se produz e reproduz a ideologia e que intervêm os intelectuais tendo como objectivo conquistar a hegemonia, num processo que pode ser definido como guerra de posição. Também poderia ainda acrescentar que há um autor, Franco Lo Piparo, que radica o conceito de hegemonia no conceito linguístico de prestígio (Ascoli), constituindo uma sua reelaboração e enriquecimento (Lo Piparo,1979, pág. 145; mas veja-se pág.s 103-151). Em O Princípio da Hegemonia em Gramsci desenvolvo uma longa informação e argumentação sobre este assunto (Santos, 1986: 111-152; especialmente 140-152).

6.

Interessante, a este respeito, o que Gramsci escreve sobre o taylorismo, o americanismo e o fordismo e como estas considerações podem explicar a sua ideia sobre a sociedade regulada. Em poucas palavras,  o processo produtivo nos Estado Unidos levou a uma racionalização global da sociedade americana, até porque esta não era condicionada por “um resíduo passivo de todas as formas sociais ultrapassadas na história” (Q., III, 2168, § 11), como acontecia na Europa, que impedisse o processo de racionalização das condições elementares de desenvolvimento histórico e, assim, a própria possibilidade de racionalização da produção e do trabalho (Santos, 1986: 69-79). Este processo, ao generalizar-se, implicava toda a sociedade pelo que implicava também a sua gestão política, replicando-se deste modo, no plano superstrutural do Estado, a separação entre programação e execução taylorística do trabalho produtivo. Ou seja, a dissociação entre proprietários/managers e operários/produtores encontraria uma equivalência na dissociação entre governantes e governados. Por isso, ao Estado eram requeridas poucas funções e até os intelectuais pouco contribuíam para uma hegemonia que nascia da fábrica, que assentava na generalização da racionalização produtiva, com todos os dispositivos normativos correspondentes a determinarem a vida dos produtores directos (fordismo). Portanto, de um lado, a programação económica e política centralizadas e, do outro, a execução técnica pelos produtores atomizados e confinados no processo produtivo. O que diz Gramsci? Que a solução seria a da organização não corporativa dos produtores directos (sindicatos e partido ou partidos) de modo a reabsorverem as duas realidades separadas: a da programação económica e a da programação política. Esta reabsorção, neste universo racionalizado permitiria evoluir para a chamada sociedade regulada, onde não se já não verificaria esse fosso entre programação e execução. Cito do meu livro sobre o princípio da hegemonia: “a crítica de Gramsci há-de centrar-se, portanto, no facto de, pelas exigências internas do processo de racionalização, a sociedade civil, por um lado, se generalizar, reproduzindo-se como sociedade política, à custa do aprofundamento do controlo privado do destino social da produção através da programação alargada e, por outro, se atomizar, individualizar e particularizar sempre de modo crescente pelo aprofundamento da separação da esfera da produção directa  e parcelar em relação à do controlo global desta esfera. Se, por um lado, uma parte da sociedade civil se reproduz sempre mais como género através da esfera política a outra reproduz-se simetricamente e de modo crescente como natureza individualizada (o “gorila domesticado”), na medida em que crescem as exigências de especialização”, ao mesmo tempo que o controlo social sobre a produção só pode funcionar como poder político (Santos, 1986: 76-77). Esta situação só poderá ser superada pela emergência do trabalhador colectivo organizado e hegemónico e pela reabsorção da sociedade política na sociedade civil. É evidente aqui a influência da Questão Hebraica, de Marx. Como é evidente a crítica da concepção hegeliana de Estado. O que, de resto, já acontecera na Kritik des Hegelschen Staatsrechts. É claro que aqui reside um núcleo crítico da teoria gramsciana: o organicismo que se opõe à teoria da representação. Mas não é o caso de aqui discutir os fundamentos da sua utopia da sociedade regulada.

7.

