TEMPOS DIFÍCEIS
João de Almeida Santos
NÃO FALO DA GLOBALIZAÇÃO, de repente formatada de acordo com as idiossincrasias de um indivíduo que, governando o mais poderoso país do mundo, vê o planeta à escala do seu umbigo – um senhor chamado Donald Trump. Não falo do quase colapso de uma grande democracia como é, ou era, a americana. E não falo da guerra territorial do novo czar russo a um país independente com mais de 40 milhões de habitantes e mais de 600.000 km2 de território. Nem da pandemia universal que paralisou o mundo. E muito mais haveria a dizer por quem acha, e com razão, que estamos a viver tempos difíceis. Não, eu prefiro falar do que está a acontecer no nosso país.
1.
Falo do apagão de 28 de Abril e da incompetência do governo de Luís Montenegro (LM), que se reuniu, não para resolver o que quer que fosse, mas para combinar o que haveria de dizer quando a REN tivesse o problema resolvido. O episódio dos jerricãs com gasóleo para a Maternidade Alfredo da Costa diz tudo. Foi certamente para isso que a senhora Ministra do Ambiente esteve a trabalhar 24 horas, ininterrupta e silenciosamente, entre as 11:33 e as 11:30 do dia seguinte. Dizia-me um Amigo meu, empresário, que nem sequer se lembraram de aprovar uma deliberação do Conselho de Ministros que permitisse, provisoriamente, a circulação de mercadorias (por exemplo, as de bens alimentares perecíveis) sem os documentos requeridos, mas com apresentação subsequente depois de regularizado o funcionamento do site da Autoridade Tributária (que, pelos vistos, ainda continua instável, como noticiava o jornal “Público” de ontem, na pág. 24). O meu Amigo só pôde reiniciar a sua actividade quando o site da AT ficou disponível, ou seja, dois dias depois do apagão. Mas também não tive conhecimento de informações oficiais ao longo do dia – mas ressalvo, claro, as que a senhora Ministra do Ambiente não podia dar porque estava a trabalhar denodadamente -, ao contrário dos habituais conselhos da Protecção Civil para me agasalhar se estiver frio, de usar guarda-chuva se chover e dos infinitos avisos arco-íris sobre o tempo que fará ou que não fará. Coisa, de resto, muito fácil: hoje, é aviso laranja, estejam atentos e, se faltar a luz, acendam velas, mas com cuidado! Muito mais eficiente fora o governo a anular os festejos do 25 de Abril porque morrera o Papa, fazendo entrar a liberdade de luto, ainda que, ao aperceber-se de que Portugal é um Estado laico e de que as críticas choviam de todo o lado, tivesse feito (parcial) marcha atrás no que ainda era possível. Sobrou para o Primeiro de Maio a festa nos jardins de S. Bento, com o sugestivo nome de “S. Bento em Família” (a lembrar as “Conversas em Família” do então inquilino de S. Bento, Marcello Caetano) com cultura a rodos: a dupla Tony Carreira/Luís Montenegro, o “Cante” alentejano e os “Pauliteiros de Miranda”. Só lá faltou um rancho folclórico de Espinho. Isto, sim, que é cultura – “Vira que vira, / Canta que canta, / Isto é qu’é bom, / Antes da janta”.
2.
Entretanto, vamos para eleições porque ficou em causa a seriedade do primeiro-ministro. Foi esta a causa, como se sabe. Mas ele acha sinceramente que não, apesar de receber avenças de várias empresas (por interposta família, mulher e filhos), sendo primeiro-ministro. A empresa era (é) ele, a morada era a sua, o telefone também, site não havia e de competências e de funcionários também não dispunha. E parece que também não havia contratos. Que raio de empresa era esta? A empresa era ele, o político que é eficaz a gerir expectativas a seu favor. E está casado em comunhão de adquiridos com a senhora a quem passou a titularidade da empresa (além dos filhos de ambos). Umas horas antes do debate com Pedro Nuno Santos ficou-se a conhecer o nome de várias empresas com quem Luís Montenegro teve negócios e cuja relação com o Estado terá atingido 278 milhões, sendo 112 milhões durante o período em que foi primeiro-ministro, segundo as contas feitas pelo “Expresso” (02.05.25). Soube-se da informação que o próprio prestou à Entidade para a Transparência (EpT) no dia anterior ao debate com Pedro Nuno Santos e sabe-se agora que, afinal, esta transparência não devia ser transparente, ou seja, acessível aos meios de comunicação social e aos cidadãos. Pelos vistos, a palavra “transparência” não significa o que vem nos dicionários de português e o art. 16.º do Estatuto da EpT (Lei orgânica 4/2019, de 13.09), que diz que as declarações são públicas, não está em vigor. Ou seja, não se trata de uma entidade para a transparência, mas de uma entidade para a ocultação de rendimentos e de prestação de serviços (pelo menos, até que o processo eleitoral, em curso, termine). “Iremos até às últimas consequências”, disse, a própósito, um tal Hugo (Soares ou Carneiro, não interessa, que são farinha do mesmo saco), verdadeiro paladino da transparência (de outros). O mesmo que não tem sido pródigo na crítica à catadupa de segredos de justiça regularmente divulgados pela imprensa. Esses, sim, crimes, nos termos da lei.
