Poesia-Pintura

SONHO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “S/Título”
JAS 2023 (original a cores
 e com o título “Epifania”: 
79x82, em papel de algodão,
310gr, e verniz Hahnemuehle,
Artglass AR70 em mold. de madeira)
Pintura de minha autoria
Agosto de 2025

“S/Título”. JAS 2023

POEMA – “SONHO”

SONHEI
Que numa tarde 
Fria
De outono
Te vi
Fixando
O vazio,
Ausente,
Um pouco 
Perdida,
Como quem
Já não sabe
O que sente,
Como exilada
Da vida.

NÃO ESTAVA
Rubro 
De vida
Esse teu rosto,
Mas de uma cor
Um pouco fria,
Como se uma
Moldura
Te engolisse
E apenas
Te mostrasse
Como retrato
De um tempo
Que voltar
Já não podia.

ROSTO
Que eu só 
Sentia
Interiormente
No que ele
Não me dizia
E na mudez
Gélida
De um olhar
Vago,
Em abalada,
À procura
Não sei 
De quê,
Talvez de nada.

EU SENTIA-TE
Como desejo
Onírico
De alma 
Vagante
À procura do que
Nunca 
Encontraria
Para além
De um corpo
Em fuga,
Já distante,
E memória
Dessa imagem
Que perdia.

DE TI, AFINAL,
Só me sobrou
Esse rosto,
Tudo o que
Me resta
Pra te sonhar
No longo
Intervalo
Entre mim
E uma vida
Pelo tempo
Devorada
Em que só já
Sobra o frio
Do silêncio...
............
E mais nada.

SILÊNCIO
Que se aninha
Cada vez mais
Dentro de mim,
Ameaçando
Emudecer-me
E tornar-me
Máscara
Gémea de ti,
Desenhada
Com palavras
Que já não
Encontrarei
Pois teu rosto
E teu rasto
Foi o que 
Eu já perdi...
............
E é por isso
Que de ti
Já pouco sei.

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XXI)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

“S/TÍTULO”. JAS 2025

PAUTA MUSICAL

A POESIA É ARTE e, por isso, mantém uma forte tensão com o belo, não só na forma, mas também na dimensão semântica, no ritmo e na força plástica para que possa tocar a sensibilidade de quem a lê. A poesia é partilha. É preciso senti-la para a compreender. O registo sinestésico ajuda a poesia a ser mais intensamente performativa. Ajuda a “visualizar” o poema, reinterpretando-o com as categorias da pintura e, deste modo, devolvendo-lhe expressividade visual. Mas a música é decisiva para tocar mais intensamente a sensibilidade de quem a lê, podendo, assim, também ouvi-la em surdina. Como quem lê uma pauta musical. Mas a semântica, o ritmo e a melodia ganham mais força e expressividade se forem complementados pela pintura em registo sinestésico. A pintura, com a sua linguagem, sinaliza uma linha interpretativa visual num texto fortemente polissémico e aberto. É este o sentido da sinestesia. Neste caso, o da pintura “Corpo”, a contraluz ajuda a compreender a (relativa) indecisão do poeta acerca da identidade da musa: (https://joaodealmeidasantos.com/2025/08/02/poesia-pintura-274/). E o corpo em contraluz materializa-a. Nele, de certo modo, com a contraluz, exprime-se a neblina do tempo onde a nitidez da imagem se esfuma. Mas é preciso não esquecer que o poeta é um fingidor e que para o fazer melhor usa artifícios retóricos e até sugere (ao pintor) corpos em contraluz. Nunca se saberá se a imagem desses corpos é realmente nítida ou “sfumata” pelo inexorável fluxo do tempo.

RECONSTRUIR A VIDA COM PALAVRAS

Lá dentro do poema “Ilusão” abunda fantasia, saída da alma com as pinças sofisticadas do espírito e da arte: (https://joaodealmeidasantos.com/2025/08/09/poesia-pintura-275/). Voam versos, levados pelo vento, à procura de quem os aceite e os faça seus. Mas trata-se de uma ilusão que não é sentida como tal. É o poder performativo desta linguagem que resolve a aparente ilusão, tornando-a realidade. Ilusão de verdade que se torna uma verdade diferente, uma verdade recriada com materiais plásticos, neste caso, palavras. Talvez seja isso. As palavras transportam sentido que pode ser partilhado, sentido como próprio. E, então, tornam-se realidade efectiva, emoção partilhada. Sobretudo porque elas voam como notas musicais para ouvidos sensíveis. Música que faz vibrar a alma e o corpo. E o poema acontece.

A POESIA É INFINDA

“A poesia é infinda”,  dizia um leitor. Sim, porque se trata de uma linguagem aberta – o mundo cabe lá dentro e não há fronteiras temporais. Pode-se dizer tudo com muito pouco. Um poderoso minimalismo. O milagre da poesia.

