Artigo

PENSAR O FUTURO

O PS e o Conselho Estratégico

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

1.

No dia 24 de Julho fui surpreendido por um artigo da jornalista São José Almeida, no “Público”, que dava conta da criação pelo PS de um Conselho Estratégico (CE) composto por 75 personalidades (mas ontem, no momento da instalação, já eram 94) e definido como “órgão consultivo e propositivo” que tem como missão “criar pensamento político estratégico”, “contribuir para o planeamento estratégico da acção política do partido com horizonte temporal até 2050”, dotando o PS “de uma capacidade prospectiva e multidisciplinar capaz de antecipar tendências, propor soluções e dialogar com os sectores mais dinâmicos da sociedade”, em suma, “um espaço de ideias. Um laboratório de futuro. Um ponto de encontro entre a política e o conhecimento”. Pronto, agora é que é, disse para mim. Do Conselho nascerá a luz. Até aqui foi só escuridão? Claro que não. Mas será esta a solução? Tenho fundadas dúvidas.

2.

Infelizmente, não conheço o documento e também não foi publicado até hoje pela newsletter do PS a que dão o nome que antes era o do jornal do partido, “Acção Socialista”, agora reduzido a uma pobre secção do site do partido. Mas, sobre este assunto, pude ler, no dia seguinte, na newsletter, um pequeno artigo que resumia o assunto, abordado brevemente na entrevista televisiva que o secretário-geral, José Luís Carneiro, deu à SIC Notícias nesse mesmo dia 24 de Julho. Entretanto, silêncio sepulcral, só interrompido, primeiro, pelo “Expresso”, em artigo de última página, e, depois, pelo “Público” de ontem (29.07), da autoria de Ana Sá Lopes, a dar conta de mais uns nomes que iriam integrar o Conselho.  A crer no que a jornalista São José Almeida diz no primeiro artigo do “Público”, tratar-se-á certamente de uma iniciativa que irá resolver o que até aqui não foi resolvido pelos actuais órgãos do partido. Um verdadeiro e numeroso Conselho de Sábios escolhido para, qual deus ex machina, pôr ordem no palco onde aparentemente reina, ou reinava, a desordem. Coisa própria de uma tragédia grega.

3.

Sendo militante do PS, no activo, fui informado, não pelo partido, não pelos seus canais de comunicação, mas pelo jornal “Público”, de uma importante decisão do secretário-geral acerca da orgânica do partido de que faço parte. Independentemente de se tratar de uma decisão de legalidade estatutária muito duvidosa, talvez seja uma decisão um pouco estranha, até porque parece indiciar que se quer reformar o partido começando pelo telhado ou, pior ainda, por justapor um novo órgão aos três que já existem. Um imenso e heteróclido chapéu reformador que ditará os caminhos do nosso futuro colectivo. Mas, vistos os nomes que o integram, o que mais apetece dizer é “Não, obrigado!”. Mesmo assim, julgo que mais importante do que isso, e apesar de a iniciativa dizer muito acerca do funcionamento interno do partido e dos  seus critérios de escolha, é o significado da criação de mais um órgão, nos termos em que isso foi feito e nas funções que lhe estão atribuídas. A instalação ocorreu ontem, na sede nacional do PS, tendo sido divulgado o nome do coordenador do CE, Augusto Santos Silva, e uma “foto de família”. Santos Silva é um dos mais longevos dirigentes do PS, com cerca de 26 anos ininterruptos de altas funções no governo, no partido e na AR, sendo legítimo perguntar se, com um curriculum destes, é a personalidade mais adequada para presidir a um órgão que pretende promover a mudança e a renovação. Sinceramente, eu não estou convencido disso, tal como, aliás, e olhando para a foto de família, não me parece ser realístico falar de renovação com tantas figuras que já só representam passado, muitas vezes de valia discutível.

4.

Vou directo ao assunto. E começo por verificar que, com este novo órgão, o PS passa a ter mais de 500 membros nos órgãos nacionais do partido: Comissão Nacional, Comissão Política Nacional, Secretariado e, agora, Conselho Estratégico. O conjunto dos anteriores órgãos representava mais de 400 pessoas, das quais, em diferentes posições, dependia a definição, a aprovação e a execução da orientação política global do PS. Órgãos que, agora, e aparentemente, passam a ser meros legitimadores e executores de orientações que, pelos vistos, terão origem neste estranho órgão. As questões que poderemos pôr são, entre tantas outras, as seguintes: Não eram suficientes os três órgãos nacionais para formular, desenvolver e executar a acção política do PS? Este novo órgão, nos termos em que parece ter sido gizado, não vem confiscar competências aos legítimos órgãos já existentes? Os órgãos já existentes não tinham no seu interior personalidades dotadas de capacidade intelectual e política para levar o partido rumo a um futuro sólido? A reorganização do partido não acaba, assim, por se afunilar num órgão de legitimidade estatutariamente duvidosa? Um novo órgão com 75 (94 ou até mais) pessoas será a estrutura adequada para uma renovação estrutural do partido? Que é feito do Gabinete de Estudos do PS? Seguiu este, tal como as Fundações do partido, o mesmo destino que teve o jornal “Acção Socialista” (de que fui director executivo durante vários anos, tendo sido eu que o informatizei) e que agora vejo reduzido a pobre folha de informação digital que nem sequer está em condições de informar acerca deste novo órgão, delegando a informação a um jornal que não é do partido? Não só o órgão é estranho como mais estranha ainda é a sua génese e a falta de informação interna acerca dele e das razões que levaram à sua formação. 

5.

Confesso que a criação deste órgão me parece totalmente inadequada, não só porque indicia, de forma imprópria, irrelevância e inutilidade dos restantes órgãos, dando ideia de que estes só existem para fazer número e nada mais, mas também porque uma estrutura deste tipo não é, de certeza, funcional, ágil e coerente para levar por diante um processo sólido de renovação do partido em todas as suas frentes. Basta olhar para os nomes que o integram. O tempo o dirá, mas a mim parece que esta é uma iniciativa que visa simplesmente dar ideia de que o partido está em condições de convocar a sua experiência passada (com risco de habituação – “assuefazione” é a palavra italiana – e de produção nula de efeitos) e de se abrir à sociedade civil, nada mais sendo do que mera retórica comunicacional e agregação corporativa (por justaposição) de personalidades em torno do actual secretário-geral. Uma orientação que parece ser apenas de natureza instrumental, mas que poderá vir a revelar-se como contraproducente, até mesmo em relação ao secretário-geral. Alguns dos nomes que o integram soam a “entrismo”, a célebre técnica de pendor trotskista que visava a conquista do poder. Não sei, mas a composição deste órgão parece-me mais uma “ammucchiata”, como dizem os italianos, do que uma estrutura capaz de conceber uma reforma coerente e credível. Pelo contrário, olhando para a composição (e para o número), parece tratar-se de mais de uma lógica de natureza orgânica e corporativa do que da lógica própria da renovação e da inovação.

6.

Na verdade, do que o PS mais precisa é de uma reorganização interna eficaz e representativa, logo a começar pelo método de selecção da sua classe dirigente e dos seus candidatos a funções institucionais de origem electiva aos níveis local, regional e nacional. Tanto no plano interno como no plano externo. Para isso, seria necessário dotar o partido de mecanismos eficazes em condições de promover internamente a emergência de novos protagonistas, revitalizando a dialéctica interna, e de tudo fazer para travar a tendência galopante das candidaturas únicas (e também a saída para candidaturas independentes), que, pelo que sei, está a proliferar, evitando uma progressiva endogamia que só pode levar ao desastre. Trata-se de promover a democracia interna através de mecanismos que contrastem eficazmente o controlo orgânico do partido por grupos organizados que têm como único fim “tratar da vidinha” através da política, a caminho de uma imensa federação de interesses pessoais corporativamente organizados. Mas também deverá ser promovido um trabalho intelectual intenso orientado para o futuro, visando a compreensão das novas dinâmicas da sociedade civil e das novas configurações da cidadania, que há muito está a mudar de identidade, em grande parte devido às novas tecnologias e à intensificação da mobilidade. Do que não precisa é de uma câmara corporativa que mais pareça um palco de vaidades e de sobrevivência de personagens que pouco têm a acrescentar ao que fizeram no passado, quando esse passado teve alguma coisa digna de ser relembrada.

7.

