Poesia-Pintura

 RITUAIS

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Fantasia”
JAS 2025
Original de minha autoria
Junho de 2025

“Fantasia”. JAS 2025

POEMA – “RITUAIS”

IMAGINEI 
Um templo
Revestido 
De vitrais,
Celebrei-te
Com palavras
E com luz
Em singelos
Rituais.

EVOQUEI
O tempo
Em que sempre
Nesse teu olhar
Esquivo
Eu me perdia,
Quando os silêncios
Sobravam
Como se fossem
Castigo,
Por tudo o que eu
Nunca faria.

AGORA É FUTURO
Imaginado
De voluntário
Amante,
Construído
Nas ruínas
De um passado
Que nem é
Muito distante.

É TUDO
O que me resta
Como alimento
Da alma,
Um fervilhar
De memórias,
Inscrições
Sensoriais,
Um silêncio
Que é profundo...
...........
E mais nada,
Nada mais.

RESTA
Um brilho
Coado,
Melancólico,
Cinzento,
O negro
Desses teus
Olhos
E teus cabelos
Ao vento.

TUDO FERVILHA
Na minha sofrida
Memória,
Delicada
Inscrição
De palavras
Com história
Partilhadas
Com paixão.

DOU-TE, ASSIM,
Nova vida
E renovo-me
Também eu,
Falo ao mundo
Comovido
Num poema
Que escrevi
Para te ser
Oferecido
Lá do alto
Do meu céu.

IMAGINEI
Esse templo
Para os meus
Rituais,
Quando regresso
Do meu Jardim
Encantado,
Sempre com algo
Mais,
Todo de cores
Bem vestido
E o corpo
Perfumado,
Mas por dentro
Melancólico
Por te ter
Assim perdido
Nesse tempo
Já passado.

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XVII)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

“O Desejo”. JAS 2021

O JARDIM

O JARDIM está mais lá no alto do que cá em baixo, na rua, na vida, nos tormentos, porque ele já faz parte do voo do poeta: a pista de descolagem, os perfumes para a libação e a propulsão, as flores para a poética polinização das almas sensíveis – tudo isso está lá, no jardim. No voo, o jardim também vai com o poeta, porque ele está inscrito na sua alma e na sua fantasia. O jardim é voo e é liberdade, nele não acontecem as agruras da vida. Nele, o poeta liberta-se delas. Ou da memória delas. Nele se processa a decantação da vida e da memória. No Jardim, o poeta embriaga-se com o acre perfume do jasmim. Entra em libações e, depois, em levitação. É, sim, um lugar de libações (aromáticas). Depois, acontece o voo propriamente dito, ou seja, o movimento apolíneo. O jardim, que está no vale, também está lá, na montanha. E este é já um terreno de liberdade e de fantasia. Quando o poeta parte, é dali. A partida poética. Como poderia, de outro modo, desenvolver o processo de polinização das almas sem o jardim, sem o pólen que as suas flores lhe fornecem e que ele leva no voo? No pólen vai todo o jardim. Polinização integral. Dali parte e ali regressa. Melhor: parte sem sair de lá. E como poetar sem o loureiro matricial, o do enlace, o que deu uvas no “momento oportuno”? Impossível. Seria como cortar a raiz ao poema. Que é como quem a corta também ao pensamento. E como voar sem o poderoso combustível do jasmim? Não haveria propulsão. Não há poesia sem libações. Ou, ainda, sem esse espanto, sempre recorrente, que a magnólia branca lhe provoca no mês em que começa a primavera, mês propício para a poesia. Magnólia que representa o intervalo entre o inverno e a primavera – flores que são farrapos de neve transfigurada pela primavera que desponta. Um casamento feliz que faz nascer a magnólia branca. Ali nasceu (como poeta), ali vai vivendo e compondo, mesmo quando não está lá, fisicamente. Ali nasceu e ali regressa sempre. É um auspicioso desafio continuar os voos com as palavras de que dispõe para que seja possível continuar a celebração poética dominical. A que permite dar asas à intimidade, sem a ofender. Bem pelo contrário. A intimidade oferece-se ao voo revestida por um fino véu translúcido, não se revelando integralmente, mas deixando ver o perfil.

REFLEXO

O poeta olha para um retrato – poderia ser “O Retrato” (2022), um quadro seu – e entra num monólogo (dialogado, mas sem interacção) sobre a musa e sobre o modo como a vê e como a sente. E tem saudades dos encontros (poéticos e plásticos) na praia da meia-lua, a pequena praia que gosta de visitar e onde imagina/deseja um (re)encontro ao luar. O poeta revive assim as suas fantasias como se elas fossem a outra face da sua vida, depois de a realidade o ter atropelado quando caminhava tranquilamente pela rua do desejo, a que também chama “do desencontro”. E assim vai sobrevivendo em estado de encantamento, o único que não pode ser interrompido por uma vontade alheia ao seu próprio discurso do desejo. O seu é um encantamento puramente interior. Resulta de uma luz que se lhe acende na alma, activada pela memória em certos momentos. “O Retrato” é simplesmente o reflexo transfigurado do que lhe reside na alma e da luz que se lhe acendeu lá dentro.

A FESTA DA SAUDADE

A festa da saudade é festa de vida vivida intensamente. Ter saudades da vida vivida ou, ainda mais, da que se ficou pelo desejo… não cumprido, mas vivido como expectativa. Cantar a saudade é cantar a vida e revivê-la em palavras com o poder de atingir a sensibilidade, a própria e a dos que fruem o canto. E talvez a da musa, não sei.  E isto é poesia. E nisto consiste a sua forte performatividade. Sim, a festa da saudade também é festa da vida, da que ficou registada na memória como acção ou como desejo que não se cumpriu. Ter saudades desse tempo dos desejos intensos… e revivê-los com palavras em modo poético também é viver. Viver, revivendo, convertendo o passado em futuro. Partilhá-lo para que outros o sintam com intensidade equivalente. O desafio da poesia é mesmo esse.

VIAJAR POR DENTRO DO POEMA

Gosto das viagens por dentro dos poemas que habitualmente faz um companheiro de liturgia poética. Elas animam o poema, dão-lhe vida. Neste caso, o leitor não se limita a fruir, entra diretamente no poema, fá-lo seu. É, pois, mais do que leitor e até do que comentador – é parceiro de caminhada. Às vezes, caminhando, interroga o poeta, outras vezes dá-lhe pistas sobre o percurso poético. Não é, pois, uma visão externa do poema, é uma incursão nele. É como entrar no palco durante uma representação em curso. Tornar-se também actor. E isso significa expandir por dentro o próprio poema e as personagens que o povoam. É por isso que eu gosto destas suas habituais incursões pelos poemas, como se eles, uma vez publicados, ficassem um pouco suspensos a aguardar a chegada de um novo personagem da narrativa… para a concluir.

TRANSFIGURAÇÃO ONÍRICA

Os poetas transformam os sonhos em realidade e, depois, partilham-na. Sim, os sonhos fazem parte da vida, são a sua componente onírica. O Calderón de la Barca dizia que “la vida es sueño”, pela boca de Segismundo:

“Yo sueño que estoy aquí, 
destas prisiones cargado; 
y soñé que en otro estado 
más lisonjero me vi. 
¿Qué es la vida? Un frenesí. 
¿Qué es la vida? Una ilusión, 
una sombra, una ficción, 
y el mayor bien es pequeño; 
que toda la vida es sueño, 
y los sueños, sueños son.”

