GRAMSCI E OS INTELECTUAIS
Por João de Almeida Santos

“Gramsci”. JAS 2024
HOJE, dia 11.12, terei o gosto de participar, na Associação José Afonso, em Lisboa (Rua de S. Bento), na apresentação do livro de Antonio Gramsci, Os Intelectuais e a Organização da Cultura (Lisboa, Relógio d’Água, 2024), juntamente com a tradutora, Prof.ra Rita Ciotta Neves, a Prof.ra Raquel Varela e o Prof. Roberto della Santa. Trata-se de uma parte dos Cadernos do Cárcere, na edição originária da Einaudi em seis volumes, que ocorreu entre 1948 e 1951 (as Cartas do Cárcere são de 1947), organizada por Felice Platone e Palmiro Togliatti. Foi assim que começou a enorme expansão dos escritos de António Gramsci, com uma reorganização temática dos aparentemente fragmentários Cadernos do Cárcere (escritos entre 1929 e 1935). Digo aparentemente porque sob essa forma existe uma unidade e uma coerência conceptuais verdadeiramente impressionantes, como veremos. Esta forma de organização temática permitiu um mais fácil acesso e uma melhor divulgação da obra (veja Bobbio, 1990: 116-124). A edição crítica dos Cadernos, publicados por ordem cronológica, só aconteceria em 1975, pelo Instituto Gramsci e sob a responsabilidade de Valentino Gerratana (Gramsci, 1975).
Este livro que hoje apresentamos é o segundo livro de Gramsci que a Prof.ra Rita Ciotta Neves traduz para português, depois de, em 2012, ter traduzido (e com uma excelente introdução) uma selecção de escritos a que deu o título de Gramsci, a Cultura e os Subalternos (Gramsci, 2012), em cuja apresentação, de resto, também tive o gosto de participar. Aplaudo esta nova edição num país em que Gramsci pouco tem sido estudado, traduzido e divulgado, apesar da sua reconhecida importância no panorama mundial.
1.
Três dados, meramente quantitativos, bastariam para mostrar a importância do pensamento de Gramsci (são cerca de seis mil páginas) a nível mundial: 1) são mais de 20.000 os textos sobre o pensamento de Gramsci; 2) são 1544 os livros publicados sobre o político e pensador sardo; 3) são cerca de 40 as línguas em que o pensamento de Gramsci é tratado. Estes dados constam da Bibliografia Gramsciana, fundada por John Cammett, da responsabilidade da Fundação Instituto Gramsci, e agora ao cuidado, em particular, de Maria Luisa Righi. Mas uma visão mais completa da presença de Gramsci no mundo pode ser consultada no riquíssimo volume Gramsci nel Mondo, com textos de 27 importantes autores e sobre os países de língua inglesa e de língua alemã; sobre a África do Sul, Argentina, Brasil, China, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Japão, México; sobre Gramsci no mundo árabe; sobre Gramsci na cultura soviética; e outros temas relacionados com a presença de Gramsci no mundo. O Brasil consta, através de um artigo de Carlos Nelson Coutinho, mas Portugal não consta deste livro da FIG, com organização de Maria Luisa Righi (Righi, 1995).
2.
