Poesia-Pintura

O POETA, A MUSA E O JARDIM

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “O Jardim”
Original de minha autoria
Março de 2025

“O Jardim”. JAS 2025

POEMA – “O POETA, A MUSA E O JARDIM”

ENCONTREI-TE
De novo
No meu jardim
Onde esta arte
Nasceu
E das cores
Que lá havia
E por dádiva
Dos céus
Ou brilho
Da tua estrela
Logo meu estro
Cresceu;
Subi, então,
Ao Parnaso
E teu rosto,
Por milagre,
Em palavras
Renasceu.

NESSE JARDIM
De mil azáleas
E de exuberante
Jasmim
Havia inebriantes
Aromas
E matizes
Num sem-fim.

HAVIA CORES
Em seda pura
Que brilhavam
Como se fossem
De exuberante
Pintura,
Havia verde,
Vermelho,
Amarelo
E lilás,
Todas as cores
Do meu gosto
Para com elas
Pintar,
Em moldura
De arco-íris,
A beleza
Do teu rosto.

A VIDA
Vem é daí,
É arco-íris
Que se pinta
Com a alma,
É alquimia,
É luz intensa
Que fascina,
É pauta
Onde escrevo
As notas
Da melodia
Que te canto
Em surdina.

INEBRIO-ME
Com as sete cores,
Vou atrás delas,
Imparável,
A voar,
E o mundo
Fica pra trás
Na vertigem
De te encontrar
Lá no alto,
Lá no céu,
Para contigo
Dançar
Um poema
Que é só teu.

ÉS COR,
És risco,
És traço,
És nuvem
Branca
Que se esfuma
No azul profundo
Do céu
Esse mar
Que eu navego
Como se fosse
Só meu.

VIESTE
Do jardim
Onde cresceste,
Trazias flores
Impressas
Nessa tua
Pele macia,
 Mas as cores
Eram tão vivas
Que nelas
Eu me perdia.

E DISSESTE
Com carinho,
Com esse olhar
Tão seguro,
Que me querias
E sentias
Com afecto
Do mais puro.

E, DEPOIS,
Lá regressaste
Ao jardim,
Levando-me
Pela mão,
Com brilho
No teu olhar...
E eu deixei-me ir
A teu lado
Tão feliz
E fascinado
Simplesmente
Por te amar.

Artigo

IDIOSSINCRASIAS PRESIDENCIAIS

AFINAL, VIVEMOS, OU NÃO,
EM DEMOCRACIA PARLAMENTAR?

João de Almeida Santos

“S/Título”, JAS 2025

LI COM MUITA ATENÇÃO e interesse o recente artigo de Alberto Costa, no “DN”, “Dissolver, Dissolver, Dissolver” (27.03.2025). Título curioso e muito significativo. E não só porque põe em evidência a anomalia política e constitucional dessa espécie de “dissolução permanente”, como também suscita uma reflexão mais ampla sobre a evolução do processo político em moldura democrática e representativa.

1.

É claro que nós vivemos em regime de democracia parlamentar, onde o centro deveria estar no parlamento e não na figura do primeiro-ministro, sujeita que está às vicissitudes pessoais do próprio, muitas vezes problemáticas, como é actualmente o caso. Mas a verdade é que se tem vindo a evoluir para uma excessiva personalização da política, a ponto de tudo se centrar na figura dos líderes, sobretudo os dos partidos da alternância, os que se vêm alternando no poder. PS e PSD, no caso português. As eleições estão cada vez mais concentradas naquelas figuras, reduzindo o processo político a uma mera competição entre pessoas, sobretudo entre duas pessoas. Actualmente, entre Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos. Confessemos que a escolha é muito reduzida, por se centrar em duas pessoas, num processo que envolve 230 mandatos, programas de governo e mundividências políticas. E, neste caso, as eleições até parece serem mais um plebiscito sobre Montenegro do que outra coisa, feridas que estão, à partida, pela questão da confiabilidade do actual PM, a única razão que as motivou. Se o plebiscito lhe for favorável não se abrirá uma espiral de promiscuidade maior do que a que já existe?

2.

Isto começou com a emergência da televisão na política democrática nos Estados Unidos (ademais um regime presidencialista) logo nos anos cinquenta, ao mesmo tempo que se iniciava também um processo de avaliação, digamos, “moral” dos candidatos a presidente, com as famosas “campanhas sujas” a alimentarem as campanhas presidenciais americanas, ao longo de décadas. Refiro somente algumas, que ficaram famosas, e sempre contra os candidatos democratas: as que visaram Michael Dukakis, John Kerry ou Barack Obama. Nos dois primeiros casos funcionaram. No caso de Obama, não.

3.

 Decorre da sua extrema personalização que a política se passe a concentrar em lideranças pessoais, nas suas qualidades e nos seus defeitos, ficando, portanto, dependente delas, em detrimento dos próprios sistemas de poder. A política a afunilar nos líderes e na sua imagem e a evoluir para a hiperpersonalização. Mesmo nas democracias parlamentares se está a verificar esta tendência, com a redução das campanhas eleitorais (das permanent campaignings às pré-campanhas e às campanhas propriamente ditas) à figura do líder, quase deslizando para a figura do plebiscito (e as de Maio até parece serem mesmo isto) e tornando-as cada vez mais fungíveis e condicionadas pelas vicissitudes das pessoas em causa. Trata-se, pois, de um afunilamento que fragiliza a política e que abre uma espiral de psicologismo pouco compatível com a matriz da democracia parlamentar, mas também de pasto verdejante para os apetites judiciais e para o lawfare, cada vez mais frequente. A essa espiral estão sujeitos todos os partidos, mas sobretudo os que estão em condições de aceder ao governo do país.

4.

Na verdade, o que está em causa nas eleições e numa democracia representativa é a escolha de representantes para o legislativo (230, no caso português), a que se segue a constituição de maiorias parlamentares de onde resulta necessariamente a indigitação de um PM e a constituição de um executivo. O princípio da maioria é um princípio essencial dos sistemas representativos. No caso inglês, nenhum membro do governo poderá sequer ser escolhido fora do Parlamento, o que está a indicar, com meridiana clareza, a natureza parlamentar do regime e a centralidade iniludível do parlamento. Depois, as candidaturas ao parlamento são protagonizadas pelos partidos políticos ou por coligações e é nesse âmbito que se formam as maiorias. Partidos, não pessoas (e não é por acaso que o sistema não prevê candidaturas não partidárias). E muito mais nos sistemas eleitorais de tipo proporcional, com as suas propostas em listas fechadas. São eleitas pessoas, mas as escolhas e as propostas só podem ser feitas por partidos, em listas fechadas (vota-se na lista, mas através da sigla do partido, não se podendo sequer exprimir uma preferência, no caso do nosso sistema eleitoral). Assim sendo, reduzir as eleições às figuras dos líderes partidários candidatos a primeiro-ministro significa várias coisas: a) diminuir o papel do principal órgão de soberania, que é o Parlamento, porque é ele que integra os representantes; b) tornar mais fungível a política democrática por ficar dependente da figura do líder, do seu comportamento pessoal e das vicissitudes que ocorram (como se viu); c) transformar as legislativas em eleições para o executivo, desvirtuando profundamente o regime constitucional; d) abrir espaço para as famosas “campanhas negativas”;  e) reduzir os partidos às figuras dos líderes, com gravíssimas consequências na própria composição dos seus órgãos internos e na propositura de candidatos a cargos institucionais; e, f) finalmente, pôr o sistema à mercê de inquéritos judiciais que podem ser promovidos por simples cartas anónimas, facilitando a prática de lawfare, cada vez mais frequente.

5.

Posto isto, qual a razão do título do artigo que acima referi? Claramente esta: o Presidente da República parece ter já assumido como doutrina oficial a hiperpersonalização do regime, onde o primeiro-ministro é o centro do sistema, decorrendo, pois, as eleições em torno da sua figura, ou seja, transformando-as em eleições para primeiro-ministro. Há quem lhe chame presidencialismo do primeiro-ministro. E há, no caso português, um momento muito claro relativo a esta assunção presidencial: o da tomada de posse de António Costa, em 2022, quando o PS obteve a maioria absoluta. Disse o PR mais ou menos isto: o senhor (não o PS, entenda-se) ganhou as eleições e, por isso, a sua saída implicará novas eleições. António Costa encontrou a oportunidade para (graças ao ministério público) sair imaculado em direcção a Bruxelas e houve eleições. É claríssima, aqui, a desvalorização do partido (que ganhou as eleições) e do parlamento (onde existia uma maioria absoluta desse mesmo partido). Depois, a questão da “confiabilidade” do PM. Surgiu a questão e, consequentemente, outra vez eleições. Há aqui um reajustamento do regime: as eleições, embora também sirvam, em via subordinada, para eleger 230 deputados, servem, no essencial, para eleger um todo-poderoso primeiro-ministro, capaz de reconfigurar o seu próprio partido e o sistema político à sua medida. Adapte-se, pois, o sistema à hiperpersonalização da política democrática e passe-se a eleger directamente o PM, dando forma constitucional ao presidencialismo do primeiro-ministro e, já agora, transformando a Presidência da República num simples cartório notarial. Constitucionalize-se, pois, o que já está a ser feito na prática, para que o processo seja legítimo. Mas, se assim, for terá razão a senhora Giorgia Meloni, ao propor, como fez, uma alteração constitucional para a eleição directa do PM italiano. Mas, ao menos, ela submeteu a mudança ao parlamento (e já passou no Senado) e, eventualmente, a um referendo (se não passar na Câmara dos Deputados, como é previsível). Pelo contrário, aqui, entre nós, e com um Presidente doutorado em direito constitucional (com uma tese sobre “Os Partidos Políticos no Direito Constitucional Português”), a fórmula já passou à prática, sem passar pelo parlamento ou pelos eleitores. Só que, por um lado, a nossa Constituição não prevê a eleição directa do PM, estando, por outro lado, o PR obrigado a cumprir e a fazer cumprir a Constituição, não possuindo legitimidade nem autoridade para produzir alterações constitucionais, formal ou informalmente. Só o parlamento, agora extremamente diminuído, o pode fazer, desde que, para o efeito, tenha uma maioria qualificada. Mas foi o que o PR fez: uma alteração informal do regime de democracia parlamentar, ao considerar irrelevante o Parlamento e os próprios partidos da alternância, perante o agigantamento das figuras dos líderes (no entendimento, errado, de que são eles que ganham, ou perdem, as eleições, e não os partidos). Esta visão é muito própria de quem vê o processo político exclusivamente como um processo comunicacional e não, também, como um complexo e difuso processo orgânico e territorial.