(Calderón de la Barca,La vida 
es sueño, Acto II, Cena XIX)

A poesia torna os sonhos visíveis, trá-los à consciência numa linguagem também ela moderadamente cifrada. Por isso, os poetas são amigos dos sonhos. Poetar é sonhar, é dar forma ao desejo e partilhá-lo, tornando-o, assim, real. A toada e a melodia ajudam à performatividade da poesia, porque são elas que mais directamente atingem a sensibilidade. “Quem não tem real caça com poesia”, dizia, ironicamente, o poeta, glosando o velho ditado. O poeta não o tem, mas tentou (tenta sempre) e deu-se mal. Mas, neste processo, o poeta nunca regressa a si, vindo do real propriamente dito, porque, afinal, ele já reside numa zona especial. Ficou lá desde que lhe aconteceu ser poeta. Mesmo quando sai, nunca abandona essa sua condição. A poesia representa uma espécie de estado intermédio entre o real e a fantasia – tem elementos de ambos. É transfiguração onírica do real ou conversão semântica do sonho. Com a intensidade afectiva ele pode compensar a falta de real, do que se lhe negou ou do pouco que teve. Além disso, o poeta também não está sujeito ao tempo cronológico porque habita um tempo que é passado, presente e futuro. Ou até absoluto: o “kairós”, o instante oportuno. Além disso, o sonho da poesia não é puramente subjectivo e latente: é universal-subjectivo (para usar o conceito de Kant na “Crítica do Juízo”) e manifesto, sendo comunicado com uma linguagem cifrada, parecida, sim, com a do sonho, mas mais descodificável e comunicável. Ele é accionado por um dispositivo que todos têm (intelecto e imaginação), embora em graus diferentes. Por isso, nele, os poetas sentem-se realizados pelo quase ajuste de contas com a realidade que lhes falhou, não importa por culpa de quem. A poesia é a continuação do sonho por outros meios na dialéctica da vida.

ANDORINHAS

É verdade, não foi nada fácil escrever um poema sobre as andorinhas. Mas tinha de ser. Elas andavam mesmo por ali, em torno do ninho em construção. Um poema em torno delas que, por sua vez, andavam em torno do ninho. Talvez o poema tenha sido mais difícil do que a construção do ninho pelas andorinhas, lá no terraço. Elas são obreiras extraordinárias, incansáveis, rápidas e perfeitas. Não acendia a luz (o ninho foi construído sobre ela) e não ia ao terraço para não incomodar. Seguia tudo do outro lado, por dentro. A construção era perfeita. Quando pintei o quadro ilustrativo ainda o ninho ia a meio. Depois, só ficou um buraquinho para elas entrarem. Tal era o cuidado com a segurança e com a temperatura do ambiente em que as crias cresceriam. Uma azáfama. Alguém me disse que talvez o Fernando Pessoa não tenha experimentado essa vivência. Ele era um citadino, é verdade. Não dava pelas andorinhas? Não sei. Mas sei que ele as invocava:

“Andorinha que vais alta, 
 Porque não me vens trazer  
Qualquer coisa que me falta  
E que te não sei dizer?”

(Fernando Pessoa em Quadras 
ao Gosto Popular)

Vivia a cidade como um estrangeiro que nunca sai da sua própria terra, mesmo quando visita outras? Talvez. Era como se elas fossem galerias de arte? Sim, pelo menos para o Bernardo Soares. Visitava a vida como quem visita uma galeria de arte. O seu era, pois, outro mundo e ele observava a cidade desde fora, como se observa um quadro, uma pintura. E a natureza também. Mas havia o outro, o Guardador de Rebanhos, diferente. O Alberto Caeiro. Tenho a vaga ideia de que esse talvez desse conta das andorinhas. Talvez. Mas ainda hei-de explorar com mais atenção esse terreno habitado pelo Caeiro, com o olhar sempre atento nas andorinhas. Entretanto, não resisti e sobrevoei-lhe a Obra Completa (Lisboa, Tinta-da-China, 2016) à procura das andorinhas e não as encontrei. Mas uma coisa é certa, ele gostava das aves:

“a ave passa e esquece, 
e assim deve ser”; 
(...)
“passa, ave, passa, 
e ensina-me a passar” 

(Alberto Caeiro, em O Guardador 
de Rebanhos, XLIII).

Será isso que lhe falta, ao Pessoa? Aprender, com as aves, a esquecer?

O NINHO

Foi uma surpresa, o ninho. E onde elas o foram construir! E a perfeição! E a azáfama! E a argamassa e, depois, os restos no chão do terraço, talvez de um “colchão” em construção, onde deitar as crias! A vida em construção. Podia lá eu passar por isto sem escrever um poema e pintar um quadro? Impossível. E não foi fácil, ainda que tenha uma poética ou um modelo que ajuda sempre. Uma semana a observar, a escrever e a pintar. E feliz por ver o renascer da natureza e a sua própria inteligência em acção. O ninho é perfeito, belo. Mas no jardim há mais ninhos. No loureiro, esse mágico arbusto cantado também pelo Hölderlin, Der Lorbeer:

“Agradeço-te! Da desconversa da gente
Me salvaste, confidente solidão!
Para que eu cante o loureiro, 
ardentemente, /
A quem já entreguei meu coração.” 

(Hölderlin, Todos os Poemas, 
Porto, Assírio & Alvim, 2021, p. 73).

O loureiro é um autêntico parque de campismo, com as tendas montadas enquanto a vida não se autonomiza e parte em voo. É por isso que não o podarei nos próximos dias. Também encontrei um intenso aroma de jasmim. Quase embriagava. À noite era mais intenso. E o Jardim é uma “selva”, mas toda ela bem ordenada e cuidada pela Teresina. Flores, arbustos, latada, relva. Pequeno, mas intenso. E o loureiro, que está enorme e que vou ter mesmo de podar, embora não já, devido aos ninhos. Haverá queixas, quando o fizer, mas tem de ser. Já pedi ao meu Amigo Caldinho para o fazer. Entretanto, vou pouco ao terraço para não incomodar e preocupar as andorinhas. Não tarda, a passarada partirá lá para o alto, do terraço e do loureiro, deixando as casas abandonadas. Se pudesse alugava-as a outros pássaros. Preço? Uns chilreios e autorização para poder ir ao terraço e subir ao loureiro as vezes que eu quisesse. Não seria pedir muito. Mas não sei qual seria a reacção das andorinhas e dos outros pássaros se passassem por ali, de novo, e vissem as casas (ou as tendas) ocupadas. Não iam gostar e até poderia vir a ter um processo no tribunal da passarada.  E a ter de responder em verso com rima. Não sei ainda o que farei quando entregarem as casas ou as tendas. Na verdade, os ninhos das andorinhas são mais casas (porque são feitos de argamassa) do que os ninhos do loureiro, que são mais tendas (porque são feitos de palhuço). Mas logo vejo o que farei.

ESTAR SEMPRE DE PARTIDA

As andorinhas em permanente migração, a leveza do voo, a beleza – a olhar para elas também nós sentimos essa leveza e partimos com a imaginação. O poeta também está sempre de partida e procura a leveza das andorinhas para poder voar. Os poetas são como as aves migratórias.

EM BUSCA DO ABSOLUTO

O poeta tem muito de andorinha. Anda sempre a fazer ninhos. E voa e esvoaça. E migra para Neverland. Vai lá ao passado tanto como ao futuro, sem sair de onde está. A sua argamassa são as palavras. Com elas constrói ninhos e desova, chocando-as para criar vida. Nos ninhos poéticos que vai construindo. E cada ninho pode mesmo valer como se não houvesse mais, sobretudo quando tenta pôr todo o mundo e toda a vida num só poema, num só ninho. Coisa recorrente. Em busca do absoluto. No acto da criação não há mais, só ele e o seu mundo. Só ele e o seu ninho. A poesia tem algo de absoluto. É como o tempo (na poesia), comprime-o no instante criativo. “Kairós” ou mesmo “eksaíphnês”, tempo oportuno ou raio temporal instantâneo que atravessa a fantasia do poeta e o põe em êxtase (poético). Instante criativo que esgota o tempo e o mundo. Durante uma semana nada mais vi e senti do que andorinhas. O mundo era, todo ele, um ninho de andorinhas que chocavam palavras para a criação de poemas para o voo, com o vento que haveria de passar. Os poemas têm de voar para terem vida. Os poemas são como as andorinhas. JAS@06-2025

Poesia-Pintura

GEOMETRIA DO AMOR

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Triângulos”
JAS 2025
Original de minha autoria
Junho de 2025

“Triângulos”. JAS 2025

Pinto quadros por letras, por sinais
Cesário Verde

POEMA – “GEOMETRIA DO AMOR”

FAZES POEMAS,
Ó poeta,
Como quem
Desenha
Triângulos
Perfeitos
Na geometria
Do canto:
O poeta
Refractário,
A musa
Que o seduz
E a melancolia
Que o leva
A cantar
Para acender
Uma luz...

