Artigo

TEMPOS DIFÍCEIS

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

NÃO FALO DA GLOBALIZAÇÃO, de repente formatada de acordo com as idiossincrasias de um indivíduo que, governando o mais poderoso país do mundo, vê o planeta à escala do seu umbigo – um senhor chamado Donald Trump. Não falo do quase colapso de uma grande democracia como é, ou era, a americana. E não falo da guerra territorial do novo czar russo a um país independente com mais de 40 milhões de habitantes e mais de 600.000 km2 de território. Nem da pandemia universal que paralisou o mundo. E muito mais haveria a dizer por quem acha, e com razão, que estamos a viver tempos difíceis. Não, eu prefiro falar do  que está a acontecer no nosso país.

1.

Falo do apagão de 28 de Abril e da incompetência do governo de Luís Montenegro (LM), que se reuniu, não para resolver o que quer que fosse, mas para combinar o que haveria de dizer quando a REN tivesse o problema resolvido. O episódio dos jerricãs com gasóleo para a Maternidade Alfredo da Costa diz tudo. Foi certamente para isso que a senhora Ministra do Ambiente esteve a trabalhar 24 horas, ininterrupta e silenciosamente, entre as 11:33 e as 11:30 do dia seguinte. Dizia-me um Amigo meu, empresário, que nem sequer se lembraram de aprovar uma deliberação do Conselho de Ministros que permitisse, provisoriamente, a circulação de mercadorias (por exemplo, as de bens alimentares perecíveis) sem os documentos requeridos, mas com apresentação subsequente depois de regularizado o funcionamento do site da Autoridade Tributária (que, pelos vistos, ainda continua instável, como noticiava o jornal “Público” de ontem, na pág. 24). O meu Amigo só pôde reiniciar a sua actividade quando o site da AT ficou disponível, ou seja, dois dias depois do apagão. Mas também não tive conhecimento de informações oficiais ao longo do dia – mas ressalvo, claro, as que a senhora Ministra do Ambiente não podia dar porque estava a trabalhar denodadamente -, ao contrário dos habituais conselhos da Protecção Civil para me agasalhar se estiver frio, de usar guarda-chuva se chover e dos infinitos avisos arco-íris sobre o tempo que fará ou que não fará. Coisa, de resto, muito fácil: hoje, é aviso laranja, estejam atentos e, se faltar a luz, acendam velas, mas com cuidado! Muito mais eficiente fora o governo a anular os festejos do 25 de Abril porque morrera o Papa, fazendo entrar a liberdade de luto, ainda que, ao aperceber-se de que Portugal é um Estado laico e de que as críticas choviam de todo o lado, tivesse feito (parcial) marcha atrás no que ainda era possível. Sobrou para o Primeiro de Maio a festa nos jardins de S. Bento, com o sugestivo nome de “S. Bento em Família” (a lembrar as “Conversas em Família” do então inquilino de S. Bento, Marcello Caetano) com cultura a rodos: a dupla Tony Carreira/Luís Montenegro, o “Cante” alentejano e os “Pauliteiros de Miranda”. Só lá faltou um rancho folclórico de Espinho. Isto, sim, que é cultura – “Vira que vira, / Canta que canta, / Isto é qu’é bom, / Antes da janta”.

2.

Entretanto, vamos para eleições porque ficou em causa a seriedade do primeiro-ministro. Foi esta a causa, como se sabe. Mas ele acha sinceramente que não, apesar de receber avenças de várias empresas (por interposta família, mulher e filhos), sendo primeiro-ministro. A empresa era (é) ele, a morada era a sua, o telefone também, site não havia e de competências e de funcionários também não dispunha. E parece que também não havia contratos. Que raio de empresa era esta? A empresa era ele, o político que é eficaz a gerir expectativas a seu favor. E está casado em comunhão de adquiridos com a senhora a quem passou a titularidade da empresa (além dos filhos de ambos). Umas horas antes do debate com Pedro Nuno Santos ficou-se a conhecer o nome de várias empresas com quem Luís Montenegro teve negócios e cuja relação com o Estado terá atingido 278 milhões, sendo 112 milhões durante o período em que foi primeiro-ministro, segundo as contas feitas pelo “Expresso” (02.05.25). Soube-se da informação que o próprio prestou à Entidade para a Transparência (EpT) no dia anterior ao debate com Pedro Nuno Santos e sabe-se agora que, afinal, esta transparência não devia ser transparente, ou seja, acessível aos meios de comunicação social e aos cidadãos. Pelos vistos, a palavra “transparência” não significa o que vem nos dicionários de português e o art. 16.º do Estatuto da EpT (Lei orgânica 4/2019, de 13.09), que diz que as declarações são públicas, não está em vigor. Ou seja, não se trata de uma entidade para a transparência, mas de uma entidade para a ocultação de rendimentos e de prestação de serviços (pelo menos, até que o processo eleitoral, em curso, termine). “Iremos até às últimas consequências”, disse, a própósito, um tal Hugo (Soares ou Carneiro, não interessa, que são farinha do mesmo saco), verdadeiro paladino da transparência (de outros). O mesmo que não tem sido pródigo na crítica à catadupa de segredos de justiça regularmente divulgados pela imprensa. Esses, sim, crimes, nos termos da lei.

3.

A verdade é que outros clientes de Luís Montenegro têm sido divulgados pelo próprio. Qual é, pois, o problema de serem paulatinamente divulgados mais uns tantos? Este tipo de divulgação não me parece que esteja proibido (são já muitos os advogados que sustentam esta tese, que, de resto, é evidente, nos termos da lei e a começar logo pelo nome da respectiva Entidade), até porque não toca em aspectos sigilosos profissionais (como, por exemplo, a ficha médica de um doente ou a reserva no exercício da advocacia). Mas não, pois, pelos vistos, já se pretende investigar as fontes que terão transmitido aos jornalistas informações não proibidas pela lei e, bem pelo contrário, legalmente disponíveis para conhecimento público. Entretanto, que diferença há entre o Grupo Solverde e o Grupo Trivalor para divulgar um e não o outro (mais concretamente, a Itau e a Sogenave)? Só porque um pagava avenças regulares e o outro (que se saiba) não? Não se entende a posição do Hugo (Soares ou Carneiro, pouco importa) e de outros sobre este assunto, a não ser para desviarem a atenção (“cortina de fumo”) do verdadeiro conteúdo revelado. Por exemplo, que o famoso gasolineiro de Braga, o tal que pagou 194 mil euros (mais IVA) para LM lhe “reestruturar” a empresa, tem mais duas empresas clientes da Spinumviva (duas áreas de serviço), sempre segundo o “Expresso” (veja-se o excelente artigo deste semanário, da autoria de Liliana Valente e de Michael Pereira, na página 14 da edição de 02.05.25). Mas soube-se também, e isso é que é importante, depois do debate com Pedro Nuno Santos, que Luís Montenegro é um gigante da ética e das coisas sérias (com certificação logo exibida publicamente pelo campeão da ética, Cavaco Silva, o do BPN e da casa da Coelha). O que se sabe também, é que LM tudo fez para que a sua nova declaração à EpT não fosse conhecida antes do debate com Pedro Nuno Santos (mas o apagão trocou-lhe as voltas) e que essa informação ficasse retida nesta Entidade até depois das eleições (mas foi descoberta e publicada pela imprensa). Mas talvez o próprio ache sinceramente que tudo isto é normal e que, daqui para a frente, com a legitimação eleitoral, o primeiro-ministro passe a poder a receber avenças sem qualquer problema, desde que o “gabinete de avenças” não funcione no Palacete da Rua da Imprensa à Estrela. Para que isto não seja possível, o que se espera é que o eleitorado mostre lucidez (não a que referem Ferreira Leite ou Marques Mendes) e não certifique, com o voto, este tipo de comportamento, não lhe devolvendo a confiança que o actual Parlamento lhe negou por uma quase maioria qualificada (cerca de 62%). Porque o que era preciso saber já se sabe. E até acho mais: que a natureza desta empresa é muito diferente – ao contrário do que diz Pacheco Pereira, no “Público” da passada sexta-feira – de um “centro de infuência” (rede externa ao poder), pela sua identificação exclusiva com um só personagem e com a sua morada e telefone privados (de LM). A definição mais ajustada seria, pois, a de um político lobista que actua de forma disfarçada para benefício próprio, usando como disfarce um nome de empresa. Nada tenho contra o “lobbing” (quando for reconhecido, regulamentado e legal, como por exemplo, nos Estados Unidos), o problema é que a figura do lobista neste caso coincide com a de um primeiro-ministro em funções.

4.

Qual é, pois, a causa destas eleições? A questão da seriedade de LM, do autodenominado paladino das coisas sérias e da ética. Disso ninguém pode duvidar porque foi por isso mesmo que o parlamento lhe retirou a confiança, a ele e, lamentavelmente, ao seu próprio partido (não falo do CDS porque esse e o seu risível líder pertencem à literatura Lilliput). Mas foi ele que, sabendo que não lha iriam dar, quis, mesmo assim, confirmar no parlamento que não lha dariam, avançando a toda a velocidade para eleições na esperança de que, arregimentando as tropas, como é habitual nestes casos, o voto popular lhe devolvesse a confiança que o Parlamento lhe retirou. Na esperança, pois, de que o voto venha branquear uma conduta claramente reprovável, comprovada abundantemente por notícias mais do que suficientes e que não só não foram desmentidas, como até foram confirmadas pelo próprio. O resto é fumo interpretativo para enganar o freguês eleitoral.

5.

Em rigor, nem se deveria discutir mais nada. Apenas a seriedade de alguém que recebeu avenças (directamente ou por interposta pessoa) enquanto era PM. Sinceramente, nem vale a pena discutir políticas porque elas nada dizem para além do que já sabemos (entretanto, soube-se, por palavras de LM, de que, noutro mandato, possa vir a privatizar a segurança social). Foi por isso que fizeram um programa eleitoral de 277 páginas. Para que ninguém as leia, nem sequer os candidatos a deputados. Na verdade, trata-se de um imenso cardápio que ninguém lê e que não explica o que quer que seja. Uma longa e pretensiosa conversa que não esclarece o leitor porque não diz qual é a “causa causans” de cada um dos grandes problemas do país nem o “princípio activo” da respectiva solução. Quem não quer ou não sabe explicar qual é o “princípio activo” das soluções (medicamentos) para os principais problemas do país publica cardápios de 277 páginas e não enuncia esses “princípios”. Lê-los é como estar a ler um enorme e pretensioso dicionário que fala eloquentemente de tudo sem dizer nada. Se virmos o caso da habitação, a solução (entre inúmeras e não hierarquizadas medidas) parece consistir na oferta pública de habitações (PSD e PS), além de o Estado ser também fiador para quem compra (no caso, os jovens até 35 anos – PSD), aumentando a procura e os inevitáveis efeitos sobre os preços. Entretanto, soube que no primeiro trimestre de 2025 entraram no mercado de arrendamento mais 49% de casas do que no período homólogo de 2024, o que, em parte, põe em crise o discurso do bloco central, convergente nesta área (dados que constam num artigo do professor Miguel Romão, no DN de 30.04.25, e que julgo ser elucidativo). Bem sei que isto não está a ter efeitos na baixa de preços e não supre a carência de habitações, mas deve suscitar uma reflexão diferente da que está a ser feita, retirando daí consequências. Mas de que uma efectiva expansão do mercado de arrendamento seja provavelmente o “princípio activo” da solução não se fala, sequer como hipótese, preferindo uma generalizada política “caritas” ou uma verdadeira “economia de plano” para o sector.