3.
A verdade é que outros clientes de Luís Montenegro têm sido divulgados pelo próprio. Qual é, pois, o problema de serem paulatinamente divulgados mais uns tantos? Este tipo de divulgação não me parece que esteja proibido (são já muitos os advogados que sustentam esta tese, que, de resto, é evidente, nos termos da lei e a começar logo pelo nome da respectiva Entidade), até porque não toca em aspectos sigilosos profissionais (como, por exemplo, a ficha médica de um doente ou a reserva no exercício da advocacia). Mas não, pois, pelos vistos, já se pretende investigar as fontes que terão transmitido aos jornalistas informações não proibidas pela lei e, bem pelo contrário, legalmente disponíveis para conhecimento público. Entretanto, que diferença há entre o Grupo Solverde e o Grupo Trivalor para divulgar um e não o outro (mais concretamente, a Itau e a Sogenave)? Só porque um pagava avenças regulares e o outro (que se saiba) não? Não se entende a posição do Hugo (Soares ou Carneiro, pouco importa) e de outros sobre este assunto, a não ser para desviarem a atenção (“cortina de fumo”) do verdadeiro conteúdo revelado. Por exemplo, que o famoso gasolineiro de Braga, o tal que pagou 194 mil euros (mais IVA) para LM lhe “reestruturar” a empresa, tem mais duas empresas clientes da Spinumviva (duas áreas de serviço), sempre segundo o “Expresso” (veja-se o excelente artigo deste semanário, da autoria de Liliana Valente e de Michael Pereira, na página 14 da edição de 02.05.25). Mas soube-se também, e isso é que é importante, depois do debate com Pedro Nuno Santos, que Luís Montenegro é um gigante da ética e das coisas sérias (com certificação logo exibida publicamente pelo campeão da ética, Cavaco Silva, o do BPN e da casa da Coelha). O que se sabe também, é que LM tudo fez para que a sua nova declaração à EpT não fosse conhecida antes do debate com Pedro Nuno Santos (mas o apagão trocou-lhe as voltas) e que essa informação ficasse retida nesta Entidade até depois das eleições (mas foi descoberta e publicada pela imprensa). Mas talvez o próprio ache sinceramente que tudo isto é normal e que, daqui para a frente, com a legitimação eleitoral, o primeiro-ministro passe a poder a receber avenças sem qualquer problema, desde que o “gabinete de avenças” não funcione no Palacete da Rua da Imprensa à Estrela. Para que isto não seja possível, o que se espera é que o eleitorado mostre lucidez (não a que referem Ferreira Leite ou Marques Mendes) e não certifique, com o voto, este tipo de comportamento, não lhe devolvendo a confiança que o actual Parlamento lhe negou por uma quase maioria qualificada (cerca de 62%). Porque o que era preciso saber já se sabe. E até acho mais: que a natureza desta empresa é muito diferente – ao contrário do que diz Pacheco Pereira, no “Público” da passada sexta-feira – de um “centro de infuência” (rede externa ao poder), pela sua identificação exclusiva com um só personagem e com a sua morada e telefone privados (de LM). A definição mais ajustada seria, pois, a de um político lobista que actua de forma disfarçada para benefício próprio, usando como disfarce um nome de empresa. Nada tenho contra o “lobbing” (quando for reconhecido, regulamentado e legal, como por exemplo, nos Estados Unidos), o problema é que a figura do lobista neste caso coincide com a de um primeiro-ministro em funções.