PORQUÊ
Geometria
Perfeita
Se o amor não
É exacto,
Linear,
Traço puro
De uma sofrida
Emoção
Que só tu
Podes
Cantar
Na mais funda
Solidão?

É PORQUE
A geometria
Te permite
Desenhar
O seu perfil
Ideal,
O rosto
Dessa alma
Que habita
O teu jardim
De cristal?

ELEVA-TE
À perfeição,
Que já não é
Pecaminosa,
Distante
Dessa linha
Tão rugosa
Que descreve
O amor?

POR ISSO,
Quando desenhas
O amor
Como círculo
Perfeito
Ou ângulo do
Número sete
Não é afeição
Que descreves,
É perda,
É já dor
Que se repete.

POR MAIS FIGURAS
Que desenhes
Ou fugas
Que tu encetes,
Linhas
Lá bem no alto
Do céu,
Não encontrarás
O amor,
Mas a projecção
Geométrica
Dessa nudez
Interior
Que espelhas
No teu canto...
...........
Uma perda,
Uma dor,
O teu pranto.

NÃO HÁ AMOR
Num triângulo
Perfeito,
Geometria
Do espaço,
Linhas
Em fuga
De uma rua
Deserta
Que se movem
Em busca
Da perfeição,
Mas sempre
Pra parte
Incerta,
Já longe
Da emoção.

AH, MAS NA COR
Com que o pintas
Com palavras,
Como fonte
De calor
Com que te
Aqueces
A alma,
Nisso, sim,
Tu avistas
O amor
Na palavra
Que te salva.

NAS FACES
Desse cristal
O vês
Em triângulos
De cor
E luz,
Espelhos
Do seu rosto
Em refracção
Que te inspira
E te seduz
Quando pintas
A beleza
E lhe falas
Do destino
A que o poema
Conduz.

TEUS POEMAS
Serão, pois,
Triângulos
De cor
E luz
Que te iluminam
A alma
Onde a guardas
Escondida
Porque
Ainda te seduz...
...........
E não sai,
Já não sai
Da tua vida,
Silhueta
Em contraluz.

Artigo

O PS NA MOÇÃO DO FUTURO LÍDER,

JOSÉ LUÍS CARNEIRO

Vinte e Cinco Observações 

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

1.

A MOÇÃO, na página nove, diz o seguinte: “Com este documento de estratégia política, a nova liderança do PS lançará um processo alargado de discussão e reconstrução do PS, não condicionando à partida os resultados que tal processo poderá alcançar. Essa discussão, aliás, já começou”. Onde, não sei. Ainda não dei conta. Mas eu, que já ando nestas discussões há muito tempo, aqui estou mais uma vez. A ver se alguém lê e se interessa pelo que digo. Não terá grande importância, mas sempre é um contributo. E compreendo que se abra um processo, até porque ele se está a tornar cada vez mais necessário. Mas, mesmo assim, não consigo alcançar o sentido do que se diz noutra parte do documento (um documento de candidatura a líder, note-se), a saber: “o presente documento de orientação política, que enquadra e sustenta a candidatura a Secretário-Geral do Partido Socialista, não se deve confundir com a Orientação Política do PS a aprovar, nem com a nova Declaração de Princípios a concretizar e, muito menos, com a nova visão de país que faremos nascer”. Compreendo, porque se aqui estivesse já tudo dito não seria preciso abrir o debate. Da discussão nascerá a luz. Sem dúvida. E, todavia, se não deve haver confusões entre o que diz o futuro líder e a luz que se acenderá no futuro, a pergunta é óbvia: que valor tem o documento que suporta a sua eleição? Até porque é o próprio que diz que este documento não deverá ser considerado (ou confundido) quer como orientação política quer como declaração de princípios do PS ou mesmo como uma ideia para o país. Mas, pergunto, ele não representa a visão do futuro líder do PS e não anuncia o que esse líder quer para o partido e para o país? Isso nada conta nem vale? O novo líder vai para lá como uma folha em branco que, depois, será escrita pelo colectivo? Que valor terá, então, a liderança? Não estaremos nós a eleger um líder pelo que ele pensa e propõe como sendo o melhor para o PS e para o país? Lidera fisicamente, mas não lidera nas ideias? Estranho! Não há alternativa, bem sei, mas o candidato deveria agir como se houvesse. Ou estamos mesmo a eleger, em tempos de hiperpersonalização da política, somente um secretário, um coordenador, uma espécie de notário que tomará boa nota de quanto, nos próximos anos, o colectivo decidirá, eventualmente até nem tomando em consideração as próprias ideias de quem elegeu como líder? Mas que liderança será esta que se recusa a apontar o caminho que considera ser o melhor, sendo, mesmo assim, votado como líder? Não entendo. A não ser que, atendendo ao histórico, tudo isto não passe de conversa para cumprir calendário. Até lá, à grande reforma, quais serão as ideias que deverão ser tomadas em consideração e que rumo seguirá um PS em crise e com as ideias suspensas, já que estas ou não são para tomar em consideração ou são apenas provisórias? É tudo provisório, incluindo o próprio líder apenas eleito? Se as ideias com que o candidato se apresenta a votos são estas, elas deveriam valer como bússola política e ideal do PS enquanto for líder, agora e no futuro. Até porque a política não pára para aguardar tranquilamente o produto de uma reflexão colectiva que poderá nem sequer vir a acontecer, como se viu no caso de Pedro Nuno Santos. Numa crise, o que se quer é um líder que a enfrente com ideias, o que parece não ser o caso, até pelo teor do documento que apresenta. E nem sequer é verdade que José Luís Carneiro venha completar o mandato de Pedro Nuno Santos, como julgo ter dito Miguel Prata Roque. Se assim fosse ele deveria governar provisoriamente o partido com as ideias daquele, o que não é o caso. Mas bem o entendo – não havendo disputa é como se não se trate de uma verdadeira eleição, mas de uma espécie de nomeação administrativa.  De certo modo, a moção sobre a qual, a seguir, desenvolverei 24 considerações até parece justificar essa ideia de interregno não só pela advertência que referi, mas também pelo pouco que diz. Mas, mesmo assim, vejamos mais de perto.

2.

O desenvolvimento tecnológico, diz-se no documento, coloca-nos novas exigências. Certo. Mas deveria dizer-se também, e não se diz, que ele nos coloca novas e grandes oportunidades, assim as saibamos agarrar. Digo isto não por acaso, mas porque hoje a crítica às TICs, sobretudo às redes sociais e às grandes plataformas digitais, é muito forte, passando por cima do que elas podem representar efectivamente como oportunidade, como “tecnologias da libertação”, como no início eram conhecidas, e como fortíssimo desafio aos media convencionais e à sua aliança tácita com o poder, como a sua outra face. São conhecidos os desvios supervenientes, bem sei, mas eles não cancelam as oportunidades que elas podem favorecer (analiso longamente este aspecto no meu recente livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo, S. João do Estoril, ACA Edições, 2024). Lembro que a generalidade dos cidadãos anda com um pequeno computador no bolso, tendo, assim, acesso ilimitado a informação (e não só a desinformação).

3.

Fala-se de uma maioria absoluta “abruptamente interrompida” em 2023 por, como se sabe, o PR ter decidido convocar eleições (e não era constitucionalmente obrigatório) na sequência da apressada demissão do PM António Costa. Sim, é verdade, mas talvez se devesse dizer, e já, algo sobre isso: de quem foi a culpa, quais os intervenientes activos e passivos na operação, se houve e quem foi o arquitecto e as consequências desastrosas que teve para o PS e para o país. Mas não se diz.  Apenas que foi “abruptamente interrompida”. A posição do PS nessa altura (a sua mansinha submissão ao diktat do PR) também deveria ser objecto de uma profunda reflexão. O que não acontece e provavelmente nunca acontecerá. Mas a verdade é que esta derrocada começou aí.

4.