O modo como esta iniciativa nasceu diz muito sobre a sua consistência. O partido não foi informado, ouvido e mobilizado para que dessa mobilização resultasse algo consistente. Bem pelo contrário, a iniciativa foi ocultada ao partido, tendo sido desvelada através de informação externa e insuficiente. O partido foi confrontado com a decisão de lhe ser imposto mais um órgão que apenas resultou de um exercício de vontade individual, neste caso, do seu secretário-geral (ou de quem por ele o gizou e organizou). O que parece indiciar, que me perdoe José Luís Carneiro, uma gestão pouco cuidada do processo de renovação do partido. Uma decisão que inverte o processo de mobilização dos militantes para uma reorganização interna absolutamente necessária, correndo mesmo o risco de a iniciativa gerar indignação, afastamento ou mesmo revolta dos militantes, que se sentirão cada vez mais como mera massa de manobra. Na verdade, a primeira iniciativa no processo de renovação do partido deveria  consistir na promoção de um rigoroso diagnóstico sobre a saúde da democracia interna do partido. Mas não. O processo inicia-se com uma agregação, por justaposição, de um novo órgão de 75 personalidades (ou mais), algumas das quais talvez pouco possam contribuir para a mudança necessária. Estou convencido de que, com esta iniciativa, estamos muito longe da lógica que motivou os “Estados Gerais” de António Guterres e que haveria de mobilizar fortemente o partido e amplos sectores da sociedade civil, levando o PS ao governo do país, depois de dez anos na oposição.

8.

O que está em causa é a própria ideia de mudança, quando, para a promover, se recorre, no essencial, ao mesmo passado que contribuiu para o actual estado de facto e a outras escolhas com base em critérios cuja lógica se desconhece, ao contrário do processo que, bem ou mal, levou à formação dos actuais órgãos nacionais do partido. Não se trata de coisa de somenos acrescentar um órgão de 75 ou mais (94, no momento) membros aos órgãos já existentes. E, por isso, a “emenda” parece ser pior do que o “soneto”, pois o resultado é a desqualificação dos órgãos existentes sem que se alcance uma eficaz compensação alternativa. Bem pelo contrário. Nem sequer parece equivaler a transformismo, mudando algo para que tudo fique na mesma. Não, não se muda. Acrescenta-se e justapõe-se um órgão constituído por cooptação, sem informação, sem critérios de selecção conhecidos nem razões que o justifiquem, provocando, isso sim, uma forte desqualificação dos órgãos nacionais já existentes. Aumenta-se o número com muito do que foi legado do passado, ou seja, do mesmo que nos levou até aqui, isto é, à crise do partido.

9.

Não creio que esta situação seja irremediável, sobretudo se for mais retórica comunicacional do que algo substantivo. E por isso julgo ser útil que se diga tudo o que haja para dizer sobre o que esta iniciativa representa. E até se poderia perguntar por que razão, um dia depois da tomada de posse do Conselho Estratégico, eu faço, aqui, esta crítica tão frontal ao partido de que sou militante. E eu reponderia que, em primeiro lugar, o faço aqui, abertamente, porque também tive conhecimento da iniciativa somente através da imprensa nacional e não através dos circuitos informativos do partido; em segundo lugar, porque sou militante de base e não integro nenhum órgão do partido; em terceiro lugar, porque este tem sido o espaço onde sistematicamente venho comentando, sempre com intenção propositiva, as posições do PS; em quarto lugar, porque pretendo dar o meu contributo, dizendo o que penso sem condicionamentos de oportunidade, para melhorar o processo de renovação do partido. De resto, et pour cause, ainda durante este ano publicarei um livro sobre o PS e os desafios do futuro, orientado precisamente no sentido da renovação ideal, programática e orgânica do partido, além da necessária visão mais global sobre as grandes questões da nossa sociedade com as quais o PS, como partido de governo, deve confrontar a sua própria estratégia. Será um contributo que, dispensando uma qualquer integração orgânica ou corporativa, representará uma resposta aos desafios que justificaram a criação deste enorme CE. E, além disso, representará também a sequência, agora em termos nacionais, do meu mais recente contributo sobre a política do futuro, plasmado no recente livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, pág.s 262). Interessem ou não estes livros aos actuais responsáveis do PS, a verdade é que são contributos que procuram responder, com profissionalismo, aos desafios que se põem à política actual, sobretudo na óptica da social-democracia.

10.

Não me parece, portanto, que a criação de um Conselho Estratégico deste tipo e nos moldes em que foi feita, para além da duvidosa legalidade estatutária em que incorre, possa dar um sinal positivo do processo que urge iniciar com vista a dotar o PS de uma  forte democracia interna e de uma robustez ideal, programática e orgânica em condições de o voltar a colocar no lugar que, por razões históricas e pela excelência do espaço político que ocupa na geometria partidária, merece e que, além do mais, é decisiva para a própria saúde democrática do nosso sistema político. JAS@07-2025

Poesia-Pintura

QUEM ÉS TU?

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Corpo”
Original de minha autoria,
baseado em foto em contraluz,
de autor anónimo
 (Colecção privada)
Agosto de 2025

“Corpo”. JAS 2025

POEMA – “QUEM ÉS TU?”

HÁ POESIA
No teu corpo
(Dizia o poeta),
Delicada
Geometria,
Contraponto
Expressivo
De uma quente
Melodia.

HÁ MÚSICA,
Pauta
Da beleza física
Que levita
Entre cores,
Aromas
E sons,
Em surdina,
Construindo
Enigmas
Que só o
Poeta
Pode decifrar,
Como quem
Te ilumina.

TENS A ALMA
Inscrita
No corpo,
Como eu
A tenho
Nas palavras
Com que construo
Os poemas
No discurso da
Beleza
Em que me vou
Enredando
Como em teia
Que me prende
E me liberta...
...........
Com leveza.

VEJO-TE
Num bailado
A solo,
Dançando
A despedida
E canto-te
Num poema
Ao ritmo do
Corpo
E da alma
Com que te
Vais retratando
Nas telas
Pintadas
Da vida.

E PEÇO-TE
Que não pares
Esse teu
Silencioso
Bailado
Até que eu
Te desenhe
Em palavras
Pra que nelas
Te revejas
Como num espelho
Encantado.

MAS, AFINAL,
Quem és tu?
(Perguntou
O poeta)
Tu, que tantos
Rostos tens
E me falas
Com o silêncio;
Tu, que danças
Em movimentos
Que apenas
Acontecem
Na alma
De um poeta;
Tu, cuja melodia
É a do vento
Que me responde
Com o eco
Dos poemas,
Vindo não sei
De onde?

NÃO SEI MESMO
Quem és...
Talvez a musa
Inventada
E constante
Que me aquece
A alma
Quando o calor
Das palavras
Desaparece
E ameaça
Tornar-se
 Gelo puro
E cortante.

QUEM ÉS TU,
Afinal?
Uma só com
Muitos rostos
Ou todos
Os rostos
Num só
Que se esfuma
Cada vez mais
Na bruma espessa
Do tempo,
Sem piedade
Nem dó?

SAUDADE

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Musa”
JAS 2025
Original de minha autoria
Julho de 2025

“Musa”. JAS 2025

POEMA – “SAUDADE”

QUANDO TE SONHAVA
(Com palavras)
Encontrava-te
Sempre
Num acaso
Marcado
Pelo destino,
Olhava-te
E segurava
As tuas mãos
Nos riscos
Com que ias
Desenhando
Os teus rostos,
A traço sempre
Muito fino.

OLHAVA-TE
Nos olhos,
Em silêncio,
Timidamente,
Com esse brilho
Interior
Que nunca se vê,
Mas se pressente.

AH, COMO GOSTO
(Sempre gostei)
Desse teu rosto,
Linha de arte
Saída de ti,
 Desse olhar 
Cúmplice
Que me inebria
E me sorri.

DIZIA-TE
Palavras
(As do momento)
Sobre o sol
Que brilhava
Ou sobre a chuva
Que tardava,
Sobre as nuvens
Cinzentas
Que pintavam
O azul brilhante
Do céu
Ou sobre o vento
Que me soprava
Na alma
E me fazia sentir
Como quem
Contigo renasceu.

E SENTIA-TE
Sempre
Como quando
Te vi
Pela primeira vez,
Sem saber
Que fugiria contigo
Da rua proibida
Para este abrigo
Dos poemas
Onde agora,
Clandestino,
Sempre te revejo
Como em espelho
Mágico
E cristalino.

QUANDO TE PERDIA,
Chegava, rápida,
A saudade
Que já espreitava
Na esquina
Discreta
Desse teu olhar
De permanente
Despedida...

E POR ISSO
Te procurava
Na arte,
Nas palavras,
Nas curvas
Escritas da vida
Que estão 
Mais cheias
De poesia
Do que aquilo
Que nunca iria
Acontecer
A não ser
Como pura
Fantasia.