6.

Na verdade, já houve três dissoluções num só mandato presidencial. A primeira, devido à não aprovação do Orçamento de Estado (inevitável? Não está escrito que seja necessariamente assim); a segunda, depois da saída (para Bruxelas) de António Costa, justificada com o facto, anunciado publicamente, de estar a ser objecto de um inquérito-fantasma e apesar de o PS (de forma desastrada, diga-se, por não terem sido consultados os órgãos do partido), por iniciativa do seu secretário-geral, ter proposto um nome alternativo para a chefia do governo; a terceira, por uma questão de confiabilidade do PM (a que se segue, mais do que legislativas, um verdadeiro plebiscito). Mais claro do que isto parece ser impossível.

7.

A doutrina parece ter ficado estabelecida pelo actual PR, dando continuidade àquilo que na prática está a acontecer: a hiperpersonalização da política.  Tendência que ele próprio pratica. Será isto aceitável? Não creio. Essa hiperpersonalização está a acontecer hoje nos Estados Unidos, com Donald Trump, e à revelia das próprias normas constitucionais, e as consequências já estão a ser absolutamente desastrosas e perigosas, incluindo a de anulação dos vínculos constitucionais, até já (ao que parece) na questão da duração dos mandatos presidenciais. O que está em causa é mesmo a natureza da democracia representativa e os seus mecanismos internos de “checks and balances”, para além da sua identidade como democracia representativa, ou seja, lá onde o poder está essencialmente centrado nos representantes, isto é, nos deputados, no parlamento, no poder legislativo.

8.

É claro que, como disse, há muito que se vem verificando esta tendência para a hiperpersonalização da política, muito devida ao domínio do audiovisual na comunicação política. Personalização que acontece quer no plano dos partidos quer no plano do Estado, sendo aqueles tributários deste, e vice-versa. Mas, mesmo assim, nunca se verificou uma tendência como aquela que estamos a viver no sentido de hiperpersonalizar a democracia representativa à revelia das próprias constituições, ou seja, sem que tenha havido as correspondentes alterações constitucionais. O deslize neste sentido tem vindo a verificar-se na Hungria de Orbán, verificou-se na Polónia de Kaczynski e também está a acontecer de forma prepotente e inconstitucional nos Estados Unidos do senhor Trump, do senhor Musk e do senhor Vance. Num só caso está a acontecer uma tentativa com dignidade constitucional, a mudança do sistema através de um “disegno di legge costituzionale”, na Itália da senhora Giorgia Meloni. Com efeito, em Novembro de 2023 ela apresentou um curioso “disegno di legge costituzionale” neste sentido.

9.

Não se trata, de facto, de quinquilharia constitucional. Trata-se, isso sim, de uma mudança estrutural que altera a natureza da democracia, alterando a geometria e os equilíbrios dos seus mecanismos internos. Uma mudança que, de resto, corresponde mais à orientação da direita radical do que à da direita moderada ou à da social-democracia. Para esta evolução chamei a atenção no meu recente livro “Política e Ideologia na Era do Algoritmo” (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024). Uma evolução não desejável porque não se inscreve na matriz liberal do sistema representativo nem na natureza da democracia parlamentar. A evolução, pelo contrário, deveria acontecer no sentido de uma política deliberativa e de uma democracia deliberativa, tanto mais necessárias quanto temos perante nós poderosas máquinas de construção do consenso, dominadas pela plutocracia populista, ou plutopopulismo, e capazes de garantir “democraticamente” a base consensual para o exercício hiperpersonalizado do poder. Falo do que está a acontecer nos Estados Unidos, com o já famoso “capitalismo da vigilância”, o das grandes plataformas digitais, o dos senhores Mark Zuckerberg e Elon Musk, agora alicerçado politicamente na própria Casa Branca e no seu inacreditável inquilino.

10.

Não quero com tudo isto dizer que o actual PR inscreva a sua acção política na lógica da direita radical, mas simplesmente que o seu exercício presidencial tem sido pouco conforme aos preceitos que servem de moldura constitucional à nossa democracia parlamentar. Preceitos que ele jurou cumprir e fazer cumprir quando tomou posse, mas que, à primeira dificuldade, ele transgride. Também não vejo na sua acção uma qualquer intenção conspirativa que se inscreva na lógica da direita radical. O que tenho visto, isso sim, é uma prática deformada de acção presidencial, sobretudo numa matéria de enorme relevância para a nossa democracia. Que o Presidente fale demais, isso pode tolerar-se; que interfira na esfera de competências do executivo já se aceita menos; mas que, pela sua acção, transforme por dentro a matriz do nosso regime de democracia parlamentar, isso é simplesmente inaceitável, por até ser contraditório com a função que foi chamado a desempenhar por mandato popular. JAS@04-2025

“NOVOS FRAGMENTOS (XIII)

Para um Discurso sobre a Poesia”

João de Almeida Santos

“S/Título”, JAS 2025

MOVIOLA

OS SONHOS são vida cifrada. Como a poesia. Só que aqui intervém a vontade e, depois, a estilização dos registos de sensibilidade. E sem que o tempo cronológico constitua uma fronteira ou barreira inultrapassável. O poeta observa, regista e compõe, na pauta poética, o seu próprio passado como se estivesse na “moviola”. A escrita poética é como uma mesa de montagem cinematográfica com banda sonora incorporada.

MARÇO

Confesso que a magnólia branca que está ali no meu jardim, ao lado do loureiro, com os seus farrapos brancos, me fascina. Ela aparece em Março e é como que a despedida da neve, que quase já não há, a não ser lá no alto do maciço central. Felizmente que a vejo do terraço da minha biblioteca, apontado a sul, na direcção do maciço. E visito-a quando vou ao Vale Glaciar buscar água – a montanha e a neve em forma líquida. A magnólia, para mim, é esse belo marco de fronteira. E a fronteira fica em Março, que é ao mesmo tempo inverno e primavera. E gosto dessa imagem do pássaro cheio de frio à espera que o sol da primavera espreite, o do Salvatore di Giacomo. Ele, o poeta, e Catarina. Sim, gosto do mês de Março.

FUGACIDADE

Enquanto comentava o meu poema “Março”, um Amigo disse-me que a neve caía, mas no fim também me informou que parara. É fugaz, sim, a neve. Cada vez mais. Fugaz e rara. É como os farrapos da magnólia. Também desaparecem rapidamente para darem lugar às folhas verdes. Sinais. A magnólia a dizer-nos, fugazmente, que vem aí o tempo dos frutos da terra e das flores. Desaparece a neve e abrem-se as portas da primavera. E os amores despontam e renovam-se. E o poeta espera sempre que uma mulher se anuncie com as flores. As flores gostam de mulheres. E elas de flores. E gostam da primavera, como Proserpina. Não é por acaso que ela regressa em Março e eu até acho que vem grávida do inverno (e do inferno). Bem sei que essa não foi cláusula negociada por Demetra com Hades, mas a verdade é que a sua chegada é já em tempo de germinação. É, sim. Tudo, em Março, com a chegada da primavera. Mês de transição, fronteira que permite ver para os dois lados, o passado e o futuro, o inverno e a primavera, a neve e as flores. Comprovadamente, a neve anunciou-se, dizendo, fugazmente: “ainda ando por aqui”. E ela sabe que é sempre bem-vinda. Agora espero que a neblina passe para a ver lá no alto, lá no topo da montanha. Com a neve há frio no corpo e calor na alma. E o poeta sente isso enquanto espera que o corpo também aqueça com a visão do sol da primavera sob forma de mulher.

PROSERPINA

Em Março regressa Perséfone (ou Proserpina, para os latinos). Do inferno e do inverno. Permaneceu lá desde Setembro a aquecer-se com Hades, que a raptara. Não sei se vem grávida, mas parece que sim, porque os rebentos da terra começam a aparecer. O que o amor faz!

SENSIBILIDADE

A poesia é reinvenção. Vamos à realidade, à que nos tocou a sensibilidade de forma intensa, e damos-lhe nova vida através de palavras. Mas não é “divertissement” nem exibição de virtuosismo. Não. É imperativo existencial. Algo perdurou na memória (como “lava” activa), obrigando o poeta a exteriorizá-lo, como “confissão”. Mas, neste caso, como discurso esteticamente comprometido para que possa ser partilhado e fruído como arte, assumindo, assim, uma existência fora do universo de si próprio. A forma ganha aqui uma enorme importância. Toda a importância, porque se não for belo (o que é dito) não suscita adesão e, por consequência, não se torna efectivo. A poesia só se torna performativa se suscitar adesão de sensibilidade. É por isso que digo que a musicalidade de um poema é essencial porque ela atinge mais directamente a sensibilidade (quase independentemente do conteúdo). Não digo que a semântica não importa. Importa, e muito. Mas a arte exige comunicação com poder sensitivo. Eu uso a sinestesia, além da musicalidade, da toada, para acrescentar força sensitiva/sensorial ao poema, embora a pintura também ganhe com isso porque lhe acrescenta sentido, significação. Na verdade, nos meus poemas acabo por contar sempre uma história.