Como já disse, anuncia-se um grande debate a seguir à eleição do líder e eu pergunto se não seria esta, precisamente esta eleição, a boa ocasião para debater alternativas e pessoas. E também pergunto se só agora é que os protagonistas que por lá andam há tanto tempo se deram conta de que, agora, é mesmo necessário reflectir. Já, sem deixarem a reflexão para as calendas gregas, ficando-se pelo anúncio ou promovendo um debate artificial, como aqueles a que temos vindo a assistir. Sem consequências dignas de registo, sempre à espera de melhores dias. Mas mais vale tarde do que nunca, ainda que ele aconteça por pressão de circunstâncias negativas. Mas vamos a isso.

5.

Diz-se que a crise também está “inserida num quadro de significativa contração dos partidos socialistas democráticos, sociais-democratas e trabalhistas, no conjunto das democracias ocidentais”. Mas a verdade é que a crise não é de agora, há muito que se anuncia e verifica e muitos são os que têm vindo a alertar para isso. Eu fi-lo muito recentemente, e de forma muito detalhada, no livro que acima referi e em inúmeros artigos de fundo neste site. E, já agora, também me ocorre lembrar que talvez tivesse sido oportuno reflectir sobre a crise, em 2015, quando o PS de António Costa nem sequer obteve aquele “poucochinho” de António José Seguro, perdendo as eleições, a seguir a quatro anos de austeridade severa, com a troika cá dentro a vigiar o cumprimento (reforçado) do memorando pelo PSD de Passos Coelho (e note-se que, segundo o banco de Portugal, a dívida pública em 2010 ficou em cerca de 100% do PIB, acabando, em 2015, por se fixar em cerca de 131% do PIB). Não foi um fortíssimo sinal para ser interpretado? Não discuto a justeza constitucional e democrática da solução, mas talvez tivesse sido um bom momento para reflectir sobre o assunto, isto é, sobre a derrota, em vez de os holofotes terem ficado virados exclusivamente para a inédita experiência da “geringonça”, que haveria de levar, como veremos no ponto 15, a um desinvestimento público incompreensível.

6.

Fala-se de “novas formas de fazer política, novos protagonistas e novas respostas para os problemas do nosso tempo”. É para levar a sério? Vêm aí novos protagonistas e uma nova política, com este unanimismo (por assim dizer) na eleição de um líder que foi secretário-geral adjunto de António Costa? Nada a objectar, mas será necessária mais coragem do que tacticismo para o empreendimento. Eu quero acreditar, mas já estou um pouco como S. Tomé.

7.

Usa-se a expressão a “desinformação alastra”, talvez aludindo às redes sociais (é o que está a dar), como se a desinformação não existisse há muito tempo nos meios de informação convencionais e os boatos fossem coisa de agora. Por exemplo, ela hoje existe em doses cavalares (perdoe-se-me a expressão) sob a forma de comentariado televisivo. Algo que se está a revelar profundamente tóxico e intoxicante, mas de que ninguém se queixa e se escandaliza. Os factos relatados nessas mesmas plataformas informativas já pouco significam, envolvidos que logo ficam por intermináveis aluviões opinativos. São estes os personagens que hoje modelam e estruturam a opinião pública, os novos ideólogos, os “fast thinkers” do pensamento “prêt-à-porter”, graças ao enorme poder do púlpito televisivo (que é superior ao que muitos pensam, como tive ocasião de demonstrar no meu livro Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012).

8.

Também se usa uma curiosa expressão para referir o problema da habitação: “iniquidade no acesso à habitação”. Traduzo: injustiça no acesso à habitação. Mas a minha pergunta é a seguinte: a habitação é um bem público que deve ser redistribuído? Qual é a responsabilidade de cada um de nós (e designadamente das famílias) na criação de condições para termos acesso a uma casa para habitar, comprada ou arrendada? Fala-se de “um grande projecto de construção e reabilitação de habitação”, ou seja, de um grande projecto de construção civil – tem o Estado vocação para isso? Não será, pelo contrário, a expansão do mercado de arrendamento a solução para este problema, podendo o Estado, para isso, tomar medidas fiscais, financeiras e procedimentais radicais? Por exemplo, abdicando de impostos? A solução não será de certeza a oferta pública de casas para arrendamento, com o Estado (incluídas as Câmaras) como senhorio, pois já se sabe como irá a acabar, atendendo ao histórico do Estado como administrador. Aliás, um dos grandes problemas do nosso país é precisamente a eficácia no funcionamento do Estado, designadamente na gestão dos bens públicos (só funciona bem na cobrança de impostos). Isto para não falar do enorme montante das dívidas de rendas, ainda por cima bastante baixas, às câmaras municipais (a crer no que se lê nos jornais e no que dizem os autarcas), que se vêem sempre impedidas de as cobrar ou de promover justos despejos pelo alarme social que causam.

9.

Fala-se, e bem, das “posições políticas iliberais e autoritárias”. Certo, mas elas são devidas a quê? É preciso ser claro sobre as causas dos movimentos iliberais e autoritários. Elas devem-se à natureza maléfica do ser humano ou a políticas erradas próprias do centro-esquerda e do centro-direita que nos têm governado? Não se estará a verificar uma saturação da “middle class” relativamente às políticas do bloco central? Isso não se vê no crescimento dos movimentos não partidários nas eleições autárquicas, mesmo com uma legislação inibidora? Isso não se vê no crescimento do CHEGA?  Isso não se vê na diminuição eleitoral do bloco central, hoje já pouco superior a 50% do eleitorado (54,6%), quando antes era muito superior ao valor de uma maioria qualificada? Limitar-se a apontar o dedo ao inimigo que vem aí ou que já cá está em território democrático, fazendo disso a orientação política principal (um antifascismo restaurado) para reorganizar as tropas de defesa do território democrático ameaçado, tem como resultado cobrir os erros e continuar a persistir neles, contribuindo, deste modo, para o crescimento desses movimentos ou partidos. Um exemplo recente: não será (animados pela onda identitária) fustigando-nos com o esclavagismo pretérito (abolido há séculos, embora haja sempre a possibilidade de reinventar um neoesclavagismo fundamentado numa qualquer “epistemologia do sul”), e seguindo as pisadas daquela activista brasileira, uma tal Bia Ferreira, que atribui as culpas dos actuais problemas do Brasil ao colonialismo português (“a gente paga essa conta até hoje”, no Expresso, em 2022), que reconheceremos as culpas e os erros que são mais próximos no tempo e as causas efectivas do crescimento destes movimentos iliberais e autoritários. Bem pelo contrário, é deitar gasolina no fogo, como já se está a ver.

10.

O documento diz que é preciso “fazer renascer a ética na política”. E, acrescento eu, sobretudo a ética pública. Não poderia estar mais de acordo. Por isso, incentivo daqui o novo líder a começar pelo próprio partido, afastando (no âmbito dos seus poderes estatutários, claro) dos cargos dirigentes e de candidaturas institucionais os muitos que por lá andam simplesmente para tratar da vidinha (não servindo, mas servindo-se, para usar as palavras de António José Seguro), borrifando-se para a ética pública e para o interesse geral. Uma sugestão: começar logo pelos que andam por lá há décadas sem que se lhes conheça obra digna de registo (não será muito difícil identificá-los). Ou outros de quem se lhes não conhece profissão: “não tens profissão? Vai aprender a fazer alguma coisa na vida e, depois, aparece” (também não será difícil identificá-los). Alguns até já se dão ao luxo de escolher os cargos mais seguros e estáveis, não querendo arriscar outros desafios menos seguros. Outros, ainda, fazem-se eleger em legislativas, para, dois meses depois, abandonarem os mandatos que lhes foram confiados para se candidatarem a eleições mais interessantes e melhor remuneradas (as europeias, por exemplo). Ou os que se habituam a ter motorista e saltitam de câmara em câmara quando já não se podem candidatar a uma delas. Ou a incompreensível acumulação de cargos numa só pessoa como se num grande partido como o PS não houvesse pessoas qualificadas para além dos mesmos de sempre. São exemplos que quem conhece a realidade partidária certamente já pôde testemunhar. Portanto, sim, “fazer renascer a ética na política” e começar por algum lado.

11.