Artigo

TRÊS NOTAS CRÍTICAS

SOBRE A ACTUALIDADE POLÍTICA

 João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

OS CIÚMES DO PS

LI ALGURES que o PS estaria com “ciúmes” ou mesmo “amuado” pela aproximação do PSD (a AD é uma ficção eleitoral para dar emprego à dupla Melo&Núncio e para enganar o freguês eleitoral) ao CHEGA. Curiosa formulação sobre as relações entre dois partidos políticos. Coisa de afectos, é o que parece quererem sugerir. Namoro (em crise) de regime entre parceiros com interesses comuns. E, todavia, esta leitura estapafúrdia tem alguma razão de ser, pois encontra fundamento na insistência com que o PS tem vindo a reivindicar a centralidade histórica do diálogo privilegiado entre as duas tradicionais forças da alternância (governativa). O que até há uns tempos atrás fazia algum sentido, pois eram as duas forças centrais do sistema, governando em alternância, hoje já não faz. Hoje, que entrou em cena um novo protagonista central, esta lógica deixou de fazer sentido, até porque o novo protagonista pode mesmo vir aceder à chefia do governo, como, de resto, já foi reconhecido pelo actual primeiro-ministro, o mesmo que dizia “não, é não”: “acho que esses (PS e CHEGA) são os mais importantes porque obviamente são aqueles que se afiguram no contexto político-partidário como as alternativas futuras de governo”. Sobretudo a partir do momento (18.05.2025) em que o CHEGA passou a ser a segunda força parlamentar, com 60 deputados. Antes, com o famoso “não, é não do mesmo Montenegro, essa lógica ainda parecia manter-se de pé. Agora, deixou de fazer sentido. Antes, o PS colocava-se na posição de evitar que o PSD caísse afectuosamente nos braços do CHEGA, criando um muro protector de defesa da democracia ameaçada. Agora, já se viu que não é isso que os portugueses consideram central porque, caso contrário, não dariam a força eleitoral que deram àquele partido da direita radical. Na verdade, não é o PSD que está a “normalizar” o CHEGA. Foi o voto dos portugueses que o “normalizou”, ao torná-lo a maior força política da oposição parlamentar. Coisa, de resto, muito pouco surpreendente se atendermos ao que se está a passar na própria União Europeia.

A mim, sempre pareceu que o PS nunca se deveria ter colocado nessa posição de salvador da pátria, de colo da democracia, de vizinho privilegiado ou de compadre do PSD, até porque ela acabaria por condicionar fortemente a sua própria autonomia política. A sua, perdidas as eleições, deveria ser, isso sim, a posição de partido central da oposição (até pela sua força autárquica), cabendo à direita, com maioria parlamentar, entender-se. Isto antes, mas também depois, das recentes eleições. Escrevi-o aqui várias vezes e reafirmo-o agora que a situação parece ter evoluído nesse sentido – estão a entender-se e isso é natural, porque ambos ocupam aquele espaço que o próprio PS identifica como de direita, mas também porque o CHEGA tem uma dimensão parlamentar que o PSD não pode negligenciar. Poder-se-ia dizer que estava escrito nas estrelas, embora essa geometria política já estivesse a ser usada silenciosamente por Montenegro, sabedor de que Ventura nunca viabilizaria um governo do PS. Por isso, o PS deve, sim, finalmente, preocupar-se em fazer uma oposição construtiva, mas crítica, enquanto consistente partido da oposição. E tanto mais quanto a agenda política do CHEGA for sendo absorvida pelo partido que governa. O PS poderia dizer: “têm maioria no parlamento, então entendam-se; nós cá estaremos para combater aquilo que considerarmos errado, injusto e pouco democrático”. E sobretudo cá estamos para construir uma alternativa sólida que possa merecer a confiança dos portugueses, sem nos deixarmos cair na ratoeira do politicamente correcto e do wokismo, que tanto têm alimentado politicamente a direita radical. Anunciámos uma profunda reflexão sobre a nossa própria identidade política e iremos promovê-la, sem, entretanto, deixarmos de cumprir rigorosamente o nosso dever de importante força política de oposição.

OS DEVERES DE UM PRESIDENTE
DO PARLAMENTO

O que se tem passado no Parlamento é a todos os títulos verdadeiramente incompreensível, com os presidentes em exercício a desempenharem muito mal as suas funções. Limito-me a dois casos exemplares: o do uso parlamentar da palavra “vergonha” e da palavra “fanfarrão”. A primeira, verberada, com o ar circunspecto e pesado de um vigilante da linguagem parlamentar, o então PAR Ferro Rodrigues; a segunda, verberada pelo actual PAR, Aguiar-Branco (com hífen). Duas injunções sem qualquer sentido, mas ambas bem elucidativas das presidências de Ferro Rodrigues, de Santos Silva e de Aguiar-Branco. Uma fanfarronice de que todos eles se deviam envergonhar. Não fosse suficiente o estatuto e as funções de um presidente da AR para moderarem o seu comportamento, bastaria pensar que existe, em relação aos deputados, um mecanismo chamado “imunidade parlamentar” para travar a pretensão de os PARs fazerem injunções verbais desse teor. Mas, mesmo assim, se este aspecto ainda não fosse suficiente, bastaria pensar que os parlamentos foram inventados não só para integrar institucionalmente as diferentes sensibilidades políticas existentes no país e para fazerem as leis que regulam a vida da cidadania, mas também para, através da representação institucional, constituírem uma espécie de sociedade em miniatura capaz de absorver institucionalmente as disrupções sociais que, de outro modo, tenderiam a manifestar-se com radicalidade e violência nas ruas. O parlamento também funciona como uma espécie de almofada que atenua os embates sociais, transformando-os em debates cívicos, argumentados e retóricos que se substituem à violência do confronto físico. Tudo isto obriga a que a liberdade parlamentar seja muito ampla, chegando, e por isso mesmo, a ser configurada como imunidade parlamentar, símbolo máximo da liberdade parlamentar. Claro, dada a importância da instituição parlamentar, os representantes deveriam sempre estar ao nível até porque estão em funções de representação (não-imperativa) da cidadania, sendo-lhes exigível não só moderação, mas também respeito pelo próprio mandato. Ou seja, devem ser exemplares no exercício das funções e das próprias prerrogativas. O que não pode acontecer é estarem condicionados no exercício das suas funções pelos novos vigilantes da linguagem politicamente correcta. Até porque essa vigilância é limitadora da liberdade oratória dos deputados e pode ser ela própria geradora de revolta. Uma das razões que me fazem hoje preferir um sistema eleitoral de círculos uninominais é precisamente porque este sistema é mais exigente relativamente à qualidade da representação parlamentar, não só porque os candidatos devem submeter directamente a própria candidatura aos eleitores, mas também porque põe fim à total discricionariedade das escolhas por parte da classe dirigente (as candidaturas são propostas em envelopes fechados com a sigla do partido). Este tipo de sistema eleitoral valoriza o rosto dos que se apresentam como candidatos e responsabiliza-os mais directamente perante os próprios eleitores. Não sendo a varinha mágica do regime, ele pode ajudar a melhorar a qualidade do sistema parlamentar.

O ESTADO-CARITAS
E AS ELEIÇÕES AUTÁRQUICAS

Outra questão é a da já famosa “esmola de Estado” aos pensionistas, inaugurada, é preciso dizê-lo com clareza, por António Costa (em Outubro de 2022, se não erro), mas agora com a agravante de acontecer em cima de uma importante campanha eleitoral autárquica. O PR dispõe de um instrumento para travar esta indignidade (Decreto-Lei 86-A/2025, de 18.07), através do veto.  Mas não o usou. E considero que ele deveria ter usado o seu poder, ainda que fosse para dizer que a haver “esmola” ela teria que ficar para depois das eleições, em nome da decência democrática. Mas não só o PR deveria ter intervindo. O PS dispõe de um instrumento muito importante: o pedido de apreciação parlamentar do Decreto-Lei, onde até poderia propor uma alteração para o futuro no sentido de estes valores ficarem incorporados a título permanente no montante das pensões. De qualquer modo, aí se veria a posição de cada partido sobre algo que, em boa verdade, nem deveria merecer sequer discussão, nos termos em que isso foi feito. Este suplemento extraordinário, em setembro, antes das eleições autárquicas, não deveria pura e simplesmente existir. Mas o que fazem os partidos? Assobiam para o lado, temerosos de virem a ser acusados de impedir a esmola aos pobrezinhos, de não serem humanistas nem solidários. Montenegro foi “esperto”: se o dou, agradecem; se não for possível, a culpa foi dos outros. Só que se trata de uma questão de princípio: dar “esmolas” antes do voto é duplamente condenável. Para quem as dá,  mas também para quem as recebe, sobretudo nestas circunstâncias.

Não me parece, pois, que a cidadania esteja a ser respeitada. O Estado social não se pode confundir com um Estado-Caritas, com um Estado caritativo que, quando tem  (e se tem) uns cobres a mais, umas folgas, os distribui circunstancialmente pelos pobrezinhos para atenuar dificuldades de momento. Folgas que, verdadeiramente, não há, pois o Estado português paga anualmente em juros da dívida cerca de 7 mil milhões de euros, sendo hoje a dívida pública, em termos absolutos, de cerca de 284 mil milhões de euros. São mais 104 mil milhões do que quando José Sócrates deixou o governo em junho de 2011 (180 mil milhões, em dezembro de 2010).