É POETA QUEM SENTE A POESIA

A poesia é um hino à vida. Prolonga-a e torna-a mais bela e mais livre. Livre porque o acto de criação não conhece limites ou fronteiras quando acontece no interior do território do belo. A arte é liberdade. Uma forma especial de exercício da liberdade porque a sua única fronteira é a da beleza partilhada. Esta, sim, é a única responsabilidade do poeta. O poeta não comunica só o que lhe vai na alma. Tem de fazê-lo de forma a tocar directamente a sensibilidade de quem frui. De quem partilha. De quem sente aquilo também como seu. É nesta partilha que quem frui se torna também autor, poeta ele próprio. O poema também pertence a quem o lê. Torna-se também sua, a autoria.

INFINITO

Não lhe bastaram as palavras de que dispunha, ao Camilo Castelo Branco. E eram muitas e poderosas, como sabemos. O destino e as palavras não contiveram a força do Thánatos, que se sobrepôs ao Eros. Ficara diminuído nas suas capacidades físicas e o destino sobrepôs-se. Sim, é verdade que o infinito é perigoso porque produz vertigens. Mas é no infinito que se tocam os caminhos paralelos. É no infinito que se tocam os olhares. E às vezes este encontro produz vertigens. É verdade. Mas também pode ser salvação. Os caminhos no real são paralelos, mas poderão vir a cruzar-se na linha do infinito para onde apontam os olhares. É deste infinito que o poeta fala. E até pode ser o olhar da alma, o olhar íntimo. E até pode ser o encontro de olhares no belo, na obra de arte. O belo pertence ao infinito e é para lá que os olhares com ele comprometidos se devem orientar. O poeta olha, sim, mas tem medo de ser capturado e interrompido nessa sua tensão para o infinito. Sim, porque é aí que acontece o seu resgate. Por que razão diz ele, já no fim de um poema, que continuará a procurá-la onde, afinal, ela já não está? Talvez procure o milagre do encontro no infinito, através do olhar interior (seu e da musa que o acompanha na poesia). Sim, creio que é isto.

DEUS EX MACHINA

Há quem ache estranho o título do meu poema “Confissão”. Mas não está o poeta em permanente confissão, pergunto? Não interpela ele constantemente a sua musa? Sim, só que o faz numa dupla condição: por um lado, enquanto sujeito poético, que não coincide com o eu do poeta; depois, fá-lo em código, como se falasse para ‘iniciados’. Depois, ainda, o poeta coloca-se num intervalo, num espaço intermédio, de onde pode observar-se a si próprio, mas também o mundo. É um terreno que lhe permite uma certa distanciação. Dir-se-á: mas percebe-se que há nele aparentes contradições, movimentos em vários sentidos, que, de facto, até podem ser contraditórios. Sim. Por exemplo, que sentido tem dizer que continuará a procurá-la onde ela, afinal, já não está? Claro, isto só tem sentido no “tempo subjectivo” do poeta: ele vai à “moviola” e monta o filme da sua vida quando ela ainda estava presente. E é lá que vai procurá-la sempre que quiser. O banco de dados é a memória. Já lá não está, mas é esse o lugar que a ele interessa. Sugere-se que ele procura o que não quer encontrar porque o importante é a procura. E até que, se o encontrar, acabará aí o desejo ou talvez se anule mesmo como poeta. Isso é que não. Por isso, sim, é verdade. Tinha razão também o Machado. Mas é verdade que o que o move realmente é “lava” em combustão (o mundo de Dionísio)… Só que ele, mesmo assim, dissociando-se, pode deslocar-se para o tal intervalo de onde se observa e pode observar os próprios movimentos da musa (Apolo). Com a maquinaria poética. Como se fosse o “deus ex-machina” de si próprio. Aquele que desce ao palco para resolver o emaranhado existencial em que se envolveu ou se encontrou, sem querer. E, mais ainda, até pode fazê-lo de forma sedutora, podendo mesmo “atingir” a musa com a sua melodia, onde quer que ela esteja. Ele age sempre como se ela esteja ali mesmo à sua frente. Gosto dessa ideia de “epifania não consumada”, referida por um amigo. Epifania de algo não consumado, digo. Na verdade, um poema é sempre a epifania de um eventual fracasso (diria o Cioran), de uma dor, de uma perda. Ou seja, a perda ou a dor elevam-se, pela arte, ao sublime – epifania! O contraste entre a perda e o sublime e a viagem do poeta de uma situação para a outra. É neste intervalo que o desejo se alimenta e o poeta se move. Confissão de que o poeta não consegue (ou conseguiu) mesmo encontrar algo fora dele? Sim, é verdade, e é por isso mesmo que sente necessidade da poesia. De procurar dentro dele aquilo que foi incapaz de materializar fora de si. A escrita como solução da própria vida. É uma maneira de lidar com o inatingível. Por isso é que é uma tarefa sem fim. A poesia é exposição. Se não fosse, seria puro virtuosismo retórico. A poesia tem “gravitas”. Talvez mais do que qualquer outra arte. Veja-se o que diz o grande Manuel Bandeira, no poema “Desencanto”: “Eu faço versos como quem chora” (…) “Meu verso é sangue. Volúpia ardente…” (…) “Dói-me nas veias. Amargo e quente, / Cai, gota a gota, do coração” (…) “Eu faço versos como quem morre”. É como se não existisse mediação entre a alma e o verbo. Um fluxo ininterrupto a jorrar… em palavras. No princípio, era alma e, no fim, o verbo. O verbo como redenção.

EXPOR-SE

O comum dos seres humanos não se expõe publicamente, não revela os seus sentimentos, reserva para si o que lhe vai na alma. E há mesmo quem exagere a um ponto tal que chega a sufocar os próprios sentimentos.  Sente a exposição como pecado. Como risco ou mesmo como tragédia. Por isso entrincheira-se. Como se uma eventual guerra o ameaçasse e o inimigo estivesse ali, à espreita, para lhe disparar à queima-roupa. É possível que haja traumas recalcados nestas pessoas e não se consigam libertar deles, pagando por isso um preço demasiado elevado. E arriscando a implosão ou a petrificação das suas vidas sentimentais.  Só os poetas o fazem.  Só os poetas se expõem. Mas não se sabe bem o que é seu, do poeta, ou do sujeito poético; e se é verdade ou é poético fingimento, por vezes até devido a puras exigências estéticas. A poesia também é mistério. JAS@03-2025

Poesia-Pintura

TIMIDEZ

 RETRATO DE UMA MUSA
Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Timidez”, JAS 2023
(71x88, pintura digital, impressão 
giclée em papel de algodão, 310gr, 
e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70,
Mold. de madeira). Março de 2025

“Timidez”, JAS 2023

POESIA – “TIMIDEZ – Retrato de uma Musa”

NUM DIA
De primavera
(Ou d'inverno,
Já nem sei),
Cruzei-me
Com a timidez
Impressa
No seu rosto
De mulher
(Disfarçada
De altivez).

PÂNICO
De luz excessiva
E pavor da melodia
Que provocava
Os sentidos
De quem nunca
A ouvia.

A VOLÚPIA
(Proibida)
Que ameaça,
Incendiada,
Uma alma
Seduzida.

CRUZEI-ME
Com o mistério,
Ali mesmo
A meu lado,
Enigma puro
De quem se sente
Seguro
Num mundo
Por demais
Sinalizado.

DEPOIS VEIO
O silêncio,
Aquele que quase
Nem eco tem;
A palavra
Vai a caminho,
Mas o eco
Já não vem.

CRUZEI-ME
Com a recusa
Do corpo,
Envolto
Nesse cinzento
Fatal,
Com fuga
Já programada
À sedução
Sensual.

CRUZEI-ME
Com ela
Num dia de
Primavera
(Ou d'inverno,
Já nem sei)
E tudo
Me fascinou:
Mistério
E timidez,
Opacidade
Do corpo
E temor da
Melodia,
O silêncio
Reiterado
Dos que não
Sabem amar
Os que estão
Sempre a seu lado
E quem neles 
Sempre confia.

MAS NO FIM,
Na primavera
(Agora sim),
Encontrei
A poesia
Para com ela
Falar,
Para a ver
Em fantasia
E até com ela
Voar...

FIZ MINHAS
As palavras
Que eram suas,
Mas que se
Recusava
A dizer,
Ouvi ecos
Do silêncio
Quando me disse
“Olá!”,
Simulando
Aquiescer.

IMAGINEI-LHE
O corpo nu
A tiritar
Do afecto
Que não sentia,
Interpretei
O silêncio
No oráculo
Seminal
E compus versos
De amor
Nos dias
De ritual.

FOI ASSIM
Que a encontrei,
Ofereci-lhe
Essa palavra
Que ela nunca
Admitia,
Dita sequer
Uma vez,
Mas eu,
Com palavras
Proibidas,
Reconstruí
O afecto
De que sempre
Ela fugia,
Por excesso
De timidez.

Poesia-Pintura

 O POETA-PINTOR

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Perfil de Musa”
JAS, 2023 (63x78, pintura digital, 
impressão giclée em papel de algodão, 
310gr, e verniz Hahnemuehle, 
Artglass AR70, em mold. de madeira)
NO DIA MUNDIA DA POESIA, 2025

“Perfil de Musa”, JAS 2023

POEMA – “O POETA-PINTOR”

O POETA BRINCAVA
Com suas palavras,
Cantava-a sempre
Quando não estava...

ERA UM POETA,
Era fingidor,
Não a desenhava,
Cantava-lhe
A cor.