Mas os dados quantitativos, que são impressionantes, podem ser um sinal de que algo mais importante está em causa na obra de Gramsci. E está. E não falo da exemplaridade da sua curta vida (morreu com 46 anos na sequência de cerca de 10 anos na prisão, onde as suas já precárias e congénitas condições de saúde se agravaram até à morte), da disciplina interior, do rigor e da verticalidade moral de um homem que em condições verdadeiramente desastrosas consegue produzir uma obra imorredoura, “fuer ewig”, como ele dizia, os Cadernos do Cárcere, contrariando as palavras assassinas do Procurador Michele Isgrò que, durante o “processone” de 1928, afirmara que teriam de impedir que o cérebro de António Gramsci funcionasse durante vinte anos, o tempo de prisão a que foi efectivamente condenado. Ele ficou, sem dúvida, como um dos mais importantes membros do chamado marxismo ocidental, muito mais sofisticado e complexo do que o marxismo ortodoxo, oficial ou institucional, ao lado dos intelectuais da Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Walter Benjamin, Marcuse ou Habermas) do estruturalismo francês ou da italiana escola de Della Volpe; ele inspirou os Cultural Studies, de Stuart Hall; a esquerda latino-americana tem nele um dos mais importantes e divulgados inspiradores; e até a direita o estuda com o objectivo de tentar consolidar uma hegemonia conservadora nas democracias representativas; uma jornalista do New York Times, Flora Lewis, atribuiu-lhe, em 1989, a introdução do conceito de sociedade civil na política moderna; no mesmo ano, Michael Novak, um ex-embaixador e membro do conservador American Enterprise Institut, escrevia um artigo na revista Forbs com o título “The gramscists are coming” e até o ditador Pinochet afirmaria, em 1992, numa entrevista à Konsomolskaya Pravda que “a doutrina do comunista Antonio Gramsci é o marxismo com fato novo” e que ele “é perigoso porque penetra na consciência das pessoas e, em primeiro lugar, na dos intelectuais” (Santos, 2006: 98); foi notória a influência de Gramsci no pensamento de Louis Althusser (veja-se Lire le Capital e sobretudo o ensaio “Idéologie et appareils Idéologiques d’Etat”), ainda que mediado pelo seu estruturalismo e anti-historicismo e por uma clara distanciação crítica; a famosa obra de Edward Said, Orientalismo, foi escrita sob influência do pensamento de Gramsci, sendo Said confessadamente gramsciano e tendo a ideia central do livro certamente encontrado nos escritos de Gramsci sobre a questão meridional, nas suas relações com o norte industrializado, a sua própria matriz (1); como sublinha, e bem, a Prof.ra Rita Ciotta Neves no livro sobre Gramsci e os subalternos, também os estudos subalternos, designadamente de Ranajit Guha e de Gayatri Spivak, devem a sua inspiração a Gramsci (Neves, 2012: 29-38); isto para não falar da sua poderosa influência na cultura e na política italiana ou do que sobre dele disse, Peter Glotz, que foi director executivo federal do SPD, governante e deputado ao Bundestag durante dezoito anos: “este homem (…) era dotado de uma visão realista superior à da maior parte dos dirigentes políticos da esquerda de hoje”, tendo ainda formulado a proposta de passar, na esquerda alemã, do “Kautsky que está em nós” para um Gramsci mais moderno e eficaz, metabolizando politicamente conceitos tão originais como “moderno príncipe” (o partido), “intelectual orgânico”, “bloco histórico” ou “hegemonia”; estes dois últimos “conceitos capazes de assumir significado determinante nos conflitos sociais dos anos oitenta” e de “importância vital para a esquerda europeia” (Glotz; 1987: 24-25). E a lista poderia continuar, mas creio que para o meu objectivo isto chegue.
3.