Para “este trabalho exigente”, diz-se no documento, “o PS tem de abrir as suas portas”. Claro, a começar logo por dentro, pelas portas do interior do edifício, em relação aos próprios militantes, em vez de manter uma insuportável endogamia que afasta o partido da sociedade civil e até dos seus próprios militantes e simpatizantes. Bem sei que há a chamada lei de ferro das oligarquias partidárias, de que falava o Robert Michels, mas isso pode ser superado. Assim haja vontade e imaginação organizativa.

12.

Não entendi bem a seguinte formulação do documento sobre o Estado: “A organização do Estado, seja na Administração Central, inclusive desconcentrada, seja na Administração Local, passando pelos mecanismos regionais e supramunicipais, carece de legitimação democrática” – que, depois, introduz a necessidade de uma reforma da lei eleitoral, em particular da lei eleitoral autárquica. Na verdade, quer nas CCDRs quer nas entidades intermunicipais temos processos electivos (colégios eleitorais: um, para a eleição das Assembleias das CIMs; o outro, para a eleição do Presidente e do Vice-Presidente). Portanto, não é bem (num país tão pequeno como o nosso) de uma questão de legitimidade que se trata, mas do bom funcionamento quer do governo central e das suas estruturas quer do governo local, incluindo, neste caso, também o reforço das competências das assembleias municipais e a formação de executivos homogéneos e, eventualmente, o aperfeiçoamento das CIMs. Mesmo assim, congratulo-me pela proposta, que, de resto, eu próprio aqui fiz e fundamentei,  recentemente, no meu artigo “Três Propostas – Para a Legislatura” (link: https://joaodealmeidasantos.com/2025/05/28/artigo-205/);  como, de resto, e ainda que a formulação seja menos explícita, me congratulo pela exploração da revisão constitucional de 1997 com vista a uma aproximação entre eleitos e eleitores, certamente através da criação de círculos eleitorais uninominais, proposta que no meu artigo acima referido também avancei e fundamentei. Esta última mudança teria profundos efeitos a montante, sobre os próprios partidos e sobre a selecção dos candidatos a deputados e, em geral, dos dirigentes políticos.

13.

Já agora, e independentemente da posição sobre a reforma constitucional (que não é um bicho de sete cabeças, pois já esteve em apreciação recentemente, tendo sido interrompida por mais uma convocação de eleições), por que razão não se põe a hipótese da eleição do PR por um colégio eleitoral (e esta foi a terceira proposta que fiz) mais amplo do que a Assembleia da República (poderia ser constituído também pelos presidentes das CCDRs, das comunidades intermunicipais – da assembleia e do executivo -, pelos presidentes dos principais órgãos superiores do Estado – supremo tribunal, tribunal constitucional, tribunal de contas -, pelos presidentes dos governos regionais e das assembleias regionais, etc. etc.). Assim se evitaria esta longa e quase insuportável procissão presidencial e garantiria uma escolha que não espelharia necessariamente a composição política do parlamento e que podia ser consensualizada sobre uma personalidade responsável, respeitável e democrática para um cargo cujas funções são exíguas, desde que não se desate (como fez o actual PR) a convocar eleições por dá cá aquela palha ou, pior ainda, para que o seu partido de origem alcance rapidamente o poder (e alcançou).

14.

Já quanto ao Pacto Portugal Futuro para 2050, talvez fosse mais aconselhável fazer, sim, um diagnóstico sobre o que já está a acontecer (e é muito), em vez de olhar para tão longe, até porque a velocidade a que hoje se processa a política e a história é muito rápida, tornando obsoletos projectos políticos excessivamente dilatados no tempo. E isso acontecerá sobretudo se estes projectos passarem inadvertidamente sobre as profundas mudanças que já estão a ocorrer. É olhar para o que tem acontecido nos USA pós-Obama (faz lembrar a maioria absoluta de Costa e a catástrofe que se lhe seguiu) ou para a evolução rapidíssima da inteligência artificial. Do que se precisa é de uma autêntica cartografia cognitiva (Jameson), de uma declaração de princípios com ela alinhada e de uma forma organizacional do partido eficiente, democrática, selectiva e participada, que seja mais, muito mais, de que uma mera marca (ainda que prestigiada) para fins eleitorais e do que deles pode resultar (financiamento e cargos no vasto aparelho de Estado). Um partido de esquerda tem de ser um organismo vivo. E não uma máquina intermitente, exclusivamente em função dos ciclos eleitorais (internos e externos).

15.

Contas certas? Sim, desde que sejam respeitadas duas condições: a) que não se transforme os contabilistas de serviço em ideólogos do PS; b) que não impliquem um investimento público inferior ao do tempo em que a troika esteve por cá, como, de facto, aconteceu (segundo o Pordata: 2011-2015= 2,50% do PIB; 2016-2023=2,12%; mas se compararmos com os valores de 2016-2019 a diferença é muito maior: 1,77% para 2,50%). Portugal, em 2015, estava, em investimento público em percentagem do PIB, em 25.º lugar na UE, passando, em 2023, para 26.º lugar (em 2001 era o 2.º da UE, com 5% do PIB, e em 2009 o 17.º, com 4,1% do PIB). É nisto que penso quando ouço falar de contas certas e de investimento público.

16.

Ainda sobre o Pacto Portugal Futuro. Uma longa conversa filosófica politicamente correcta, mas que nada de concreto diz, excepto (e é muito relevante) que quer o SNS, a Segurança Social pública, investimento na escola pública e, em geral, as políticas que todos sabem que o PS defende. Mas o que verdadeiramente interessa é dizer quais as causas e as soluções concretas para resolver as dificuldades nos sectores nevrálgicos do Estado. Como no tratamento das doenças e nos respectivos medicamentos, o que é preciso é descobrir o princípio activo que resolve a maleita, neste caso, os problemas fundamentais do país (que não são muitos, embora sejam difíceis: saúde, habitação, eficiência do Estado, carga fiscal, desenvolvimento e emprego). A política lá estaria para conseguir os consensos necessários para adoptar boas soluções.

17.

Ainda sobre a habitação: o PS quer que “no prazo de dez anos, todas as famílias tenham acesso a uma habitação condigna, fazendo conjugar a oferta de mercado com a oferta municipal de habitação e os incentivos à construção de casas a preços acessíveis”. Como? O que é que isso – “todas as famílias tenham acesso a uma habitação digna” – quer dizer, para além de ser a formulação de um justo princípio humanista? Como conseguirá o PS atingir este objectivo? As dúvidas sobre o princípio activo são imensas, para quem pense um pouco no assunto. Mas é assunto relevante e está no topo da agenda. Por isso, é preciso dizer qualquer coisa e a tendência é dizer que o Estado resolverá o problema, seja qual for a solução. Não, o Estado ajuda, e pode ajudar muito (por exemplo, desonerando fiscalmente), mas a solução residirá na sociedade civil, na esfera privada. A tentação do Estado-Caritas é sempre grande, fácil e até generosa, mas este é um problema (escassez e preço das rendas e das casas para compra) que, como já disse, só a expansão do mercado de arrendamento pode efectivamente resolver. Estou profundamente convencido disso.

18.

Já sobre a justiça, o que de essencial é dito é que é necessário “um salto qualitativo”.  Também acho que sim, a começar pela clarificação dos poderes do Ministério Público (que não é feita) e a tudo fazer para acelerar a lentíssima máquina da justiça. Mas confesso que, com a timidez reinante na classe política, as minhas esperanças são poucas ou nenhumas. A famosa separação dos poderes lá está para funcionar como bloqueador automático, ainda que seja claro que poderes separados não são, por isso, poderes iguais. O poder judicial não ocupa o mesmo patamar na hierarquia dos poderes que o poder legislativo. Só este exprime directamente a soberania popular, tendo mandato explícito para isso.

19.

Sobre as cinco áreas (política externa e europeia, defesa, segurança, justiça e organização do Estado), nada é dito que mereça aqui ser anotado (para além do que já referi, sobre o Estado e sobre a justiça), mas poderia ser dito que nestas matérias o PS está disposto a negociar e a ser proactivo, ao mesmo tempo que reafirma o seu alinhamento com a União Europeia, tendo bem consciência de que o nosso é um pequeno e periférico país, com as limitações daí decorrentes. O reconhecimento das próprias limitações é sempre a melhor maneira de avançar para novos patamares.