6.

Pelo menos, o PS publicou um cardápio com menos 42 duas páginas, o que, como é obvio, é igualmente desviante, por excessivo. Mas sobre a habitação alinha pela mesma bitola do PSD, o que, no meu entendimento, é errado, como também é errada a imposição administrativa de tectos às rendas, como quer a deputada e líder do Bloco, Mariana Mortágua. O estatismo na sua mais exuberante manifestação: resolver os problemas da economia por via administrativa, até que venha uma perestroika à portuguesa. Tenho a convicção profunda de que só a forte expansão do mercado de arrendamento  (a tal causa causans) poderá produzir efeitos consistentes quer no próprio arrendamento quer no preço das casas para venda, o que, todavia, exige medidas inteligentes e coragem por parte do Estado, designadamente em matéria de impostos (e procedimentos) quer sobre quem arrenda quer sobre a construção, rompendo com a velha lógica do “se pago menos ao banco do que ao proprietário do imóvel, então endivido-me, por trinta anos, compro e, no fim fico com a casa”. Esta é, de resto, uma das causas do preço das casas: o crescimento desmesurado da procura (para compra) que torna mais cara a oferta, numa subida insustentável dos preços das casas, na compra e, já agora, no arrendamento. Isto é apenas um exemplo. E não falo dos efeitos de rigidez sobre o mercado de trabalho. O que, de facto, não é necessário é a lenga-lenga retórica dos intermináveis programas que nada explica e que, depois, acaba por resultar em nada. Como se vê.

7.

Na verdade, agora, que entrámos na campanha eleitoral, entre cardápios gigantescos que ninguém lerá (os dois programas dos partidos que aspiram a governar o país somam mais de 500 páginas) e frases e imagens de mero efeito retórico (sobretudo televisivo), que nada dizem, para impressionar o eleitorado, o que temos é um enorme vazio no diagnóstico rigoroso dos grandes problemas e das respectivas soluções, o que indicia que continuaremos a navegar à vista, acumulando problemas e, na medida do possível, deitando sobre eles montanhas de dinheiro, que vem ou da União Europeia ou dos impostos cobrados aos cidadãos. De resto, a eficiência do Estado em Portugal concentra-se somente numa área: a da cobrança de impostos, de taxas e de multas na circulação rodoviária. Quanto ao resto, é o que se tem visto. Amen, agora, que começou o Conclave.

 ASSUNTOS A SEGUIR 
COM MUITA ATENÇÃO
  1. A eleição do novo Papa, que começa hoje, com os ortodoxos em acção para evitarem a continuidade da linha do Papa Francisco.
  2. A situação política no Reino Unido, onde a direita de Nigel Farage, Reform UK, teve um significativo sucesso nas recentes eleições locais da passada quinta-feira (estavam em jogo 1600 representantes locais, seis câmaras locais e até um lugar no Parlamento), em prejuízo dos conservadores e dos trabalhistas.
  3. A situação política na Alemanha, onde o partido Alternative Fuer Deutschland (AfD), de Weidel e Chrupalla, acaba de ser formalmente declarado organização “extremista de direita” pelo Gabinete Federal de Protecção da Constituição, justificada numa informação com mais de 1000 páginas, com graves implicações que podem ir até à limitação do acesso ao financiamento público e mesmo até à sua ilegalização. Situação deveras preocupante. JAS@05-2025.

NOVOS FRAGMENTOS (XV)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

“Incerteza”. JAS 2025

A POESIA NÃO QUER ADEPTOS, 
QUER AMANTES

JÁ UMA VEZ, e por sugestão de uma Amiga, comentei estas palavras de Federico García Lorca. Que querem, simplesmente, dizer que a poesia tem de ser sentida para ser partilhada e compreendida. Não há nela, como nas artes de palco, uma separação tão nítida entre o leitor e o poeta. O leitor apropria-se dela, identifica-se com ela, torna-a sua, com plena legitimidade. Isso está inscrito na sua matriz. Não há, aqui, usurpação. A música que ela contém e que se ouve está a ser simultaneamente trauteada pela alma do leitor. Como no amor. Não há esse “efeito de estranheza”, Entfremdungseffekt, de que falava o Brecht. O aplauso corresponde aqui a pura sintonia no sentir – syn-pathein. Neste sentido, o leitor também é poeta. É uma leitura por dentro – lê-se com a alma e torna-se nosso o que lá está (disponível para a partilha). É sentir em simultâneo. A poesia é um encontro de almas em ausência. E o poeta encontra-se, assim, com a alma gémea que partiu ou nunca chegou e com todas as que alguma vez experimentaram um sentimento de perda. É por isso que a poesia é um imenso campo de encontros, mas sobretudo de desencontros partilhados. É nisto que reside o seu poder, a sua força.

RECOMEÇAR

A viagem poética não tem fim, nunca terminará porque nunca chegará à janela desejada, a da musa. Se aparentemente lá chegar, o “Pássaro de Fogo” limitar-se-á a derramar palavras e cores no parapeito da janela, sem ver a musa nem saber se essa é mesmo a sua janela. Mas age como se essa janela fosse sua, por instrução do poeta. Ficará sempre a dúvida e isso exige continuidade. É esse o busílis. O poeta move-se sempre no terreno da utopia. É como Sísifo – tem sempre de reiniciar a viagem e de pintar (um)a janela, com palavras. Eterno retorno. E fica sempre uma moinha que o obriga a continuar. Repete-se o silêncio, repete-se o voo. As asas de que dispõe (as palavras) são a sua salvação. O combustível existe em abundância e, nos momentos em que o silêncio se faz ouvir com maior intensidade, emitindo um silencioso, mas intenso, eco, levanta voo. O que é frequente. Porque é coisa que fica para sempre, esse páthos que um dia o fez estremecer. Lembro-me sempre do poema do Baudelaire, em “Les Fleurs du Mal”, “À une Passante”. Um clarão… e depois a noite. É isto. E eu acrescentaria: e, depois, ainda, o sonho. Que se repete cada vez que o poeta fecha os olhos. E lá recomeça a viagem. Como tudo na vida. Está sempre a recomeçar. O desafio é nunca o fazer da mesma maneira. É este o desafio do poeta.

A NATUREZA SORRI EM NÓS

O Fernando Pessoa fazia muito bem as distinções entre o real e a projecção do ser humano nele. Ver um sorriso numa flor é projectar-se nela, humanizá-la, mas ao mesmo tempo é naturalizar a nossa sensibilidade. Claro, a flor ou o rio existem independentemente de nós… e nós deles. Mas a beleza reside precisamente neste encontro interactivo. Até porque também nós somos natureza. No nosso sorriso também é a natureza que sorri. Pôr a natureza a sorrir, em nós. Este jardim (cantado e pintado), o meu, é em parte real e em parte imaginado, como um sorriso do pintor e do poeta exportado para a natureza que está ali à sua frente. Ou ela que, em mim, sorri. A musa “anima” esta interacção – uma mediação inspiradora. Mais: é ela que provoca este movimento do poeta e a animação que daí resulta. É o que significa o título do poema “O Poeta, a Musa e o Jardim”.

A POESIA É UMA CONVERSA

O poema interpela. Daí resulta uma conversa – partilha de intimidades em moldura interactiva e estética. Conversa-se poeticamente com a alma.

NO PRINCÍPIO ERAM AS MUSAS

Que mais pode querer um poeta senão que viajem com ele jardim adentro, marcando também encontro com a musa que o inspira? É doce melancolia e faz bem à alma. Tempera a vida com os condimentos da fantasia, transposta em palavras, mas também em riscos e cores (na sinestesia). E em toada melódica (interior), a que atinge mais directamente a sensibilidade. Como seria a vida sem musas? Seria vida sem fantasia? Um cinzento e chato realismo? Eu acho que nem jardins haveria. E não haveria modo de incendiar a alma e de a pôr a voar. Nem haveria canto. Cantar o quê, sem musas? Também não haveria poetas, pintores, compositores. No princípio, não foi o verbo nem as coisas – no princípio foram as musas. Pecado original? Sim, pois não pode haver pecado sem musas. Não é a vida um longo percurso em pecado e em busca de redenção? É por isso que há poesia. A verdade é que o mundo nem começaria sem elas.

FLORES

As cores da primavera, no jardim, alegram a alma e convidam a cantar. E as musas andam por lá. Elas gostam de jardins, de cores vivas, dos aromas e das borboletas no seu afã polinizador. E o poeta em tudo isto se inspira. Também ele de certo modo é borboleta que poliniza almas. Todos os ingredientes podem ser encontrados no jardim: o jasmim com o seu acre perfume, a magnólia com os seus farrapos brancos, a árvore de Apolo, o loureiro, azáleas, rododendros, rosas, camélias… um sem-fim de flores. E as musas, que pairam sobre os aromas inebriantes, desafiando o poeta a cantá-las. E ele, solícito e humilde, responde-lhes o melhor que pode e sabe.

IMPEDIMENTOS

Num poema, o poeta cruzou-se com ela e com tudo o que ele reconhecia nela: timidez (o quadro “Timidez” mostra-o), mistério, medo de luz excessiva, da exposição, da música, não fosse esta arrastá-la para a volúpia, invisibilidade do corpo, silêncio. É isto que ele reconhece nela. E é isto que, estranhamente, o seduz. Mas é isto que se interpõe entre ele e ela. Uma relação que só será salva pela poesia. Com ela, ele pode reconstruir essa relação perturbada por tantos impedimentos subjectivos da musa. Sim, mas a verdade é que há sempre algo que impede a relação do poeta com as musas. Elas não se deixam capturar pelo sentimento. Estimulam-no, mas escapam. São rápidas e leves como as fadas. Afinal, só assim podem sobreviver nessa condição, a de musas. É o seu destino. Delas e dos poetas. Ele, este, não resistiu a fazer o seu retrato (sabe-se lá por que razão subjectiva) e a confessar a sua disposição anímica perante essa condição da musa. Expõe-se ele e expõe-se ela. É a vida, diria um; é a poesia, diria outro. Na verdade, foi a timidez da musa e a correspondente retracção que o seduziram. Às vezes, isso acontece mesmo. E, claro, só havia uma solução: a poesia (e a pintura).

MISTÉRIO

A timidez (no poema “Timidez” e no quadro “Timidez”) é dela, mas também dele. Muita vida se perde nesse emaranhado da timidez. Mas também mistério. Sim, o mistério fascina. E as musas são sempre um pouco misteriosas. Muito do seu fascínio vem daí. E os poetas são sempre irremediavelmente atraídos pelo mistério.

PRIVILÉGIO

É um enorme privilégio do poeta ter a atenção de uma musa. Bom, se esta atenção não existisse talvez nem houvesse poeta. Lembro-me sempre do T. S. Eliot: um dia, a musa visita o poeta e o seu destino fica traçado. A partir daí cabe ao poeta honrar esteticamente a presença da musa. E tanto melhor se o fizer também visualmente, como no perfil que desenhou. Sim, é verdade que não são poucos os favores que lhe deve. É privilégio raro, pois é. E o poeta-pintor está-lhe profundamente reconhecido, prestando-lhe tributo com poemas e pinturas. Mas ela não sabe. Outro mistério? Não, porque para ele é como se ela saiba. Desde o momento em que ela habite o seu território torna-se possível, ao poeta, fazer esta operação: agir “como se”. E, nesta condição, ele agirá em busca da máxima perfeição para a seduzir. No fim, concretizada a obra, ele assume-se como sedutor de sucesso e compromete-se a prosseguir a caminhada. Sísifo, eternamente apaixonado.