A MUSA E O ESTREMECIMENTO

Tem cautela, tem, o poeta – respondi eu a quem lhe dizia, glosando o Garrett, que devia ter cautela. É também por isso que ele finge que tudo é ilusão. E talvez seja. E talvez não. Diz isso num poema para que não se saiba se é mesmo puro fingimento. E quem sabe se não sente mesmo o que diz? Ilusão? Ou finge que é dor a dor que deveras sente, como dizia o poeta? Desvaloriza o poema dizendo que é artifício para fingir que algo acontece, iludindo-se e aquecendo-se com palavras no ambiente frio de uma memória atormentada. Mas a verdade é que – e para que não haja dúvidas – o poema começa logo por referir o “poeta fingidor” e termina dizendo que o amor (causa de poesia) é somente sonho. Mas não era o poeta Calderón de la Barca que, pela voz de Segismundo, também dizia que “la vida es sueño”, “una ilusión, una sombra, una ficción”? Que a musa também o seja até pode acontecer, embora eu pense que sempre haverá por ali o rasto de alguém que fez estremecer o poeta. Estremecimento: o big bang da poesia. Mas que o poema não exista é que é mais difícil de aceitar, quando, como alguém dizia, ele estava ali à frente a falar de ilusão… Mas eu respondo: é poesia. Negar-se poeticamente é sempre possível. A contradição faz parte da linguagem poética. É um recurso que pode intensificar o sentido, provocando espanto ou mesmo estupefacção. E, assim, induzir interacção. O que interessa, do ponto de vista da semântica, afinal, é o sentido do poema, como na fala do Segismundo. Na verdade, tive a ideia de fazer este poema em resposta a uma pergunta: “A musa existe?”. Na verdade, existe e não existe. Tem de existir mesmo que não exista. De outro modo nem haveria poeta. Não há estremecimento sem musa. O poema é sobre isto, este aparente e irresolúvel (a não ser pela poesia) paradoxo. Um poeta precisa de musas como do ar que respira. E ele respira palavras e com palavras. E com palavras gera vida.

TRANSFIGURAÇÃO

Mas é isto que acontece aos poetas se for verdade que a dor e o amor estão na raiz da poesia: “sobreviver (poeticamente) é encontrar um significado no sofrimento”. A poesia é procura e partilha activa de sentido… para o reviver. O poema  “Ilusão” tem como mote uma pergunta feita por uma leitora: “A musa existe?”. E o poeta fingidor responde, no poema, que não. E que nem sequer o poema existe. Que tudo é uma ilusão. Talvez seja. Ele gosta muito do Pirandello – de Così è (se vi pare) ou de Sei personaggi in cerca d’autore, por exemplo. Mas a verdade é que diz isto num poema. Não existe o poema onde diz isto? Talvez a resposta seja: sim e não. Ou melhor, que tudo seja híbrido, meio real e meio fantasia. Talvez. O Croce para dizer algo parecido falava do mitológico “ircocervo” (metade bode, metade veado), de quimera. Mas sempre se poderá dizer que a parte real é a que diz respeito à alma (o habitat da pulsão poética) e a parte da fantasia ao espírito e à forma. Transfiguração do real, onde a transformação conserva e destrói, produzindo uma realidade terceira, uma realidade mista, realidade e fantasia. A quimera existe? Sim e não.

ILUSÃO

Nesse poema (“Ilusão”) o poeta diz que a poesia, tal como o amor, não existe. O Bernardo Soares dizia sobre o amor: “nunca amamos alguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém” (Livro do Desassossego, Porto, Assírio & Alvim, 2015, pág. 125). O objecto de amor é somente a projecção especular de uma ideia em que nos revemos, com que nos identificamos? Talvez se trate mais de imagem do que de ideia, pois esta pertence à esfera conceptual enquanto a imagem pode estar inscrita na alma como luz intermitente ou farol que ilumina. Ou talvez seja a convergência activa entre uma ideia que tem raízes profundas na alma e um outro ser humano. No outro revejo-me como num espelho? Curioso o que diz o Bernardo Soares a este propósito: “O onanista é abjeto, mas, em exata verdade, o onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana” (2015: 125). Não diria tanto, mas esta parece ser a consequência lógica do que ele diz. De qualquer modo, a ser assim, estamos perante uma ilusão sobre a dialéctica do amor. Bom, mas, afinal, o poema talvez seja mais um elogio da ilusão. Da magia. Da fantasia. Com ela, o tempo torna-se mais leve e o passado é reconstruído à medida do desejo. Melhor: a ilusão é leve e intangível como o tempo do poeta, o fluxo temporal, a durée. A ilusão é mais futuro do que passado, porque pode gerar uma tensão criativa. O passado pesa e amarra. Com a ilusão, libertamo-nos dele. Sonhamos e construímos futuro. Damos asas ao fluxo temporal, fazendo prosseguir o passado na linha do presente e do futuro. Sobretudo quando a ilusão é, tal como a poesia, caleidoscópica. A ilusão da cor, dos aromas, da harmonia dos sons, da brisa calmante. Tudo vai lá para dentro do poema e cria realidade. E a ilusão é tão intensa que chega a ser confundida com a realidade. Quando é alta a sua performatividade. Fazer coisas com as palavras, dizia o Austin. O poema pode ser isso tudo somente porque é poema. Dizer a verdade num poema sabe a ilusão. Só porque é poesia. Que não foi criada para contar a verdade. A verdade da poesia é ilusória, mesmo que seja verdade. Curiosa outra afirmação do Bernardo Soares sobre a ilusão: “Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos” (2015: 238). E vem daí o seu poder e a liberdade de que dispõe para tudo poder dizer sem mancha, sem culpa e sem contradição.

AS ASAS DO SONHO

A ilusão faz parte da vida e é ela que nos permite voar com as “asas do sonho”. O excesso de realismo sufoca, mata. Sonhando, resistimos à dor e ao peso insustentável da rotina. A poesia  também é um acto de resistência – pelo voo, pelo sonho, pelo desejo, pela ilusão. E pela leveza, que contraria o insustentável peso da existência… ou do ser. JAS@08-2025

Poesia-Pintura

TEMPO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Travessia”
JAS 2022 (93x118, em papel de algodão,
310gr, e verniz Hahnemuehle,
Artglass AR70 em mold. de madeira)
Agosto de 2025

“Travessia”. JAS 2022

POESIA – “TEMPO”

CHRONOS
É o tempo
Em que tudo
Esmaece,
É neblina
Que cobre
O passado,
É juiz
Do que acontece
E decide
O que merece
Nele ficar
Registado.