Gramsci foi, sem dúvida, um marxista original e é necessário sublinhar que o seu pensamento, sobretudo o dos Cadernos, não se identifica com o marxismo oficial ou ortodoxo. Sabemos que este marxismo só viria a ser codificado em 1938, no n.º 2 do capítulo IV da História do Partido Comunista (Bolchevique) da URSS, dois anos depois da primeira e decisiva Constituição da URSS, de 1936: o DIAMAT e o ISTMAT, o materialismo dialéctico e o materialismo histórico (que se tornaria a bíblia marxista-leninista, divulgada em todo o mundo). Gramsci morrera um ano antes, a 27 de Abril de 1937, na clínica Quisisana, de Roma. Por isso, a sua posição sobre este marxismo pode definir-se não a partir deste texto oficial (atribuído a Stalin), mas, sim, a partir da sua crítica a uma obra muito mais sofisticada da autoria de um importante intelectual e político soviético, Nikolai Bukárine: Teoria do Materialismo Histórico. Ensaio popular de sociologia marxista, de 1921, e que também conheceria uma grande divulgação, inclusivamente em Portugal (Bucharin, 1977; e Santos, 1986: 40-61). A crítica de Gramsci é simples: trata-se de uma visão centrada num materialismo positivista e metafísico inspirado mais em Engels (na Dialéctica da Natureza e no Anti-Dühring) do que em Marx. Há uma passagem muito elucidativa a este respeito no Q., 4, § 11, 433: “Di questa espressione ‘materialismo storico’ si è dato il maggior peso al primo membro, mentre dovrebbe essere dato al secondo. Marx è essenzialmente uno ‘storicista’ “. Fica tudo dito. Daqui o historicismo de Gramsci, mas não o que do assunto pensa Althusser, em Lire le Capital (2). Uma análise aprofundada da crítica de Gramsci a Bukárine fi-la no meu livro O Princípio da Hegemonia em Gramsci (Santos, 1986: 40-61). Não se trata, todavia, de uma mera divergência filosófica, mas estrutural, centrada numa rede conceptual inovadora e muito diferente da de Bukárine. De resto, poderíamos recuar até 24 de Novembro de 1917 para vermos como Gramsci se apercebera de imediato das características da revolução russa e da sua diferença relativamente às teses de Marx, ao escrever um famoso artigo no “Avanti!” sobre a Revolução de Outubro: “La rivoluzione contro il ‘Capitale’ ” – de Marx, entenda-se (Gramsci,1958: 149-153). Uma exaltação da vontade colectiva contra um certo determinismo de inspiração positivista. Mais tarde, explicará que a revolução russa foi desencadeada como “guerra de movimento”, que, pela natureza da sociedade civil russa, podia ser desencadeada sem que fosse atingido o grau de desenvolvimento previsto por Marx para acontecer. Diria também que nas sociedades onde a sociedade civil é mais robusta já não é possível uma “guerra de movimento”, mas, sim, uma “guerra de posição”, aquela que deve estar virada para a conquista da hegemonia e para a formação de um sólido e compacto bloco-histórico. E é aqui que ele verdadeiramente centra o processo político nas sociedades mais desenvolvidas.
4.
Não é, pois, difícil perceber que Gramsci via mais longe e isso poderá ser confirmado quando na famosa carta do PCd’I ao Comité Central do PCUS, de outubro de 1926, pede que seja superada a grave divisão interna entre a maioria e a minoria chefiada por Trotsky, Zinoviev e Kamenev e sobretudo que “Il Comitato centrale dell’URSS non intenda stravincere nella lotta e sia disposta ad evitare le misure eccessive” (Spriano, 1988: 133; e Gramsci, 1978: 124-137 ). Todos viriam a morrer por ordem de Stalin, incluído, depois, o próprio Bukárine. Quem ler as duas cartas trocadas entre Gramsci e Togliatti poderá verificar a diferença radical de posições dos dois líderes a propósito da famosa carta. Embora Paolo Spriano, o historiador oficial do PCI, autor dos 5 volumes da História do PCI (Spriano, 1970), no livro acima citado, procure demonstrar o alinhamento entre Gramsci e o partido, e designadamente com Togliatti, a verdade é que a divergência com o futuro líder do PCI já era efectiva. Togliatti era um homem completamente alinhado com Moscovo e até viria a ser autor do relatório que levou à expulsão, em 1948, da Liga dos Comunistas da Jugoslávia do Kominform, tendo sido convidado por Stalin, em 1951, para presidir ao Kominform e aceitado a intervenção soviética na Hungria em 1956. Stalin diria, por ocasião do seu 70.º aniversário, que Togliatti viria a ocupar “um lugar que, até agora, poucos ocuparam na história da humanidade” (Santos, 2003: 171). Diga-se, todavia, e em abono da verdade, que esse mesmo Togliatti, já líder incontestado e reconhecido do PCI, haveria de promover activamente a obra de Gramsci logo a seguir ao fim da guerra. Mas é verdade que as diferenças do pensamento de Gramsci em relação ao marxismo oficial são claras e profundas e podem ser compreendidas a partir dos conceitos de ideologia, guerra de movimento, guerra de posição, hegemonia, bloco histórico, partido como “moderno príncipe”, intelectual orgânico, nacional-popular, Estado, bloco intelectual, revolução passiva, materialismo histórico.
5.