Esta política de esmolas representa, pura e simplesmente, falta de respeito pelos cidadãos, é engano ou é mesmo engodo. Seja quem for o protagonista que a pratica, de esquerda ou de direita. O que sei é que este tipo de medidas está a generalizar-se cada vez mais (no ano passado assim foi também) e não tem provocado um sobressalto cívico que mereça a devida atenção dos responsáveis políticos pelo poder formal, em todas as instâncias. Tudo começa a saber a truques para enganar o eleitor e o país. E isso também vale para a história da diminuição da retenção na fonte, provocando a ilusão de um crescimento dos salários. A medida em si até faz algum sentido pois o cidadão dispõe durante mais tempo dos seus próprios recursos. Certamente. Mas o que deve ficar claro é que não se trata de aumento salarial nem de redução fiscal, mas tão-só de adiamento da cobrança fiscal. Que, por sinal, até é excessivamente alta. JAS@07-2025

Poesia-Pintura

POEMA EM CONSTRUÇÃO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Trilhos”
Original de minha autoria
Julho de 2025

“Trilhos”. JAS 2025

POEMA – “POEMA EM CONSTRUÇÃO”

MEMÓRIA
Quente
Acordada
Por estímulo
Vagante
Na vida
Desordenada
De um tímido
Amante.

UMA LUZ,
Um som,
Uma aragem
Interior,
Um sobressalto,
Saudade,
Um sonho,
Um encontro
Inesperado
Numa rua
Da cidade.

O CRESCIMENTO
Interior
Na alma
De um poeta,
Uma pulsão
Que resiste
A ser secreta,
Um vai-e-vem
Que não pára
E se expõe
Como sagrado
Em ara.

CAPTÁ-LA
Com palavras
Em movimento,
É missão
Pô-la ao vento,
É música
Em surdina,
É ritmo,
É melodia,
Notas musicais
Mil vezes
Solfejadas
Em busca
De harmonia.

RISCOS E CORES
Desenhados
Com fios
De letras soltas,
Soltar a alma
Ao vento
Em terras
De utopia
Como ondas
Vivas,
Revoltas,
E cheiro
A maresia.

A COMPOSIÇÃO,
O trautear
De palavras
Aquecidas
Pela emoção,
Memória viva
Em busca
De catarse
Das cadeias
Da paixão.

OPERÁRIO
Em construção
É o que é
O poeta
E também
A sua vida,
Entre a penúria
Do real
E a sua
Compensação,
A riqueza infinita
Da beleza
Construída
Como sua
Salvação.

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XVIII)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

PINTAR POEMAS

Bem sei que é mais difícil escrever poemas com riscos e cores do que pintar quadros com letras, com sinais. Mas também é possível. Mesmo assim, eu optei pela sinestesia, fazendo cooperar para um mesmo fim (tema) a poesia e a pintura. O Cesário Verde bem dizia “pinto quadros por letras, por sinais”. E pintava. E eu, como é natural, também tento fazê-lo, mas como tenho o recurso da pintura (digital) decidi avançar também com esta cooperação sinestésica entre a poesia e a pintura. Pode-se assim visualizar mais facilmente o que vai na cabeça do poeta-pintor. E o poema sai reforçado na sua tripla dimensão: semântica, musical e plástica. Uma espécie de projecção cromática do sentido que ajuda a iluminar o poema. Sentido, ritmo e melodia, luz e cor. A luz reforça o poder sensitivo da poesia, tal como acontece quando um poema é cantado. Música, luz e cor que se acrescentam à semântica das palavras.

CESÁRIO VERDE

É verdade, o grande Cesário pintava quadros por letras, por sinais:

“Pinto quadros por letras, 
por sinais, /
Tão luminosos como os do Levante,
Nas horas em que a calma 
é mais queimante,/
Na quadra em que o verão 
aperta mais”

E eu procuro sempre a sinestesia, mas também a procuro, como ele, dentro do poema.  Apenas com palavras. Não só com a pintura, com as cores e os riscos, mas também com os sons, com a música interna do poema. Os versos curtos e, frequentemente, de uma só palavra ajudam a escrever melhor a pauta poética. Sim, um poema é para ser solfejado. As palavras como notas musicais. Não concebo mesmo a poesia sem essa componente fundamental da música, do ritmo e da melodia. O poema não deve ser somente um quadro com sentido e cor, também deve ser uma pauta musical. Até porque acho que é esta sua dimensão que lhe permite atingir melhor a sensibilidade e que lhe confere maior performatividade. E, sim, cada palavra conta mesmo muito e é necessário procurá-la sempre com muito cuidado e rigor, na sua tripla função semântica, plástica e sonora. Tudo no interior de um poema, independentemente da sinestesia, que é uma operação diferente. Às vezes, são dias à procura daquela palavra exacta. Exacta tanto por razões de semântica como por razões de cor e de sonoridade. Dói um pouco, tanta procura, mas o poeta nasceu para conviver com a dor… e para a converter em “doce melancolia” e em arte. Para a cantar.

“AGUARELA DE PALAVRAS”

No poema “Aguarela de Palavras”, poeta e pintor confundem-se. Mas talvez seja mesmo mais fácil pintar com palavras do que poetar com cores. Cooperando, em exercício sinestésico, tudo fica mais fácil, mesmo que o discurso seja delicado e difícil. O objectivo é sempre o de chegar à janela de onde ele julga que a musa o observa na sua caminhada poética. Todos os meios ajudam. A pergunta: aguarela de palavras ou palavras para uma aguarela? Aguarela onde seja visível o perfil da musa? Talvez. Na pintura “O Voo da Magnólia” (não da branca, mas da outra, a cor-de-rosa) a musa parece estar confundida com um botão de magnólia em voo. As musas frequentemente disfarçam-se de flores e de aromas, aparentemente prontas para serem colhidas ou inaladas para dentro de um poema. Libações sempre necessárias ao acto da criação. Daí a importância da sinestesia, podendo a cor de uma pintura ser inalada poeticamente. Depois, as musas retiram-se, deixando o poeta a braços com as palavras, que já só é o único modo de convivência com elas. Como se as palavras fossem rastos deixados pelas musas, sinais da sua passagem por ali e, quem sabe, endereços das suas moradas. Imaginem, pois, o pobre poeta a tentar constantemente mapear, com palavras, o caminho que pode levar até ela. Vida difícil. Vive num mundo de espelhos e de simulacros que tornam impossível um diálogo frontal. Se é que a musa existe e não é uma sua ilusão gerada por vivências intensas do passado. De qualquer modo, a musa só pode ser visualizada através do espelho de Athena, oferecido pela deusa ao poeta. Mas, paradoxalmente, é esta espécie de neblina existencial, este brilho reflectido no céu interior do poeta que torna a sua vida sedutora. As palavras são faróis que o ajudam a viajar na neblina existencial em que vive. Mas também precisa de um espelho retrovisor para impedir que choque directamente com o passado. Para ele, o espelho é muito importante porque lhe permite uma visão indirecta e evita o choque e a petrificação. Mesmo indo directamente à memória, o perigo é real. É sempre preferível usar o espelho. Não por acaso o poeta invoca frequentemente a deusa Athena.

SEGREDOS MAL GUARDADOS

Segredos decifrados num poema, mas que só podem ser entendidos se forem sentidos com a alma. Senti-los é a primeira etapa para a compreensão e a partilha. Nunca plenas, porque o poema é sempre maior do que a sensibilidade individual que o recebe e filtra interiormente. É maior até do que o poeta que o criou. O poeta vive em sobressalto criativo? Vive, sim, e é isso que o leva a poetar. Mistérios? Sim, são mistérios, mas também são segredos mal guardados. Ou não tivesse ele de os contar. O que lhe vale é a natureza do púlpito poético: ninguém sabe se o que diz é realidade ou ficção. Mesmo que pareça realidade ou que alguém diga que sabe bem ao que ele se refere. A verdade é que nem ele próprio sabe com exactidão porque a fronteira entre o poético e o real é um pouco indeterminada – está entre o eu e o mundo. É o tal intervalo de que falava o Pessoa. Ou melhor: isso nunca é totalmente claro para ele e é por isso que a poesia conserva sempre uma dimensão iniciática. Oracular. Há sempre no ar algum mistério que é necessário decifrar. Mas não importa o processo, porque o que importa é o resultado final. O desejo e as dores da criação ficam lá com ele, a moer. Não importam. O que importa é a decantação poética. Decantar poeticamente o real, para o poder consumir puro, e com sofreguidão, ou mesmo comê-lo, como queria a Natália Correia:

“Sou uma impudência a mesa posta 
 de um verso onde o possa escrever. 
 Ó subalimentados do sonho!  
A poesia é para comer”.

E é isso que importa verdadeiramente.