MAS AS SUAS CORES
Eram só poemas,
Fazia pincel
Da sua caneta.
Enquanto poeta,
As letras riscava,
Mas a sua tinta
Já não era preta...
...............
Escolheu a cor,
Pintar a palavra.

POR ISSO COMPROU
Um belo pincel
E como pintor
Pintava, pintava,
Era a granel,
E a sua tela,
Que ele adorava,
Já não era só
O velho papel.

DESCOBRIU A COR,
Que o fascinou,
Dourado, vermelho
E tanto amarelo,
Tudo ele pintou,
Procurando sempre
O que era belo.

ATÉ QUE O ENCONTROU
Na cor dos
Seus olhos,
Era luz da pura
Que iluminava
O novo papel
Onde desenhou
O seu fino rosto
Com o seu pincel.

DEU CORPO À COR
Com que a dizia,
As suas palavras
Tornaram-se linhas
Desse seu perfil
Que ele desenhava
Com a poesia,
Em versos
Que eram muito
Mais de mil.

PINTAVA-LHE O ROSTO,
Pois os seus poemas
Já não lhe chegavam,
Pintor de palavras
De cor as compunha
E versos voavam
No azul do céu...
.................
“O que tu fazias,
Faço agora eu”,
Dissera-lhe um dia.

“PORQUE SOU POETA,
Deixaste-me só,
Entregue à palavra,
E, eu, tão pobre de ti,
Porque sou pintor
Pra me resgatar
Pintei-me de dor
E subi ao céu
E pus-me a voar.”

FUI AO ARCO-ÍRIS
A ver se te via
Atrás duma cor.
Pintei o teu rosto
Para um poema
Que hei-de escrever
Com todas as cores
Que trago comigo
Enquanto viver”.

O POETA BRINCAVA,
Mas era tão séria
Essa brincadeira
Que, perdido
Em palavras,
Encontrou a cor
E nos seus poemas
Dela fez bandeira.
Era um poeta
Mas também pintor.

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS XII

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 03-2025

ESTAR-À-JANELA

“UM ETERNO ESTAR-À-JANELA”, dizia-me alguém, a propósito de um poema meu. Mas há quem esteja sempre a entrar e a sair pela porta, respondi. Quem não saiba sair da rua e não goste de estar à janela. Um desperdício, dizem. Uma bela diferença. O poeta também entra e sai pela porta, anda pela rua, cruza-se e descruza-se com pessoas, tropeça, cai e levanta-se… Tudo isto acontece e ele conserva e metaboliza a experiência. Mas, ali, da janela, ele vê mais longe do que o simples horizonte da sua rua, da rua onde demasiadas vezes tropeça. E esta é uma bela diferença. Mais: projecta a sua rua (e o que lá lhe acontece) para a linha do horizonte, pinta tudo de azul e fala disso, de forma cifrada, em código, aos que também, como ele, observam o horizonte a partir da própria janela. Como se o mundo fosse um pátio para onde dão as nossas janelas. Janelas diferentes, claro. Umas, sempre escancaradas; outras, sempre fechadas e com os cortinados a impedirem a dupla visão de dentro para fora e de fora para dentro; outras, aInda, intermitentes, sempre a abrir e a fechar; e outras, finalmente, sempre fechadas, mas sem cortinas.  Claro, o horizonte das janelas é sempre uma miragem, porque depende da nossa retina e do que queremos ver (ou não ver) sempre que vamos à janela. Se olhamos para a rua ou para o horizonte. Ou, então, para a janela vizinha, procurando entrar na intimidade dos que a habitam. A vida é feita de miragens, apesar dos corpos rígidos em que vamos embatendo quando saímos à rua, quando deixamos a janela. O que acontece, afinal, nos sonhos? Miragens. E os sonhos não fazem parte da vida e, por isso, como dizia o Calderón de la Barca, a vida não “es sueño”? E não é à janela que sonhamos? A vida é feita de miragens. Não é um deserto, mas também é. E é a parte desértica da vida que as provoca.  A rua, que nunca é desértica, porque transborda de transeuntes que sempre nos interpelam, não é lugar para isso porque está sempre a interpelar, a provocar, a interromper o desejo e o sonho. Sonhar na rua é muito perigoso. Provoca acidentes. À janela, pelo contrário, podes olhar o horizonte, fechar os olhos… e sonhar. Na rua não podes fechar os olhos.

“Um traço lento de fumo ergue-se e dispersa-se lá longe…”. É a vida a esfumar-se, vista da janela. Mas da janela também é possível fazê-la regredir desse movimento para o nada, recuperá-la com a fantasia, torná-la ainda mais nossa, mais próxima e até mais íntima. E mais bela. Basta mudar a direcção do olhar e da imaginação… desde que não seja na direcção da rua. A poesia serve para isso, se é que a palavra “serve” lhe é aplicável.

DEAMBULAÇÃO

O poeta, “na sua fatal deambulação”, que é poética, interpela a musa. E a musa cativa-o. E ele, imprudentemente, leva-a para o seu próprio ambiente de vida, as ruas empedradas da sua aldeia, a montanha, o sol especial que lá nasce, o azul profundo do céu, tudo aquilo que a pode aproximar mais de si. Um doce cativeiro voluntário. E a poesia é o veículo onde a leva até lá, “em fluxo criativo”. E ela deixa-se ir, na condição de sedutora. Mas, assim, o poeta troca a vida pelo passado, julgando estar a dar vida a esse passado. E de certo modo está. Resgate ou renascimento? Tudo se passa na esfera vital da alma. Mas, afinal, não foi sempre esse o lugar onde tudo aconteceu, nesse passado? Há um traço-de-união entre o presente poético e o passado vivido.

ERRÂNCIA

Errância poética, poder-se-ia dizer da vida de um poeta. Duas janelas e uma musa (ou duas, quem sabe…) a provocarem errância poética. Das miragens também se poderia dizer o mesmo. E ainda bem que há miragens porque, não havendo, nem haveria poesia nem cura. As miragens são a matéria de que se nutre o poeta. E elas surgem quando ele está (ou estava) à janela a olhar para a rua e, depois, para o horizonte. O que vê ele, lá da janela? Silhuetas. E no horizonte ele vê aquele traço lento de fumo que se ergue e dispersa, lá ao longe, isso a que se refere o Bernardo Soares (quase me apetecia, neste caso, dizer “Só Ares”). Traços lentos de fumo a esfumarem-se (é a palavra) lá longe é também o que muitas vezes encontramos na memória e que, por isso, nos obrigam a reconstituir integralmente, ainda que em código, o que aconteceu nesse passado que se esfumou. Tudo porque dói a alma. Ao poeta. E porque há uma musa que lhe sobrevive activa na penumbra da memória. E é aí que tem de intervir a fantasia, para a reconstrução, à medida do seu desejo insatisfeito. Na penumbra da memória. Como se estivesse a visitar o colunado de uma mesquita ou de uma catedral. Com a fantasia pode fazer isso ou viajar até uma ilha encantada… com ela, a musa. Só com ela. Faz lembrar Sininho e o Peter Pan. A miragem, intervencionada com a fantasia e o código poético, pode, sim, tornar-se realidade e o passado tornar-se futuro, resgatando o poeta do poço fundo da memória. Até ao próximo ciclo daquilo que mais parece o eterno retorno e a clepsidra do Nietzsche.

O MILAGRE DA POESIA

Fecho os olhos para a deixar entrar, sem interferências nem ruídos exteriores. A musa. De noite, através dos sonhos. De dia, pelas janelas da alma. Nunca a quis afastar do meu universo onírico nem do fio do horizonte que vejo da minha janela. Porque nunca se deve afastar o que para nós é (ou foi) vital. Um poeta que expulse a musa que o inspira está a cometer suicídio. Não, o que se deve fazer é transformar a ausência em presença, o silêncio em melodia e o passado em futuro; fracasso em sucesso, a dor em prazer e a tristeza em doce melancolia. Assim, a musa fica mais bela do que (já) é (a seus olhos). E assim diria Michelangelo, o da Yourcenar, do seu amante Gherardo Perini. Fechando os olhos e deixando-se ir da janela para o horizonte, tendo como asas as palavras, ficará mais perto dela, da musa. Nem é preciso nomeá-la ou retratá-la.

UMA PORTA PARA O SONHO

A poesia é uma porta para os sonhos. Tal como os sonhos são uma porta para ela. Entramos por ela adentro e começamos a sonhar, a ver beleza onde talvez não houvesse, a ouvir uma melodia onde talvez só houvesse ruído, a ver futuro onde só se via passado sem recurso. A poesia abre sempre as portas para um mundo melhor e mais belo, mesmo que seja melancólica. É uma porta em forma de janela, que, em vez de dar para a rua (mas também dá, com o olhar), dá para o vasto horizonte.

O POETA E O MUNDO

Eu adoro o Fernando Pessoa, que considero um génio. E a ideia de que o mundo não precisa dele para existir tem uma correspondência simétrica: também parece que ele não precisa do mundo para existir. Ele (neste caso o Bernardo Soares) nem gosta de tocar nele (no mundo) sequer com as pontas dos dedos. O mundo, para ele, de certo modo, é uma espécie de galeria de arte e, por isso, relaciona-se com ele sobretudo com a sua sensibilidade. E com o olhar. Mas às vezes (poucas) não era assim. Que o diga a sua Ofélia. Mas tem, de facto, consciência de que o mundo não se reduz ao que se vê da janela (embora seja isso o importante). Lembro a fórmula excessiva do Berkeley: “esse est percipi”. Diz ele, e bem: uma coisa é a ideia filosófica de árvore, outra é a própria árvore. A árvore não precisa da ideia de árvore para existir. Mas também poderia dizer que a árvore ganha em existência se também existir como ideia. Porque as ideias têm o poder de resgatar o real. E de o ter em ausência. Em suma, se o mundo não precisa dele para existir, também ele não precisa do mundo para ser, porque ele tem em si todo o mundo que deseja ser. O (seu) mundo é do tamanho do seu olhar, seja lá o que o mundo em si for.