Não é o caso de aqui esmiuçar todos estes conceitos, mas é possível assinalar alguns aspectos, para além do que já referi acerca do conceito de materialismo ou de guerra de movimento e guerra de posição. Evidencio, todavia, os conceitos de ideologia, de hegemonia e de intelectual, na sua profunda articulação. O conceito de hegemonia difere do conceito leniniano porque é mais amplo, tratando-se de uma realidade ético-política e cultural e não somente de supremacia política. Só uma ideia de ideologia como vasta esfera onde os indivíduos reconhecem e identificam a realidade, desde os níveis mais elementares (como, por exemplo, o do folclore ou o do dialecto) até aos níveis mais elevados da filosofia pode articular um conceito de hegemonia como ele a concebe. Em A Ideologia Alemã, a ideologia era considerada como falsa consciência, ilusão, inversão do real na consciência dos indivíduos e, de qualquer modo, imputável aos “ideólogos activos” como seus agentes. Não é esta a concepção de Gramsci, uma vez que lhe atribui uma tripla dimensão: cognitiva (o reconhecimento do real por seu intermédio), ontológica (esfera real que tem como expressão orgânica as ideias, a filosofia, os valores, as crenças, as religiões, as atitudes, as tradições, a língua, os dialectos, etc., etc,) e normativa (poder de levar à acção). Estas dimensões positivas da ideologia, como um vasto e diferenciado campo significante com dimensão ontológica, e não como realidade simulacral, é que constituirão o universo onde ocorre o processo hegemónico, a dimensão ético-política da história, e é nelas que intervêm os intelectuais enquanto mediadores entre a sociedade civil e a superestrutura política e jurídica, capazes, pois, de conquistar a hegemonia e de promover um sólido bloco histórico. Ele difere também daqueles – e são muitos; por exemplo, Althusser – que consideram que o seu uso do conceito de sociedade civil é impróprio do marxismo, apesar de ele o ter ido buscar ao pequeno volume Zur Judenfrage, de Marx (Santos, 1986: 129-152). Mas é precisamente na sociedade civil, nos organismos da sociedade civil (e não aparelhos ideológicos de Estado, como quer Althusser, que considerava a sociedade civil como um conceito próprio dos escritos de juventude de Marx), enquanto esfera privada, que se produz e reproduz a ideologia e que intervêm os intelectuais tendo como objectivo conquistar a hegemonia, num processo que pode ser definido como guerra de posição. Também poderia ainda acrescentar que há um autor, Franco Lo Piparo, que radica o conceito de hegemonia no conceito linguístico de prestígio (Ascoli), constituindo uma sua reelaboração e enriquecimento (Lo Piparo,1979, pág. 145; mas veja-se pág.s 103-151). Em O Princípio da Hegemonia em Gramsci desenvolvo uma longa informação e argumentação sobre este assunto (Santos, 1986: 111-152; especialmente 140-152).
6.
Interessante, a este respeito, o que Gramsci escreve sobre o taylorismo, o americanismo e o fordismo e como estas considerações podem explicar a sua ideia sobre a sociedade regulada. Em poucas palavras, o processo produtivo nos Estado Unidos levou a uma racionalização global da sociedade americana, até porque esta não era condicionada por “um resíduo passivo de todas as formas sociais ultrapassadas na história” (Q., III, 2168, § 11), como acontecia na Europa, que impedisse o processo de racionalização das condições elementares de desenvolvimento histórico e, assim, a própria possibilidade de racionalização da produção e do trabalho (Santos, 1986: 69-79). Este processo, ao generalizar-se, implicava toda a sociedade pelo que implicava também a sua gestão política, replicando-se deste modo, no plano superstrutural do Estado, a separação entre programação e execução taylorística do trabalho produtivo. Ou seja, a dissociação entre proprietários/managers e operários/produtores encontraria uma equivalência na dissociação entre governantes e governados. Por isso, ao Estado eram requeridas poucas funções e até os intelectuais pouco contribuíam para uma hegemonia que nascia da fábrica, que assentava na generalização da racionalização produtiva, com todos os dispositivos normativos correspondentes a determinarem a vida dos produtores directos (fordismo). Portanto, de um lado, a programação económica e política centralizadas e, do outro, a