4.
Qual é, pois, a causa destas eleições? A questão da seriedade de LM, do autodenominado paladino das coisas sérias e da ética. Disso ninguém pode duvidar porque foi por isso mesmo que o parlamento lhe retirou a confiança, a ele e, lamentavelmente, ao seu próprio partido (não falo do CDS porque esse e o seu risível líder pertencem à literatura Lilliput). Mas foi ele que, sabendo que não lha iriam dar, quis, mesmo assim, confirmar no parlamento que não lha dariam, avançando a toda a velocidade para eleições na esperança de que, arregimentando as tropas, como é habitual nestes casos, o voto popular lhe devolvesse a confiança que o Parlamento lhe retirou. Na esperança, pois, de que o voto venha branquear uma conduta claramente reprovável, comprovada abundantemente por notícias mais do que suficientes e que não só não foram desmentidas, como até foram confirmadas pelo próprio. O resto é fumo interpretativo para enganar o freguês eleitoral.
5.
Em rigor, nem se deveria discutir mais nada. Apenas a seriedade de alguém que recebeu avenças (directamente ou por interposta pessoa) enquanto era PM. Sinceramente, nem vale a pena discutir políticas porque elas nada dizem para além do que já sabemos (entretanto, soube-se, por palavras de LM, de que, noutro mandato, possa vir a privatizar a segurança social). Foi por isso que fizeram um programa eleitoral de 277 páginas. Para que ninguém as leia, nem sequer os candidatos a deputados. Na verdade, trata-se de um imenso cardápio que ninguém lê e que não explica o que quer que seja. Uma longa e pretensiosa conversa que não esclarece o leitor porque não diz qual é a “causa causans” de cada um dos grandes problemas do país nem o “princípio activo” da respectiva solução. Quem não quer ou não sabe explicar qual é o “princípio activo” das soluções (medicamentos) para os principais problemas do país publica cardápios de 277 páginas e não enuncia esses “princípios”. Lê-los é como estar a ler um enorme e pretensioso dicionário que fala eloquentemente de tudo sem dizer nada. Se virmos o caso da habitação, a solução (entre inúmeras e não hierarquizadas medidas) parece consistir na oferta pública de habitações (PSD e PS), além de o Estado ser também fiador para quem compra (no caso, os jovens até 35 anos – PSD), aumentando a procura e os inevitáveis efeitos sobre os preços. Entretanto, soube que no primeiro trimestre de 2025 entraram no mercado de arrendamento mais 49% de casas do que no período homólogo de 2024, o que, em parte, põe em crise o discurso do bloco central, convergente nesta área (dados que constam num artigo do professor Miguel Romão, no DN de 30.04.25, e que julgo ser elucidativo). Bem sei que isto não está a ter efeitos na baixa de preços e não supre a carência de habitações, mas deve suscitar uma reflexão diferente da que está a ser feita, retirando daí consequências. Mas de que uma efectiva expansão do mercado de arrendamento seja provavelmente o “princípio activo” da solução não se fala, sequer como hipótese, preferindo uma generalizada política “caritas” ou uma verdadeira “economia de plano” para o sector.
6.
Pelo menos, o PS publicou um cardápio com menos 42 duas páginas, o que, como é obvio, é igualmente desviante, por excessivo. Mas sobre a habitação alinha pela mesma bitola do PSD, o que, no meu entendimento, é errado, como também é errada a imposição administrativa de tectos às rendas, como quer a deputada e líder do Bloco, Mariana Mortágua. O estatismo na sua mais exuberante manifestação: resolver os problemas da economia por via administrativa, até que venha uma perestroika à portuguesa. Tenho a convicção profunda de que só a forte expansão do mercado de arrendamento (a tal causa causans) poderá produzir efeitos consistentes quer no próprio arrendamento quer no preço das casas para venda, o que, todavia, exige medidas inteligentes e coragem por parte do Estado, designadamente em matéria de impostos (e procedimentos) quer sobre quem arrenda quer sobre a construção, rompendo com a velha lógica do “se pago menos ao banco do que ao proprietário do imóvel, então endivido-me, por trinta anos, compro e, no fim fico com a casa”. Esta é, de resto, uma das causas do preço das casas: o crescimento desmesurado da procura (para compra) que torna mais cara a oferta, numa subida insustentável dos preços das casas, na compra e, já agora, no arrendamento. Isto é apenas um exemplo. E não falo dos efeitos de rigidez sobre o mercado de trabalho. O que, de facto, não é necessário é a lenga-lenga retórica dos intermináveis programas que nada explica e que, depois, acaba por resultar em nada. Como se vê.