SENTIR O POEMA

Um Amigo disse-me: “Alguém terá dito que poeta é também quem sente o poema”. Eu próprio o dissera também. E até falei de uma comunidade de “iniciados”, porque a poesia é uma linguagem em código, ou cifrada, cujo primeiro nível de compreensão deve acontecer em forma de sentimento, de registo de sensibilidade. Por isso, “poeta é também quem sente o poema”, por dentro.

DUAS JANELAS

“Andamentos” interiores do poeta – aquela dialéctica entre a perda e a recriação ao sabor dos mais íntimos e sofridos desejos. E lá vem o voo reparador para a ilha encantada, com ela (só ela) na alma. Perda e reconquista, em palavras, que são as asas do voo poético até à sua Neverland. Há aqui (no poema “ Miragem”)  duas janelas, a da pintura (“A Outra Janela”) e a da musa. À dela não conseguia chegar porque ninguém lhe ia buscar uma escada. Não tinha a famosa Ama de Julieta, “prover-me de uma escada, para que vosso amor consiga o ninho do pássaro alcançar” (Shakespeare, Romeu e Julieta, II, V), para subir até ela. Metáfora que a coloca num lugar cimeiro e inalcançável. Submisso, pois, o poeta. Mas, agora, que a tem, só lhe serve para ver mais longe e para viajar com o olhar (e com ela, no olhar) no veículo poético feito de palavras e movido a combustível rimático e melódico até uma ilha encantada. O que mudou? A janela, que é a mesma, mas vista de fora, de um ângulo diferente. Mas a janela tem sempre como referência a musa, embora em condições diferentes. Se a outra se via do lado de dentro, com a musa, esta vê-se de fora, já sem a musa, que partiu. Por isso, este (o do poema “Miragem”) é um canto melancólico só compensado pela visão indirecta (interior e mediada pela memória) da musa, a sul, sob forma de fugaz estrela cadente. Uma luz que, sem o encandear (no passado, sim, encandeava-o), o ilumina por dentro, condição da sua própria génese e identidade como poeta. Trata-se do tempo subjectivo, “kairótico”, do “tempo oportuno” e criativo que permite, como um clarão (como o de “A une Passante”, do Baudelaire de “Les Fleurs du Mal”), visualizá-la por momentos, para logo desaparecer (engolida pelo anonimato de que tanto ela gosta). Às vezes a visão é tão nítida que ele até ousa pintá-la, para dar maior realismo à sua visão interior, poética. Assim vai sobrevivendo, como jogral, cantando para espantar um mal que não tem cura, a não ser a da palavra. A poesia é o seu divã, o lugar onde dá curso às suas livres associações em busca do tempo e da musa perdidos. JAS@03-2025

Poesia-Pintura

CONFISSÃO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Epifania”, JAS 2023
(79x82, em papel de algodão, 310gr,
e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70,
mold. de madeira). Março de 2025

“Epifania”. JAS 2023

POEMA – “CONFISSÃO”

TARDO
A encontrar-te
Porque não sei
Como procurar-te
Levado
Por um poema.

NÃO É
A minha vontade,
Mas o destino
A marcar
Os passos
Que darei
Ou que nunca
Ousarei,
Nesta estreita,
Mas sedutora,
Vereda
Da minha vida.

E TU SABES
Que não sei,
Mas sabes
Por onde andei
A perder-me,
À procura do que
Não podia ter,
Para preservar
Afectos remotos
Que um dia 
Eu pudesse
 Reviver.

ÀS VEZES
Encontrava-te,
Encontros fugazes,
Onde o teu brilho
Cegava por fora
Mas iluminava
Por dentro.

MAS NÃO SEI
Se ainda te quero
Para nunca
Te ter,
Sentir saudades
Logo ao amanhecer
Do perfume
Da aurora,
Quando te reencontro
Na memória fresca
Dos afectos
Iluminados
Pelo raiar
Dos dias.

MAS EU GOSTO
Destes encontros,
De viajar
À procura
Do que em mim
Sobra de ti,
Itinerâncias
De um transeunte
Que se observa
Num espelho
Onde se vê
Por dentro
A olhar-te 
Por fora,
À espera
Do próximo
Estremecimento,
Que nunca,
Nunca demora.

AH, COMO ME ENCANTA
Esse véu
Que te cobre
Os cabelos negros
Quando te pinto
Com palavras
E te vejo nua
No meu espelho,
Com a alma
A tiritar,
À mercê
Dos imprevistos
Que te marcam
Como sulcos,
Cicatrizes ásperas
Da vida.

MAS EU PROCURO-TE
Com olhar
Comprometido
E acolhedor,
Perscrutando-te
A alma pura
Que se aninha
Em ti
Para te proteger
Do risco da beleza
Exposta
Como fractura,
A que vi quando,
Pela primeira vez,
Eu te sorri.

TALVEZ A PENUMBRA
Do sonho
Te sirva de véu
E te cubra
As cicatrizes da vida,
Te amacie a pele
Encrespada
E te devolva
Como mulher
Desejada...
................
Para além do bem
E do mal.

MAS EU NÃO SEI,
Tenho medo
Dos sobressaltos,
De ser atropelado
Na esquina
De um inocente
Jogo sedutor
Que me cative 
A alma já em fuga
Para o infinito,
Onde se cruzam,
Intermitentes,
Os nossos olhares.

TARDO A ENCONTRAR-TE
No bulício
Dos nossos dias
Reconstruídos
Com a fantasia
Até que no amanhecer
De um poema
Me cruze contigo
E te diga
Com olhar
Submisso
E melancólico:
Continuarei
A procurar-te
Onde já não estás,
Levado pelo destino
E pelo vento
Que passa.

Artigo

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA REJEIÇÃO
DA MOÇÃO DE CONFIANÇA
A Caminho do Plebiscito

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

MOÇÃO DE CONFIANÇA REJEITADA e, naturalmente, eleições em Maio. E ficou claro no debate parlamentar de ontem que o Primeiro-Ministro Luís Montenegro (LM) não queria (não quer) responder numa “Comissão Parlamentar de Inquérito” (CPI) nos termos regimentais previstos. Diz ele e o seu bloco político que, assim, iria verificar-se uma prolongada degradação da vida política e institucional, sem que, todavia, se tenham preocupado em notar a contradição patente em que incorrem relativamente ao funcionamento de todas as outras CPIs que ocorreram até agora, incluída a que viu o PR envolvido (a CPI das gémeas). Estas, pelos vistos, nunca contribuíram para a degradação do  sistema institucional, mas, agora, sim, será uma CPI aviltante e institucionalmente corrosiva. O mínimo que se poderá dizer é que acordaram tarde para a lógica de funcionamento das CPIs.

1.

Assim sendo, o PM só recuaria na “Moção de Confiança” se ele próprio pudesse controlar os termos em que a CPI se fosse desenrolar, incorrendo noutra contradição: ser o inquirido a ditar os termos da inquirição. Mais uma vez: até aqui tudo bem, mas agora há que mudar as regras de funcionamento desta CPI sobre o PM. De preferência, que dure, imperativamente, quinze dias ou, na pior das hipóteses, dois meses. Acordaram tarde, mas dirão que mais vale tarde do que nunca. De qualquer modo, o que parece é que, com o que aconteceu ontem no Parlamento, a CPI será transferida para a campanha eleitoral, desvirtuando-a, mas desvirtuando também a própria campanha eleitoral. Nada melhor para a degradação das instituições.

2.

Pedro Nuno Santos instou o PM (porque é disso que se trata) a retirar a “Moção de Confiança” e a submeter-se a essa CPI (com duração prevista de três meses, quando ela normalmente pode ir até 180 dias, e com eventual prorrogação até 90 dias), nos termos regimentais, recusando negociações de bastidores sobre ela enquanto ia ocorrendo o debate no Parlamento, ou em qualquer outra situação. Ninguém queria as eleições, é verdade, mas elas irão acontecer, e no pior dos cenários. Acontecerão mais como plebiscito do que como eleições legislativas.

3.

PNS ficara amarrado, desde o dia 10 de Março de 2024, ao chumbo obrigatório de qualquer “Moção de Confiança” que viesse a acontecer. E chumbo repetidamente reiterado. É verdade. E isso tornou quase impossível um recuo em relação a esta posição do governo, sob pena de vir a ser considerado troca-tintas. A verdade é que uma rigidez discursiva e decisional deste tipo não parece ser muito apropriada à actividade política, até porque as circunstâncias mudam, e agora muito mais rapidamente do que antes. Uma das razões (não a única, nem a mais importante) da existência do mandato não imperativo deve-se também à necessidade de deixar mãos livres aos representantes para poderem decidir e agir em função da própria imprevisibilidade da política e da história. E, neste caso, se as circunstâncias tinham mudado muito (não era previsivel este estranho comportamento do PM nem esta tentativa  plebiscitária de o branquear), o compromisso de PNS não mudara (fora reiterado várias e recentes vezes, quase como um mantra), pelo que ficou amarrado a essa pré-anunciada e reiterada decisão. E, por isso, ontem agiu em coerência, no meio das tentativas mal-amanhadas da maioria no debate parlamentar para reverter a situação de queda do governo, sem excessivo prejuízo para o PM, devido à CPI. O PM tinha receio de ser queimado em lume brando e, por isso, tentou, e conseguiu, uma fuga para a frente, arrastando consigo o governo, o seu partido, o país e o próprio PS.