execução técnica pelos produtores atomizados e confinados no processo produtivo. O que diz Gramsci? Que a solução seria a da organização não corporativa dos produtores directos (sindicatos e partido ou partidos) de modo a reabsorverem as duas realidades separadas: a da programação económica e a da programação política. Esta reabsorção, neste universo racionalizado permitiria evoluir para a chamada sociedade regulada, onde não se já não verificaria esse fosso entre programação e execução. Cito do meu livro sobre o princípio da hegemonia: “a crítica de Gramsci há-de centrar-se, portanto, no facto de, pelas exigências internas do processo de racionalização, a sociedade civil, por um lado, se generalizar, reproduzindo-se como sociedade política, à custa do aprofundamento do controlo privado do destino social da produção através da programação alargada e, por outro, se atomizar, individualizar e particularizar sempre de modo crescente pelo aprofundamento da separação da esfera da produção directa e parcelar em relação à do controlo global desta esfera. Se, por um lado, uma parte da sociedade civil se reproduz sempre mais como género através da esfera política a outra reproduz-se simetricamente e de modo crescente como natureza individualizada (o “gorila domesticado”), na medida em que crescem as exigências de especialização”, ao mesmo tempo que o controlo social sobre a produção só pode funcionar como poder político (Santos, 1986: 76-77). Esta situação só poderá ser superada pela emergência do trabalhador colectivo organizado e hegemónico e pela reabsorção da sociedade política na sociedade civil. É evidente aqui a influência da Questão Hebraica, de Marx. Como é evidente a crítica da concepção hegeliana de Estado. O que, de resto, já acontecera na Kritik des Hegelschen Staatsrechts. É claro que aqui reside um núcleo crítico da teoria gramsciana: o organicismo que se opõe à teoria da representação. Mas não é o caso de aqui discutir os fundamentos da sua utopia da sociedade regulada.
7.
Neste contexto, o partido teria uma função essencial, desempenhada pelos seus “intelectuais orgânicos”. Gramsci fala, sim, do partido como o “novo príncipe” (Q., 5, 662, §127). Moderno Príncipe: “formazione di uma volontà colettiva nazional-popolare di cui il moderno Principe è appunto espressione attiva e operante, e riforma intellettuale e morale”. “Egli prende il posto, nelle coscienze, della divinità e del imperativo categórico, egli è la base di un laicismo moderno e di una completa laicizzazione di tutta la vita e di tutti i rapporti di costume” (Q, 8, §21, 953). Por um lado, alternativa ao fundamento divino do poder, por outro assunção partidária do princípio moral expresso na imperativo categórico. Na verdade, podemos pensar num contraponto ao monarca que encarna o Estado (ou, então, como diz Gramsci, no “condottiero ideale”), por exemplo, como em Hegel, mas que deriva da aristocracia reinante; o “príncipe moderno” – o partido – que interpreta a vontade colectiva nacional-popular e que deriva dela, aspirando a gerir o Estado para promover uma reforma intelectual e moral. De laicização se trata, pois, lá onde o povo-nação emerge, por analogia com a aristocracia, com pretensões de se elevar à chefia do Estado e de, assim, promover uma profunda reforma intelectual e moral. Nada de estranho, pois.
8.
Gramsci tem um conceito alargado de intelectual tal como já acontecia com a ideologia: vai dos “simples administradores” até aos grandes filósofos, como, por exemplo, Benedetto Croce, que ele chega a apelidar de “papa laico”, porque conseguiu ligar os intelectuais meridionais que compactam as massas camponesas, promovendo um bloco histórico que integra o bloco agrário do mezzogiorno e a burguesia industrial do norte. Croce projectava, assim, os intelectuais meridionais a um plano nacional e mesmo europeu, construindo deste modo um sólido “bloco intelectual” capaz de recobrir, de compactar e dar coerência ao “bloco histórico” formado pela aristocracia agrária do mezzogiorno e a burguesia industrial do Norte. O “bloco intelectual” faz a mediação entre a sociedade civil e a superestrutura política e jurídica, dando-lhe coesão no plano ético-político. É daqui, da actividade propulsora e integradora da filosofia de Croce, que nasce a sua condição de “papa laico”.