ABRIGO

Talvez a poesia seja mais do que simples refúgio, pois a poesia permite aceder a um plano superior que não está inscrito no registo da sobrevivência, da banal fuga, da normal gestão do quotidiano. Talvez seja refúgio dourado. Melhor, “abrigo quente”. Sim, abrigo aquecido pelas palavras desenhadas sobre pauta e pintadas com as cores da vida que o olhar do poeta vai registando. Porto de abrigo das tempestades impetuosas da vida. É uma outra dimensão. Livre. Porta por onde entra a fantasia. O poeta é um sonhador, insatisfeito que anda com a pequenez da vida quotidiana. E, então, vive o sentimento de forma muito intensa, o que funciona como compensação pela pequenez da rotina, como diz o William Hazlitt.

CLAREIRAS

Eu considero que há clareiras na vida, como nas florestas. Elas impedem que os incêndios existenciais alastrem e destruam as árvores da vida. E há silêncio e até se ouve o bulício das folhas batidas pelo vento que nos sopra na alma. É por ali que andam os poetas. No coração da floresta. Chegaram lá depois de viverem na cidade, na metrópole, de caminharem no meio da multidão anónima, sendo arrastados e engolidos pelo anonimato. Perdidos na floresta da vida. Eles levam, por isso, uma memória cheia de episódios que só já nas clareiras da floresta conseguirão interpretar e compreender. Na solidão. Saem de si para a floresta para depois regressarem mais sábios… nas clareiras da vida. O Bernardo Soares falava mesmo de renúncia. Outros falam de retiro eremítico. Eu acho que o retiro do poeta é para o universo silencioso e solitário da memória, estimulado por recorrentes visitas à cidade, como não podia deixar de ser. A memória é a floresta. Ponto e contraponto. Um jogo entre o espaço e o tempo – entre a cidade e a memória. E o poeta, finalmente, situa-se entre uma e a outra. Num intervalo. Talvez as clareiras sejam esse intervalo silencioso que deixa falar a memória quando ele regressa da cidade.

“DORME ENQUANTO VELO”

Uma Amiga lembrou um passo do “Livro do Desassossego” que remete para o poema “Dorme enquanto velo”, escrito por Pessoa em 1912 e publicado em 1924. O passo é este: “ ‘Quero-te só para sonho’, dizem à mulher amada, em versos que lhe não enviam, os que não ousam dizer-lhe nada. Este ‘quero-te só para sonho’ é um verso de um velho poema meu. Registo a memória com um sorriso, e nem o sorriso comento” (Livro do Desassossego, Porto, Assírio&Alvim, 2015, p. 121). O velho poema é belo e reza assim:

“Dorme enquanto velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.
A tua carne calma
É frio em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.
Dorme, dorme, dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento 
E eu sonho sem sentir.”

O real como matéria-prima somente para sonhar, para poetar, para palavrar? Sem sentir? Não acredito. Para ele, só servia para isso? Só a Ofélia poderia responder com propriedade. Quanto a mim, o poeta não a quer só para sonho, quere-a também para a amar. Mas ele é um fingidor. Ama, mas finge que não. Ama em palavras, sim, já que não pode amar-lhe o corpo. Mas ama. A verdade é que o Bernardo Soares não gostava de tocar o real sequer com as pontas dos dedos. Mas o Pessoa de vez em quando atirava-se mesmo à Ofélia. Nem que fosse num vão de escada. Para o Bernardo Soares, ter o corpo não representa a verdadeira posse. Só a arte a pode conseguir, porque com ela se possui a alma. Era assim para o Pessoa, mas era assim também para a Yourcenar. Eles tinham bem consciência da circularidade do prazer corporal. Uma espécie de redundância sem pontos de fuga para o infinito. Algo que, pelo contrário, é próprio da arte. O sonho é só encantamento que acontece sem sentimento? Eu creio que todo o sonho que é denso resulta de pulsões e libações. De um movimento anímico intenso. Só depois se torna mais espiritual do que anímico. Mas não sei se será assim. A resposta só pode ser dada em verso. JAS@07-2025

Poesia-Pintura

TEMPO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Tempo”,
JAS 2025.
Original de minha autoria.
Julho de 2025.

“Tempo”. JAS 2025

POEMA – “TEMPO”

OS POETAS SÃO
Seres
Que vivem
Em solidão
Numa terra
De ninguém,
Foram-se
Todos dali
E quem se foi
Já não vem.

ELES VIVEM
Entre o passado
E o futuro,
Num tempo
Que não existe,
Pois se o passado
Passou
No presente
Já não persiste...
.............
E o futuro
Não chegou.

NUNCA
Se agarra
O tempo,
Ele foge
Para a frente
E também
Foge
Pra trás,
Mas se voarmos
Com ele
Alguma coisa
Nos traz.

TRAZ-NOS
O movimento,
A vertigem
Do futuro,
Sermos rápidos
Como o vento
Em busca
De porto
Seguro.

QUANDO
Voamos com ele
E o passado
Já tem forma
De futuro,
Com palavras
Se decanta
Pra criar
Um tempo novo
Que seja
Um tempo
Mais puro.

UM TEMPO
Que é só nosso
Liberto
Da negação
Onde a alma
Se constrói
Uma nova condição,
Recriando
O seu perfil
Nessa sua solidão.

É o TEMPO
Da poesia,
É o tempo
Da criação,
Se antes
Era só uma
A via,
Com o tempo
E as palavras
Voamos
Numa outra
Direcção,
Movidos
Pela fantasia.

Artigo

 NOVO LIVRO EM FRAGMENTOS

"FRAGMENTOS – Para um Discurso
 sobre a Poesia"
(S. João do Estoril, ACA Edições, 
2025, pág.s 228)

João de Almeida Santos

LIVRO JÁ DISPONÍVEL

JÁ ESTÁ DISPONÍVEL, para aquisição, o meu novo livro, FRAGMENTOS – Para um Discurso sobre a Poesia, publicado pela ACA Edições (S. João de Estoril, 2025, pág.s 228). O livro pode ser adquirido mediante envio de e-mail para a Editora: acazarujinha@gmail.com. Preço: 15€ (mais o valor relativo ao correio registado). A Editora indicará o IBAN e o valor final, solicitando o envio do comprovativo e a indicação da morada para onde deverá ser enviado o livro. A média de recepção do livro é de cerca de dois dias. Trata-se de uma edição limitada.

O LIVRO

Este livro contém 206 Fragmentos, uma Introdução e um Epílogo, com uma pequena bibliografia. São reflexões sobre a poesia, baseadas na minha experiência pessoal, enquanto poeta. Mantendo, há cerca de dez anos, uma publicação regular de poesia, aos domingos, no meu site (joaodealmeidasantos.com), é habitual receber, via Facebook, muitos comentários quer sobre os poemas quer sobre a pintura que os ilustra, em registo sinestésico. A todos respondo, mas aos comentários mais argumentados respondo habitualmente com reflexões que procuram valorizar e expandir o que é dito sobre o poema em causa. Uma parte destes diálogos já a publicara no meu livro de poesia (Poesia, Lisboa, Buy The Book, 2021, pp. 351-424), inclusivamente reproduzindo alguns dos comentários que considerei mais relevantes e articulados. E, todavia, neste livro que agora vem a lume omiti os comentários, tendo optado por publicar exclusivamente as minhas respostas, devidamente reescritas e desenvolvidas, de modo a poderem ser lidas autonomamente. Continuo, assim, com este livro, a preservar uma riquíssima dialéctica argumentativa acerca da minha produção poética, que vem acontecendo há muitos anos.

A TRADIÇÃO DOS LIVROS EM FRAGMENTOS

A tradição dos livros em fragmentos é muito antiga e muito bela. Há casos famosos, logo a começar pelo livro de Pascal, Pensées, ou pelo Livro dos Amigos, de Hofmannsthal. O Livro do Desassossego, do Fernando Pessoa, é também um belíssimo exemplo. O mesmo acontece com alguns livros de Friedrich Nietzsche. Nuns casos, a forma – livro em fragmentos – é decidida pelo próprio autor, noutros casos, deve-se a diversas circunstâncias e é da responsabilidade dos curadores e dos editores. Neste caso, a decisão foi minha e deve-se, como se compreende, à sua génese: o diálogo prolongado, ao longo do tempo, semana a semana, com os leitores da minha poesia. Deste diálogo nasceram 206 fragmentos, resultado do efeito que os comentários produziram sobre o poeta e, naturalmente, da inspiração do momento. Os poucos fragmentos de maior dimensão, que em média nem sequer ultrapassam as duas páginas, já resultam da sua reescrita para o livro, sendo certo que a sua primeira versão foi elaborada para o Facebook, espaço que não é apropriado para textos sequer de média dimensão. Há, pois, um longo processo temporal, mas regular, que está na génese deste livro e que determina a sua própria matriz.