A FONTE

A Fonte não é uma abstracção. Essa fonte de que se fala num poema alimenta o poeta de água e de inspiração. Sai a seis graus centígrados directamente da nascente. É a água que bebe. É pura. É fria por fora, mas quente por dentro. Se a beber com a alma. Não deixa depósito, mas deixa saudades. É um rio que desce da montanha para o Zêzere e para si. Frequenta-a desde criança, a caminho do Vale de Santo António, lá no alto, a cerca de 1500 metros de altitude, ou da piscina das Penhas da Saúde. Cresceu com ela, mantendo-se ela estável, sempre com aquele gigantesco fluxo. Fica no belíssimo Vale Glaciar. Que mais parece desenhado à mão. E ficou irritadíssimo por durante um ano (depois do incêndio) não a poder visitar. Ele só bebe desta água. Da última vez que lá foi trouxe 153 litros dela. É verdade. Com tanta água, a inspiração não lhe haveria de faltar. E é assim que vai a esta fonte onde quer que esteja. Trá-la sempre consigo. Como poderia ele não a cantar? É a montanha e a neve em estado líquido. Quando a bebe sente nevar-lhe na alma. E sente a vertigem da montanha. Não há calcário entre ele e a nascente. É relação directa com a natureza no seu estado mais puro, sem interferências. É afluente do rio que corre ali ao fundo do vale, o Zêzere, que nasce perto, na zona dos Cântaros. E é também afluente da sua poesia. No inverno, quando se vai abastecer, muitas vezes neva lá mais no alto e, então, sobe ao encontro da neve, se lhe for permitido. Esta neve já deixou de vir ao seu encontro nas ruas da sua aldeia. Uma saudade imensa. Mas pode vê-la lá no alto do Maciço Central. E com a imaginação. E canta-a e pinta-a. E assim vai passando os seus dias, tendo a montanha como referência. Na montanha dilui as viagens existenciais da sua vida. Decanta-as, com frio, água e ar puros. JAS@30-04-2025

Poesia-Pintura

A PORTA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “A Minha Aldeia”,
JAS 2024.
Original de minha autoria,
oferecido à Junta de Freguesia,
juntamente com os 10 Retratos dos
Presidentes de Junta, desde 1948,
em 27 de Abril de 2025

“A Minha Aldeia”. JAS 2024

POEMA – “A PORTA”

OLHO A MONTANHA
Da minha porta
De granito
Amarelo
(O de sempre,
Muito belo,
Com cristais)
Sobre as telhas
Do sobranceiro
Telhado
Como se fosse
Janela
Do meu palácio
Encantado
(Que do sonho
É o cais).

DELA CONTEMPLO
A aldeia,
Mas é diferente
A visão,
Antes, eu via futuro,
Agora, vejo passado,
Mas é bela
A sensação
De a ter sempre
A meu lado.

ENTRE PASSADO
E futuro
Garantiu-me
Identidade,
Ficou quieta
À minha espera
Quando dela
Eu parti
Pra descobrir
A cidade.

A FRONTEIRA
Foi sempre
O azul profundo
Do céu,
Espelho
Da minha errância,
Um horizonte
Sem fim,
Projecção
Da fantasia,
Sem medida
Nem distância.

ELA É PORTO
De abrigo
E é lugar de
Partida,
É fronteira
Que atravesso,
É lugar
De despedida.

MAS HÁ SEMPRE
Um retorno,
Um regresso
Renovado
Onde posso
Renascer
Quando visito
A memória
Do que não
Quero perder.

DESTA PORTA
Vejo a aldeia
E logo viajo
Por ela,
Dou asas
À fantasia
Como se fosse
Janela
Donde voo
Com o vento
Soprado
Pela magia,
Por tudo aquilo
Qu’invento.

E DELA VOEI
Para o mundo
E o mundo veio
Até mim,
Mas quando passei
Esta porta
Já era um mundo
Sem fim...

POR ISSO
Regresso a ela.
Quando chego,
Logo amanhece,
Mas quando parto
Não entardece
Nem sinto
A despedida
Porque dela eu vejo
O mundo
Como a montanha
Da vida.

“A Montanha Encantada”, JAS 2022

Artigo

“NOVOS FRAGMENTOS” (XIV)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

“A Montanha Encantada”, JAS 2022 (94×119, papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, em mold. de madeira e Artglass AR70)

O RAPTO DA MUSA

É a intensidade com que encontros e desencontros acontecem na vida do poeta que é decisiva e (poeticamente) exigente. A intensidade funciona como a velocidade: esses momentos ficam registados (quase) sem a mediação da consciência. A velocidade cega, como julgo ter dito Paul Virilio, no seu livro “L’Art du Moteur” (1993).  É como a luz de um repentino clarão. Encandeia e deixamos de ver o que se está a passar. E depois… “La nuit”. diria Baudelaire. Entra directamente na zona de penumbra da consciência, na zona escura.  E por lá fica registado, sobrevivendo ao tempo e emitindo sinais intermitentemente, até que chegue o momento de o reviver… em poesia, em arte. A fita da memória (na sua zona mais intensa e escura) é como a “moviola” ou a mesa de montagem de um filme, onde o realizador é o poeta. Só ele pode entrar nessa zona de penumbra e ver com uma certa nitidez e exactidão. Porque possui holofotes e sensores especiais, que detectam  sinais imperceptíveis à sensibilidade comum. Para mim, cada poema é um filme, uma curta-metragem. Exactamente: uma curta-metragem. E também é por isso que precisa de sinestesia, com a pintura. Assim, entra também em acção o olhar, juntamente com o ouvido (para a toada, a música).  Um filme. No poema “Tempo” acontece uma espécie de rapto da musa  (“Musa”, é precisamente a pintura ilustrativa) pelo tempo: a fugacidade dos encontros e o desespero do poeta que vê o tempo levar-lhe a musa quase antes de se encontrar com ela. O tempo é implacável. E é veloz. Tanto mais quanto mais intenso for o acontecer. E o desejo. E é disso que ele se lamenta. O título até poderia ser “O Rapto da Musa”… pelo tempo. Ou “O Desejo Traído”.

“ESSE EST PERCIPI”

Não vou ao exagero do bispo Berkeley, que disse que “ser é ser percebido” (“esse est percipi”), mas num certo plano cognitivo mais elaborado o real é mediado pela imaginação. Por exemplo, o real dos artistas. E há ilusões de óptica: duas linhas paralelas lá ao fundo convergem (as linhas do caminho de ferro, por exemplo). No deserto também. E a vida, às vezes, é um deserto. Por isso, a realidade está ali para ser interpretada de acordo com a disposição anímica do observador. E há os pessimistas, que vêem tudo a preto, e os optimistas, que põem luz em tudo o que vêem. A subjectividade faz parte de nós e tem um enorme papel no modo como nos relacionamos com a realidade. Se o real está lá fora, rugoso e opaco, também está cá dentro de nós, sob forma de representação, mediada pelo olhar, dos olhos e da alma. Dar forma a essa representação oculta e na penumbra na alma é a missão do poeta.

KAIRÓS

Com a ajuda da Musa, que avisou o leitor da chegada de um forte estímulo poético dominical, ele preparou-se para a chegada do poema. Talvez por ser primavera, a estação das musas. Tempo de polinização. Claro, isso acontece sempre aos que a sentem por dentro, a poesia. E aos que frequentam jardins. As musas são amigas e confidentes deles. Também Hermes anda por ali. Por isso, os cinco sentidos ficam sempre alerta. E, desta vez, com o poema “Tempo”, até propus duas imagens da musa, para melhor se visualizar o poema. Para lhe aceder com o olhar. Duas primaveras. O poema que se oferece duplamente ao olhar. Música tem-na que baste. Foi aspecto que, neste poema, o poeta cuidou com particular atenção. Mas não sei por que razão. Perdê-la, a musa? Sim, parece ser esse o drama do poeta, porque o tempo é raptor: leva-lhe a musa quase antes de ela chegar, de se cruzar com ela. Os encontros são mais desencontros do que oportunidades.  Fugacidade ao extremo. Um autêntico e permanente rapto pelo tempo. Ele sente-a assim: perdida quase antes de encontrada. A fugacidade do instante, do “tempo oportuno”. Kairós. O poder destruidor da velocidade e do tempo. Depois, a recomposição. Mas talvez seja impressão sua, do poeta: de tão intenso ser o encontro com a musa até parece que nunca aconteceu. Porque não foi registado na consciência. Ficou por ali perdido com tanta beleza. Vivido, sim, mas, de tão intenso, não registado na consciência. Mas percebe-se que aconteceu. É como ter um sentimento permanente de perda. Sente muito a perda quem muito quer o que sabe que vai logo perder. Mas o absoluto só se pode dar no instante. E o instante não é tempo, porque não é mensurável. Esse instante que é absoluto não pode ser captado, registado, retido. Mas a poesia atinge directamente a zona de penumbra da consciência, a zona escura, que só pode ser acedida com holofotes e sensores especiais. Também se considera que se chega lá através da hipnose. E, claro, através da poesia, cujo tempo é mesmo esse: o da “durée” (para usar o conceito do H. Bergson). O tempo kairótico. Os gregos também tinham a palavra “eksaíphnês”. O poeta anda por aqui. Vive assim a vida (digo eu, porque parece) e isso cria-lhe problemas existenciais que tem de verter (solucionar) em poesia. Tem uma vasta zona de penumbra na consciência e isso obriga-o a um permanente exercício de descodificação, trazendo à zona iluminada da consciência o que por lá ficara registado na zona escura, fruto de encontros e desencontros intensos e nunca concluídos.

MISTÉRIO

Efémero é, e não é, o tempo, porque o que o poeta procura é tomar eterno o que por natureza é efémero. O Goethe disse isso. Outras musas? Não, porque todas elas são rostos da mesma. O poeta é poeta porque uma o enfeitiçou. Estremeceu e ficou enfeitiçado. Mas, depois, na sua imagem transparente ele vê tantas outras iguais a ela… Talvez seja isto. Musas não lhe faltam… mas. ao que parece. são sempre a mesma. Não sei, porque a poesia é mistério em movimento. E o feitiço é fonte de mistério. Ou é o mistério que tem o poder de enfeitiçar? Talvez seja mesmo isso.

VOAR SOBRE O SILÊNCIO

A propósito do poema “Voar” (ilustrado pela pintura “Pássaro de Fogo”) – é uma experiência única, voar sobre o silêncio. Há uma sensação de paz, lá nas alturas. Mas é preciso, primeiro, ouvi-lo com a alma. Dizia Dionísio Longino, no Tratado do Sublime: “come il silenzio d’Ajace, nel Canto de’ Morti d’ Omero, egli è maestoso e più sublime d’ogni orazione” (Perì Hypsous, Secção IX, “Del Pensare”, na tradução italiana de Anton Gori, 1737, Firenze: Gaetano Albizzini ).  O silêncio é mais majestoso e sublime do que qualquer oratória.  E tem asas, que são as palavras. E tem eco.  Sim, ouvir o silêncio, o eco do silêncio, com a alma, mas, depois, é preciso ter asas e energia propulsiva para a descolagem. Eu creio que só os poetas conseguem voar sobre o silêncio, porque são eles os seus verdadeiros intérpretes, possuem combustível anímico para descolar e têm essas asas especiais que são as palavras, como dizia o Neruda. Sobem sobre as asas do silêncio e voam. Só lá em cima podem ouvir o seu eco. Eu gosto muito de voar sobre o silêncio. Gastam-se muitas energias e até dói, mas, no fim, é muito compensador. E foi por isso que pintei um “Pássaro de Fogo”. O voo acontece sobretudo quando o som do silêncio, o seu eco, é mais intenso. Mas sempre em surdina. Ouve-se, sim, mas com a alma.