Como se vê, a importância funcional dos intelectuais é em Gramsci enorme pois eles funcionam como promotores da ligação orgânica entre a sociedade civil e a superestrutura político-jurídica. E esta função deve-se também à ideia que Gramsci tinha da ideologia como vasto campo significante com densidade ontológica onde acontece o reconhecimento e a identificação da realidade social e onde se processa a hegemonia. Nisto, Gramsci reconhece-se na célebre passagem do Prefácio à Contribuição para a Crítica da Economia Política, de 1859 (3). O consenso como cimento ideológico e político de uma solução histórica e política. Trata-se de intelectuais orgânicos e não de marketeers; de uma narrativa ético-política com profundidade temporal e não de fórmulas publicitárias dirigidas ao mercado eleitoral para vencer as próximas eleições; de guerra de posição e não de uma guerra de movimento.
9.
Com efeito, muitas vezes se coloca a questão de saber acerca da compatibilidade do pensamento de Gramsci com a democracia representativa. Sim, mas uma coisa é certa: a sua resposta não será igual à do marxismo ortodoxo. A esta questão já respondera nos escritos de juventude dizendo que só seria possível superar a democracia parlamentar, vivendo-a. Depois, o primado da teoria do consenso e a necessidade de travar uma guerra de posição em sociedades com uma sociedade civil robusta, rejeitando, nelas, a guerra de movimento; depois, ainda, a ideia de um “novo príncipe”, fundado no nacional-popular e numa política totalmente laicizada. Sobre o conceito de nacional-popular, julgo útil citar uma passagem do meu livro Os Intelectuais e o Poder, porque permite ver como ele resolve a velha dicotomia nação-povo: “o conceito gramsciano de nacional-popular, operando em conjunto com a teoria dos intelectuais orgânicos e a teoria da hegemonia, visa exactamente resolver essa questão da separação entre nação e povo, sem dissolver um conceito no outro: nem essa totalidade concreta que é o povo na universalidade mais formal e funcional da nação, para não retirar a esta (nação) a legitimidade substancial de que carece, nem esta naquele, para que o povo não se reduza a um mero agregado orgânico e contingente de indivíduos fisicamente determinados” (Santos, 1999: 107-108). Como se vê, a chave desta relação reside na mediação dos intelectuais orgânicos e do “moderno príncipe” ou partido, que aspira à hegemonia.
Se a democracia é compatível com monarquias constitucionais, mais fácil será admitir que ela pode coexistir com a hegemonia do “moderno príncipe”. A diferença reside na génese e, consequentemente, na legitimidade. Claro, Gramsci tinha uma utopia: a sociedade regulada. A sociedade onde o consenso fosse dominante em relação às formas de governo burocráticas e dotadas de mecanismos coercitivos e impositivos. A sociedade regulada como uma forma de organização superior onde a legitimidade derivava da hegemonia entendida como triunfo do consenso, da cultura e de uma vontade colectiva verdadeiramente representativa do espírito nacional-popular. Gramsci era marxista e talvez o seu pensamento até se destaque com mais actualidade do que o dos outros e ilustres representantes do marxismo ocidental porque, no essencial, ele densifica, laiciza e enobrece a política ancorando-a, através da ideologia, nas formas culturais difusas que exprimem essa dimensão nacional-popular. Num tempo em que a política parece cada vez mais simulacral e uma via para o exercício do poder pelo poder, a densificação da política que se reconhece no pensamento de Gramsci é decisivamente cada vez mais necessária. O papel que ele atribui aos intelectuais orgânicos e o modo como os define é indicativo do papel que ele atribui à consciência e, por isso mesmo, à cultura e ao reconhecimento do real através das diferentes formas culturais, das mais elaboradas às mais simples. Este papel dos intelectuais orgânicos, a sua centralidade, não é do mesmo modo reconhecido pelo marxismo ortodoxo. Talvez também por isso Gramsci se destaque dos outros expoentes e brilhantes intelectuais do marxismo ocidental.
NOTAS
(1) Veja o interessante ensaio de Gramsci “Alcuni Temi della Quistione Meridionale”, de 1926. In Gramsci, 1978: 137-158.
(2) Paris, Maspero, 1973, I, V: “Le marxisme n’est pas un historicisme”, pp. 150-184, especialmente pp.174-175.
(3) Veja o meu ensaio “A Questão da Ideologia: de ‘A Ideologia Alemã’ aos ‘Cadernos do Cárcere’. In Biblos, LIII, 1977, 207-268.
REFERÊNCIAS
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JAS@12-2024