Neste contexto, o partido teria uma função essencial, desempenhada pelos seus “intelectuais orgânicos”. Gramsci fala, sim, do partido como o “novo príncipe” (Q., 5, 662, §127). Moderno Príncipe: “formazione di uma volontà colettiva nazional-popolare di cui il moderno Principe è appunto espressione attiva e operante, e riforma intellettuale e morale”. “Egli prende il posto, nelle coscienze, della divinità e del imperativo categórico, egli è la base di un laicismo moderno e di una completa laicizzazione di tutta la vita e di tutti i rapporti di costume” (Q, 8, §21, 953). Por um lado, alternativa ao fundamento divino do poder, por outro assunção partidária do princípio moral expresso na imperativo categórico. Na verdade, podemos pensar num contraponto ao monarca que encarna o Estado (ou, então, como diz Gramsci, no “condottiero ideale”), por exemplo, como em Hegel, mas que deriva da aristocracia reinante; o “príncipe moderno” – o partido – que interpreta a vontade colectiva nacional-popular e que deriva dela, aspirando a gerir o Estado para promover uma reforma intelectual e moral.  De laicização se trata, pois, lá onde o povo-nação emerge, por analogia com a aristocracia, com pretensões de se elevar à chefia do Estado e de, assim, promover uma profunda reforma intelectual e moral. Nada de estranho, pois.

8.

Gramsci tem um conceito alargado de intelectual tal como já acontecia com a ideologia: vai dos “simples administradores” até aos grandes filósofos, como, por exemplo, Benedetto Croce, que ele chega a apelidar de “papa laico”, porque conseguiu ligar os intelectuais meridionais que compactam as massas camponesas, promovendo um bloco histórico que integra o bloco agrário  do mezzogiorno e a burguesia industrial do norte. Croce projectava, assim, os intelectuais meridionais a um plano nacional e mesmo europeu, construindo deste modo um sólido “bloco intelectual” capaz de recobrir, de compactar e dar coerência ao “bloco histórico” formado pela aristocracia agrária do mezzogiorno e a burguesia industrial do Norte. O “bloco intelectual” faz a mediação entre a sociedade civil e a superestrutura política e jurídica, dando-lhe coesão no plano ético-político. É daqui, da actividade propulsora e integradora da filosofia de Croce, que nasce a sua condição de “papa laico”.

Como se vê, a importância funcional dos intelectuais é em Gramsci enorme pois eles funcionam como promotores da ligação orgânica entre a sociedade civil e a superestrutura político-jurídica. E esta função deve-se também à ideia que Gramsci tinha da ideologia como vasto campo significante com densidade ontológica onde acontece o reconhecimento e a identificação da realidade social e onde se processa a hegemonia. Nisto, Gramsci reconhece-se na célebre passagem do Prefácio à Contribuição para a Crítica da Economia Política, de 1859 (3). O consenso como cimento ideológico e político de uma solução histórica e política. Trata-se de intelectuais orgânicos e não de marketeers; de uma narrativa ético-política com profundidade temporal e não de fórmulas publicitárias dirigidas ao mercado eleitoral para vencer as próximas eleições; de guerra de posição e não de uma guerra de movimento

9.

Com efeito, muitas vezes se coloca a questão de saber acerca da compatibilidade do pensamento de Gramsci com a democracia representativa. Sim, mas uma coisa é certa: a sua resposta não será igual à do marxismo ortodoxo. A esta questão já respondera nos escritos de juventude dizendo que só seria possível superar a democracia parlamentar, vivendo-a. Depois, o primado da teoria do consenso e a necessidade de travar uma guerra de posição em sociedades com uma sociedade civil robusta, rejeitando, nelas, a guerra de movimento; depois, ainda, a ideia de um “novo príncipe”, fundado no nacional-popular e numa política totalmente laicizada. Sobre o conceito de nacional-popular, julgo útil citar uma passagem do meu livro Os Intelectuais e o Poder, porque permite ver como ele resolve a velha dicotomia nação-povo: “o conceito gramsciano de nacional-popular, operando em conjunto com a teoria dos intelectuais orgânicos e a teoria da hegemonia, visa exactamente resolver essa questão da separação entre nação e povo, sem dissolver um conceito no outro: nem essa totalidade concreta que é o povo na universalidade mais formal e funcional da nação, para não retirar a esta (nação) a legitimidade substancial de que carece, nem esta naquele, para que o povo não se reduza a um mero agregado orgânico e contingente de indivíduos fisicamente determinados” (Santos, 1999: 107-108). Como se vê, a chave desta relação reside na mediação dos intelectuais orgânicos e do “moderno príncipe” ou partido, que aspira à hegemonia.