O TEMPO
É escultor,
O tempo
É alquimia
Extrai
O ouro
Da vida
Pra só dela
Conservar
O que ela
Potencia.

MAS TAMBÉM É
Bruma
Espessa
Que dissipa
Os perfis
Que a vida
Desenhou,
Um certo rosto
Que já não vês,
Um perfume
Que se esvai,
Uma musa
Que por ti
Num certo dia
Passou,
Mas que desse
Passado
Não sai.

INEXORÁVEL,
O tempo
Desgasta
A vontade
De visitar
O passado
Que já não
Te pode sorrir,
Que já não
Podes tocar,
Onde já não
Podes ir
E não podes
Resgatar.

E ATÉ O POEMA
Vacila
Nessa espessa
Neblina
Onde tudo
Se esbate,
Bruma
Que cobre
O caminho
Que a vida
Nos destina
Pra travar
Esse combate.

MAS SUBSISTE
A memória
Que regista
O presente
Sob forma
De passado
Projectando
No futuro
O que será
Preservado.

ENTÃO O POEMA
Resiste,
Então o poema
Canta
O desejo
De futuro
E recria
O que na vida
Aconteceu
De mais intenso
E mais puro.

É O TEMPO
Da poesia,
O tempo
Da liberdade,
Reconstrói-se
Como futuro
O que já só era
Saudade.

“Travessia”. Detalhe

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XX)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

“Confissões no Jardim”. JAS 2023

SINFONIA

Se a poesia é dirigida à Musa, convocando todos para a viagem em direcção à sua morada, ela tem o valor de um beijo anunciado, de uma carícia partilhada, de afecto declarado, de um abraço público e de beleza oferecida. A poesia é sensível, delicada, dedicada, mas aspira a ser partilhada para existir. Cada palavra contém em si um subtil mundo de sentido e de sedução e procura sempre harmonia (semântica, musical, plástica) com a palavra que se segue. E assim, sucessivamente, até se tornar sinfonia audível, em surdina. Uma cadeia melódica e rítmica. O poeta é, ao mesmo tempo, o compositor e o director de orquestra. E não pode deixar de ter público, quem frua. O poema é a pauta onde a melodia e o ritmo estão inscritos numa cadeia de sentido e de beleza plástica. Sinfonia. “Minha alma”, diz o inexcedível Bernardo Soares, “é uma orquestra oculta: não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia!” (Livro do Desassossego, Porto, Assírio & Alvim, 2015, pág. 262). E não era poeta, este Bernardo Soares. Imaginem se fosse. Todo ele seria uma autêntica casa da música. Mas, na verdade, tudo parte de uma relação de sensibilidade do poeta com a vida (a componente dionisíaca), evoluindo, depois, com a intervenção das categorias da arte (a componente apolínea) – da alma para o espírito, onde tudo ao mesmo tempo se conserva e se transfigura. O resultado é uma exuberante sinfonia de sentido para almas sensíveis. É isso que o poeta procura criar. É isso que o move, por razões que a razão desconhece.

SAUDADES

As saudades, doem. É verdade. E elas não resultam, nem podiam resultar, de um acto de vontade. Desejo ter saudades que doem? Não, não desejo, mas elas acontecem, independentemente da minha vontade. Muitas vezes são saudades tão-só do desejo insatisfeito. Do que não aconteceu, mas que se desejava que tivesse acontecido. Saudades e sonhos e do que havia nesses sonhos (Bernardo Soares). Mantém-se o desejo impossível e isso dói. Mas se o desejo aconteceu daquela forma tão intensa, e de que ainda se tem saudades, então, é sempre possível convertê-lo em força propulsora de beleza, através da arte. Voltar a sonhar e, assim, resolver a saudade de uma forma superior e partilhada.

INDETERMINAÇÃO

A indeterminação relativa à musa no meu poema “Quem és tu?” (https://joaodealmeidasantos.com/2025/08/02/poesia-pintura-274/ ), a que alude o título, é própria da poesia e da condição de poeta. Como ele vive no interior da própria memória é natural que o perfil da musa se esfume “na bruma espessa do tempo” e isso doa, doa muito. É como ir perdendo-a. É por isso que ele, ajudado pelo pintor que o habita, tenta dar forma a rostos como modo de atenuar os efeitos da bruma e da perda progressiva. A coisa é tão drástica que ele, a um certo ponto, já nem sabe quem ela é. Efeitos da espessa bruma do tempo. Ou, pelo menos, tem dúvidas. Claro, há aqui um efeito de “sobredeterminação” (o conceito é do Louis Althusser, em Pour Marx: “surdétermination”) do discurso pela lógica da linguagem poética, que é uma linguagem cifrada, e pelos efeitos do tempo poético, que é um tempo subjectivo.  Que é, digamos, kairótico. E acontece a bruma, uma neblina existencial que envolve o poema, a interpretação e, claro, a musa. A bruma do tempo. É quase um campo semântico para iniciados, onde o mistério fascina, atrai e muitas vezes desconcerta. É nessa bruma que o poeta navega.

MAS A MUSA EXISTE?