AS RAZÕES DESTE LIVRO

Esta é, pois, a segunda fase de publicação de textos directamente suscitados pelos comentários dos leitores digitais da minha poesia, estando, de resto, já praticamente concluída a terceira fase, que resultará num outro livro com o título de “Novos Fragmentos”. Por agora, aqui fica um livro que para mim representou uma fase de escrita absolutamente livre, nem sujeita a exigências de intertextualidade nem aos critérios formais da academia. Apenas ao rigor da língua portuguesa, inscrito, todavia, num processo de libertação anímica que só a linguagem poética permite. Este livro, de certo modo, é, como se compreende, tributário dessa linguagem, acontecendo mesmo que, muitas vezes, mais parece tratar-se de poesia em forma de prosa do que de prosa sobre poesia. Era o Edgar Allan Poe que, na Poética (Lisboa, FCG, 2016, 2.ª Edição), Carta a B., dizia que os que melhor podem escrever sobre a poesia são os próprios poetas: “Tem-se dito que uma boa crítica a um poema pode ser escrita por alguém que não seja ele próprio poeta. Sinto que isto é falso, de acordo com a sua e a minha ideia de poesia – quanto menos poético for o crítico, menos justa será a crítica e vice-versa”. E talvez Poe tenha razão, porque são eles que a vivem e a sentem por dentro, antes de lhe darem forma através das palavras, na sua complexidade estilística (semântica, plástica e musical). E, se assim é, num livro como este não poderia deixar de acontecer uma forte contaminação de linguagens, onde a poética talvez tenha sido dominante. Mas, se assim for, o resultado terá sido muito mais interessante do que se assim não tivesse acontecido. Uma miscigenação onde a poesia resulte dominante tornará o livro muito mais próximo daquele que é o seu objectivo final – trazer directamente a poesia ao discurso, em prosa.

UM UPGRADE NA COMPREENSÃO
DA MINHA POESIA

Para quem me vem acompanhando, aos domingos, enquanto leitor da minha poesia, mas também dos comentários e das respostas que sobre ela vão acontecendo, este livro não será totalmente novo, pois, como disse, ele retoma as minhas respostas aos comentários publicados no site. A parte nova reside nos desenvolvimentos e na autonomização a que submeti as minhas respostas, exclusivamente para este fim: a publicação de um livro sobre a poesia, em fragmentos. Na verdade, eles podem ser lidos autonomamente mesmo em relação aos comentários e aos poemas a que todos eles se referem. Um livro que se basta a si próprio e que é independente da sua própria génese. E, todavia, a sua leitura permitirá sem dúvida conhecer melhor as razões que me levam a poetar e o ambiente em que a minha poesia se inscreve.

UM AGRADECIMENTO MAIS DO QUE DEVIDO

Finalmente, um reconhecimento, mais do que devido, a todos os que sistematicamente vêm comentando a minha poesia e sem os quais nem sequer este livro teria nascido. Foram os seus comentários que me estimularam não só, como era devido, a responder, mas também a avançar para a escrita e para a publicação deste livro. Um livro que talvez represente para mim o prazer máximo da escrita, depois de um longo trajecto de publicações, mais ou menos complexas, difíceis e até dolorosas. Na verdade, neste, o prazer sobrelevou o dever de escrita de quem sempre fez dela o cerne da sua própria profissão ou mesmo da sua própria vida. JAS@07-2025

Poesia-Pintura

O BEIJO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: "O Beijo".
Original de minha autoria
para este poema.
Seis de Julho: “Dia Internacional
do Beijo”. Poema inspirado em
"Lotte em Weimar. O Regresso 
da Bem-Amada" (1939), de
Thomas Mann, a obra que continuou
"Werther" (1774), de Goethe, e no
meu Romance "Via dei Portoghesi" 
(2019). Seis de Julho de 2025.

“O Beijo”. JAS 2025

LEITMOTIV

“O amor é o melhor na vida,
assim, no amor, o melhor é 
o beijo – Poesia do amor...”. 
“Beijo é alegria, procriação 
é luxúria”

Thomas Mann

INSPIRADO TAMBÉM EM :

Kafka

“Os beijos escritos
não chegam ao destino,
mas são bebidos pelos
fantasmas ao longo
do trajecto”

Shakespeare

“Se para te beijar devesse,
depois, ir para o inferno,
fá-lo-ia. Assim, poderia
vangloriar-me, com os diabos,
de ter visto o paraíso
sem nunca lá ter entrado”

Bernhardt

“O primeiro beijo não é dado
com a boca, mas com os olhos"

POEMA – “O BEIJO”

BEIJO FOI
O que nunca
Te dei
A não ser
Com o olhar;
O primeiro,
Esse beijo,
Dei-to, pois,
Sem te tocar.

E DEI-TE MAIS,
Com palavras,
Porque sempre
Desejada, mas
Quando olhar
Já não podia,
Foste embora,
Triste, 
Zangada,
E, assim,
Eu não te via.

FORAM BEIJOS
Que sonhei
Na triste rotina
Dos dias,
Desejos
Que enfrentei
Quando tu mais
Me fugias.

AGORA DOU-TE
Beijos
Escritos
Que se perdem
Pelo caminho,
Mas se o poema
Me falta
Fico ainda mais
Sozinho.

O BEIJO
É emoção,
É razão
Descontrolada,
Se não o dermos
A tempo
Pouco mais
Será que nada.

SEM BEIJO
Não há amor,
Sem amor
Perde-se o beijo
E perde a vida
Sentido
Quando dele 
Falta
O desejo.

POR ISSO
O lanço
Ao vento
Pra que chegue
Como brisa
E suave melodia
A quem de afecto
Precisa
Em forma
De poesia.

ESSE BEIJO
Que me falta,
De que nunca
Fui capaz,
Voa pra ti
Em palavras
Na sua forma
Mais pura
Para que no seu
Trajecto
Voe, voe
A grande altura
E fantasmas
Não o bebam...
.............
Seja beijo
Que perdura.

EU SEI
Dos escolhos
Da via,
Dos perigos
Que ele corre,
Capturado
Por fantasmas
É um beijo
Que me morre.

MAS NESTE DIA
Do beijo,
Da poética
Do amor,
Eu te canto
Em palavras
Desenhadas
Com a arte
Do pintor.

E PORQUE
O dia é teu
Ganha força,
Intensidade,
Mesmo que
Fantasmas
O bebam
É um beijo
De verdade.

NÃO HÁ PALAVRAS
Que bastem
Pra repor
O que não dei,
Elas voam,
Talvez não cheguem,
Mas mesmo assim
Eu tentei.

É CERTO
Que sempre
O quis,
Só que nunca
To roubei,
A culpa foi
Desse tempo,
Dos dias em que
Te amei,
Um tempo
Em diferido,
Sem presente
Nem futuro,
Talvez beijo
Sem sentido
Porque queria
Do mais puro,
Tangendo 
Eternidade
Às portas
Do Paraíso,
Um beijo
De divindade,
Mas simples
Como um sorriso.

ESSE BEIJO
Impossível
Que não é do
Foro humano
Vou tentando
Construí-lo
Cada dia,
Cada ano,
Perdendo-me
Pelo caminho
Como sagrado
Em profano.

Artigo

DEZ  NOTAS SOBRE A ACTUALIDADE POLÍTICA

NACIONAL E INTERNACIONAL

Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

SUMÁRIO

I. A Eleição de José Luís Carneiro 
como Líder do PS
II. As presidenciais
III. O caso RTP
IV.O PGR e a inversão 
do ónus da prova.
V. UK – Nigel Farage, 
o senhor que se segue?
VI. Trump e a Espanha
VII. O TC espanhol 
e a Lei da Amnistia
VIII. O “não, é não” de Montenegro
e a Agenda de Ventura.
IX. O Regresso do Caso Spinumviva
X. Em suma
I. A ELEIÇÃO DE JOSÉ LUÍS CARNEIRO
 COMO LÍDER DO PS
1.

O PS foi a votos para a eleição do Secretário-Geral e, como se previa, a afluência de militantes eleitores foi fraca, se comparada com as eleições de 2023. Nas eleições de 2023, disputadas também elas em situação de urgência, com eleições legislativas daí a cerca de três meses, por Pedro Nuno Santos, José Luís Carneiro e Daniel Adrião, a participação traduziu-se em 39.492 votos expressos, tendo Pedro Nuno Santos obtido 24.219 (61,3%), José Luís Carneiro 14.891 (37,7%) e Daniel Adrião 382 (cerca de 1%). Desta vez, a participação foi inferior a metade, com 18.263 votos de militantes eleitores, tendo o único candidato obtido 95,4% dos votos, ou seja, 17.434 votos, um total um pouco superior ao que obteve em 2023, ou seja, 2.543 votos.

2.