4.

Há uma pergunta legítima que se poderia fazer a PNS: se era isso que LM queria por que razão lhe deu precisamente o que ele queria? E a resposta seria sempre esta: porque já estava há muito anunciada a posição do PS perante uma tal eventualidade. Ou seja, o governo só cairia, e cairia, quando o PM quisesse, porque o PS já demonstrara à exaustão que não seria causa de instabilidade política: deixou passar o programa do governo, a presidência da AR, o orçamento, e chumbou duas moções de censura. Mas com a consciência tranquila, porque, confiança, isso é que não. Um mantra. A verdade é que, logo que o PM decidiu submeter-se a uma “Moção de Confiança”, a tal fuga para a frente, PNS viu-se obrigado a executar o que já anunciara há muito e, deste modo, a satisfazer o desejo de Luís Montenegro, pagando por isso um preço: ver-se acusado de ser causador de instabilidade política. Injustamente, como se vê, mas também porque ele próprio se amarrara a essa decisão desde o dia das eleições legislativas de 2024.

5.

Já aqui escrevi, na passada segunda-feira, que a melhor decisão teria sido, de facto, a abstenção e a rápida promoção da CPI. E elenquei as razões de fundo e os efeitos. Assim, o que iremos ter, será, independentemente dos conteúdos discursivos mais amplos que seguramente acontecerão na campanha eleitoral, um plebiscito sobre a figura de Luís Montenegro:  ter ou não condições para voltar a ser primeiro-ministro. Ou seja, toda a campanha se centrará na sua figura. O que acabará por lhe dar uma centralidade que acabará por ser benéfica para ele, se aceitarmos a lógica e a validade de uma famosa teoria dos efeitos, a do “agenda-setting”. Sei bem do que falo porque estudei ao pormenor a campanha de Berlusconi de 1994, que o levou ao poder, tendo usado e abusado desta tecnologia social, contra, neste aspecto, uma certa inoperância de Achille Occhetto, o líder do PDS (veja-se o meu Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012, pp. 257-338).

6.

Não me agradou, portanto, o desfecho deste processo e até acho que o PS, mesmo que saia vencedor das eleições, não terá seguido aquela que seria, na minha opinião, a melhor estratégia – a abstenção. A lição a tirar daqui é esta: a rigidez decisional, em nome de uma eventual coerência de discursos de conjuntura, que, em nome precisamente da coerência, amarram o seu autor e não lhe deixam a necessária flexibilidade para agir politicamente em liberdade, não é mesmo muito amiga da acção política. A coerência e a rigidez discursiva só devem ser mantidas no plano da ética da convicção, no plano dos princípios. Mas mesmo aqui, às vezes, a ética da responsabilidade e as exigências de flexibilidade táctica implicam um nível de liberdade que a rigidez decisional não permite. Espero que PNS retire desta experiência a devida lição, como, afinal, em parte, já o tinha feito em relação ao orçamento para 2025. É assim que eu vejo as coisas. JAS@03-2025

Artigo

A CRISE E O PLEBISCITO

EM SETE ANDAMENTOS

João de Almeida Santos

“S/Título”, JAS 2025

NESTA CRISE que estamos a viver há um aspecto, porventura o essencial, que nos deve fazer reflectir. Mas ele não consiste no facto de irmos para eleições antecipadas, um ano depois das últimas. Não. Nem em termos três eleições (legislativas, autárquicas, presidenciais) em menos de um ano. Nem sequer em termos, em três anos, três eleições legislativas. Não, a crise não consiste em nada disto.  É algo mais profundo e mais grave.

1.

A crise consistirá, se, como previsto, a moção de confiança for reprovada, forem convocadas eleições e Luís Montenegro se apresentar de novo como candidato a PM, depois de ter sido o seu comportamento a ditar o fim da legislatura, envolvendo o seu partido e o país num processo que só a si diz respeito e transformando as eleições num tribunal que avalia, não visões políticas do mundo, não programas e os seus responsáveis e executores, mas eventuais ilícitos (fora das instâncias judiciais) ou comportamentos individuais, claramente identificados e eticamente censuráveis; em suma, não um chumbo do orçamento ou a aprovação de uma moção de censura, por o parlamento não ter aceite as políticas propostas e executadas pelo governo, mas a aprovação ou condenação do comportamento moral de uma pessoa. A crise deve-se a um comportamento inadequado de Luís Montenegro: receber, ele e a sua família, sob forma de serviços prestados com regularidade, avenças de grupos económicos enquanto desempenhava as funções de primeiro-ministro. E isto é facto comprovado, reconhecido e cada vez mais adensado, à medida que se vão conhecendo novos episódios. As sucessivas correcções de rota (hoje a empresa já só pertence aos jovens filhos, por decisão do pai e da mãe, já não tem morada na sua residência nem, creio, já exibe o próprio número de telefone do PM) parecem evidenciar que, de facto, algo estava mal. E estava. Pelo menos, do ponto de vista ético, embora do ponto de vista jurídico as dúvidas sejam muitas e legítimas. E, por isso, para que assumisse sozinho as próprias responsabilidades, nem seria necessário invocar o princípio de que, em política, o que parece é ou de que o verdadeiro líder deve ser como a mulher de César. Na verdade, o facto é tão embaraçante que o governo vai acabar por cair, com uma esmagadora maioria no parlamento (provavelmente com cerca de 62% dos votos no parlamento, como previsível).

2.

Na verdade, comparada com a que motivou a queda do governo e da maioria absoluta do PS, esta crise tem fundamentos muito mais sólidos, até porque relativamente à outra, passado um ano e quatro meses, o famoso e demolidor parágrafo continua a não passar de mera neblina inconsistente, fumo sem fogo à vista, havendo, um dia (sabe-se lá quando), de tudo ficar esclarecido. Mas a verdade é que o governo caiu, por suspeitas de ilicitude atribuídas ao PM de então, António Costa. Este, bem ou mal, demitiu-se, podendo, na altura, haver eleições ou, então, como proposto, uma substituição do líder do governo, justificada em virtude de haver uma maioria absoluta de suporte do governo. E, como se sabe, o PR preferiu a primeira solução. Uma crise, pois, que mais parece ter sido uma narrativa encenada ou construída artificialmente do que algo com consistência. Ainda não são conhecidos todos os autores da encenação, mas um dia haverá de saber-se.

3.

Se, como previsto, Montenegro se voltar, então, a apresentar a eleições como candidato a primeiro-ministro, isso representará não só um desvio de responsabilidades para o seu bloco político e para o próprio país, mas também, o que é mais grave, um uso instrumental e inadequado das eleições legislativas, transformadas agora num inacreditável plebiscito sobre a sua própria figura (Lex Montenigrum, lei com o nome do tribuno que a propõe). E é isso que acontecerá. Não serão verdadeiramente eleições legislativas, mas um plebiscito, aliás, nem sequer previsto na Constituição da República Portuguesa, vista a má fama que ele tem (foi promovido em 1933 sobre a famosa Constituição). Um appel au peuple sobre o consulado de LM, mas exclusivamente sobre a sua figura e sobre o seu comportamento moral. Ora, como se sabe, o plebiscito é um instrumento de democracia directa: “O plebiscito é um mecanismo de democracia directa, pode conciliar-se com os mecanismos da democracia representativa, mas, de certo modo, está em contradição com os seus princípios e pode mesmo ser utilizado – como aconteceu várias vezes – por regimes de tipo autoritário” (Enciclopedia Treccani). Por exemplo, com Luís Napoleão (Napoleão III), em meados do séc. XIX: “Plebiscito: imediatamente a seguir ao golpe de Estado, o povo é chamado a declarar a sua vontade acerca da manutenção da autoridade na sua pessoa e a delegar nele o poder constituinte” (Arangio-Ruiz, V. e Marchi, T., Plebiscito, in Enciclopedia Treccani). Nem mais.

4.

Como se sabe, as eleições legislativas, numa democracia representativa, funcionam em torno de três objectivos: o universo ideal representado pelos partidos concorrentes, o seu programa político e a(s) liderança(s) que os interpretam e executam. Ora, neste caso, pelo que já se viu, do que se tratará é de reprovar ou validar o comportamento ético do primeiro-ministro, assumindo realmente as características de plebiscito e distorcendo totalmente a natureza destas eleições, já que, afinal, nelas, formalmente, nem sequer estará em causa a eleição directa do primeiro-ministro (é esta a natureza das democracias parlamentares, como a nossa). E, todavia, na realidade, do que se tratará é de obter plebiscitariamente um sim ou um não em relação ao comportamento individual de Montenegro e à sua continuidade como chefe do governo, fazendo um bypass relativamente aos poderes das outras instituições, designadamente os da presidência da república, do parlamento e do poder judicial. Porque se trata, de facto, de um instrumento de democracia directa. Estas eleições, sendo exclusivamente sobre a figura do primeiro-ministro, pela razão já referida e explicitamente assumida, e não sobre o governo e as suas políticas, correspondem a uma mudança prática ou informal do nosso regime constitucional.  Até porque nas eleições legislativas há inúmeros factores em causa (mundividência política dos partidos, programa político e 230 mandatos para atribuir), que não são de modo algum subsumíveis na figura do líder, não podendo, pois, as eleições ser interpretados como voto de aprovação ou de reprovação do comportamento de Luís Montenegro. E, todavia, é esse o objectivo e será esse o efeito, será essa a conclusão do processo eleitoral, tendo sido essa a razão que, afinal, motivou a realização destas eleições. Alguém disse que, muitas vezes, o efeito supera a causa – pois é disto mesmo que se trata. Na realidade, o que vai acontecer é realmente um plebiscito travestido de eleições legislativas, onde até poderá acabar por ser exaltado o prevaricador. De qualquer modo, que venha a ser o resultado, isto nunca deveria acontecer. Mas, se acontecer, é porque Luís Montenegro quis fazer uma fuga para a frente de modo a tirar o assunto da agenda pública, envolvendo-o com um discurso de política geral, mas retirando, depois, ilações concretas sobre o assunto, sobretudo se conseguir um resultado favorável. Mas a verdade é que, como se sabe, isso não irá acontecer, uma vez que o PS não recuará, em qualquer caso, na decisão de avançar com uma CPI. A posição de PNS, ao pedir a LM que retire a moção de confiança é, pois, correcta, corrigindo, deste modo, a inacção presidencial, mas não deixando cair a exigência de investigação do que na realidade aconteceu com as avenças do Primeiro-Ministro. Mas há outra solução possível e realista, como veremos.