Se a democracia é compatível com monarquias constitucionais, mais fácil será admitir que ela pode coexistir com a hegemonia do “moderno príncipe”. A diferença reside na génese e, consequentemente, na legitimidade. Claro, Gramsci tinha uma utopia: a sociedade regulada. A sociedade onde o consenso fosse dominante em relação às formas de governo burocráticas e dotadas de mecanismos coercitivos e impositivos. A sociedade regulada como uma forma de organização superior onde a legitimidade derivava da hegemonia entendida como triunfo do consenso, da cultura e de uma vontade colectiva verdadeiramente representativa do espírito nacional-popular. Gramsci era marxista e talvez o seu pensamento até se destaque com mais actualidade do que o dos outros e ilustres representantes do marxismo ocidental porque, no essencial, ele densifica, laiciza e enobrece a política ancorando-a, através da ideologia, nas formas culturais difusas que exprimem essa dimensão nacional-popular. Num tempo em que a política parece cada vez mais simulacral e uma via para o exercício do poder pelo poder, a densificação da política que se reconhece no pensamento de Gramsci é decisivamente cada vez mais necessária. O papel que ele atribui aos intelectuais orgânicos e o modo como os define é indicativo do papel que ele atribui à consciência e, por isso mesmo, à cultura e ao reconhecimento do real através das diferentes formas culturais, das mais elaboradas às mais simples. Este papel dos intelectuais orgânicos, a sua centralidade, não é do mesmo modo reconhecido pelo marxismo ortodoxo. Talvez também por isso Gramsci se destaque dos outros expoentes e brilhantes intelectuais do marxismo ocidental.

NOTAS

(1) Veja o interessante ensaio de Gramsci “Alcuni Temi della Quistione Meridionale”, de 1926. In Gramsci, 1978: 137-158.

(2) Paris, Maspero, 1973, I, V: “Le marxisme n’est pas un historicisme”, pp. 150-184, especialmente pp.174-175.

(3) Veja o meu ensaio “A Questão da Ideologia: de ‘A Ideologia Alemã’ aos ‘Cadernos do Cárcere’. In Biblos, LIII, 1977, 207-268.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, N. (1990). Saggi su Gramsci. Milano: Feltrinelli.

BUCHARIN, N. (1977). Teoria del materialismo storico . Saggio popolare di sociologia marxista. Firenze: La Nuova Italia.

GLOTZ, P. (1987). “Il ‘Moderno Principe’ nella società dei due terzi”. In Rinascita, Roma, n.º 8.

GRAMSCI, A. (1958). Scritti giovanili. Torino: Einaudi.

GRAMSCI, A. (1978). La Costruzione del Partido Comunista (1923-1926). Torino: Einaudi.

GRAMSCI, A. (1975). Quaderni del Carcere. Torino: Einaudi (I-IV).

GRAMSCI, A. (2012). Gramsci, a Cultura e os Subalternos. Lisboa: Colibri.

LO PIPARO, F, (1979). Lingua, intellettuali, hegemonia in Gramsci, Roma-Bari, Laterza, 1979, pág. 145; mas veja-se 103-151.

NEVES, R. C. (2012). “Introdução” a Gramsci, a Cultura e os Subalternos. Lisboa: Colibri.

RIGHI, M. L. (Org.). 1995. Gramsci nel Mondo. Roma: Fondazione Istituto Gramsci.

SANTOS, J. A. (2006). “Hegemonia: O primado do consenso na teoria política de Gramsci”. In Neves, José (Org.), 2006. Da Gaveta para Fora. Ensaios sobre Marxistas. Porto: Afrontamento (pp. 79-107).

SANTOS, J. A. (2003). “Novas formas de comunismo e radicalismo de esquerda”. In Reis, A. (Org.). 2003). As grandes correntes políticas e culturais do século XX. Lisboa: Colibri/IHC da FCSH da Univ. Nova de Lisboa.

SANTOS, J. A. (1999). Os Intelectuais e o Poder. Lisboa: Fenda.

SANTOS, J. A. (1986). O princípio da hegemonia em Gramsci. Lisboa: Vega.

SPRIANO, P. (1970). Storia del Partito Comunista Italiano. Torino: Einaudi.

SPRIANO, P. (1988). Gramsci in Carcere e il Partito. Roma: L’Unità.