PÁSSARO DE FOGO

Um voo até à janela da pessoa amada, ainda que não se saiba bem onde fica essa janela. Mas o vento sabe. E o íntimo é preservado, resguardado, sagrado. O “Pássaro de Fogo” não entra, apenas derrama as cores que leva consigo no parapeito da janela e voa de volta. E, assim, o mistério permanece, pois nem sequer o pássaro libertador (da dor do poeta) perturba a intimidade da musa. Ela permanece entrincheirada no passado, mas o poeta ilumina-a com as cores da sua arte e do futuro. Sim, o poema é mesmo um cântico. Que poderia ele fazer mais, marcado que está pelo destino? Uma ponte sobre as margens do silêncio é o máximo que pode conseguir, graças ao “Pássaro de Fogo”. O poeta (Álvaro de Campos) disse que ia atirar uma bomba ao destino.  Bem o compreendo. E eu gosto de lhe atirar poemas, que, afinal, são bombas íntimas prontas a deflagrar na alma de quem os lê, de quem os sente.

ÁGUIAS REAIS

Eu gosto mesmo de voar, tendo as palavras como asas. No voo posso observar os vários caminhos que existem no vale da nossa vida e escolher o que fizer mais sentido. Os olhos dos poetas são como os das águias reais porque vêem, ao longe, o que outros não conseguem ver. E os poemas são como voos picados para centrar algo que queremos para nós. Depois levantamos voo levando a “presa” connosco. A poesia está sempre associada às alturas – o Monte Parnaso. O meu chama-se Estrela e por cá encontramos, sim, águias reais. Tenho-as (duas) num quadro meu chamado “A Montanha Encantada”, inspirado no Maciço Central.

PARABÉNS

Parabéns à jovem musa que sempre inspira o poeta, disse um habitual leitor da minha poesia. De facto, respondi, sem ela não haveria poeta nem pintor. E a ilustração do poema é o pássaro da mitologia russa que tanto tem inspirado as artes, a música (Stravinsky, por exemplo) e o bailado. É um símbolo da liberdade, contra as garras do maléfico feiticeiro Katshey (que ainda anda por lá). JAS@04-2025

Poesia-Pintura

A FONTE

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “A Fonte”
Original de minha autoria
Abril de 2025

“A Fonte”. JAS 2025

POEMA – “A FONTE”

VENHO AGORA
De lá,
De alma cheia,
Venho
Dessa torrente
Gelada
Que corre
Pela encosta,
Em cascata
Ritmada,
Esse rio
A brotar
Lá do alto
Da montanha,
Sem nunca,
Mas mesmo nunca,
Parar
Quer eu venha
Ou não venha,
Com chuva
Ou a nevar.

MAS VENHO AGORA
De lá,
Trago-a sempre
Comigo,
A lembrar-me
Tempo antigo
E o rio
Que lá corre,
Ao fundo
Desse meu vale,
Ao fundo
Do meu abrigo.

ÁGUA FRIA,
Água antiga
Que me aquece
A alma,
Onde ficou
Registado
Esse frio seminal
Quando ela
Me visitava,
Essa alvura
Glacial.

FICOU-ME
Na memória
Como tempo
Juvenil
Que não volta
Nunca mais,
Verdes anos,
Inocente
Aventura
Quando à noite
Eu procurava
Os pardais
Aninhados
E com frio
Sob as telhas
Dos telheiros,
Sob as telhas
Dos feirais,
Inocente desafio.

OU A CAÇA
Aos coelhos
Sob a brancura
Da neve
Sem consequências
De mais
Porque nunca os
Encontrava
Nas caçadas
Inventadas,
Como a caça
Aos pardais.

E ESSES BONECOS
Tão brancos,
Toscas
Esculturas
De quem não sabe
Esculpir
Com a beleza
Da neve,
Essa forma
De sorrir
Tão cintilante
E tão leve.

TRAGO TUDO ISSO
Comigo
Quando visito
A fonte
À procura
Do passado
Que não volta
Nunca mais,
Mas ali
Eu sempre o sinto
Como se ela fosse
Desde sempre
O meu cais.

UM PASSADO
Inocente,
Animado
Pela neve,
Mas que hoje
É tão pesado
Como antes
Era leve.

Artigo

 POLÍTICA E JUSTIÇA EM DEMOCRACIA

A Propósito do Caso Francês

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

ESTA RELAÇÃO É MUITO DEBATIDA, problemática e delicada. E é interessante comparar as fórmulas “Estado democrático” e “Estado de direito”, ao que parece, segundo Pierre Rosanvallon, postas em oposição por Marine Le Pen, a propósito do seu caso com a justiça francesa, e como se fossem antitéticas (Rosanvallon, em entrevista a Anne Chemin, “Le Monde”, 12.04.2025). Como se o “Estado democrático” fosse concebível sem ser ao mesmo tempo um “Estado de direito”. Não, não me parece possível. A designação “Estado de direito” não é suficiente, ela deve estar sempre associada a democracia representativa. Mas esta também não será suficiente se não tiver associada a designação “Estado de direito”. O “Estado democrático” e o “Estado de direito” estão necessariamente ligados. Mas o “Estado de direito” pode existir sem democracia? Se puder, o problema residirá, então, em saber: “que direito”? O do autocrata?  Tal como o mercado: este também poderá existir sem democracia, não parecendo, aqui, ser necessário perguntar “que mercado”? O que não pode haver é uma democracia representativa sem “Estado de direito” e sem mercado, sem império da lei, igual para todos, e sem plena liberdade económica. Parece não haver dúvidas de maior sobre isto.

1.

Mais interessante é discutir os dois tipos de legitimidade que estão associados ao Estado de direito democrático: a “legitimidade substancial” e a “legitimidade funcional”, para usar, relativamente à política de origem electiva e à justiça, a distinção proposta por Pierre Rosanvallon, que, entretanto, as equipara. A primeira decorreria do processo eleitoral concorrencial e do chamado “povo-aritmético”, o que se exprime através do princípio da maioria num parlamento e que conduz à formação de um governo; a segunda decorreria do “povo-comunidade” e ocorreria por nomeação para a constituição de guardiões dos direitos do indivíduo, os juízes, e para desempenhar uma função estruturalmente democrática, tendo por instrumento a justiça e como fim último a garantia dos princípios fundamentais e os termos do contrato social. Esta, de resto, corresponderia, segundo Rosanvallon, a uma temporalidade longa em contraposição aos cada vez mais curtos ciclos eleitorais da democracia política. Portanto, duas legitimidades diferentes, mas equivalentes em dignidade, correspondendo a dois tipos diferentes de soberania popular: a do “povo-aritmético” e a do “povo-comunidade”. Mas esta é a posição de Rosanvallon.

2.

Esta concepção parece contradizer-se nos próprios termos, porquanto as duas legitimidades não são, de facto, iguais, não têm o mesmo peso, não se equivalem e, sobretudo, não têm fundamentos diferentes. A ideia de um “povo-comunidade”, existindo paralelamente ao povo político e sendo fundamento do “Estado de direito”, não me parece que tenha fundamento defensável, logo porque o “Estado de direito” exprime a organização que o “Estado democrático” determina. Na verdade, a “legitimidade substancial” confere aos seus agentes o poder de determinar a matéria sobre a qual os agentes da “legitimidade funcional” actuam, enquanto o contrário não é possível, nem se verifica. Precisamente porque é funcional relativamente ao sistema político de origem electiva. Ou seja, esta tem de ser obrigatoriamente funcional àquela, à primeira, não se verificando o contrário, pois aquela é de natureza ontológica porque remete directamente para a soberania popular, para um povo, não para dois. E isto acontece em níveis diferentes: a primeira legitimidade acontece, primeiro, no plano constitucional e, depois, no plano legislativo. Sobre os dois planos os agentes da primeira legitimidade podem agir, modificando os seus termos. A “legitimidade funcional” também ocorre nestes dois planos, mas somente para garantir a congruência entre o plano constitucional e o plano legislativo (tribunal constitucional) e entre o plano legal e o quadro em que ocorrem as acções dos cidadãos (ministério público e tribunais). Trata-se, pois, de uma legitimidade técnica, somente técnica e subsidiária da primeira. Procurar encontrar um fundamento ontológico diferente para ela é, no meu entendimento, errado e desviante, porque o “povo-comunidade”, para efeitos políticos e de aplicação da lei é subsumível no “povo-aritmético”. É este que conta, é este o titular da soberania, para além do próprio princípio da maioria, uma vez que no parlamento estão presentes as diversas sensibilidades políticas presentes na sociedade e não somente a maioria. O parlamento é maior do que a maioria que nele se constitui para dar origem a um governo. Sim, nele não está presente o povo abstencionista nem o povo menor de idade, poder-se-ia contra-argumentar. Mas não é isso que o invalida porque a própria abstenção é um exercício de liberdade do “povo- aritmético” e a menoridade encontra-se representada na respectiva tutela (responsabilidade parental). Portanto, se a justiça é efectivamente o garante dos princípios, valores e conteúdo do contrato social através do seu desempenho funcional, daqui não pode, todavia, resultar a ideia de que, tendo como fundamento um suposto, e fictício, “povo-comunidade”, ela adquira um estatuto igual, em termos de legitimidade, ao das instituições de origem electiva. Tal como a justiça dispõe de mecanismos internos para corrigir imputações erradas, também o sistema político electivo tem mecanismos internos para garantir o cumprimento das suas deliberações e decisões e corrigir os desvios – e desses mecanismos faz parte a própria justiça. Ecco. A justiça é um mecanismo interno do próprio sistema político, enquanto garante da sua autoridade e com poderes sancionatórios por aquele sistema previstos e decididos. Mas o que me parece que resulta do raciocínio de Rosanvallon é que estamos perante duas realidades autónomas, equivalentes e paralelas, dois subsistemas equivalentes no interior de um mesmo sistema social. Mas, não, não é assim, como ele próprio reconhece, ao defini-los, um, como substancial e, o outro, como funcional. Na verdade, um tem uma dimensão ontológica enquanto o outro tem uma dimensão funcional, técnica, subordinada. Na hierarquia dos poderes o legislativo é o primeiro, porque é ele que, por um lado, representa a soberania popular, e, por outro, lhe dá expressão e forma concreta através precisamente do ordenamento jurídico. Este facto deveria tornar clara a ideia da separação de poderes, que não equivale, de facto, a igualdade de poderes. E esta lógica deveria servir para clarificar as relações do poder político de origem electiva, substantivo, com o poder judicial, de natureza funcional, em particular na relação com o ministério público. A autonomia do ministério público e a independência dos juízes são tão-só justificáveis como necessidade de garantir plena autonomia técnica, rigor, neutralidade e imparcialidade na imputação dos factos ao direito e suas consequências.  Nada mais.

3.