Mas se o próprio poeta já não sabe bem quem ela é (o título do poema era “Quem és tu?”) como haveria eu de saber se essa musa existe? Foi assim que respondi a essa pergunta e à afirmação de que o poeta cria subterfúgios, como o Pessoa, para manter a sua própria condição de poeta. Não sei, talvez. Mas sei uma coisa: sem musa não há poeta que sobreviva. Seja ela quem for, tem de existir, nem que seja somente na imaginação do poeta, embora eu pense que haverá sempre o rasto de alguém que passou por ali, pela sua vida.  Ele, na condição de pintor, às vezes, lá vai dando forma a rostos. Figuração para efeitos poéticos. Pretende assim sair dessa desconfortável indeterminação. Mas a pergunta subsiste: esses rostos têm referentes? Pode acontecer que tenham ou também que num rosto haja marcas de outros rostos, numa lógica equivalente à da oitava estrofe deste poema. O Pessoa criou, sim, personagens que até poderiam girar em torno de uma só musa. Por exemplo, da famosa Ofélia. E parece que o Eng. Álvaro de Campos não gostava lá muito dela, da Ofélia (nem ela dele), e estava sempre a criar problemas à relação do Pessoa com ela.  Isto é referido, se bem me recordo, por Richard Zenith na sua monumental e muito bela biografia do Pessoa (Lisboa, Quetzal, 2022). Aqui era ao contrário: uma concreta musa para um personagem inventado. Tudo na poesia é reversível. Até o tempo e os personagens. E é isso, sim, que mantém vivo o poeta ou a condição de poeta. Ainda por cima ele, o poeta, nunca sabe se as mensagens (beijos escritos) chegam à musa porque os fantasmas estão sempre à espreita. Alimentam-se deles, os marotos. E, assim sendo, ele não pode parar, na esperança de que, um dia, um beijo chegue lá, à morada da musa. Mas o carteiro é o vento e como poderá, pois, ele saber se a mensagem chegou? Ainda por cima com esses caçadores de beijos que são os fantasmas… Só pode saber mesmo através do eco do silêncio dela, um sinal que só  eles, os poetas, conseguem ouvir e interpretar. Eu penso que a função do poeta é interpretar o silêncio das musas, o seu eco, e dar-lhe, depois, forma num poema. Como poderia, pois, não haver musa?

RESGATE

A pintura (“Corpo”, para o poema “Quem és tu?”) é o resgate possível. Esfumas-te? Pois, então, eu retrato-te para te poder fixar e beijar com palavras, com um poema. Na poesia há sempre uma certa neblina. E o tempo cronológico, o de Chronos, vai esfumando o perfil da musa, gerando melancolia na alma do poeta. Então ele contrapõe-lhe o seu tempo subjectivo (kairótico) e restaura a figura da musa à medida do desejo. Que é sempre quente ou aquecido. E, claro, a pintura sinestésica ajuda, oh, se ajuda, como se pode ver pela ilustração. O resultado é o tempo restaurado. Mas a neblina permanece sempre, mesmo quando o perfil da musa está desenhado com rigor. É sempre indefinida a fronteira entre o real e o imaginário. É poesia.

O DESEJO E O SONHO

O poema também é um sonho. Sonha o poeta e sonha o leitor. Cada um deles relaciona-se com o poema como se fosse um espelho espiritual – reconhece-se nele a partir da sua própria experiência existencial. É por isso que a linguagem da poesia é flexível e cifrada. Cada um pode aceder-lhe com os seus próprios códigos. Nela podemos sonhar as nossas próprias musas à medida do desejo.

SOPRA O VENTO...

Onde há fumo é porque há fogo. Mas, como dizia o poeta, é fogo que arde sem se ver. Mas arde. E quando o vento sopra mais forte mais o fogo se atiça. O problema (para o poeta) é que, sabendo porque sopra, já não sabe de onde, naquele momento, vem o vento. Porque não se vê o fumo. Arde sem se ver. Às vezes sabia porque o vento lhe soprava de frente. Porque a via e estremecia, tal a força desse vento que chegava com ela.  Mas ele agora tem palavras para suster o vento e não deixar que o fogo se transforme em gigantesco incêndio que queime tudo à sua volta. Digamos que as palavras funcionam como o “contrafogo”, para que o fogo seja controlável e não produza estragos. Acendo-lhe um fogo em sentido contrário àquele para onde o fogo se dirige, queimo o restolho (com palavras) e impeço o fogo de avançar porque já não encontra combustível no caminho. A poesia é contrafogo. Mas que o vento continua a soprar-lhe na alma, isso é verdade. Em tempo de frio o fogo até lha aquece. Os poetas vivem sempre num ambiente frio, embora com alma quente e sujeita ao fogo (que arde sem se ver). Frio pela ausência, pelo silêncio e pela distância. As palavras têm força moderadora sobre a sua alma, espiritualizando-a. E nesse movimento locutório o que acontece é que esse fogo que arde sem se ver passa a poder ser partilhado, aquecendo outras almas e sem perigo de as incendiar. O contrafogo manteve o fogo lá onde estava sem o deixar alastrar.