JAS@12-2024

antonio-gramsci2024_12Rec

 

Poesia-Pintura

A FIGUEIRA

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Pasárgada”
JAS 2021
Original de minha autoria
Dezembro de 2024
Jas02Pasárgada2021

“Pasárgada”, JAS 2021, 108×138, impressão Giclée em papel de algodão (310gr) e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em mold, de madeira

POEMA – “A FIGUEIRA”

EU TINHA
Uma figueira
Lá onde está
O tão cantado
Loureiro.
Generosa
E fagueira
Dela fiquei
Prisioneiro
Ou até
Enamorado.

NA AURORA
Da minha vida
Dava figos
Ping’o mel
Que, deliciado,
Comia.
Crescendo, assim,
A seu lado
Era belo
O que sentia...
...........
Ser por ela
Acarinhado.

MAS UM DIA
Ela morreu.
Fiquei triste
E calado,
Sem saber
O que fazer...
..............
Mas logo plantei
Um loureiro
Mesmo ali
A seu lado
E fiz tudo
(Mesmo tudo)
Para por ele
Ser amado,
Para com ele
Eu crescer.

TORNEI-ME
Um bom
Jardineiro,
No afecto
Imaculado
Para ver se
Conseguia
Ficar de novo
Encantado.

E NÃO É QUE
Consegui!
Partira
À aventura,
Já sem figos
E doçura,
Mas foi tão forte
O que senti
Que ainda hoje
Perdura.

PERDER
Ou ganhar,
São estas
As leis da vida,
Perdi
A minha figueira,
Logo encontrei
Um amigo
No dia
Da despedida.

E ASSIM
Eu consegui
Recriar
O que perdi
Ao plantar
O loureiro,
Porque vê-lo
No jardim
(Também ele
É fagueiro)
Estimula
A fantasia:
Recrio
A velha figueira
Com um golpe
De magia,
É emoção
Verdadeira
Em forma
De poesia.
Jas02Pasárgada2021Rec

“Pasárgada”, JAS 2021. Detalhe

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (V)

PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA

Por João de Almeida Santos

Transfiguração_2

“Transfiguração”, JAS 2024

SONHO COM OLHOS ABERTOS

A poesia é sonho com olhos abertos, com os sentidos em alerta e a fantasia em movimento.

RITUAIS

Os rituais, mesmo os que acontecem no universo digital, têm poder, dão forma, solenidade e regularidade a acontecimentos relevantes. Neste caso, a intensities. O ritual poético dá forma, sentido e solenidade à relação do poeta com a musa e com os amantes da poesia. Uma forma especial de partilha. Nos rituais há evocações, sim, mas também invocações que chamam a musa à presença. E o lugar deputado é um templo porque nele o silêncio, a refracção da luz pelos vitrais e a penumbra dão solenidade ao chamamento poético. Algo de que a poesia sempre precisa para acontecer em plenitude.

POESIA NÃO É MONÓLOGO

Transformar a perda em criação, vestir o passado de palavras e dar voz ao silêncio. É verdade. É esta a missão do poeta. Por imperativo existencial. E se o fizer bem fala de si e de todos. O poeta sente isso como missão. A poesia não é monólogo, ela deve falar por todos e para todos, sem deixar de ser a fala de um poeta singular.

A SINA DO POETA

Sina de poeta. Concordo. Até considero que poeta sem sina não é poeta. Ele é escolhido pelo destino ou pelos deuses. E é daí que lhe advém a responsabilidade e o desejo de universalidade. E a humildade de alguém que foi escolhido, a quem foi concedido um dom e a responsabilidade de o honrar. Mas também a necessidade de, nessa medida, que o ultrapassa, recriar o seu tempo de vida, para além daquele com que o destino o marcou. Para ser um pouco mais livre, porque é no intervalo entre a necessidade e a liberdade que se inscreve o discurso poético.

VER COM A ALMA

A poesia dá conta do que a alma vê. O sublime só pode ser visto e atingido com a alma. Os sentidos não chegam. A técnica também não, mesmo quando é virtuosa. É por isso que a sinestesia ajuda a ver melhor.