Isso quer dizer que se verifica uma autonomia funcional (na linha da separação dos poderes) que torna possível um uso técnico da lei para corrigir disfuncionalidades ocorrentes e repor o funcionamento do sistema de acordo com a dupla deliberação do poder político de origem electiva, ou seja, a constitucional e a legal. A “legitimidade funcional” consiste nisso. Sendo proprietário e condutor de um automóvel, quando ele avaria sou obrigado a entregá-lo à competência de um técnico de automóveis para que o reponha em funcionamento de acordo com os padrões mecânicos estabelecidos pela “marca” para que o automóvel funcione. Entretanto continuo proprietário e condutor. A justiça, onde a “marca” é a constituição e a lei, funciona do mesmo modo. E tal como há bons e maus mecânicos, também há bons e maus magistrados ou juízes. Como em tudo na vida e, designadamente, na política.

4.

Se formos ver  as soluções que Rosanvallon propõe para o bom funcionamento de uma sociedade democrática, encontramos a reinvenção dos processos democráticos, para além do estrito processo de escolha de quem governa, através do accionamento de duas importantes “funcionalidades”: a deliberativa e a de vigilância sobre o funcionamento do sistema. A primeira implica uma democratização da deliberação política, sob o pressuposto de que a sociedade não é redutível ao seu sistema político formal (às instituições políticas propriamente ditas), porque ela é mais, muito mais, do que o “povo- aritmético” e do que os ciclos em que o cidadão é chamado a deliberar através do voto. Só neste sentido Rosanvallon poderia falar de “povo-comunidade”, algo que não é subsumível integralmente no sistema político nem redutível ao “povo-aritmético”. Isto é verdade e exige que o sistema político metabolize os fluxos da sociedade civil e lhes dê expressão política, legislativa e executiva, designadamente através de procedimentos que tornem isso possível e que não se esgotam nos ciclos eleitorais formais. É isso que acontece na chamada política deliberativa e na correspondente democracia deliberativa (veja-se, por exemplo, Habermas em Faktizitaet und Geltung, de 1992, cap.s 7 e 8). Ou seja, a política que transborda para as margens do sistema político formal e inunda “campos e sementeiras”, fertilizando-os. Glosando um antigo Presidente da República, há, de facto, mais vida para além do subsistema político formal, é verdade, mas mesmo essa vida é regulada por este subsistema. E sobretudo o sistema de justiça, que Rosanvallon parece querer, erradamente, separar, logo na raiz (a soberania do “povo-comunidade” contraposta à do “povo-aritmético”), do sistema político, apesar de fazer intrisecamente parte dele. E, entretanto, não podemos esquecer que, desde há muito, tem vindo a crescer um fenómeno chamado “lawfare”, ou seja, um uso ilegítimo das imensas prerrogativas e poderes do subsistema judicial para efeitos políticos, dando origem a uma indesejável inversão de factores e a uma crise da democracia representativa, tal como também tem vindo a crescer, simetricamente, um uso indevido do poder político para limitar e condicionar a autonomia técnica da justiça. Ambos os casos são bem conhecidos e abundantes tal como os seus efeitos deletérios sobre o sistema democrático.

5.

Como em tudo na vida, o que é necessário é uma boa e imparcial interpretação do sistema social com vista a um seu bom e justo funcionamento, algo que parece já estar fora de modo, tendo vindo a acentuar-se, agora de forma quase pornográfica, uma identificação perniciosa da política com o puro exercício do poder, extremamente personalizado, sem qualquer preocupação com a justiça, a ética e até com a estética, de tão grosseiras serem as deformações do sistema, quer no plano da política quer no plano da justiça. A deformação do sistema político implicará sempre a correspondente deformação da justiça, mas a transformação da justiça em poder autopoiético e corporativo (e até assumido como tal pelos próprios agentes da política – “à política o que é da política, à  justiça o que é da justiça” – como se a justiça fosse exterior à política, à gestão da polis, da causa pública) pode também ela provocar danos irreversíveis na própria democracia representativa. JAS@04-2025

NOTA SOBRE A JÁ FAMOSA "AVERIGUAÇÃO PREVENTIVA" 
SOBRE PEDRO NUNO SANTOS

A PGR acaba de entrar na campanha eleitoral. Já não bastava a senhora ex-PGR Lucília Gago (e o PR, com quem ela estava quando o famoso comunicado foi divulgado)  ter dado origem à queda de um governo de maioria absoluta, sem que, passados 17 meses, se saiba da consistência desse inquérito-fantasma… que, agora, o seu sucessor, Amadeu Guerra, decide, com base numa carta anónima e sobre um assunto mais que requentado e explicado, entrar em campanha eleitoral com a divulgação de uma “averiguação preventiva” sobre Pedro Nuno Santos, sugerindo que, afinal, também o líder do PS tem um problema equivalente ao de Luís Montenegro. Não tarda que a empresa do pai entre (mas parece que já entrou) na dança das denúncias e sobre ela seja aberta mais uma “averiguação preventiva”. De “averiguação preventiva” em “averiguação preventiva” até ao desfecho final das eleições de 18 de Maio. A divulgação dessa estranha figura da “averiguação preventiva” (que não é, tanto quanto sei, uma figura que conste da lei), não deveria acontecer, pois é um mero procedimento administrativo interno que não tem de ser divulgado (mas que, pelos vistos, foi “bufado” ao jornalista de serviço no “Observador”, Luís Rosa). Fica, assim, reposta, por obra da PGR, a igualdade de tratamento entre Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos. Bastou uma carta anónima (mas até um procurador pode escrever uma carta anónima a si próprio para, depois, ele próprio abrir uma “averiguação preventiva” sobre o assunto) para informar o distraído eleitor, a um mês das eleições legislativas, de que, afinal, estes políticos são todos iguais. Bom trabalho.

1.

Bom trabalho, de facto, o deste Ministério Público, liderado por um PGR em situação de manifesta ilegalidade, o que já deveria ter levado à cessação de funções.  À data da nomeação pelo PR ainda era legal a nomeação, mas, agora, que já tem 70 anos, a permanência no cargo é claramente ilegal. Diz o Estatuto do Ministério Público (Lei 68/2019, de 27 de Agosto), no seu Artigo 13: “São magistrados do Ministério Público: a) O  Procurador-Geral da República”…” ; e no Artigo 193: “Os magistrados do Ministério Público cessam funções: a) No dia em que completem 70 anos de idade;”. O PGR encontra-se, assim, em situação ilegal porque já tem 70 anos de idade (nasceu em Tábua, a 9 de Janeiro de 1955). Sendo missão fundamental do Ministério Público garantir a legalidade no nosso país por que razão ainda não foi suscitada, designadamente pelo próprio Ministério Público, esta questão legal relativamente a si próprio, ao seu máximo representante? E por que razão ninguém ainda a suscitou? Na verdade, a questão é muito relevante não só porque é ele, e os tribunais, o garante da legalidade, mas também pel seu poder de reiterada interferência nos processos políticos.

2.

Tudo isto faz sentido quando se vê que o Ministério Pública anda, de facto, a interferir de forma pesada nos processos políticos. Foi assim com António Costa, com as consequências gravosas que teve, e é assim, agora, a um mês das eleições, com Pedro Nuno Santos. Quem informou o jornalista do “Observador” deste mero acto administrativo interno da Procuradoria e, mesmo assim, sobre matéria mais que requentada e que nada tem a ver com as questões suscitadas pelo conhecido e publicamente comprovado comportamento de Luís Montenegro? A PGR não pode ser transformada, como está a ser, num agente político que põe e dispõe do destino das instituições políticas de origem electiva, violando grosseiramente a separação dos poderes ou até a própria legalidade. Lawfare à portuguesa. JAS@17.04.2025

Poesia-Pintura

TEMPO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Musa"
Original de minha autoria
Abril de 2025

“Musa”. JAS 04-2025

POEMA – “TEMPO”

OLHEI-TE NOS OLHOS
E eram negros,
Intensos
E tão profundos,
Toquei teus cabelos
Com o olhar,
Caminhei a teu lado
Nesse jardim
E, então, senti
Tão perto de mim
O teu corpo
A respirar
O acre perfume
Dessa ramagem
Do vasto jasmim...
..............
E logo aprendi
A sentir-te melhor
Com o meu olhar.

INEBRIOU-ME
O intenso
Aroma
Do belo jardim
E enredei-te
Num tão doce
Enleio
Que até parecia
Nunca mais ter fim.

BRILHARAM ALI,
Nesse meu jardim,
Tão docemente,
Duas horas inteiras,
Esses teus olhos...
.................
E neles me perdi.

ESTIVE NO CÉU
Ao lado de Deus
E lá vi dois sóis
Que não eram dele
(Uma luz intensa)
Porque eram teus.

MAS O TEMPO
Corre
Depressa demais
E é sempre assim,
Todos os dias
Se tornam iguais
Quando tu te vais
E, em nostalgia,
Eu fico no cais.
                                                            
VOLTEI A OLHAR-TE
Três horas seguidas
(Parecia verdade),
Mas era ilusão,
Porque tu partiste
Deixando-me só
E o que sobrou
Foi a solidão.

SUBIU A TRISTEZA
A saudade irrompeu
Colou-se-me
Ao rosto...
............
E como doeu!

SE EU NÃO TE VEJO
Sinto
Falta de ti,
Mas se te encontro
Logo te perco
Porque o tempo
Voa
E logo te leva
Pra longe dali.

TER-TE DEMAIS
Aumenta a saudade
E quando te vais
São negras
As nuvens
Da nossa cidade
E é muito triste
A tua partida
Lá do nosso cais
(É mesmo verdade).

MAS MESMO QUE TRISTE
Até sou feliz
E com estas mãos
Te vou escrevendo
O que quero dizer...
Mas o tempo
Volta de novo
 A correr
E cresce a vontade
De logo te ver
Mesmo que saiba
Que é nesse instante
Que te vou perder.

TENHO SAUDADES,
Saudades de ti,
Desse virar
Da nossa esquina,
Nessa mesma rua
Onde eu te vi,
Dessa janela
De onde espreitámos
O que do mundo
Sobrava pra nós...

EU JÁ NEM SEI
Que hei-de fazer,
Ter-te demais
É puro prazer,
Mas quando te vais
Fico a morrer.

NEM SEI
Que te diga
Ah, meu amor,
Quando tu me deixas
Já nem sinto dor
Tão grande 
A tristeza
De já não te ter
Pois logo partiste
Mesmo sem querer.

OLHEI-TE NOS OLHOS
Mas já não estavas
E o que eu vi
Foi a imagem
Que tu me mostravas
Quando sentias
Que era tão grande
Essa minha dor
E é mesmo por isso
Que aqui estou
A escrever-te
Este meu poema...
..................
Como prova de amor.

Artigo

O PLEBISCITO

As Eleições que Ninguém Queria

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

AFINAL, DO QUE SE TRATA, NESTAS ELEIÇÕES, não é só de um plebiscito sobre um primeiro-ministro eticamente (se não judicialmente) problemático, mas sobre todo o governo. Um desvio de atenção para um plano mais amplo. E o poder legislativo, cuja reconstituição deveria ser o centro das atenções, aparece neste processo como um vago cenário de enquadramento de um autêntico plebiscito sobre Luís Montenegro e o governo.

1.