7.
Na verdade, agora, que entrámos na campanha eleitoral, entre cardápios gigantescos que ninguém lerá (os dois programas dos partidos que aspiram a governar o país somam mais de 500 páginas) e frases e imagens de mero efeito retórico (sobretudo televisivo), que nada dizem, para impressionar o eleitorado, o que temos é um enorme vazio no diagnóstico rigoroso dos grandes problemas e das respectivas soluções, o que indicia que continuaremos a navegar à vista, acumulando problemas e, na medida do possível, deitando sobre eles montanhas de dinheiro, que vem ou da União Europeia ou dos impostos cobrados aos cidadãos. De resto, a eficiência do Estado em Portugal concentra-se somente numa área: a da cobrança de impostos, de taxas e de multas na circulação rodoviária. Quanto ao resto, é o que se tem visto. Amen, agora, que começou o Conclave.
ASSUNTOS A SEGUIR COM MUITA ATENÇÃO
- A eleição do novo Papa, que começa hoje, com os ortodoxos em acção para evitarem a continuidade da linha do Papa Francisco.
- A situação política no Reino Unido, onde a direita de Nigel Farage, Reform UK, teve um significativo sucesso nas recentes eleições locais da passada quinta-feira (estavam em jogo 1600 representantes locais, seis câmaras locais e até um lugar no Parlamento), em prejuízo dos conservadores e dos trabalhistas.
- A situação política na Alemanha, onde o partido Alternative Fuer Deutschland (AfD), de Weidel e Chrupalla, acaba de ser formalmente declarado organização “extremista de direita” pelo Gabinete Federal de Protecção da Constituição, justificada numa informação com mais de 1000 páginas, com graves implicações que podem ir até à limitação do acesso ao financiamento público e mesmo até à sua ilegalização. Situação deveras preocupante. JAS@05-2025.
NOVOS FRAGMENTOS (XV)
Para um Discurso sobre a Poesia
João de Almeida Santos
A POESIA NÃO QUER ADEPTOS, QUER AMANTES
JÁ UMA VEZ, e por sugestão de uma Amiga, comentei estas palavras de Federico García Lorca. Que querem, simplesmente, dizer que a poesia tem de ser sentida para ser partilhada e compreendida. Não há nela, como nas artes de palco, uma separação tão nítida entre o leitor e o poeta. O leitor apropria-se dela, identifica-se com ela, torna-a sua, com plena legitimidade. Isso está inscrito na sua matriz. Não há, aqui, usurpação. A música que ela contém e que se ouve está a ser simultaneamente trauteada pela alma do leitor. Como no amor. Não há esse “efeito de estranheza”, Entfremdungseffekt, de que falava o Brecht. O aplauso corresponde aqui a pura sintonia no sentir – syn-pathein. Neste sentido, o leitor também é poeta. É uma leitura por dentro – lê-se com a alma e torna-se nosso o que lá está (disponível para a partilha). É sentir em simultâneo. A poesia é um encontro de almas em ausência. E o poeta encontra-se, assim, com a alma gémea que partiu ou nunca chegou e com todas as que alguma vez experimentaram um sentimento de perda. É por isso que a poesia é um imenso campo de encontros, mas sobretudo de desencontros partilhados. É nisto que reside o seu poder, a sua força.