5.

Se as coisas, em matéria de política democrática, já não estavam muito sadias, com este salto abrupto para uma política de natureza plebiscitária ainda vem agravar mais o que já não estava bem. Tudo isto porque Luís Montenegro decidiu não assumir pessoalmente as consequências do seu próprio comportamento, preferindo cobrir-se com o manto diáfano do PSD e da AD, e pouco lhe importando que o seu próprio partido possa vir a ser profundamente afectado, designadamente a favor do CHEGA, nestas eleições, fazendo migrar política e indevidamente a imputação da culpa para o vasto corpo do seu próprio partido. Se, pelo contrário, o resultado lhe for favorável, pode parecer que a sua autoridade interna crescerá, porque reforçada plebiscitariamente… até que o lawfare ou um outro qualquer comunicado da PGR entrem em acção e o derrubem com instrumentos judiciais, não havendo plebiscitos que o possam salvar. De resto, está visto que o assunto das avenças não morre aqui, com este plebiscito, qualquer que seja o seu resultado. O que é estranho é que o PSD não compreenda isto, não compreenda que a médio prazo pagará uma factura muito alta por tudo isto e que, afinal, é a democracia que está em causa, e por culpa própria. Estará este partido refém do seu actual líder?

6.

Não são muito interessantes os caminhos que a política está a seguir quer por culpa dos seus protagonistas, individuais e colectivos, quer por causa das profundas mutações que estão a ocorrer nas nossas sociedades e das interpretações radicais que estão a ser intensamente promovidas por certos movimentos políticos. E este caso, que é muito sui generis, vem a confrontar-nos com uma tendência que, desde os anos ’50 do século passado, em especial devido ao aparecimento da televisão, se tem vindo a impor, isto é, a extrema personalização da política, com os consequentes efeitos que ela provoca em matéria de solidez dos sistemas políticos democráticos. As chamadas campanhas negativas, nos Estados Unidos, nas presidenciais, sempre se basearam nisto. Mas o que  hoje está a acontecer neste país também encontra nisto uma fortíssima causa. Depois, se os protagonistas desta nova política hiperpersonalizada mais não forem do que actores secundários, pouco escrupulosos e insuficientes em matéria de ética pública os resultados podem ser gravíssimos para a sobrevivência da própria democracia. De qualquer modo, a lógica plebiscitária nunca foi amiga da democracia representativa e muito menos o será se for sobreposta à dos seus mecanismos centrais. E até o referendo, que sempre deu resultados que nunca foram particularmente entusiasmantes e democraticamente instrutivos. Bem pelo contrário. Mas o seu irmão gémeo, o plebiscito, esse, até tem uma fama, uma má fama, que não é mesmo democraticamente recomendável. Ele reforça ainda mais, na maior parte dos casos em direcção à autocracia, o que hoje já constitui um excesso na política democrática: a hiperpersonalização.

7.

Perante tudo isto, o que resta concluir é que não é aceitável que o nosso sistema político seja arrastado (é a palavra) para uma tentativa de resolução de um problema que é absolutamente de natureza pessoal. E esta conclusão já deveria ter sido assumida pelo senhor Presidente da República, informando o senhor Primeiro-Ministro de que não convocaria eleições, que não arrastaria o país para um plebiscito e que tudo faria para manter o sistema a funcionar sem eleições. O destino do país não tem de ficar obrigatoriamente amarrado aos problemas pessoais de Luís Montenegro. Em vez disso, todavia, o senhor Presidente aderiu de imediato à ideia de eleições, o que é estranho para quem exibe no seu curriculum profissional a condição de constitucionalista e de professor catedrático de direito. Assim sendo, vamos para o plebiscito e para mais perto do precipício democrático ou da farsa democrática que hoje parece estar a triunfar um pouco por todo o lado. Lamentavelmente.

Não sei mesmo se o PS não deveria abster-se na moção de confiança, por uma única razão: o PS não viabiliza plebiscitos, sejam eles mascarados ou não de eleições legislativas. De resto, nem se poderia dizer que haveria recuo em relação a quanto o  secretário-geral tem vindo a declarar em relação a uma moção de confiança, por quatro razões: 1) não se trataria de aprovação, mas simplesmente de uma abstenção, que evitaria eleições; 2) uma situação destas, a que acima descrevi, não era previsível e, muito menos, que ela fosse “resolvida” recorrendo a um instrumento que a nossa constituição não prevê, o plebiscito, ainda que disfarçado de eleições legislativas; 3) a CPI sobre os negócios de Montenegro avançaria rapidamente; 4) daria ao PR a possibilidade de resolver o problema do PM sem recorrer a eleições, eventualmente com a compreensão de uma boa parte do próprio PSD (veja-se as declarações de Moreira da Silva).

Trata-se de um problema muito delicado, mas o que está em causa é o próprio sistema político e uma gigantesca desproporção entre a causa (um problema pessoal de Luís Montenegro) e o efeito, uma grave distorção do nosso sistema político. JAS@03-2025

Poesia-Pintura

MIRAGEM

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “A Outra Janela”
JAS 2025
Pintura de minha autoria.
Março de 2025

“A Outra Janela”. JAS 2025

POEMA – “MIRAGEM”

EU, DESTA JANELA,
Já não te vejo
Como na outra
Te via,
Há um caminho
A trilhar,
Uma miragem
Que exorta
A fantasia,
Mas não sei
Onde me pode
Levar...

SÓ SEI QUE
Parto,
Com o olhar,
De um jardim
Verdejante
Onde as camélias
Aludem
A um incerto
Destino
Que se adivinha
Errante...

DAQUI VEJO
Uma rua
Com uma forma
De rio,
Um traçado
Sinuoso
Por entre o casario,
Marcas
De passos remotos
Em granito
Amarelo,
Um longo caminho
De afectos,
Muito denso,
Mas singelo.

É OUTRA JANELA,
Virada
Para a montanha,
Onde se fixa
O olhar...
Mas dela,
A nascente,
Com o sol
A despontar,
Chega uma luz
Que encandeia
De tanto ela
Brilhar...

É A INTENSA
Luz do dia
Que me convida
A viver...
.........
Mas como
Poeta que sou,
Viro-me pra
Dentro mim
(Recorrente
Timidez)
Pra ver uma luz
Brilhar
Que me ilumine
De vez...
...........
E sem nunca
Me cegar.

ENTENDES?
O mundo,
Quando acorda,
A nascente,
E entardece,
A poente,
Muda de cor
E de luz,
Mas à noite
Vai-se embora
E eu vejo
O seu ocaso,
Seja por dentro
Ou por fora.

MAS, A TI,
Oh, a ti,
Eu vejo-te
Sempre a sul,
Entre nascente
E poente,
Vejo-te no horizonte,
Como estrela
Cadente,
A passar,
Iluminando
O caminho
Quando me ponho
A voar.

TUDO DEPENDE
Do olhar,
Bem sei.
Se não te vejo
Da janela
Sinto que voas
Comigo
Nas palavras
Com que,
Há muito,
Te celebro
E te digo.

MAS NÃO É
A tua,
Esta janela,
Porque nela
Te poderia ver
Lá do alto,
De um lugar
Que não é meu,
Porque aquela
Era janela
Que nunca
Me pertenceu.

EU CANTAVA-TE
Lá de baixo,
Desse meu lado
Da rua,
Por vezes,
Com alma cheia,
Outras,
Com alma nua,
Pra me poder
Vestir de ti,
Como se,
Assim vestida,
A alma
Não fosse minha,
Mas tua,
Pondo fim
À despedida.

MAS PERDI-TE,
Como sabes,
Porque não tinha
Escada
Para te alcançar...
E, agora,
Há camélias,
Por aqui,
Há flores
A encantar,
Um luminoso
Jardim
Que pode mesmo
Ser pra ti
Porque o posso
Regar.

E ATÉ HÁ
Uma escada...
..............
Mas só pra ver
Mais além
E voar
Com o olhar
Para uma ilha
Encantada,
Contigo
E mais ninguém.

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XI)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

ARTIGO – “NOVOS FRAGMENTOS” (XI)

1.