A verdade é que o que motivou estas eleições foi um problema de confiabilidade do PM, sendo, pois, natural que o que deveria estar em causa fosse precisamente isso. Ou seja, a confiabilidade da pessoa do PM. Mas Luís Montenegro quis tornar as eleições sobre o seu problema pessoal, o plebiscito sobre a sua conduta, sobre a sua confiabilidade, em plebiscito sobre o seu próprio governo, repondo a política no debate, tornando-a a verdadeira moeda de troca. Uma mudança substancial, pois. Porquê? Porque decidiu levar 66,6% (72,2% se contarmos com Miguel Pinto Luz, n.º2 na lista de Lisboa) dos seus ministros a escrutínio directo dos eleitores – doze ministros, em 18, são cabeças de lista nos 22 círculos eleitorais (54, 5%), a que acrescem ainda dois secretários de Estado como cabeças de lista (um deles, Hernâni Dias, foi, mas já não é SE), elevando para 77,77% a presença governativa na liderança do PSD nos círculos eleitorais (14 em 22). Nem sei mesmo por que razão Luís Montenegro não levou todo o governo, a nível ministerial (mesmo todo, 100%), a sufrágio, tornando assim ainda mais claro que não se trata de eleições legislativas, mas de eleições executivas, isto é, eleições sobre si e o seu governo, sob forma de plebiscito. Algo ainda mais profundo do que o famoso “premierato” (a eleição directa do PM) da senhora Giorgia Meloni. Algo inédito na nossa democracia e talvez mesmo em todas as democracias do mundo. A prova? O Conselho de Ministros acaba de entrar directamente em campanha eleitoral no mercado do Bolhão, no Porto, sem um sobressalto digno de nota. Formalmente, nada a apontar, mas estas eleições (escolhidas por Luís Montenegro, com o acordo de Pedro Nuno Santos, que as tornou possíveis) são uma operação que visa relegitimar directamente o governo e, por implicação, a figura do próprio primeiro-ministro. E se vencer as eleições a conclusão é clara: os eleitores ter-lhe hão dito que aprovam o seu comportamento, lhe reiteram a confiança e que pode continuar com a mesma equipa e nos mesmos termos em que governou até agora. Quem são os deputados que irão representar a nação, isso tem pouca ou nenhuma importância. Um mal de que a nossa democracia representativa sofre cada vez mais.

2.

Mas, diriam os orgânicos do PSD, de qualquer modo, o argumento não pode ser exactamente este, porque só há como cabeças de lista 66,6% (ou 77,77%) do governo e não 100%. Mas, digo eu, além de ser uma gigantesca representação governativa em directo confronto eleitoral, talvez a restante percentagem não aconteça para não comprometer excessivamente a formação do próximo executivo, porque, a ser integralmente sufragado no dia 18 de Maio, este governo, em coerência, deveria ser reposto na sua forma original, fazendo, depois, e por consequência, subir ao Parlamento as outras obscuras figuras que figuram em segundo lugar e que ninguém conhece. Algo parecido a isto acontece nas eleições autárquicas, com o executivo a ser eleito directamente. Mas talvez o PM não tenha querido assumir este compromisso tão global, até porque, por exemplo, um dos membros relevantes do seu governo vai ser candidato à Câmara do Porto, Pedro Duarte. Ou porque não tenciona indicar certos ministros para o futuro governo, por exemplo, a Ministra da Cultura, Dalila Rodrigues (que, todavia, já disse em entrevista ao JN que gostaria de continuar) ou a da Administração Interna, Margarida Blasco, por razões bem conhecidas, ou seja, por uma prática excessivamente conflitual ou por manifesta incompetência, respectivamente. Mas, como disse, o número de ministros apresentados (12, em 18, sem contar com Pinto Luz) é mais do que suficiente para surgir como um sufrágio para a reconfirmação e a relegitimação directas do governo. E mais: de um governo já remodelado. Luís Montenegro faz, assim, uma tripla operação: a) remodela o governo em pleno processo eleitoral; b) transfere para o conjunto do governo o seu problema pessoal; e c) transforma as legislativas em eleições directas para o executivo, ou seja, um plebiscito, ou um referendo, sobre o conjunto da equipa governativa, agora remodelada. Uma operação arguta, sem dúvida, mas muito problemática à luz da matriz constitucional do nosso sistema político, para não dizer à luz da própria matriz da democracia representativa, mas em linha com a interpretação presidencial do sistema, aqui por mim evidenciada no meu último artigo. (https://joaodealmeidasantos.com/2025/04/01/artigo-196/). A democracia parlamentar, tal como está configurada na Constituição, a deslizar progressivamente para o presidencialismo e o decisionismo do primeiro-ministro. Concordarão os eleitores com este desvio à constituição e, já agora, à própria ética pública a que deve obedecer o exercício de funções públicas desta dimensão?

3.

Mas o problema não fica por aqui, pois esta evolução para o presidencialismo do primeiro-ministro, para um problemático decisionismo e para a centralidade do executivo, a ponto de desviar o sistema do seu centro axial, que é o parlamento, também tem consequências profundas sobre o sistema de partidos, em especial, sobre os chamados partidos da alternância, os que estão em condições de aceder à gestão governativa do país. O que acontece é que os primeiros-ministros, tendo a faculdade constitucional de escolher os membros do governo, adquirem, ipso facto, um poder que transborda para os respectivos partidos, dando lugar a uma autêntica e efectiva colonização do território partidário, até tendo em conta que estes partidos vivem cada vez mais do aparelho de Estado (em empregos e em finanças). E como? Enviando os “centuriões” governativos (por si livremente escolhidos e portadores de prestígio governamental) para a gestão e a representação do território partidário e dando lugar a uma autêntica colonização deste território, onde os “nativos” deixam de contar, como se vê pela formação das listas do PSD (mas não só) para as eleições ditas legislativas e, em parte também, para as câmaras municipais. “Paraquedistas” com patine governativa e com chancela presidencial (do presidente do partido e PM). O que, ao fim e ao cabo, acontece é uma imposição a duas escalas (parlamento e partido) da vontade do líder, com o consequente atrofiamento do corpo orgânico quer do parlamento quer do partido, este substituído quer pelos “centuriões” quer por agências de comunicação. Uma cabeça grande num corpo atrofiado. Algo pouco compatível com a cultura democrática e com a própria matriz da democracia representativa. Todo o complexo institucional é constituído à imagem e semelhança do líder.

4.

Este caso do PSD e do governo de Luís Montenegro é bastante exemplar neste sentido. Mas já com António Costa algo muito parecido foi acontecendo. E, todavia, no caso actual, a escolha destes ministros (e já não falo da escolha do Presidente da AR, Aguiar Branco, ou do seu líder parlamentar, Hugo Soares, que são escolhas naturais), do secretário de Estado das comunidades, José Cesário, ou do antigo secretário de Estado, Hernâni Dias, para cabeças de lista, que, como disse, se contabilizados, fariam subir de 66,66% para 77,77% a percentagem de cabeças de lista com chancela governativa, atinge uma tal dimensão que é difícil não retirar daí ilações sobre os seus efeitos na própria natureza do sistema político. Neste processo é, pois, também a natureza dos partidos que é posta em causa. A personalização extrema da política, que é uma tendência geral, está a ter efeitos que já põem em causa a própria matriz do sistema representativo e o sistema de partidos tal como os conhecemos.

5.

Esta evolução do nosso sistema político não me parece ser boa para a saúde da democracia. Em primeiro lugar, porque anula a centralidade do parlamento, ou seja, da pluralidade dos representantes da nação; em segundo lugar, porque entroniza o líder que chegou a primeiro-ministro e permite a captura integral do partido que lhe serve de suporte; em terceiro lugar, porque menoriza o território partidário, o torna integralmente dependente do Estado e do líder de turno e impede a emergência de figuras autónomas e independentes da vontade (sempre) centralizadora das lideranças. Ainda por cima reforçada com o tipo de sistema eleitoral que temos, com listas fechadas e identificadas com o símbolo do partido. Numa palavra, o partido fica reduzido a mera projecção da vontade do líder, como se está a ver neste caso, com um PSD totalmente “domesticado” e alinhado com a estratégia pessoal do seu líder, ou seja, com o seu comportamento pessoal e privado, mesmo que generalizadamente posto em causa. Impera, assim, uma linearidade exasperante em partidos que atingiram uma considerável dimensão eleitoral porque é suposto representarem uma grande diversidade de sensibilidades. Com esta mudança, a diversidade no interior do partido, mas também no próprio parlamento, passa a ser coisa do passado. E a verdade é que esta tendência é a mesma que se está manifestar com toda a exuberância na direita radical. Mas, pelos vistos, até nos partidos de centro-direita ou mesmo de centro-esquerda ela parece estar a fazer o seu caminho com grande sucesso.

6.

O que se está a passar neste momento em Portugal é uma profunda anomalia relativamente à matriz da democracia representativa e à sua matriz constitucional. Uma espécie de via paralela que está a ser seguida nas margens da constituição: o legislativo tornou-se simplesmente um sub-rogado irrelevante do executivo, tal como o próprio partido que lhe serve de suporte; as eleições adquirem uma natureza de tipo plebiscitário e estão inteiramente subordinadas à vontade do líder e chefe do governo; e, finalmente, a ideia de representação política parece estar a ser substituída por um decisionismo exacerbado, centrado no primeiro-ministro, que confisca as competências do legislativo e do partido maioritário e os transforma em meros instrumentos de combate numa guerra de generais por ele nomeados. O melhor espelho, muito deformado, de tudo isto é o que está a acontecer, neste momento, nos Estados Unidos, com a presidência de Donald Trump. JAS@04-2025

Poesia-Pintura

VOAR

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Pássaro de Fogo”
JAS 2025
Original de minha autoria
Abril de 2025

“Pássaro de Fogo”. JAS 2025

La palabra es 
un ala del silencio
Pablo Neruda

POEMA – “VOAR”

APETECE-ME VOAR
Sobre o seu silêncio
Com asas
Que são palavras
Em busca
Do parapeito
Da sua bonita
Janela
Onde eu possa
Pousar...
............
Nesse lugar
Que é só dela.

APETECE-ME VOAR
Sobre o silêncio
Sempre, sempre
Insinuado,
Pois na minha
Solidão
Logo cresce
A fantasia
E no voo
Das palavras
Vai um poema
Alado
Com a sua
Melodia.

E O VOO
Prossegue
Sempre
No azul profundo
Do céu
Até que eu sinta
O seu eco,
A ressonância
Em mim
De tudo aquilo
Que é seu.

COM AS ASAS,
Que são palavras
(Era Pablo
Que o dizia),
Voarei
Sobre o vale da
Sua vida
E lá de cima
Verei
O seu caminhar
Distraído.
Por isso,
Lhe mostrarei
Um caminho
Com sentido.

E, AGORA,
Que o pintei,
Também tenho
Um mensageiro
Que pode levar,
Com o vento,
Em viagem
Programada,
As cores
Com que a pinto
Pra que logo
As derrame
Na janela
Desejada.

MAS NÃO SERÁ
Preciso
Abri-la
Porque ele não
Entrará
Para não incendiar
O seu corpo
Com a minha
Fantasia,
Com o fogo
Que ele leva
Em forma
De poesia.

QUERO VOAR
Sobre o silêncio
Até à sua janela,
Mas se não
A encontrar
Crio outra
Mais bonita...
..............
Como se fosse
A dela.

É ESTE O MEU
Destino,
Pintar
Com cores
E palavras
Tudo aquilo
Que já não tenho,
Recriando
A minha vida
Como se fosse
Um desenho.