RECOMEÇAR
A viagem poética não tem fim, nunca terminará porque nunca chegará à janela desejada, a da musa. Se aparentemente lá chegar, o “Pássaro de Fogo” limitar-se-á a derramar palavras e cores no parapeito da janela, sem ver a musa nem saber se essa é mesmo a sua janela. Mas age como se essa janela fosse sua, por instrução do poeta. Ficará sempre a dúvida e isso exige continuidade. É esse o busílis. O poeta move-se sempre no terreno da utopia. É como Sísifo – tem sempre de reiniciar a viagem e de pintar (um)a janela, com palavras. Eterno retorno. E fica sempre uma moinha que o obriga a continuar. Repete-se o silêncio, repete-se o voo. As asas de que dispõe (as palavras) são a sua salvação. O combustível existe em abundância e, nos momentos em que o silêncio se faz ouvir com maior intensidade, emitindo um silencioso, mas intenso, eco, levanta voo. O que é frequente. Porque é coisa que fica para sempre, esse páthos que um dia o fez estremecer. Lembro-me sempre do poema do Baudelaire, em “Les Fleurs du Mal”, “À une Passante”. Um clarão… e depois a noite. É isto. E eu acrescentaria: e, depois, ainda, o sonho. Que se repete cada vez que o poeta fecha os olhos. E lá recomeça a viagem. Como tudo na vida. Está sempre a recomeçar. O desafio é nunca o fazer da mesma maneira. É este o desafio do poeta.
A NATUREZA SORRI EM NÓS
O Fernando Pessoa fazia muito bem as distinções entre o real e a projecção do ser humano nele. Ver um sorriso numa flor é projectar-se nela, humanizá-la, mas ao mesmo tempo é naturalizar a nossa sensibilidade. Claro, a flor ou o rio existem independentemente de nós… e nós deles. Mas a beleza reside precisamente neste encontro interactivo. Até porque também nós somos natureza. No nosso sorriso também é a natureza que sorri. Pôr a natureza a sorrir, em nós. Este jardim (cantado e pintado), o meu, é em parte real e em parte imaginado, como um sorriso do pintor e do poeta exportado para a natureza que está ali à sua frente. Ou ela que, em mim, sorri. A musa “anima” esta interacção – uma mediação inspiradora. Mais: é ela que provoca este movimento do poeta e a animação que daí resulta. É o que significa o título do poema “O Poeta, a Musa e o Jardim”.
A POESIA É UMA CONVERSA
O poema interpela. Daí resulta uma conversa – partilha de intimidades em moldura interactiva e estética. Conversa-se poeticamente com a alma.
NO PRINCÍPIO ERAM AS MUSAS
Que mais pode querer um poeta senão que viajem com ele jardim adentro, marcando também encontro com a musa que o inspira? É doce melancolia e faz bem à alma. Tempera a vida com os condimentos da fantasia, transposta em palavras, mas também em riscos e cores (na sinestesia). E em toada melódica (interior), a que atinge mais directamente a sensibilidade. Como seria a vida sem musas? Seria vida sem fantasia? Um cinzento e chato realismo? Eu acho que nem jardins haveria. E não haveria modo de incendiar a alma e de a pôr a voar. Nem haveria canto. Cantar o quê, sem musas? Também não haveria poetas, pintores, compositores. No princípio, não foi o verbo nem as coisas – no princípio foram as musas. Pecado original? Sim, pois não pode haver pecado sem musas. Não é a vida um longo percurso em pecado e em busca de redenção? É por isso que há poesia. A verdade é que o mundo nem começaria sem elas.
FLORES
As cores da primavera, no jardim, alegram a alma e convidam a cantar. E as musas andam por lá. Elas gostam de jardins, de cores vivas, dos aromas e das borboletas no seu afã polinizador. E o poeta em tudo isto se inspira. Também ele de certo modo é borboleta que poliniza almas. Todos os ingredientes podem ser encontrados no jardim: o jasmim com o seu acre perfume, a magnólia com os seus farrapos brancos, a árvore de Apolo, o loureiro, azáleas, rododendros, rosas, camélias… um sem-fim de flores. E as musas, que pairam sobre os aromas inebriantes, desafiando o poeta a cantá-las. E ele, solícito e humilde, responde-lhes o melhor que pode e sabe.