 IMPERFEIÇÃO

“O perfeito é o desumano, porque o humano é imperfeito”, diz o Bernardo Soares (2015: 248). A forma de nos libertarmos do humano, da dor, do fracasso, da tristeza, da melancolia é procurarmos atingir a perfeição… que já não é humana. Não nos libertamos, passamos para uma outra condição. Mas, depois, acontece que nunca atingimos a perfeição e, por isso, continuamos humanos, embora com a utopia na alma.  Pois é, e é aqui que reside o problema, mas se, como diz o imprevisível Bernardo Soares, “não houver terra no céu, mais vale não haver céu” (2015: 249). Verdade? O céu é de cada um?  Por isso, quando voo com ela no azul do céu estou a levar a terra (talvez o pecado) para o céu, garantindo a sua existência como céu (na terra). Não se pode conceber a existência do céu sem o seu contraponto, que é o pecado. Não atinjo a perfeição, mas torno o céu mais humano. E a minha humanidade mais sedutora. A sedução do pecado.JAS@08-2025

Poesia-Pintura

VOAR

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Pássaro de Fogo”
JAS 2025
Original de minha autoria
Agosto de 2025

“Pássaro de Fogo”. JAS 2025

POEMA – “VOAR”

EU CANTO
E pinto
O meu destino,
Sonhos velados,
A minha vida,
Sonhos marcados
Por tudo aquilo
Que imagino
Nas noites frias
Da despedida.

PERDI A CHAVE
Do meu futuro
Já só me resta
A partida, 
Por isso canto
E, como as aves,
Voo mais longe
E com mais cor
Porque no céu
Há mais azul
E nos meus sonhos
Já não há dor.

MAS HÁ SEGREDO
Não revelado
E se o dissesse
Não deveria,
Como poeta
E fingidor
Eu certamente
Até mentia.

E NÃO O DISSE,
Mas eu pequei
Com murmúrios
D’enamorado
Em poemas
Inocentes
Onde cantava
Esse meu fado
Com palavras
Luminescentes.

POR ISSO VOO
Sempre mais alto,
Trepo nas cores
Pra lá chegar,
O céu azul
Dá-me alento
Pra meus segredos
Nele guardar.

LEVO PALAVRAS
Comigo,
Procuro inspiração.
Levo cor,
O meu abrigo,
Levo a musa
E tudo o mais
E quando parto
Lá para cima
É sempre festa
Nesse meu cais.

LEVO-TE A TI
E desse jeito
Eu sou feliz
Lá bem no alto,
No azul do céu,
Onde respiro
Esse ar puro
E rarefeito,
Lá onde o mundo
É todo meu.

EU CANTO
E pinto
Pra exaltar
Esse teu rosto,
Iluminar
Em aguarela
Esse enleio
Do meu olhar
Pois se te vejo
Logo me vem
Esta vontade
De te pintar.

POR ISSO, CANTO
Por isso, voo,
Por isso subo
Lá para o alto
E dou-te asas
E o infinito,
Voar contigo
No céu azul
É um prazer...
............
E é bonito!

Artigo

A MAGIA DA REGULAÇÃO

E o Poder do Digital

João de Almeida Santos

“Algoritmo”. JAS, 2024. 90×69, pintura digital, papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em moldura de madeira.

O MEU AMIGO JOSÉ MAGALHÃES, a propósito de um Podcast sobre constitucionalismo digital e regulação, de uma conversa entre a Prof.ra Raquel Brízida Castro, Vice-presidente da ANACOM, e Sanjay Puri, Founder & President Regulating AI (Podcast: https://www.youtube.com/watch?v=Htq4TL-ws-g ), depois de, em comentário ao Podcast, ter desenvolvido algumas considerações muito pertinentes sobre esta matéria, desafiou-me, nessa mesma publicação, a dizer algo a propósito, tendo ele até partilhado o Podcast no meu Facebook. Contra aquilo que é habitual, decidi mantê-lo no FB, pelas razões aqui expostas. De resto, sobre esta matéria tive, ao longo do tempo, muitos diálogos privados com ele e até escrevii vários capítulos do meu livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, pág.s 19-68) sobre esta matéria – constitucionalismo digital, algoritmo, plataformas digitais -, numa lógica não meramente jurídica ou constitucional, mas bastante mais ampla, ou seja, sobre os efeitos da IA nos mecanismos internos da própria democracia, designadamente quando ela é aplicada  de forma muito consistente, intensa e generalizada pelas grandes plataformas que hoje dominam o universo digital. Como se sabe, trata-se de um universo muito amplo que atinge a esfera das decisões profissionais e operativas em vários campos (robótica, condução autónoma, marketing, redes sociais, etc.), das decisões públicas e da construção do consenso para o governo das sociedades quer seja em regime democrático quer seja em regime autoritário, para além da já longa (de muitas décadas) aplicação ao universo da construção de mecanismos físicos, ao universo da robótica industrial (sobre esta matéria veja-se o livro de Arlindo de Oliveira, A Inteligência Artificial Generativa, Lisboa, FFMS, 2025, pág.s 65-86, 87, 119-129). E é claro que este novo mundo digital, que evoluiu da robótica industrial para complexos e sofisticados modelos de linguagem (baseados no sistema chamado Generative Pretained Transformer – Oliveira, 2025: 72), vem interferir de forma generalizada na vida dos cidadãos e na esfera que regula a sua vida em sociedade. Que interfere, como se diz no Podcast, no exercício dos direitos fundamentais, que devem estar protegidos pelo poder público. A União Europeia já tem vindo a produzir importante legislação regulatória sobre esta matéria (regulamentos sobre a IA e o digital)) e em Portugal também já houve decisões sobre o controlo público do universo digital e o processo regulatório, tendo sido atribuída à ANACOM a responsabilidade de coordenar uma área que já integra numerosas entidades. Desconheço qual é o papel que, nesta matéria, tem a ERC, mas suspeito que esteja a leste do mundo digital, até atendendo à sua inoperância mesmo em matéria de plataformas tradicionais de comunicação (televisão, rádio, imprensa escrita). E, mesmo assim, esta matéria, tendo efeitos nacionais, parece-me ser mais de nível europeu do que de nível nacional, em particular vista a dimensão global do uso da inteligência artificial e das plataformas digitais. A União Europeia tem dimensão mais do que suficiente para ser interlocutora activa, em matéria legislativa e regulatória, dos centros mundiais de inteligência artificial e das grandes plataformas digitais.