Artigo

O PLEBISCITO

As Eleições que Ninguém Queria

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

AFINAL, DO QUE SE TRATA, NESTAS ELEIÇÕES, não é só de um plebiscito sobre um primeiro-ministro eticamente (se não judicialmente) problemático, mas sobre todo o governo. Um desvio de atenção para um plano mais amplo. E o poder legislativo, cuja reconstituição deveria ser o centro das atenções, aparece neste processo como um vago cenário de enquadramento de um autêntico plebiscito sobre Luís Montenegro e o governo.

1.

A verdade é que o que motivou estas eleições foi um problema de confiabilidade do PM, sendo, pois, natural que o que deveria estar em causa fosse precisamente isso. Ou seja, a confiabilidade da pessoa do PM. Mas Luís Montenegro quis tornar as eleições sobre o seu problema pessoal, o plebiscito sobre a sua conduta, sobre a sua confiabilidade, em plebiscito sobre o seu próprio governo, repondo a política no debate, tornando-a a verdadeira moeda de troca. Uma mudança substancial, pois. Porquê? Porque decidiu levar 66,6% (72,2% se contarmos com Miguel Pinto Luz, n.º2 na lista de Lisboa) dos seus ministros a escrutínio directo dos eleitores – doze ministros, em 18, são cabeças de lista nos 22 círculos eleitorais (54, 5%), a que acrescem ainda dois secretários de Estado como cabeças de lista (um deles, Hernâni Dias, foi, mas já não é SE), elevando para 77,77% a presença governativa na liderança do PSD nos círculos eleitorais (14 em 22). Nem sei mesmo por que razão Luís Montenegro não levou todo o governo, a nível ministerial (mesmo todo, 100%), a sufrágio, tornando assim ainda mais claro que não se trata de eleições legislativas, mas de eleições executivas, isto é, eleições sobre si e o seu governo, sob forma de plebiscito. Algo ainda mais profundo do que o famoso “premierato” (a eleição directa do PM) da senhora Giorgia Meloni. Algo inédito na nossa democracia e talvez mesmo em todas as democracias do mundo. A prova? O Conselho de Ministros acaba de entrar directamente em campanha eleitoral no mercado do Bolhão, no Porto, sem um sobressalto digno de nota. Formalmente, nada a apontar, mas estas eleições (escolhidas por Luís Montenegro, com o acordo de Pedro Nuno Santos, que as tornou possíveis) são uma operação que visa relegitimar directamente o governo e, por implicação, a figura do próprio primeiro-ministro. E se vencer as eleições a conclusão é clara: os eleitores ter-lhe hão dito que aprovam o seu comportamento, lhe reiteram a confiança e que pode continuar com a mesma equipa e nos mesmos termos em que governou até agora. Quem são os deputados que irão representar a nação, isso tem pouca ou nenhuma importância. Um mal de que a nossa democracia representativa sofre cada vez mais.

2.

Mas, diriam os orgânicos do PSD, de qualquer modo, o argumento não pode ser exactamente este, porque só há como cabeças de lista 66,6% (ou 77,77%) do governo e não 100%. Mas, digo eu, além de ser uma gigantesca representação governativa em directo confronto eleitoral, talvez a restante percentagem não aconteça para não comprometer excessivamente a formação do próximo executivo, porque, a ser integralmente sufragado no dia 18 de Maio, este governo, em coerência, deveria ser reposto na sua forma original, fazendo, depois, e por consequência, subir ao Parlamento as outras obscuras figuras que figuram em segundo lugar e que ninguém conhece. Algo parecido a isto acontece nas eleições autárquicas, com o executivo a ser eleito directamente. Mas talvez o PM não tenha querido assumir este compromisso tão global, até porque, por exemplo, um dos membros relevantes do seu governo vai ser candidato à Câmara do Porto, Pedro Duarte. Ou porque não tenciona indicar certos ministros para o futuro governo, por exemplo, a Ministra da Cultura, Dalila Rodrigues (que, todavia, já disse em entrevista ao JN que gostaria de continuar) ou a da Administração Interna, Margarida Blasco, por razões bem conhecidas, ou seja, por uma prática excessivamente conflitual ou por manifesta incompetência, respectivamente. Mas, como disse, o número de ministros apresentados (12, em 18, sem contar com Pinto Luz) é mais do que suficiente para surgir como um sufrágio para a reconfirmação e a relegitimação directas do governo. E mais: de um governo já remodelado. Luís Montenegro faz, assim, uma tripla operação: a) remodela o governo em pleno processo eleitoral; b) transfere para o conjunto do governo o seu problema pessoal; e c) transforma as legislativas em eleições directas para o executivo, ou seja, um plebiscito, ou um referendo, sobre o conjunto da equipa governativa, agora remodelada. Uma operação arguta, sem dúvida, mas muito problemática à luz da matriz constitucional do nosso sistema político, para não dizer à luz da própria matriz da democracia representativa, mas em linha com a interpretação presidencial do sistema, aqui por mim evidenciada no meu último artigo. (https://joaodealmeidasantos.com/2025/04/01/artigo-196/). A democracia parlamentar, tal como está configurada na Constituição, a deslizar progressivamente para o presidencialismo e o decisionismo do primeiro-ministro. Concordarão os eleitores com este desvio à constituição e, já agora, à própria ética pública a que deve obedecer o exercício de funções públicas desta dimensão?

3.

Mas o problema não fica por aqui, pois esta evolução para o presidencialismo do primeiro-ministro, para um problemático decisionismo e para a centralidade do executivo, a ponto de desviar o sistema do seu centro axial, que é o parlamento, também tem consequências profundas sobre o sistema de partidos, em especial, sobre os chamados partidos da alternância, os que estão em condições de aceder à gestão governativa do país. O que acontece é que os primeiros-ministros, tendo a faculdade constitucional de escolher os membros do governo, adquirem, ipso facto, um poder que transborda para os respectivos partidos, dando lugar a uma autêntica e efectiva colonização do território partidário, até tendo em conta que estes partidos vivem cada vez mais do aparelho de Estado (em empregos e em finanças). E como? Enviando os “centuriões” governativos (por si livremente escolhidos e portadores de prestígio governamental) para a gestão e a representação do território partidário e dando lugar a uma autêntica colonização deste território, onde os “nativos” deixam de contar, como se vê pela formação das listas do PSD (mas não só) para as eleições ditas legislativas e, em parte também, para as câmaras municipais. “Paraquedistas” com patine governativa e com chancela presidencial (do presidente do partido e PM). O que, ao fim e ao cabo, acontece é uma imposição a duas escalas (parlamento e partido) da vontade do líder, com o consequente atrofiamento do corpo orgânico quer do parlamento quer do partido, este substituído quer pelos “centuriões” quer por agências de comunicação. Uma cabeça grande num corpo atrofiado. Algo pouco compatível com a cultura democrática e com a própria matriz da democracia representativa. Todo o complexo institucional é constituído à imagem e semelhança do líder.

4.

Este caso do PSD e do governo de Luís Montenegro é bastante exemplar neste sentido. Mas já com António Costa algo muito parecido foi acontecendo. E, todavia, no caso actual, a escolha destes ministros (e já não falo da escolha do Presidente da AR, Aguiar Branco, ou do seu líder parlamentar, Hugo Soares, que são escolhas naturais), do secretário de Estado das comunidades, José Cesário, ou do antigo secretário de Estado, Hernâni Dias, para cabeças de lista, que, como disse, se contabilizados, fariam subir de 66,66% para 77,77% a percentagem de cabeças de lista com chancela governativa, atinge uma tal dimensão que é difícil não retirar daí ilações sobre os seus efeitos na própria natureza do sistema político. Neste processo é, pois, também a natureza dos partidos que é posta em causa. A personalização extrema da política, que é uma tendência geral, está a ter efeitos que já põem em causa a própria matriz do sistema representativo e o sistema de partidos tal como os conhecemos.

5.

Esta evolução do nosso sistema político não me parece ser boa para a saúde da democracia. Em primeiro lugar, porque anula a centralidade do parlamento, ou seja, da pluralidade dos representantes da nação; em segundo lugar, porque entroniza o líder que chegou a primeiro-ministro e permite a captura integral do partido que lhe serve de suporte; em terceiro lugar, porque menoriza o território partidário, o torna integralmente dependente do Estado e do líder de turno e impede a emergência de figuras autónomas e independentes da vontade (sempre) centralizadora das lideranças. Ainda por cima reforçada com o tipo de sistema eleitoral que temos, com listas fechadas e identificadas com o símbolo do partido. Numa palavra, o partido fica reduzido a mera projecção da vontade do líder, como se está a ver neste caso, com um PSD totalmente “domesticado” e alinhado com a estratégia pessoal do seu líder, ou seja, com o seu comportamento pessoal e privado, mesmo que generalizadamente posto em causa. Impera, assim, uma linearidade exasperante em partidos que atingiram uma considerável dimensão eleitoral porque é suposto representarem uma grande diversidade de sensibilidades. Com esta mudança, a diversidade no interior do partido, mas também no próprio parlamento, passa a ser coisa do passado. E a verdade é que esta tendência é a mesma que se está manifestar com toda a exuberância na direita radical. Mas, pelos vistos, até nos partidos de centro-direita ou mesmo de centro-esquerda ela parece estar a fazer o seu caminho com grande sucesso.

6.

O que se está a passar neste momento em Portugal é uma profunda anomalia relativamente à matriz da democracia representativa e à sua matriz constitucional. Uma espécie de via paralela que está a ser seguida nas margens da constituição: o legislativo tornou-se simplesmente um sub-rogado irrelevante do executivo, tal como o próprio partido que lhe serve de suporte; as eleições adquirem uma natureza de tipo plebiscitário e estão inteiramente subordinadas à vontade do líder e chefe do governo; e, finalmente, a ideia de representação política parece estar a ser substituída por um decisionismo exacerbado, centrado no primeiro-ministro, que confisca as competências do legislativo e do partido maioritário e os transforma em meros instrumentos de combate numa guerra de generais por ele nomeados. O melhor espelho, muito deformado, de tudo isto é o que está a acontecer, neste momento, nos Estados Unidos, com a presidência de Donald Trump. JAS@04-2025

IDIOSSINCRASIAS PRESIDENCIAIS

AFINAL, VIVEMOS, OU NÃO,
EM DEMOCRACIA PARLAMENTAR?

João de Almeida Santos

“S/Título”, JAS 2025

LI COM MUITA ATENÇÃO e interesse o recente artigo de Alberto Costa, no “DN”, “Dissolver, Dissolver, Dissolver” (27.03.2025). Título curioso e muito significativo. E não só porque põe em evidência a anomalia política e constitucional dessa espécie de “dissolução permanente”, como também suscita uma reflexão mais ampla sobre a evolução do processo político em moldura democrática e representativa.

1.

É claro que nós vivemos em regime de democracia parlamentar, onde o centro deveria estar no parlamento e não na figura do primeiro-ministro, sujeita que está às vicissitudes pessoais do próprio, muitas vezes problemáticas, como é actualmente o caso. Mas a verdade é que se tem vindo a evoluir para uma excessiva personalização da política, a ponto de tudo se centrar na figura dos líderes, sobretudo os dos partidos da alternância, os que se vêm alternando no poder. PS e PSD, no caso português. As eleições estão cada vez mais concentradas naquelas figuras, reduzindo o processo político a uma mera competição entre pessoas, sobretudo entre duas pessoas. Actualmente, entre Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos. Confessemos que a escolha é muito reduzida, por se centrar em duas pessoas, num processo que envolve 230 mandatos, programas de governo e mundividências políticas. E, neste caso, as eleições até parece serem mais um plebiscito sobre Montenegro do que outra coisa, feridas que estão, à partida, pela questão da confiabilidade do actual PM, a única razão que as motivou. Se o plebiscito lhe for favorável não se abrirá uma espiral de promiscuidade maior do que a que já existe?