20.

 “O PS reverá a sua organização interna, com vista a promover um nível de reflexão, coordenação e decisão à escala intermunicipal. O PS investirá na formação contínua dos seus militantes e quadros, com vista a garantir um nível cada vez mais elevado do debate interno em todas as suas estruturas”. Isto é bom para um partido que sempre deu pouca (ou mesmo nenhuma) importância à escala intermunicipal, de que as CIMs são hoje o rosto institucional, talvez por, erradamente, ter sempre olhado para a sua origem como algo “pecaminoso” (a famosa Lei Relvas). A verdade é que o território nacional está hoje estruturado, à escala supramunicipal, em 23 CIMs (não considerando as áreas metropolitanas). Fui sete anos presidente da Assembleia de uma CIM (“Comurbeiras”) e pude, lamentavelmente, constatar isso. E, por isso mesmo, considero esta uma boa notícia. Se o actual modelo será o melhor, isso pode ser discutido, mas é o que existe em termos supra ou intermunicipais. Que o partido se alinhe por esta realidade até se pode considerar que é somente uma consequência lógica, mas, na verdade, trata-se de uma realidade diferente da actual, a das federações distritais. Os territórios são, de facto, diferentes. Há, todavia, um problema: os círculos eleitorais continuam a coincidir com os distritos (e é só para isso que agora estes servem). O novo desenho dos círculos eleitorais uninominais poderia resolver o problema, introduzindo coerência na organização administrativa do país.

21.

Mas fala-se também de formação dos militantes e quadros. Foi para isso que acabaram, já lá vão uns anos, com o Acção Socialista (apesar de conservar o nome, não é um jornal o que actualmente existe, mas uma pobre secção informativa do seu site)? Sei bem do que falo porque fui eu que o informatizei e o relancei quando, nos anos noventa, o dirigi. Um simples dado: publicámos, no jornal, em cerca de 3 anos, cerca de 150 ensaios sobre o futuro da esquerda, escritos, sobretudo, pelos melhores intelectuais da esquerda europeia. As duas revistas que parece que ainda existem, para um número ínfimo de leitores, não são hoje mais do que a projecção de dois egos à procura de autores, não representando verdadeiramente o PS, uma política editorial robusta, regular, eficaz e consistente, à altura de um partido com a dimensão e as exigências do PS. Gabinete de Estudos? Não se fala disso e é inexistente. Fundação Res Publica, a mesma coisa. O que temos hoje é um PS sem estruturas orgânicas especializadas e eficazes capazes de o dinamizar. É um partido que vive do e para o Estado, estando reduzido a partido eleitoral, a mera marca, ainda que prestigiada. E isto é pouco para um partido que se quer de esquerda.

22.

Considero interessante a referência ao sindicalismo e às organizações da sociedade civil num partido cujo corpo orgânico se vem reduzindo drasticamente, dando lugar a esse partido eleitoral (no plano interno, que é cada vez menos competitivo, e no plano externo, para a captação de cargos e de fundos financeiros), e que, ainda por cima, recorre sistematicamente a outsourcing nos períodos eleitorais e cada vez menos às suas “forces propres”. Acresce que, em tempo de permanent campaigning, tem estado clamorosamente ausente do debate público e dos meios de comunicação de massas, por perda de influência (um ou outro que por lá anda serve mais para se promover a si próprio do que para promover o partido e o seu património ético-político e ideal). É necessário, urgente e vital revisitar o próprio conceito de partido, o que não tem sido feito.

23.

De resto, e mais uma vez, um candidato a líder de um grande partido como é o PS não perde tempo (há pouco mais de uma página, em 40) a debruçar-se sobre a organização que vai liderar e governar, num tempo que ele próprio reconhece que está a ser difícil para o partido. Já na anterior campanha para líder acontecera o mesmo, com JLC e com PNS. Não devia ser assim. Não houve tempo, dir-se-á. Mas nunca há tempo. Mesmo assim, diz-se, felizmente, do partido, que é preciso “repensar o seu modelo de organização e modo de funcionamento”, os estatutos e práticas. Sobretudo as práticas. Ou seja, parece estar reconhecido, e bem, que é absolutamente necessário mudar. Mas que não seja para que tudo fique na mesma. Que José Luís Carneiro não seja o Tancredi (de “Il Gattopardo”, de Lampedusa) do PS é o que eu mais lhe desejo. Sendo melhor do que a decadência bourbónica, não será suficiente, pois ele, Tancredi Falconeri, representa, e com o acordo do Príncipe de Salina, o verdadeiro “transformismo”: “se quisermos que fique tudo como está, é necessário que tudo mude”. Dos Bourbon aos Savoia. Mas isto não vai lá com transformismo. Será preciso muito mais, ou seja, mudança efectiva. Sabe-se o que aconteceu aos Savoia a seguir à segunda guerra mundial.

24.

Agora, sim, finalmente, uma observação sobre os deputados.  É sempre útil lembrar que, em democracia representativa, os deputados são livres, não são portadores de mandato imperativo e representam a nação, não o partido que os propôs nem o círculo eleitoral onde foram eleitos. Pelos vistos, há muita gente que não sabe isto e a própria formulação do documento é algo equívoca. A sua consciência, a do deputado, deve sempre ser convocada, e não apenas nas questões de consciência. Presume-se, naturalmente, que os deputados tenham uma robusta formação ético-política em linha com o património ideal e a mundividência política do partido. Certamente, embora  sobre isso haja dúvidas legítimas. Mas é daí que decorrerá o seu comportamento político, a sua acção, o seu inequívoco alinhamento com o respectivo grupo parlamentar. Mas é também por isso que o PS deve ter uma identidade ideal e política muito clara, para que lá dentro não proliferem visões que pouco ou nada têm a ver com o seu património, mas que evidenciam pretensões hegemónicas, e que sejam fonte de desvios para além das fronteiras daquela que é a identidade ideal do partido. Em tempos de perigosa expansão daquela que alguns designam por “síntese identitária” (Yascha Mounk, em A Armadilha Identitária, de 2023, por exemplo), mas que eu prefiro designar por “esquerda identitária dos novos direitos”, mais se justifica uma clarificação ideológica do PS. Parece ser hoje aceite que um dos alimentos preferidos da nova direita radical é precisamente esta esquerda, tendo com isso obtido fartos ganhos eleitorais, até porque na sua retórica acaba sempre, grosseira e indevidamente, mas com segura eficácia, por identificar com ela todo o centro-esquerda.

25.

O PS viveu, nos últimos dois anos, dois momentos complicados devido a acontecimentos que exigiram rápidas decisões ao mais alto nível, ou seja, a designação electiva do líder: em 2023, devido à apressada e, quanto a mim, injustificada saída de António Costa, rumo a Bruxelas; e, agora, devido à hecatombe eleitoral nas recentes eleições legislativas e à saída de Pedro Nuno Santos, culpado de não se ter abstido na moção de confiança, fazendo, exacta e ingenuamente, o que o adversário queria. Na primeira, houve disputa entre dois candidatos à liderança; na segunda, há um só candidato. Dois momentos fulcrais em cerca de ano e meio, com a passagem de uma maioria absoluta para uma inglória terceira posição, em mandatos no parlamento. Algo deveras estranho e que exige uma reflexão muito séria, não só porque se trata de um grande partido democrático e que ocupa um espaço político virtuoso, mas também porque se trata do funcionamento da nossa própria democracia. É algo muito grave, pela rapidez e pelo modo como tudo aconteceu, e já não é possível disfarçar o problema nem atirar, comodamente, responsabilidades para o que mais convier. A verdade é que a direita tem hoje cerca de 70% dos mandatos parlamentares e o PS já é a terceira força política, com menos dois deputados do que o CHEGA (ainda que tenha mais uns votos, cerca de quatro mil e trezentos). Não é algo que possa ser iludido ou contornado, porque, se assim for, o futuro ficará entregue por muito tempo à direita e aos seus próceres, alguns bem conhecidos pelas negociatas que os têm feito engordar. Outros, mais humildes, enquadrados noutro hemisfério político, não se incomodarão por aí além desde que tenham o seu lugar garantido no parlamento ou numa câmara municipal. O resultado é que será o país a perder. E por isso não é saudável ficarmos sentados comodamente num sofá a observar um espectáculo que, afinal, somos todos nós que pagamos, com os impostos. Embora cada vez mais pareça espectáculo, a verdade é que a política não é realmente um espectáculo, pois não só não a financiamos com uns míseros bilhetes, mas sim com uma boa parte do nosso rendimento, como é ela que determina efectivamente as condições em que ocorre a nossa vida. E esta também é a razão que justifica este longo texto de considerações sobre a moção de José Luís Carneiro, o futuro líder de um partido que é também o meu. JAS@06.2025