A POESIA TEM O PODER extraordinário de acelerar o tempo ou de o retardar. O tempo da poesia é “kairótico”, acontece como “momento oportuno”, como “durée”, para usar o conceito de Henri Bergson, o tempo subjectivo, tempo que é fluxo, movimento, a continuação do que já não existe no que existe, o prolongamento do antes no depois, uma “memória interior à própria mudança”. Daí o seu poder de aceleração. Introduzindo o “instante criativo” na nossa liturgia existencial superamos o tempo cronológico, o “tempo espacializado”. Depois, recorrente no meu discurso poético, vem a neve, que infelizmente é cada vez mais passado, porque já não nos visita, tendo de ser nós, quais turistas da neve, a visitá-la. Ela, antes, vinha ter comigo a minha casa, ao meu jardim, à minha rua. Agora, não. Mas com a poesia, com o tempo subjectivo, é sempre possível reverter o tempo cronológico e ir lá, a esse passado com neve. A essa rua onde ela aparecia… quando queria. Entramos no veículo poético e, zás!, já lá estamos. Outra vez a aceleração. Um veículo poderoso, que só poucos sabem conduzir com a necessária mestria e sensibilidade à flor da pele. Na direcção do passado, mas com os olhos postos no futuro. Trazendo-o com arte ao presente é o mesmo que lhe dar asas para voar até ao futuro, queira o passado ou não. É que, aqui, até o passado tem vontade. Só que o poeta também a tem, aliada da sua fantasia. Aí a encontramos, a ela, ou um outro amor de juventude a que ela, a neve, também possa aludir. Que sempre havia. Oh, se havia… A neve é, sim, metáfora, mas também é referente real – ela representa o passado naquilo que ele teve de mais belo. A neve é feminina, é mulher. E é por isso que o poeta a canta e a procura sob outra forma (líquida e muito fria, como ela, a do silêncio que castiga) lá no alto da montanha para a trazer consigo, a ela e à montanha. A poesia traz a outra, como a água traz a montanha e a neve (em forma líquida). O passado ao alcance da imaginação. A textura delicada de um floco de neve a dissolver-se assemelha-se a um suspiro quase inaudível. Mas lá está a poesia para o registar. Suspiro que até pode ser, realmente, o poético. O canto em surdina. É por isso que a poesia a procura, a neve, para dizer o que de outro modo não poderia dizer. Os grandes amores são muitas vezes, demasiadas até, fugazes, como a neve. Brancos e frios. E petrificam. É por isso que os poetas andam sempre com um espelho para poderem olhar as musas através deles e não petrificarem.

2.

O sonho, seja ele poético ou não, funciona assim: filtra. Codifica o real e reprodu-lo já codificado. Para lhe aceder é preciso uma chave. Uma espécie de código. É uma linguagem e, como tal, tem essa função. Uma linguagem especial. Também é uma descarga não linear de experiências comprimidas e mal resolvidas. O Cioran falava de poética do fracasso. No sonho poético intervém o espírito para sofisticar esteticamente o que a alma sentiu. A alma sente, o espírito estiliza. Sim, o sonho purifica. Por isso, é bom sonhar. Depois, como diz o poeta, o mundo até pode pular e avançar…

3.

Há sempre a poesia para reconstruir no presente o que se perdeu no passado. Com a poesia revive-se. Com a intensidade que a performatividade da poesia torne possível. É variável, a performatividade. E depende muito da melodia, do ritmo, da toada, fundamentais para dar poder expressivo e sensorial à poesia. Como dizia a Yourcenar: “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”. Referia-se já à ausência do amante de Michelangelo e à sua expressiva reconstrução estética. Pensava no passado quente que ficou ao alcance da sua fantasia reconstrutiva na fita da memória. Agarrar o passado com palavras, com melodia, com cores, com beleza, é revivê-lo livremente. Afinal, a felicidade é um sentimento: é algo que se vive interiormente e que podemos accionar à nossa própria escala. Em condição de ausência. E, se assim for, por que razão não a podemos reconstruir e revivê-la sem limites? Só com a nossa fantasia, sim, mas para depois a partilharmos através da arte como projecção e estilização da nossa própria sensibilidade, como um novo andamento da nossa experiência sensível.

Alguém me dizia que abraçar com o olhar é impossível, porque não se sente fisicamente quem abraçamos. Não concordei porque, no meu entendimento, até é possível sentir mais fortemente (e fisicamente) um abraço que seja dado simplesmente com o olhar, com a alma. Afinal, os olhos são a janela da alma. E a conversão somática também acontece com o desejo. Ecco.

4.

O tempo é absoluto, mas também é relativo. É as duas coisas. E há o tempo subjectivo, que é o tempo dos poetas. A “durée”. E há o tempo “espacializado”, cronológico. Um tempo exterior que nos atropela constantemente. O do poeta é clepsídrico, reversível, pode sempre recomeçar. Basta virar a clepsidra. O eterno retorno, como vem definido na “Gaia Ciência”, do Nietzsche, Aforismo 341. Este também pode ser o tempo do poeta. Por isso ele fala, no poema “Tempo e Memória”, de uma esfera em rotação entre o futuro e o passado, com o poder do meteorito incandescente que até pode provocar grandes devastações. Por exemplo, quando se tenta agarrar o passado intenso e não se consegue porque a neblina do tempo é intensa e já não deixa ver com nitidez. Só a fantasia consegue penetrar nessa neblina e agarrar o passado, modelá-lo, convertê-lo, estilizá-lo, trazendo-o ao presente e até ao futuro (através da arte). Não acreditar que a musa não ouça o poeta? Bom, talvez ouça. De qualquer modo, ele age sempre como se ela o estivesse a ouvir. E mais: age poeticamente (mas também como pintor) para a seduzir e, assim, remediar o que falhou no passado. Mas conseguirá seduzi-la? E se ela o não ouvir? Resultados concretos? Sim, há: os poemas. Eles bastam-se. É como procurar seduzir um fantasma? Eles sempre voam por aí e fazem parte da atmosfera criativa. E o poeta sabe disso. Mas pode ser que algum dia um poema chegue à musa, se os fantasmas (seduzidos, também eles) não os beberem durante o trajecto. Eles são fluxos que fazem o seu caminho para além do poeta que lhes deu vida. Há um cordão umbilical que se deslaça… na partilha. Os poemas são riachos que fluem para rios e, depois, para o mar… O encontro entre a “água doce” e a “água salgada” é sempre imprevisível e potencialmente instável. Como o poema quando chega à musa…

5.

Talvez a musa esteja num plano intermédio entre a reserva e a altivez própria de quem se sabe amado, mas a tender mais para a reserva, para o culto do anonimato, para o gosto da penumbra. Não sei. Não sei bem se o retrato que resulta de um poema se lhe aplica ou se a musa dos poemas est plus belle qu’elle-même. O que sei é que a relação remota do poeta com a musa gera sempre uma cadeia de sentimentos que parece não ter fim, pois passa a fazer parte do universo onírico dele. Uma espécie de “pecado original” de que o poeta procura resgatar-se pela poesia. E para isso escolhe a via da sedução poética, da beleza, do canto, apesar de não saber se ela o ouve. Sim, mas, de qualquer modo, ele age sempre “como se”. E é isso que é importante. Porque é isso que lhe permite continuar.

6.

O tempo é fluxo e deixa rasto, marcas, sulcos e tudo isso também acontece na memória viva. Acontece no real, com as marcas físicas, e acontece nos registos de memória viva. E estes registos falam, às vezes, como sonhos, outras, como narrativas, como poesia, como música ou pintura. A música popular está muito presente nas composições de Mozart, por exemplo. Há nela marcas muito profundas e reconhecíveis. E nem falo dos romances históricos, das telas de pintura ou dos monumentos e edifícios. Tudo isto passa pela sensibilidade dos executores, havendo, pois, uma mediação por intervenção da consciência, dos registos de sensibilidade, da memória, do saber, da técnica. Acontece assim a cristalização do tempo. E o próprio tempo torna-se, assim, escultor. O poeta é um escultor de sentimentos com palavras em melodia, procurando captar o fluxo temporal, mas sem o petrificar. A linguagem da poesia procura acompanhar a fluidez dos sentimentos e do próprio tempo referindo-se ao objecto como se estivesse a olhá-lo num espelho, não directamente. Esse desafio de superar a petrificação é o mais delicado, difícil e complexo da arte. Nesse sentido, o poema é, sim, tempo, porque se move livremente entre o passado e o futuro, situando-se no chamado “instante criativo”, no “momento oportuno” ou “kairós”. E o próprio poeta situa-se no seu espaço ideal, que é o intervalo entre si e o real. E é por isso que ele próprio, enquanto poeta, pode fluir com o tempo. E até acelerá-lo ou retardá-lo.

7.

A “Esfera do Tempo”, uma pintura minha para o poema “Tempo e Memória”, representa a possibilidade de reversão do tempo. E a verdade é que o poema faz reverter o tempo, tornando-o vivo (na performatividade da palavra poética). A própria ideia de clepsidra, que fui buscar a Nietzsche, à “Gaia Ciência”, também torna possível essa reversão, desde que manipulada (a tal rotação). O centro é, claro, a memória, o lugar onde acontece o tempo subjectivo do poeta, onde acontece a conversão do passado remoto ou mesmo do instante pulsional que leva o poeta a cantar. Nela o passado corre em moviola e é assim que o poeta compõe. Olha para o écran da memória em movimento, como na moviola, observa, regista e compõe. Depois, o espelho (que também está na imagem a reflectir a esfera): é sobre ele que o poeta trabalha, imagem indirecta, instrumento que a deusa lhe deu para não petrificar perante a visão da musa (górgone benigna). De resto, o essencial nunca se dá a uma visão directa, mas sim a uma visão sempre indirecta, mediada. O espelho é, pois, um precioso instrumento para nos relacionarmos com a verdade e a beleza. Depois, a imagem da vela que atrai a borboleta e que morre (morrem ambas) para iluminar é bela. Pode-se intuir isto num poema de Goethe (“Selige Sensucht”, mas creio que a imagem da vela aparece no romance de Thomas Mann, “Lotte em Weimar”, precisamente numa fala de Goethe) e procura simbolizar as palavras que exaltam (iluminam) a musa à custa de uma eventual anulação da própria identidade do poeta. Anulo-me para te fazer brilhar. As velas dos cerimoniais religiosos ao serviço da iluminação divina. E também é verdade que o poema se move entre o magma pulsional e o rigor sideral, sendo, sim, esse o permanente desafio da poesia. JAS@03-2025