I.

Um outro Amigo, profundo conhecedor do universo do direito e destas matérias que envolvem o digital e a União Europeia, dizia-me que a vontade reguladora da União lhe parecia, mais do que eficaz resolutora dos problemas emergentes, uma atitude crepuscular desfasada da dinâmica do real, sobretudo quando esta atinge níveis globais de alta eficiência, designadamente tecnológica, aplicada à esfera da comunicação (no caso das grandes plataformas digitais que gerem as redes sociais) e também à esfera da decisão sobre os processos sociais e políticos. Não duvido da necessidade de legislar e de regular a IA e a actividade global das grandes plataformas digitais cuja maioria mais que qualificada continua a ter a sua sede nos Estados Unidos. Mas não esqueço que poderosas autocracias como a Rússia (com o VKontakte dos irmãos Durov, por exemplo) e a China (com a Huawei e as suas poderosas plataformas digitais) se preocuparam mais em criar alternativas tecnológicas digitais às que têm sede nos USA em vez de desenvolverem um constitucionalismo digital que, de resto, em regimes autocráticos, nem tem grande sentido, sobretudo se se considerar as próprias limitações constitucionais das liberdades, dos direitos e das garantias da cidadania nestes regimes. Nestes, o importante é o controlo estatal sobre os fluxos de comunicação. Em 2017, num Ensaio na Revista “ResPublica” (17/2017, pág.s 51-78), sobre a Net na China (e em Itália) e o sistema de controlo da Net implementado pelos chineses relativamente ao acesso às plataformas digitais (“Mudança de Paradigma: A Emergência da Rede na Política. Os casos Italiano e Chinês”), tive ocasião de referir que o gigante asiático usou os serviços da empresa norte-americana Cisco Systems (o famoso Projecto Escudo Dourado) para se dotar de um supercomputador com essa finalidade de controlo (além, naturalmente de inúmeros dispositivos legais e serviços de vigilância digital de que já dispunha). Hoje, todavia, a China parece, no essencial, já não precisar dos americanos para esse fim. Fizeram eles próprios a revolução tecnológica de que precisavam a ponto de já competirem eficazmente com os próprios USA. E têm gigantescas plataformas digitais, como, por exemplo, a WeChat ou a Weibo, entre outras. Coisa – e este é o ponto – que a União Europeia não fez, preocupando-se mais com o chamado soft power e a sedução normativa, numa atitude, sim, mais crepuscular do que realista e eficaz. A UE não tem uma grande plataforma digital, não tem uma grande agência de rating, mas começa a ter uma grande máquina, comunitária e nacional, de constitucionalismo digital que opera sobre realidades globais cujo centro está completamente fora do espaço da União (sobretudo nos USA e na China). E em curso está agora essa decisão, através de regulamentos, imposta aos Estados-Membros e, consequentemente a Portugal. Daí este Podcast global com a Vice-Presidente da ANACOM, até porque os governos de António Costa (em Fevereiro de 2024) e de Luís Montenegro já deram alguns passos em frente neste sentido.

II.

A vontade reguladora da União tem um sabor a impotência. Como disse, autocracias que antes dependiam das grandes plataformas digitais desenvolveram-se tecnologicamente e passaram a gerir-se autonomamente, seja para o bem seja para o mal, seja para produzirem bens transaccionáveis e serviços seja para pilotar e controlar a circulação da informação. Por que razão a Europa não o faz, preocupando-se agora, pelo contrário, em se dotar, com procedimentos mais do que duvidosos, como exposto, na passada quinta-feira, no DN, por Alberto Costa  (DN, 07.08), de uma política de rearmamento, três anos depois, perante a aparente ameaça de uma potência que, afinal, anda há três anos a tentar derrotar a Ucrânia sem ainda o ter conseguido? Creio que uma das queixas de Donald Trump relativamente à União Europeia se refere também às multas aplicadas aos gigantes tecnológicos americanos. Imagine-se, por exemplo, que a Google (Alphabet Inc.) decidia interromper os seus serviços digitais à Europa ou que outras plataformas (por exemplo, o Facebook ou o Instagram) o faziam também. Bem sabemos que a União Europeia é um gigantesco mercado para estas plataformas, mas em linha de princípio sempre é possível imaginar uma interrupção para medir as suas gravosas consequências.  Seria o caos e talvez uma revolta generalizada. De qualquer modo, é evidente que a actual configuração política e institucional da União, para não falar das actuais lideranças, explica, em muito, o bloqueamento que se verifica em relação a esta matéria.

III.

Este é, quanto a mim, o principal problema. Maior do que o da inoperância da legislação e de regulação sobre serviços que actuam a uma escala maior do que ela, que têm sede fora dela e que dispõem de bases de dados gigantescas com dados oriundos da própria União. E nem sequer se pode dizer que isto é um sonho, uma utopia, porque países há que já o fizeram e com sucesso. E o mesmo vale para as agências de rating, dominando, as americanas, cerca de 93% do mercado europeu de rating e tendo elas, portanto, o poder de ditar o valor dos juros das dívidas públicas a cobrar pelos grandes grupos mundiais que financiam as dívidas públicas. Estes são exemplos do declínio da Europa e da perda de poder, com a contrapartida da fuga para um normativismo insuficiente e pouco eficaz. Não digo absolutamente que a regulação não seja necessária, mas seguramente não é suficiente. E até temo que venha a ter resultados pífios, mas seguramente suportados por máquinas imensas de burocratas a viverem disso. Se elas existirem para fazer um serviço igual ao da ERC, estamos conversados.