2.

Isto começou com a emergência da televisão na política democrática nos Estados Unidos (ademais um regime presidencialista) logo nos anos cinquenta, ao mesmo tempo que se iniciava também um processo de avaliação, digamos, “moral” dos candidatos a presidente, com as famosas “campanhas sujas” a alimentarem as campanhas presidenciais americanas, ao longo de décadas. Refiro somente algumas, que ficaram famosas, e sempre contra os candidatos democratas: as que visaram Michael Dukakis, John Kerry ou Barack Obama. Nos dois primeiros casos funcionaram. No caso de Obama, não.

3.

 Decorre da sua extrema personalização que a política se passe a concentrar em lideranças pessoais, nas suas qualidades e nos seus defeitos, ficando, portanto, dependente delas, em detrimento dos próprios sistemas de poder. A política a afunilar nos líderes e na sua imagem e a evoluir para a hiperpersonalização. Mesmo nas democracias parlamentares se está a verificar esta tendência, com a redução das campanhas eleitorais (das permanent campaignings às pré-campanhas e às campanhas propriamente ditas) à figura do líder, quase deslizando para a figura do plebiscito (e as de Maio até parece serem mesmo isto) e tornando-as cada vez mais fungíveis e condicionadas pelas vicissitudes das pessoas em causa. Trata-se, pois, de um afunilamento que fragiliza a política e que abre uma espiral de psicologismo pouco compatível com a matriz da democracia parlamentar, mas também de pasto verdejante para os apetites judiciais e para o lawfare, cada vez mais frequente. A essa espiral estão sujeitos todos os partidos, mas sobretudo os que estão em condições de aceder ao governo do país.

4.

Na verdade, o que está em causa nas eleições e numa democracia representativa é a escolha de representantes para o legislativo (230, no caso português), a que se segue a constituição de maiorias parlamentares de onde resulta necessariamente a indigitação de um PM e a constituição de um executivo. O princípio da maioria é um princípio essencial dos sistemas representativos. No caso inglês, nenhum membro do governo poderá sequer ser escolhido fora do Parlamento, o que está a indicar, com meridiana clareza, a natureza parlamentar do regime e a centralidade iniludível do parlamento. Depois, as candidaturas ao parlamento são protagonizadas pelos partidos políticos ou por coligações e é nesse âmbito que se formam as maiorias. Partidos, não pessoas (e não é por acaso que o sistema não prevê candidaturas não partidárias). E muito mais nos sistemas eleitorais de tipo proporcional, com as suas propostas em listas fechadas. São eleitas pessoas, mas as escolhas e as propostas só podem ser feitas por partidos, em listas fechadas (vota-se na lista, mas através da sigla do partido, não se podendo sequer exprimir uma preferência, no caso do nosso sistema eleitoral). Assim sendo, reduzir as eleições às figuras dos líderes partidários candidatos a primeiro-ministro significa várias coisas: a) diminuir o papel do principal órgão de soberania, que é o Parlamento, porque é ele que integra os representantes; b) tornar mais fungível a política democrática por ficar dependente da figura do líder, do seu comportamento pessoal e das vicissitudes que ocorram (como se viu); c) transformar as legislativas em eleições para o executivo, desvirtuando profundamente o regime constitucional; d) abrir espaço para as famosas “campanhas negativas”;  e) reduzir os partidos às figuras dos líderes, com gravíssimas consequências na própria composição dos seus órgãos internos e na propositura de candidatos a cargos institucionais; e, f) finalmente, pôr o sistema à mercê de inquéritos judiciais que podem ser promovidos por simples cartas anónimas, facilitando a prática de lawfare, cada vez mais frequente.

5.

Posto isto, qual a razão do título do artigo que acima referi? Claramente esta: o Presidente da República parece ter já assumido como doutrina oficial a hiperpersonalização do regime, onde o primeiro-ministro é o centro do sistema, decorrendo, pois, as eleições em torno da sua figura, ou seja, transformando-as em eleições para primeiro-ministro. Há quem lhe chame presidencialismo do primeiro-ministro. E há, no caso português, um momento muito claro relativo a esta assunção presidencial: o da tomada de posse de António Costa, em 2022, quando o PS obteve a maioria absoluta. Disse o PR mais ou menos isto: o senhor (não o PS, entenda-se) ganhou as eleições e, por isso, a sua saída implicará novas eleições. António Costa encontrou a oportunidade para (graças ao ministério público) sair imaculado em direcção a Bruxelas e houve eleições. É claríssima, aqui, a desvalorização do partido (que ganhou as eleições) e do parlamento (onde existia uma maioria absoluta desse mesmo partido). Depois, a questão da “confiabilidade” do PM. Surgiu a questão e, consequentemente, outra vez eleições. Há aqui um reajustamento do regime: as eleições, embora também sirvam, em via subordinada, para eleger 230 deputados, servem, no essencial, para eleger um todo-poderoso primeiro-ministro, capaz de reconfigurar o seu próprio partido e o sistema político à sua medida. Adapte-se, pois, o sistema à hiperpersonalização da política democrática e passe-se a eleger directamente o PM, dando forma constitucional ao presidencialismo do primeiro-ministro e, já agora, transformando a Presidência da República num simples cartório notarial. Constitucionalize-se, pois, o que já está a ser feito na prática, para que o processo seja legítimo. Mas, se assim, for terá razão a senhora Giorgia Meloni, ao propor, como fez, uma alteração constitucional para a eleição directa do PM italiano. Mas, ao menos, ela submeteu a mudança ao parlamento (e já passou no Senado) e, eventualmente, a um referendo (se não passar na Câmara dos Deputados, como é previsível). Pelo contrário, aqui, entre nós, e com um Presidente doutorado em direito constitucional (com uma tese sobre “Os Partidos Políticos no Direito Constitucional Português”), a fórmula já passou à prática, sem passar pelo parlamento ou pelos eleitores. Só que, por um lado, a nossa Constituição não prevê a eleição directa do PM, estando, por outro lado, o PR obrigado a cumprir e a fazer cumprir a Constituição, não possuindo legitimidade nem autoridade para produzir alterações constitucionais, formal ou informalmente. Só o parlamento, agora extremamente diminuído, o pode fazer, desde que, para o efeito, tenha uma maioria qualificada. Mas foi o que o PR fez: uma alteração informal do regime de democracia parlamentar, ao considerar irrelevante o Parlamento e os próprios partidos da alternância, perante o agigantamento das figuras dos líderes (no entendimento, errado, de que são eles que ganham, ou perdem, as eleições, e não os partidos). Esta visão é muito própria de quem vê o processo político exclusivamente como um processo comunicacional e não, também, como um complexo e difuso processo orgânico e territorial.

6.

Na verdade, já houve três dissoluções num só mandato presidencial. A primeira, devido à não aprovação do Orçamento de Estado (inevitável? Não está escrito que seja necessariamente assim); a segunda, depois da saída (para Bruxelas) de António Costa, justificada com o facto, anunciado publicamente, de estar a ser objecto de um inquérito-fantasma e apesar de o PS (de forma desastrada, diga-se, por não terem sido consultados os órgãos do partido), por iniciativa do seu secretário-geral, ter proposto um nome alternativo para a chefia do governo; a terceira, por uma questão de confiabilidade do PM (a que se segue, mais do que legislativas, um verdadeiro plebiscito). Mais claro do que isto parece ser impossível.

7.

A doutrina parece ter ficado estabelecida pelo actual PR, dando continuidade àquilo que na prática está a acontecer: a hiperpersonalização da política.  Tendência que ele próprio pratica. Será isto aceitável? Não creio. Essa hiperpersonalização está a acontecer hoje nos Estados Unidos, com Donald Trump, e à revelia das próprias normas constitucionais, e as consequências já estão a ser absolutamente desastrosas e perigosas, incluindo a de anulação dos vínculos constitucionais, até já (ao que parece) na questão da duração dos mandatos presidenciais. O que está em causa é mesmo a natureza da democracia representativa e os seus mecanismos internos de “checks and balances”, para além da sua identidade como democracia representativa, ou seja, lá onde o poder está essencialmente centrado nos representantes, isto é, nos deputados, no parlamento, no poder legislativo.

8.

É claro que, como disse, há muito que se vem verificando esta tendência para a hiperpersonalização da política, muito devida ao domínio do audiovisual na comunicação política. Personalização que acontece quer no plano dos partidos quer no plano do Estado, sendo aqueles tributários deste, e vice-versa. Mas, mesmo assim, nunca se verificou uma tendência como aquela que estamos a viver no sentido de hiperpersonalizar a democracia representativa à revelia das próprias constituições, ou seja, sem que tenha havido as correspondentes alterações constitucionais. O deslize neste sentido tem vindo a verificar-se na Hungria de Orbán, verificou-se na Polónia de Kaczynski e também está a acontecer de forma prepotente e inconstitucional nos Estados Unidos do senhor Trump, do senhor Musk e do senhor Vance. Num só caso está a acontecer uma tentativa com dignidade constitucional, a mudança do sistema através de um “disegno di legge costituzionale”, na Itália da senhora Giorgia Meloni. Com efeito, em Novembro de 2023 ela apresentou um curioso “disegno di legge costituzionale” neste sentido.

9.

Não se trata, de facto, de quinquilharia constitucional. Trata-se, isso sim, de uma mudança estrutural que altera a natureza da democracia, alterando a geometria e os equilíbrios dos seus mecanismos internos. Uma mudança que, de resto, corresponde mais à orientação da direita radical do que à da direita moderada ou à da social-democracia. Para esta evolução chamei a atenção no meu recente livro “Política e Ideologia na Era do Algoritmo” (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024). Uma evolução não desejável porque não se inscreve na matriz liberal do sistema representativo nem na natureza da democracia parlamentar. A evolução, pelo contrário, deveria acontecer no sentido de uma política deliberativa e de uma democracia deliberativa, tanto mais necessárias quanto temos perante nós poderosas máquinas de construção do consenso, dominadas pela plutocracia populista, ou plutopopulismo, e capazes de garantir “democraticamente” a base consensual para o exercício hiperpersonalizado do poder. Falo do que está a acontecer nos Estados Unidos, com o já famoso “capitalismo da vigilância”, o das grandes plataformas digitais, o dos senhores Mark Zuckerberg e Elon Musk, agora alicerçado politicamente na própria Casa Branca e no seu inacreditável inquilino.

10.

Não quero com tudo isto dizer que o actual PR inscreva a sua acção política na lógica da direita radical, mas simplesmente que o seu exercício presidencial tem sido pouco conforme aos preceitos que servem de moldura constitucional à nossa democracia parlamentar. Preceitos que ele jurou cumprir e fazer cumprir quando tomou posse, mas que, à primeira dificuldade, ele transgride. Também não vejo na sua acção uma qualquer intenção conspirativa que se inscreva na lógica da direita radical. O que tenho visto, isso sim, é uma prática deformada de acção presidencial, sobretudo numa matéria de enorme relevância para a nossa democracia. Que o Presidente fale demais, isso pode tolerar-se; que interfira na esfera de competências do executivo já se aceita menos; mas que, pela sua acção, transforme por dentro a matriz do nosso regime de democracia parlamentar, isso é simplesmente inaceitável, por até ser contraditório com a função que foi chamado a desempenhar por mandato popular. JAS@04-2025