A ausência de competição explica, em parte, a fraca afluência, mas não explica tudo. A verdade é que também desta vez se tratou de eleições em situação de igual urgência às de 2023, pois as eleições autárquicas irão ocorrer também daqui a cerca de três meses (não tendo em consideração as presidenciais por serem eleições onde os partidos não estão directamente envolvidos). Não há, deste ponto de vista, diferença entre 2023 e 2025, pois em ambas ocorreram e ocorrem eleições cerca de três meses depois. Bem pelo contrário, as legislativas têm um peso político maior, por determinarem a formação do legislativo e do executivo do país, exigindo uma concentração de esforços que não se verifica nas eleições autárquicas, devido à sua numerosa disseminação pelo território nacional (308 municípios) e ao facto de tudo, no momento, já estar decidido. A diferença, essa sim, consiste em o PS estar na oposição e o PSD no governo, quando antes se verificava a situação inversa. E consiste também em ter eleições autárquicas em vez de eleições legislativas. Mas esta foi a decisão da direcção do partido: promover de imediato a eleição do secretário-geral, estando, como se sabe, já em pole position José Luís Carneiro. E assim foi, visto que não emergiu uma candidatura alternativa. Mas esta situação, a de eleições internas, devida à abrupta saída de Pedro Nuno Santos, e o penoso resultado das eleições legislativas poderiam ter suscitado um sobressalto político interno que, como em 2023, levasse ao aparecimento de candidaturas alternativas e a uma maior mobilização de um partido que já vive em permanente défice de mobilização e de participação. Não se tendo verificado esta situação, a mobilização do partido perante o conhecido descalabro eleitoral acabaria por não se verificar, tendo-se optado, na prática, por uma solução parecida com a de indicação de um “príncipe regente”, invocando a urgência do combate autárquico, exactamente ao contrário do que acontecera em 2023, apesar de as circunstâncias serem semelhantes. Nestas condições, nenhum ilustre militante se quis chegar à frente e o resultado foi este.

3.

Mas a verdade é que a ausência de disputa eleitoral interna pode ser um sinal de falta de vitalidade do partido, tendo também em consideração que a mesma situação está a acontecer generalizadamente também para os cargos intermédios, concelhias e distritais. Não tenho os números, apenas tenho uma impressão geral, mas gostaria de os conhecer: nas últimas eleições para as concelhias e para as distritais em quantos casos se verificou uma única candidatura? Qual foi a percentagem de candidaturas únicas em relação à totalidade das duas eleições (concelhias e distritais) e em que zonas do país isso aconteceu maioritariamente? Só o partido pode dar uma resposta. E a resposta será muito importante para se conhecer o estado de saúde do partido, agora não já em relação aos eleitores, mas em relação à própria militância. Porque é a questão da vida democrática interna que está em causa. Essa resposta dirá se é ou não necessário que a direcção do partido se concentre prioritariamente numa sua profunda reforma, envolvendo, valores, políticas, selecção de dirigentes e candidatos, a sua estrutura orgânica e a sua relação com a sociedade civil. Na moção do actual secretário-geral fala-se, de facto, de um debate para a “reconstrução do PS”, para uma mudança interna, inclusivamente ao nível de uma nova declaração de princípios, da sua orientação política geral e de “uma nova visão de país que faremos nascer”. O reconhecimento existe. E, por isso, veremos que passos irão ser dados, sem a recorrente desculpa de que há assuntos mais urgentes e prioritários a tratar. A verdade é que nenhuma solução poderá ser encontrada se não se começar pelo próprio partido.

II. AS PRESIDENCIAIS

Quanto às presidenciais, a telenovela prossegue com novos candidatos a perfilarem-se: o major-general Isidro de Morais Pereira, conhecido comentador de televisão (TVI, CNN, SIC), o prof. Augusto Santos Silva e o comunista António Filipe. Este último, não tendo conseguido ser eleito nas recentes legislativas (e era, creio, o número dois no círculo eleitoral de Lisboa), avança agora com o objectivo de ser eleito presidente – um candidato presencial, dizem alguns, com humor; Santos Silva, desgostado por António Vitorino, depois de uma longa reflexão, ter dito não, pela enésima vez, acabará por apresentar a própria candidatura (caso contrário, não se compreende o anúncio marcado para hoje) por reconhecer que António José Seguro não está à altura do cargo que aspira conquistar, mesmo tratando-se de uma personalidade que durante três anos foi líder do mesmo partido que permitiu a Santos Silva exercer os mais variados cargos na política institucional (deputado, ministro, presidente da AR); já quanto ao major-general, a candidatura talvez exprima o direito de uma outra arma das forças armadas, o exército, também se ver representada no processo eleitoral presidencial, ainda por cima por um expoente do exército com um sólido curriculum profissional (que fui confirmar). Alguém, com alguma graça, dizia que, antes de se propor como candidato, Augusto Santos Silva faria bem em fazer uma pequena sondagem sobre a sua pessoa no condomínio em que vive. Também acho que o devia fazer, depois de não ter conseguido ser eleito no circulo eleitoral fora da Europa, nas eleições de 2024, clamorosamente derrotado pelo candidato do CHEGA, o partido por ele,  enquanto presidente do Parlamento, tão sistematicamente fustigado. Mas a procissão pode ainda não ter chegado ao fim, com outros candidatos a apresentarem-se pelas mais variadas razões. Tudo isto vem reforçar a ideia de que se deveria, logo que possível (mas só daqui a dez anos), avançar para a eleição do PR por um colégio eleitoral. É que nada disto faz sentido em relação a um cargo com tão poucas competências, excepto a de que pode, por pessoais idiossincrasias, desatar a dissolver o parlamento, repetindo o que o actual presidente fez por três vezes num só mandato… e com um final feliz (para o seu partido de origem).

III. O CASO RTP
1.

O que eu não compreendo é que o PS tenha tomado, como próprias, as dores do jornalista António José Teixeira, há dez anos no cargo de director-adjunto e director de informação da RTP, depois de uma outra passagem, como director de informação, pelo canal da concorrência SIC, onde foi director de informação durante cerca de 8 anos (SIC Notícias). Ainda por cima, o seu afastamento foi decidido por um Conselho de Administração presidido por Nicolau Santos, nomeado durante o consulado de António Costa, e na sequência de uma forte reestruturação da empresa, bem antes já anunciada, em fevereiro de 2024 (ainda era PM António Costa), no plano Estratégico da RTP, aprovado por unanimidade pelo CA e pelo Conselho Geral Independente (CGI). Veja-se, por exemplo, entre outros, o n.º 4.3, al. b) do documento “Linhas de Orientação Estratégica 2024-2026”, do CGI, de 08.02.2024: “repensar a estrutura organizativa e o organograma da empresa” (e o 4.6, al. d). Das razões do afastamento dá precisamente conta, e com clareza, o presidente do Conselho de Administração da RTP, Nicolau Santos, em artigo do dia 30.06, no jornal “Público”, poupando, assim, o deputado socialista Porfirio Silva à maçada de uma audição parlamentar do CA. Confesso que não entendo bem o que AJT represente para o PS, o mesmo que, quando foi para a SIC Notícias (creio que em Janeiro de 2008, mas não me lembro da sua situação profissional quando propôs o livro-entrevista ao PM), interrompeu um livro-entrevista que já estava a fazer com o PM, José Sócrates, invocando incompatibilidade com o novo cargo. Como se fazer um livro-entrevista a um primeiro-ministro em funções (e já iniciado) fosse incompatível com as funções de jornalista, interrompendo-o quando já tinham sido escritas muitas dezenas de páginas. Não vejo por que outro “código ético” (ou deontológico), diferente do código dos jornalistas, um director de informação se deva orientar e comportar. Bom, talvez, agora acomodado nas suas novas e nobres funções, já não se justificasse a maçada de concluir o livro.

2.

Na verdade, o que o PS deveria fazer era tomar-se de dores, isso sim, pelo estado calamitoso em que se encontra a informação em Portugal, designadamente pela inoperância daquela inutilidade a que deram o nome de ERC e que só serve para garantir ordenados aos que a integram. E também não falo do tabloidismo desbragado de todas as TVs, que põe o país em constante depressão informativa. Falo, sim, tão-só, da actual insuportável e gigantesca logorreia que cobre torrencialmente os factos políticos, tornando-os absolutamente irreconhecíveis pelo excesso de opinião que sobre eles desaba em todas as televisões, na sua maior parte emitida por gente pouco preparada e de curriculum  duvidoso (para o efeito) ou por pistoleiros políticos, travestidos de jornalistas ou de analistas políticos. A qualidade da informação é absolutamente fundamental para a sanidade democrática. Mas não estou convencido de que a direcção informativa de AJT possa ser considerada como imprescindível para o efeito e muito menos que a sua substituição seja considerado crime de lesa-pátria ou de lesa-democracia. Sinceramente, o que acho é que uns valem os outros, havendo, naturalmente excepções, de que, no meu modesto parecer, ele não faz parte. A informação é um bem público precioso e deve ser tratado com delicadeza, competência e isenção, devendo até ser objecto de largos consensos, em nome da saúde da democracia e de respeito pela cidadania.