IV.

Num interessante livro sobre o constitucionalismo digital na Europa, Giovanni de Gregorio (Digital Constitutionalism in Europa, Cambridge, Cambridge University Press, 2022), fala da emergência de uma “functional sovereignty” que seria imputável à relação entre o cidadão/user e as grandes plataformas digitais, numa espécie de nova constituency  estabelecida por contrato privado entre estas e aquele, ao lado da clássica soberania fundada na relação entre o cidadão e o Estado. Seria uma espécie de terceira constituency, depois daquela que parece existir, mediante contrato privado, entre os financiadores das dívidas soberanas e os Estados nacionais, a ponto de determinarem verdadeiros programas de governo (veja-se os casos de Portugal, Grécia e Irlanda e o excelente livro de W. Streeck, Tempo Comprado – Coimbra, Actual, 2013). No caso das plataformas digitais verifica-se uma relação subliminar entre os utilizadores (que, no caso das redes sociais, já representam cerca de 63% da população mundial) e as plataformas, capaz de configurar um ambiente de construção de consenso que se traduz, depois, em conversão eleitoral e, consequentemente, em acesso ao poder de Estado por parte dos protagonistas cujos fluxos comunicacionais são pilotados eficazmente pelas grandes plataformas (já existe um marketing específico para trabalhar com estas realidades, o marketing 4.0, do senhor Kotler). Ao lado do espaço público mediatizado cresceu, pois, um enorme espaço privado onde ocorre a relação contratual entre o cidadão/user e as plataformas (cedências de direitos em troca de funcionalidades oferecidas), com consequências profundas não só no plano económico, mas também no plano político (o livro de Shoshana Zuboff sobre o Capitalismo da Vigilância fala abundantemente disso). Aqui crescem autênticos partidos-plataforma em condições de dominar o espaço público a partir de relações (contratuais) que são privadas, não públicas. Uma novidade que parece estar a crescer a uma intensidade imparável e capaz de mudar radicalmente o panorama político mundial com a desfiguração irreparável da própria democracia representativa. A “soberania funcional” viria, assim, a substituir a soberania clássica que se exprime na ideia de povo-nação.

V.

Visto este panorama, é claro que se torna necessário desenvolver um constitucionalismo digital, sendo, todavia, também evidente que ele não basta por ser evidente a assimetria entre o poder regulatório dos Estados nacionais ou mesmo da União e o poder efectivo das plataformas sediadas nos USA ou na China. Mas este é só um dos aspectos da soberania, porque, como vimos, há um outro que se exprime também como “soberania funcional”, ou seja, o da segunda constituency, a dos credores da dívida pública, a que se junta o poder efectivo das “big three”, das três agências de rating americanas.  Uma imponente “soberania funcional” em dois níveis que tende a abafar a clássica soberania do povo-nação ou do povo-União (se é que podemos usar esta expressão para designar a cidadania europeia). O problema é, pois, o da progressiva imposição de uma vasta “soberania funcional”, decorrente das duas constituencies (financeira e digital), àquela que, afinal, é a constituency originária que se exprime na relação pública entre a cidadania e o Estado, entre o contribuinte e o Estado, com o resultado de vermos a democracia esvair-se, mantendo-se como mero invólucro formal e simulacro apenas com funções de legitimação do poder.

VI.

Torna-se, pois , necessário reponder a este problema, certamente com mecanismos e normas de regulação, mas sobretudo com a criação urgente das suas próprias plataformas digitais e agências de rating  (para não referir sistemas de dívida pública ancorados no financiamento nacional, como acontece, por exemplo, em Itália e no Japão) de modo a que os cidadãos/users/contribuintes possam tranquilamente ver os fluxos comunicacionais e financeiros migrar para elas. Sempre coexistiria uma “soberania funcional” com a clássica soberania e outras constituencies com a constituency primária, mas elas ficariam mais directamente ao alcance de uma gestão política da própria União Europeia. Mas não creio que, com estas lideranças, a União enverede por este caminho. E, assim, veremos a direita radical progredir na sua caminhada para o poder. JAS@08-2025

Poesia-Pintura

ILUSÃO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Bola de Cristal”
Original de minha autoria
Agosto de 2025

“Bola de Cristal”. JAS 2025

POEMA – “ILUSÃO”

A MUSA
Nunca existiu,
Dizia
O poeta
Fingidor,
Era apenas
Artifício
Pra simular
O amor.

E O POEMA
Também não,
São palavras
Ritmadas
Pra criar
A ilusão
De vidas
Que são
Criadas
Com alguma
Inspiração.

NADA EXISTE
A não ser
Como desejo
Que não se torna
Real,
Só nuvens
Que o vento
Leva
E já não voltam
Ao céu
Onde o poeta
Navega
E desenha
Com palavras
Tudo aquilo
Que perdeu.

O VENTO
É seu amigo
Leva palavras
Consigo
Pra simular
A vontade
D’estar sempre
Ao pé dela
Evitando
O castigo
De só a ver
Da janela.

É TUDO
Piedosa
Ilusão
De quem nunca
Partiu
Do lugar
Que habitou
Onde o amor
Mais não era
Do que aquilo
Que sonhou.