UMA NOTA

No passado domingo António José Seguro apresentou nas Caldas da Rainha a sua candidatura a Presidente da República, depois de ver uma boa parte do PS, ao nível dos militantes, declarar-lhe apoio. Esteve, depois de ter sido líder do PS durante três anos (2011-2014), longe da política, mas entendeu livremente candidatar-se a um cargo suprapartidário, juntando-se, assim, a Luís Marques Mendes e a Gouveia e Melo. Fica, assim, por agora (e já devia chegar), coberta a área política do centro-esquerda, do centro e do centro-direita. Mas se, por um lado, se confirmar o que dizem as sondagens e, por outro, se se confirmar uma certa saturação política relativa aos partidos do bloco central (bem visível no crescimento dos movimentos não partidários e do CHEGA), o mais certo é que venha a ser Gouveia e Melo o vencedor das eleições presidenciais. Mesmo assim, desejo os maiores sucessos eleitorais a António José Seguro.

Poesia-Pintura

CONFIDÊNCIAS DE POETA

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Auto-Retrato”
JAS 2025
Original de minha autoria
Junho de 2025

“Auto-Retrato”. JAS 2025

POEMA – “CONFIDÊNCIAS DE POETA”

AGORA POSSO 
Dizer-to,
Sou poeta
De corpo inteiro
(E que feliz
Eu me sinto!),
Ganhei chama
Pra te cantar
De alma cheia
(Sempre que,
Em mim,
Te pressinto),
Pra te chamar
Ao poema
E contigo
Reviver
Uma bela
Epopeia.

AGORA POSSO
Caminhar
Na rua
Do desencontro
Sem medo
De te perder
Numa esquina
Proibida,
Agora posso
Seguir
O que de belo
Encontrar
Nas voltas
Da tua vida...

E TAMBÉM POSSO
Desenhar-te
O perfil
Para te mostrar
Ao mundo,
Ser o rei
Da narrativa
Para nunca
Te perder,
Nem que seja
Um segundo,
Pois tenho
A alma cativa
Lá no fundo
Do meu ser...
.............
Lá no fundo.

SOU ARQUITECTO
Da minha vida,
Feiticeiro
De magias
Inventadas,
Oráculo do meu
Futuro
E poeta
Apaixonado,
Sou um livre
Sonhador,
Na palavra
E na cor
Por ti sempre
Fascinado.

AGORA QUE SOU
Poeta
De corpo inteiro,
Canto tudo
O que eu amo,
No presente
E no passado,
Momentos
De criação
Que o poema
Celebra
Ao trazer-te
Pela mão
Pra voar...
...........
A ti sempre
Abraçado.

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XVI)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

“VOAR”- JAS 2023

RICARDO REIS

Começo por reproduzir parte de um poema de Ricardo Reis (de 1916), referido num comentário de uma Amiga a propósito de um poema meu (“As Palavras escondidas nos teus Riscos”):

“Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente”
1.

Sim, a realidade é sempre mais ou menos do que o nosso desejo e a nossa vontade.  Não há identificação: umas vezes ela é mais, outras é menos. A vontade é o mecanismo que acciona o desejo. Então, a solução é recriá-la à medida da nossa fantasia, como expressão do nosso desejo e da nossa vontade. Só assim pode haver identidade. De certo modo, “esse est percipi”, como dizia o bispo Berkeley. Vemos o mundo à nossa dimensão e de acordo com o nosso desejo. Quanto ao resto, há sempre diferença, porque, no plano ontológico, a realidade não se confunde com a percepção. Mas é precisamente no intervalo entre nós e a realidade que cresce a poética fantasia. Nessa diferença. É nesse intervalo que o poeta se coloca e desenha a realidade à sua própria medida, embora a sua medida, enquanto tal, o transcenda. Um poema é sempre maior do que o poeta. Mas, ao transcender o real, num poema, o poeta transcende-se a si próprio. Como se a fantasia fosse preencher esta vala profunda que o separa de um mundo que, justamente, não é feito à sua medida. Uma ponte sobre um território vazio (entre si e o mundo) que o leva à outra margem. Por isso, a poesia não descreve o mundo – acrescenta-lhe vida, que leva através dessa ponte. O poeta caminha nela em direcção à outra margem como original construtor de sentido e de beleza. Esta ponte é a rua do poeta.

2.

É esse o seu destino. O Pessoa transcendeu-se a si próprio quando fugiu de si e encarnou outras personagens que não estavam previstas à nascença. Deu forma à sua vontade e à sua identidade através da fantasia. E ofereceu mais realidade ao mundo. A sua, que, no final, já  era mais do que sua. Foi assim que ele regou as suas plantas, que amou as suas rosas e sentiu os perfumes dos jardins, que se ofereceu à vida e lhe devolveu os seus ecos, por mais diversos e silenciosos que fossem. Uma fonte sempre a brotar. O resto eram sombras de árvores alheias. Pois eram, até porque árvores alheias foi o que sempre houve por aí, sobretudo com a condição de simulacros em neblina, onde todos os gatos são pardos.

3.

Somos iguais a nós próprios? Sim, mas na medida em que nós somos a árvore que dá a nossa própria sombra e onde nos protegemos do excesso de sol, que abrasa. Iguais a nós próprios, verdadeiramente? Tão iguais que até nos vamos reconstruindo com identidades diferentes, à medida que o sol da nossa vida se vai deslocando da aurora para o entardecer, mas sem deixarmos de ser quem somos e o que somos. Ou seja, somos aquilo que, afinal, formos fazendo de nós. Diz ele, o Pessoa, que o quiseram encarcerar em si logo que nasceu. Sim, bem tentaram, mas ele fugiu. Sem sair dele, diga-se. Mas fugiu mesmo, desdobrando-se nas suas próprias sombras. Passou a ser do tamanho e da forma da sua própria fantasia. Deixou de ser sombra de árvore alheia, sobretudo quando, pela primeira vez, deu conta de si. Então, sempre que o mundo se apresentava menor do que a sua vontade de ser, ele reconstruía-o à sua medida, à medida da sua imaginação. Aumentava-o. É bem verdade o que diz o William Hazlitt: “a intensidade dos sentimentos compensa a desproporção dos objectos”; ou ainda: “a poesia é em todas as suas formas a língua da imaginação e das paixões, da fantasia e da vontade” (Do Prazer de Odiar e Outros Ensaios, Lisboa, Edições 70, 2025, pp. 103 e 110). É essa intensidade dos sentimentos, universo em que se inscreve a poesia, que permite agigantar o mundo, torná-lo maior, compensar a sua pequenez. Para isso, há a imaginação, a fantasia e a vontade. É esta a grandeza da arte, tornar o mundo maior e mais belo do que é. Gherardo, “maintenant tu es plus beau que toi-même”. É também por isso que o Baudelaire compara o poeta ao albatroz, essa ave gigante:

Le Poète est semblable 
au prince des nuées /
Qui hante la tempête 
et se rit de l’archer;/
Exilé sur le sol 
au milieu des huées,/ 
Ses ailes de géant 
l’empêchent de marcher.

Príncipe das nuvens, as suas asas gigantes impedem-no de caminhar… a não ser lá no alto sobre a imensidão dos oceanos. Assim é o poeta.

4.

Diz Ricardo Reis que grande e nobre é “viver simplesmente”. Pois é, se a fantasia o permitir, abrindo imensas clareiras que vão dar a lado nenhum (Holzwege). Ser poeta é isso – habitar uma floresta onde o eco do silêncio é a melodia que se ouve por entre o bulício das folhagens sopradas pelo vento. É andar lá sem destino aparente. É dar simplesmente voz à vida vivida com a fantasia, inspirado nos sendeiros da paisagem existencial por onde circulamos, mas onde domina o silêncio e a solidão. O poeta vive nas clareiras da floresta da vida.