IMPEDIMENTOS
Num poema, o poeta cruzou-se com ela e com tudo o que ele reconhecia nela: timidez (o quadro “Timidez” mostra-o), mistério, medo de luz excessiva, da exposição, da música, não fosse esta arrastá-la para a volúpia, invisibilidade do corpo, silêncio. É isto que ele reconhece nela. E é isto que, estranhamente, o seduz. Mas é isto que se interpõe entre ele e ela. Uma relação que só será salva pela poesia. Com ela, ele pode reconstruir essa relação perturbada por tantos impedimentos subjectivos da musa. Sim, mas a verdade é que há sempre algo que impede a relação do poeta com as musas. Elas não se deixam capturar pelo sentimento. Estimulam-no, mas escapam. São rápidas e leves como as fadas. Afinal, só assim podem sobreviver nessa condição, a de musas. É o seu destino. Delas e dos poetas. Ele, este, não resistiu a fazer o seu retrato (sabe-se lá por que razão subjectiva) e a confessar a sua disposição anímica perante essa condição da musa. Expõe-se ele e expõe-se ela. É a vida, diria um; é a poesia, diria outro. Na verdade, foi a timidez da musa e a correspondente retracção que o seduziram. Às vezes, isso acontece mesmo. E, claro, só havia uma solução: a poesia (e a pintura).
MISTÉRIO
A timidez (no poema “Timidez” e no quadro “Timidez”) é dela, mas também dele. Muita vida se perde nesse emaranhado da timidez. Mas também mistério. Sim, o mistério fascina. E as musas são sempre um pouco misteriosas. Muito do seu fascínio vem daí. E os poetas são sempre irremediavelmente atraídos pelo mistério.
PRIVILÉGIO
É um enorme privilégio do poeta ter a atenção de uma musa. Bom, se esta atenção não existisse talvez nem houvesse poeta. Lembro-me sempre do T. S. Eliot: um dia, a musa visita o poeta e o seu destino fica traçado. A partir daí cabe ao poeta honrar esteticamente a presença da musa. E tanto melhor se o fizer também visualmente, como no perfil que desenhou. Sim, é verdade que não são poucos os favores que lhe deve. É privilégio raro, pois é. E o poeta-pintor está-lhe profundamente reconhecido, prestando-lhe tributo com poemas e pinturas. Mas ela não sabe. Outro mistério? Não, porque para ele é como se ela saiba. Desde o momento em que ela habite o seu território torna-se possível, ao poeta, fazer esta operação: agir “como se”. E, nesta condição, ele agirá em busca da máxima perfeição para a seduzir. No fim, concretizada a obra, ele assume-se como sedutor de sucesso e compromete-se a prosseguir a caminhada. Sísifo, eternamente apaixonado.
A FONTE
A Fonte não é uma abstracção. Essa fonte de que se fala num poema alimenta o poeta de água e de inspiração. Sai a seis graus centígrados directamente da nascente. É a água que bebe. É pura. É fria por fora, mas quente por dentro. Se a beber com a alma. Não deixa depósito, mas deixa saudades. É um rio que desce da montanha para o Zêzere e para si. Frequenta-a desde criança, a caminho do Vale de Santo António, lá no alto, a cerca de 1500 metros de altitude, ou da piscina das Penhas da Saúde. Cresceu com ela, mantendo-se ela estável, sempre com aquele gigantesco fluxo. Fica no belíssimo Vale Glaciar. Que mais parece desenhado à mão. E ficou irritadíssimo por durante um ano (depois do incêndio) não a poder visitar. Ele só bebe desta água. Da última vez que lá foi trouxe 153 litros dela. É verdade. Com tanta água, a inspiração não lhe haveria de faltar. E é assim que vai a esta fonte onde quer que esteja. Trá-la sempre consigo. Como poderia ele não a cantar? É a montanha e a neve em estado líquido. Quando a bebe sente nevar-lhe na alma. E sente a vertigem da montanha. Não há calcário entre ele e a nascente. É relação directa com a natureza no seu estado mais puro, sem interferências. É afluente do rio que corre ali ao fundo do vale, o Zêzere, que nasce perto, na zona dos Cântaros. E é também afluente da sua poesia. No inverno, quando se vai abastecer, muitas vezes neva lá mais no alto e, então, sobe ao encontro da neve, se lhe for permitido. Esta neve já deixou de vir ao seu encontro nas ruas da sua aldeia. Uma saudade imensa. Mas pode vê-la lá no alto do Maciço Central. E com a imaginação. E canta-a e pinta-a. E assim vai passando os seus dias, tendo a montanha como referência. Na montanha dilui as viagens existenciais da sua vida. Decanta-as, com frio, água e ar puros. JAS@30-04-2025


