ASSALTO PULSIONAL

Que seria dos poetas sem as musas? Elas inspiram, provocam, muitas vezes com silêncio teimosamente reiterado e como castigo, e agitam-se nas profundezas da memória afectiva. Tudo isto se converte em imperativo existencial a exigir resposta. E o pobre poeta tem mesmo de obedecer. Mas, no fim, acaba por ficar feliz, porque deu forma a este assalto pulsional que o fez (o faz sempre) estremecer e o pôs (põe sempre) em sobressalto. A pintura ajuda a pacificar porque nela intervém o olhar. É a versão sensorial do que ocorre na alma, lá mais profundamente, daquilo de que a poesia dá conta. Na pintura “Perfil de Musa” o perfil sereno, mas severo, da musa, o negro dos seus cabelos e o vermelho dos lábios fazem a ponte para o poema (“Confissão”).

NEBLINA

O pintor-poeta sentiu alguma dificuldade na execução de um certo retrato (e foi por isso que teve de estilizar o rosto com um perfil, “Perfil de Musa”, deixando apenas algumas marcas, acenadas no poema) porque a nitidez da memória visual  (do referente, que às vezes existe) com o tempo diminuíra. Interpusera-se uma leve neblina que não deixava ver o rosto com essa desejada nitidez, apesar de a visão interior, a da alma, se manter fresca e, com essa, sim, poder desenhar-lhe poeticamente o rosto, à perfeição. Claro, a perfeição seria a da poesia e os riscos seriam as palavras. A estilização plástica seria quase obrigatória, mas somente com algumas marcas identificáveis no poema.

RESISTÊNCIA

A poesia está protegida pela blindagem do sentimento, que se conserva dentro, na alma, e não sofre a mesma erosão que afecta os sentidos físicos. A resistência dos sentimentos (a força das pulsões) é tão forte que até exige fugas para não provocar danos (como as panelas de pressão). Aqui entra a verbalização poética, com toda a sua riqueza plástica e musical, dando asas ao sentimento, pondo o poeta em levitação e libertando-o dessa poderosa pulsão que tende a oprimir se não for libertada – a tristeza que se converte em doce melancolia.

RELAÇÃO ESPECULAR

O que fica do que aconteceu ou do que não aconteceu é o que ele significou. O que foi até pode ter sido pobre ou mesmo pura ilusão. A relação amorosa ser, por exemplo, unilateral, ou seja, não ter sido verdadeiramente uma relação, por falta de correspondência. As saudades do que não aconteceu são mais fortes do que as do que aconteceu, dizia o Pessoa (o Bernardo Soares). Portanto, o que conta é o que significou, o que foi sentido, não o modo como isso aconteceu ou não, ficando como saudade. E não é solipsismo. O Aristófanes (o crítico de Sócrates, por exemplo, nas “Nuvens”) no “Symposion”, de Platão, dizia que o amor é a busca da nossa outra parte de que os deuses, por castigo, nos privaram. Ou seja, no amor sou mais eu do que o outro que amo. Ou, pelo menos, o outro tem de ser como que a outra parte que nos falta, o nosso complemento. Uma relação de tipo especular. No espelho reflecte-se o que, de nós, parece permanecer ainda oculto. O espelho, neste caso, é o outro. E nele vemos o que de nós ainda não encontráramos. Por isso, não se trata propriamente de uma relação. Algo parecido é o que também dizia o Bernardo Soares: “Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. (…) “em suma, é a nós mesmos – que amamos”. Por outro lado, ou do mesmo lado, é provável a ideia de que a memória visual se esbata no tempo, enquanto a memória afectiva persiste, às vezes até de forma excessiva, a ponto de doer, doer muito, e de representar mais o próprio do que o outro. Os poetas sofrem desta dor, desta “maladie d’amour”. O amor encontra-se no amante, não no ser amado, lê-se também no “Symposion”. Não há simetria perfeita no amor. Depois, se passarmos para o amor cantado em poesia, o crescimento subjectivo do amor (ao nível daquilo que o Kant designava por “universal-subjectivo”, na “Crítica do Juizo”) é sem limites.

O PRESENTE E O PASSADO

O presente como sobrevivência do passado. É verdade, mas o presente é mais do que sobrevivência do passado porque também é antecipação do futuro. O presente é intersecção do futuro com o passado. Mas há passado e passado. Há, sim, o que resiste porque significou muito… e até pelo que não aconteceu e poderia ter acontecido. E quando a poesia o assume ele já é mais futuro do que passado, podendo mesmo identificar-se com a eternidade. A poesia vai lá para o trazer de volta e, dando-lhe forma, colocá-lo no futuro. Aqui está o que eu penso do passado que sobrevive. JAS@12-2024

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