ABRIGO QUENTE

O abrigo quente da poesia situa-se sempre no centro dos poemas. É lá que o poeta se refugia das tempestades que o apanham a meio da caminhada da vida. Fugiu com ela, com a musa? Não, mas seguramente quis isso quando a encontrou lá, na rua da sua vida, encantando-o. E, nesse momento, ele estremeceu. Uma doce e criativa tempestade. Quis logo levá-la dali para a ilha da utopia. Quem não quereria isso com tão arrebatadora beleza? É interessante o significado que tem na minha terra a expressão “fugiu com ela”. Quando a pressão familiar e/ou social, em comunidades fechadas, impedia um amor, os amantes “fugiam” para poderem acasalar noutro lugar qualquer. Mas, às vezes, o amor fracassava, cedia perante as imposições. Muitas vezes, era mesmo fuga territorial, fuga da cidade; outras, era fuga para o “abrigo quente da poesia”. Um dia, o poeta viu-a, da janela, passar na rua do seu jardim e reconheceu-lhe a beleza inatingível, impossível. Ela não desapareceu, engolida pela multidão, como a mulher do Baudelaire de “Les Fleurs du Mal” (“À une Passante”). Vendo-a passar na rua, regularmente, ele sentia “Un éclair…”, mas quando, lá ao fundo, ela dobrava a esquina, também acontecia “la nuit!”. Sentia sempre isso. E isto acontecia. E repetia-se quase diariamente. E dizia de si para si: “com ela, sim, eu fugia”.  Mas nunca fugiu. As musas não o permitem.

Este poema a que me refiro inspira-se nesse outro do Baudelaire. E dá-lhe solução e continuidade: o poema é o sonho (a luz) que se segue à noite. É por isso que ele (no sonho, no poema) se debruça sempre nos gradeamentos do seu jardim e olha a janela circunstante como se ela lá esteja por detrás das cortinas em diálogo silencioso consigo (na pintura “O Jardim e a Janela”, para o Poema “As Palavras escondidas nos teus Riscos”). Assim, a noite escura nunca chegará. Mas, se chegar, sempre haverá o sonho, uma luz na noite. Do jardim para a janela fronteiriça – um diálogo permanente entre dois seres que apenas se pressentem. No dizer dele, porque até pode ser apenas uma ilusão – imaginar no lado de lá o que apenas lhe subsiste na memória.  Mas isso pouco importa se a ilusão der origem ao canto e a uma doce melancolia.

ASAS

A poesia é a arte que melhor representa a liberdade. Porque é um mundo onde pomos asas e voamos. Para Neverland. Como Sininho e Peter Pan. Essas asas que não voam nas ruas que são proibidas ou porque são demasiado estreitas para permitirem levantar voo. Lembro-me sempre do Baudelaire e do poema sobre o Albatroz. Asas grandes demais para se poder mover em terra. E muito menos em ruas proibidas. Só sobre a imensidão dos oceanos. Assim são os poetas. Têm asas grandes demais para se poderem mover nas vielas estreitas da vida. E é por isso que voam mais alto. Voam sempre. Sobre os mares ou sobre a terra. Mas sempre lá bem alto. Afinal, eles não se ajeitam com a vida, com as rudes leis da vida, com os estreitos sendeiros, com a aspereza dos corpos sólidos esparsos nas ruas e nas praças. O poeta gosta de voar na montanha e sobre os vales ou sobre o oceano. A poesia foi criada para levitar, em homenagem à leveza. O passo/momento de dança de que o poeta mais gosta é o “ballon”.

LIBERDADE

A liberdade é um processo que alimentamos interiormente ao longo da nossa vida. Mas é um estado vivido em tensão. Ela é sobretudo interior, mas também precisa de um ambiente externo para melhor se manifestar. Muitas vezes encontramo-nos num processo de confronto entre a liberdade interior e a coacção externa, que até pode ser sistémica. Ou simplesmente psicológica ou afectiva. Interpessoal. Muros que se apresentam inultrapassáveis. Ela é, pois, sempre uma conquista sobre as limitações do mundo exterior ou do mundo interior, pulsional, magmático. O voo já é apolíneo. A poesia é uma das mais belas expressões da liberdade – metaboliza as pulsões e dá-lhes forma (semântica, plástica e musical) de acordo com a sua sensibilidade e os padrões da beleza. Como a música ou a pintura.

A ALDEIA E A MEMÓRIA

Não é por acaso que muitos de nós passam parte dos seus dias nas suas aldeias, revisitando o tempo de vida, o passado, mas também o futuro, como projecção do passado que deixou saudades: do que aconteceu ou do que não aconteceu. Deixa sempre. Mas também é privilégio de alguns que sempre viajaram nesse tempo paralelo das palavras em busca do que lhes corria nas veias como tempo interior, às vezes como tempo inacabado, mas desejado. Persistentemente desejado. A poesia é a projecção e a fixação desse tempo em moldura estética e intemporal. Isto vale para o tempo de juventude ou mesmo de infância, que se pode reconstruir no lugar onde tudo começou, com palavras ou com riscos e cores. Na aldeia. Isso é (re)viver uma segunda vida. É uma curta-metragem nessa mesa de montagem que é a memória. Curtas-metragens poéticas. Ir ao cinema ver um filme de que nós próprios somos autores, realizadores e actores. A poesia.

A PORTA

A porta da Casa-Mãe é uma porta que é também uma janela. Dela saí para o mundo, conservando-a sempre comigo. Por isso foi sempre um marco identitário. Ela é para mim uma vitamina existencial porque nela se conjugam vários elementos fundamentais: a montanha (em frente), um telhado (para onde dá a porta, que lhe é sobranceira), a saída para o jardim (para a porta principal de entrada), o seu granito amarelo (com cristais), sendo também a fronteira entre a Casa-Mãe e o Mundo, que começa naquelas escadas e que nunca mais tem fim. Como não havia eu de a cantar? Tinha de ser. E no domingo em que entreguei a minha bela pintura sobre a aldeia (aqui publicada), como se ela resumisse o mundo tal como ele se avista da minha janela, mais razões haveria para o fazer. E assim foi.

“Famalicão da Serra”. JAS 2024

ARCO-ÍRIS

Finalmente. A poesia é voo lá mais para o alto da fantasia onde se respira melhor e de onde podemos olhar para o vale da vida sentados num arco-íris (que sempre os há na atmosfera poética). Vemos, lá do alto, o mundo em refracção, através das gotículas finíssimas que formam o arco-íris. Assim, a poesia é como um caleidoscópio. JAS@06-2025

Poesia-Pintura

AGUARELA DE PALAVRAS

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “O Voo da Magnólia”
JAS 2021
(91x115, em papel de algodão,
310gr, e verniz Hahnemuehle,
Artglass AR70, mold. madeira)
Original de minha autoria.
Junho de 2025

“O Voo da Magnólia”. JAS 2021

POEMA – “AGUARELA DE PALAVRAS”

EU CANTO
Esses teus olhos,
Sua luz
E sua cor,
Translúcida
Como o mel;
O pintor,
Que é poeta,
Desenhou-os
Com um secreto
Pincel
Que era
(Como tu sabes)
Uma modesta
Caneta.

PALAVRAS
Leva-as
O vento,
Mas se beijam
Os teus olhos,
Sua cor
Imaculada,
Iluminam
O teu rosto
Como o sol
A madrugada.

AGUARELA
De palavras,
Galeria
De um só rosto,
O pintor
Que é poeta
Deixou
Nas nuvens
Do céu
Uma mensagem
Discreta
Desenhada
A teu gosto...

TUA BOCA
É carmesim
Ao rubro
Desta paixão,
Teus olhos
São energia
Em intensa
Combustão,
Bem cá dentro,
Em sintonia,
No berço
Da emoção,
Na raiz
Do meu poema
E da pintura
Do voo
Até à tua
Janela,
Eco
Do teu silêncio
Devolvido
Em palavras
Com as cores
De uma aguarela”.