IV. O PGR E A INVERSÃO 
DO ÓNUS DA PROVA
1.

Verdadeiramente espantosa é a afirmação do senhor Procurador-Geral da República (cuja presença no cargo é de duvidosa legalidade) sobre alguém que vai a julgamento, ao dizer que esse será o momento para o imputado provar a sua inocência, invertendo, de uma penada, o ónus da prova: eu acuso-te disto e daquilo e tu é que tens de demonstrar que não há isto nem aquilo de que te acuso. Eu acuso-te, mas não tenho de provar a acusação; tu, sim, deves provar que és inocente. Se o direito está assim vou ali e já venho. Fui revisitar alguns documentos clássicos do direito onde está consignada a vetusta doutrina sobre o assunto (ónus da prova) e verifiquei que não subsistem dúvidas: é princípio geral do direito que quem acusa é que tem de provar e de que quem é acusado e nega não tem de provar a sua própria inocência.

2.

Vejamos:

2.1. – Princípio jurídico clássico:Onus probandi incumbit ei qui dicit, non ei qui negat” (a obrigação de apresentar as provas diz respeito àquele que afirma, não àquele que nega). A inversão do ónus da prova constitui, por isso, uma evidente violação do princípio de presunção de inocência – princípio que, como se sabe, imputa à acusação pública o ónus da prova e não ao acusado o dever de demonstrar a própria inocência;

2.2 – no direito romano: affirmanti incumbit probatio (“a prova recai sobre quem afirma”);

2.3. – no Pandectas: «Probatio ei incumbit qui dicit, non qui negat»;

2.4. – no Corpus Iuris Civilis  “Actor quod adseverat probare se non posse profitendo reum necessitate monstrandi contrarium non adstringit, cum per rerum naturam factum negantis probatio nulla sit ( quem acusa, declarando não poder provar o que afirma, não pode obrigar o culpado a mostrar o contrário, porque, pela natureza das coisas, não há nenhuma obrigação de prova para aquele que nega o facto).

3.

Se antes, muito antes, já era assim, por maioria de razões, e atendendo aos progressos consignados nos documentos universais sobre os direitos fundamentais, deverá hoje também assim ser. Deveriam estar na mente dos que exercem a aplicação da justiça, pelo menos os seguintes artigos da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: 1., 3.1.; 7.1.; 41.1.; 47. e 48. Nenhum Estado de Direito o é se os não respeitar escrupulosamente. Na verdade, ainda que haja tentativas de introduzir sub-repticiamente a inversão do ónus da prova para certos casos, a verdade é que ele é um princípio geral de direito, que deve ser sempre respeitado.

V. UK - NIGEL FARAGE, 
O SENHOR QUE SE SEGUE?

Depois da vitória nas eleições locais do Reino Unido, Nigel Farage e o seu Reform UK averbam vitórias significativas nas últimas sondagens (YouGov e Statista.com) ultrapassando (27% e 28%) os trabalhistas (22% e 23%), os conservadores (17% e 18%) e os liberal-democratas (15% e17%). A sondagem do YouGov dá 271 mandatos ao Reform UK contra 178 dos trabalhistas. Também no Reino Unido a direita radical avança a passos largos, confirmando agora, e depois do BREXIT, a tendência geral num dos poucos países onde os sociais-democratas/trabalhistas governam (o outro é Espanha, agora em sérias dificuldades devido aos casos de corrupção). A confirmar-se esta tendência no Reino Unido, a que se somou uma revolta de mais de cem deputados trabalhistas contra as políticas sociais que Keir Starmer pretendia (e pretende, mas agora de forma mais contida), a social-democracia europeia terá de fazer seriamente contas à vida, incluindo Portugal, onde o PS, pela primeira vez na sua história, passou para o terceiro lugar em mandatos no Parlamento. Alguma coisa de estrutural está a acontecer para que possa passar inobservada. É, pois, de saudar a iniciativa de José Luís Carneiro de encontrar, em Bruxelas, representantes de outros partidos do PSE e a própria IS (que mais parece estar moribunda). Talvez fosse também útil reunir-se com a Foundation for European Progressive Studies (FEPS), que tem sede em Bruxelas e que é dirigida pela portuguesa Maria João Rodrigues, incentivando-a a promover iniciativas de revitalização da social-democracia europeia e da própria Internacional Socialista.

VI. TRUMP E A ESPANHA

Há que reconhecer que é muito estranho que o presidente dos Estados Unidos ouse ameaçar um grande e soberano país por não aceitar a sua imposição sobre o investimento em defesa em percentagem do PIB (3.5/5.0%). Sánchez protagonizou um confronto com Donald Trump ao recusar investir em defesa o valor que os outros líderes europeus membros da Nato submissamente aceitaram.  Sánchez foi muito claro, mesmo perante as ameaças de consequências económicas sobre Espanha devido a essa sua posição. A diferença de Sánchez relativamente aos outros países da NATO foi por ele bem marcada até no posicionamento físico na foto de família. Os espanhóis, pela voz de Sánchez, disseram a Trump que no seu país quem manda são eles e não o presidente dos Estados Unidos. O exacto contrário da atitude do senhor Mark Rutte, que mais pareceu ser um reles serventuário de Trump do que secretário-geral da NATO. Muitos já têm saudades do senhor Jens Stoltenberg, o anterior secretário-geral. Digam o que disserem, os líderes europeus não deram prova de grande verticalidade política perante um Trump altamente impositivo, arrogante ou até mesmo fanfarrão. Diz o povo que a subserviência não é o melhor método para alguém se fazer respeitar. A atitude em política conta tanto ou mais do que os resultados (improváveis) de médio prazo, quando Trump já não for presidente, substituído por um presidente mais respeitador da soberania dos outros Estados e mais cooperante, como acontecera até agora.

VII. O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 
ESPANHOL E A LEI DA AMNISTIA

O Tribunal constitucional espanhol confirmou (por seis votos contra quatro) a constitucionalidade da lei da amnistia sobre o procés da Catalunha. Uma decisão que vem dar razão a Sánchez e a consolidar o processo político desencadeado pelo líder do PSOE, que acabaria por fragilizar politicamente os movimentos independentistas, levando o PSOE catalão a primeiro partido político da Catalunha. Há, pois, que reconhecer que Sánchez conseguiu, pacificamente, pôr um travão a um processo muito perigoso para a unidade de Espanha. Processo onde o PP teve sérias responsabilidades quando enviou para o TC o estatuto da Catalunha (chumbado em 2010), negociado com sucesso pelo governo de Zapatero, em 2006. Isso tem de lhe ser reconhecido, mesmo pelos que não gostam dele, como Felipe González.

VIII. O “NÃO, É NÃO” DE MONTENEGRO 
E A AGENDA DE VENTURA

Se o que parece for, Luís Montenegro está a importar a passos largos a agenda política de André Ventura, não se lembrando de que, além de estar a trair substantivamente o seu “não, é não”, quando chegar o momento da verdade pode acontecer o que muitos dizem: os eleitores preferem sempre o original à cópia. Mas estranha é também a posição do PS ao propor-se como interlocutor privilegiado do PSD para o salvar do abraço de urso de André Ventura, salvando, assim, a democracia. Se há uma direita maioritária, e ao que parece já comprometida em matéria de partilha da agenda política, então que se entendam entre eles, pois o PS terá outra agenda para propor à cidadania. Ao colocar-se na posição de salvador da pátria democrática o que está a fazer é a subalternizar-se e a malbaratar a sua força como importante partido de oposição e pilar da democracia portuguesa.

IX. O REGRESSO DO CASO SPINUMVIVA

O caso Spinumviva voltou à boca de cena em virtude de Luís Montenegro ter interposto um recurso para o Constitucional de modo a evitar ter de enviar, nos termos da Lei 52/2019, provas do serviços prestados por aquela empresa (notícia no DN de 27.06). A quem olhar desapaixonadamente para o assunto a coisa parece não oferecer grandes dúvidas, independentemente do seu enquadramento judicial. Ele, sendo primeiro-ministro, não devia fazer o que fez, mantendo a empresa na família, na sua casa e com o seu número de telefone pessoal, e nos termos em que isso aconteceu (por exemplo, com avenças regulares). No momento oportuno, o assunto voltará a subir com estrondo à agenda pública. E até há um interessado à espreita: André Ventura. Talvez mais do que José Luís Carneiro. A ver vamos.

X. EM SUMA

Não vivemos tempos gloriosos neste ano de 2025. Tudo parece estar em causa, quer no plano nacional quer no plano internacional. Disso parece não haver dúvidas. E se assim for torna-se absolutamente necessário reflectir com profundidade sobre aquilo que é essencial. Isto não vai lá com as tradicionais categorias políticas nem com o clássico encolher de ombros pelos que só pensam na sua vidinha pessoal. É preciso um novo pensamento centrado nas principais fracturas que estão a determinar a vida das comunidades nacionais e a política internacional. Fazer política por inércia será o caminho certo para o fracasso e para abrir caminho a soluções indesejáveis, que já estão nos abater à porta com grande estrondo. JAS@07-2025