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XIX)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

QUANDO O AMBIENTE INIBE A FRUIÇÃO POÉTICA

Quando o tempo físico é propício, sereno, plácido, agradável pode acontecer que a poética fruição sofra uma pequena conversão, digamos, ambiental. A sensação de bem-estar físico é tão boa, tão cheia, que o estímulo poético perde poder propulsivo. É coisa natural. E até acho que o pedido de socorro à musa não seja suficiente para atenuar essa placidez ambiental. Os sentidos às vezes funcionam como contraponto da poesia. Podem provocá-la, sim, mas ela, depois, ocorre em ausência, na penumbra, no silêncio, na sombra. A poesia tem algo de nocturno. A ecologia poética é outra coisa. Não coincide com a outra. Às vezes é mesmo antagónica. Não é por acaso que dizem que a poesia é filha da dor e da penumbra… Sol? Só se for interior.

O BEIJO

Pois penitencio-me por não ter incluído o “Beijo” de João de Deus nos textos que serviram de leitmotiv ao meu poema “O Beijo”, que sempre publico no dia seis de Julho. Mas ele, o João de Deus, era ambicioso e mais afortunado. Não lhe bastava um. Logo pedia outro e outro… Três, a conta que (João de) Deus fez. E invocava as três Graças e as três Virtudes. E as Folhas Santas (que o lírio fecham). Tudo para ter mais um beijo. Ao que o beijo obriga! Mas este poeta só o deu com o olhar. O primeiro. E, ao que parece, por aí se ficou… até decidir que os daria escritos, mesmo que os fantasmas os bebessem. E aí começou a odisseia dos beijos em forma de verso. Mesmo sabendo que ficariam pelo caminho, bebidos pelos fantasmas. Acabou como Sísifo: ter de recomeçar a subida ao Monte até que lhe chegasse (mas nunca chegaria) o sinal de que, ao menos, um beijo chegou ao destino. Ele pensa que um dia o beijo (escrito) há-de chegar. Mas a verdade é que andam por lá os fantasmas para impedir que ele saiba se algum beijo chegou, se algum não foi bebido por eles. E a musa também não ajuda porque a sua linguagem é a do silêncio. Os fantasmas são amigos das musas porque são eles que obrigam os poetas a beijar sem parar por força da incerteza em que vivem. O princípio da incerteza é a alma da poesia. Há ali uma cumplicidade que faz da fraqueza (ignorância acerca do destino dos beijos) força (a permanente subida ao Monte). E, às vezes, as palavras – que parecem leves como plumas – pesam como pedregulhos maciços. A dor é congénita. E a incerteza é constante. São elas que fazem caminhar o poeta. Mas, pelos vistos, o João de Deus até conseguiu convencer a musa. E, em vez de um, até terá conseguido três. Incrível. O problema é que nunca lhe haveriam de bastar só três… E, por isso, teve de continuar. Mas há uma saída: que o vento que os leva os devolva como notícia sob forma de eco do silêncio da musa. Ao poeta basta-lhe isso… para logo recomeçar.

ACONTECER

Quando não aconteceu, mas o desejo existiu, as saudades são maiores. Então pode acontecer a poesia, o olhar comprometido com a memória ou mesmo com o próprio testemunho físico desse passado. Algo que não se completou, mas que se pode ir completando através de outras formas. A poesia é a melhor forma de o fazer. Mas para isso ela tem de nos acontecer. O poema “O Beijo” é um acontecimento, num dado dia e numa circunstância especial. Acontece uma vez por ano. Envolto num certo mistério. Próprio da poesia. E da natureza dos beijos escritos. O mistério só pode ser cabalmente compreendido pelos iniciados. E tudo se torna mais denso quando coberto pelo silêncio, dando origem a algo de tipo oracular. Eu sinto isso assim.

A MUSA DO LEITOR

Eu tenho a certeza de que o leitor também tem a sua musa e que, no poema, de algum modo a reconhece. Alguma sua faceta. Não coincidem os referentes (o do poeta e o do leitor), certamente, mas coincidem os sentimentos, as emoções, as memórias, as intensidades (eu gosto mais da palavra “intensities”)… Tudo enriquecido pela pauta poética que embala esse turbilhão de emoções que a poesia faz renascer em palavras. Sim, a poesia é música para a nossa alma.

TEMPO REVERSÍVEL

O tempo da poesia é um tempo reversível – tanto é presente como passado ou futuro. É um tempo sem tempo. Os gregos tinham aquele tempo que se chama “aoristo”, um tempo sem tempo. O Bergson falava de durée – um continuum, o que já não é que se projecta no que é ou no que será. Tempo subjectivo, diferente do tempo cronológico ou espacializado. O tempo da poesia é um tempo criativo e pode distender-se entre o passado e o futuro, sem contradição. Ele resolve o enigma do tempo. Tudo ao alcance da vontade poética que dá asas ao desejo. Sim, é um tempo diferente. Mais livre. Reversível e ao alcance do desejo. O poeta move-se nele livremente, embora o impulso tenha origem numa pulsão maior do que a sua própria vontade. Condenado a ser livre, poder-se-ia dizer. Assim se redime. E se liberta, construindo o seu futuro com palavras. Reconstruindo-se. O tempo da poesia é um tempo em tensão orientado para o futuro.

TEMPO-SOMBRA

O tempo persegue-nos porque nos segue como a nossa sombra. Mas na sombra não nos conseguimos ver, observar, identificar, porque é apenas um perfil tosco. A sombra está sempre lá. A identificação só é possível através do espelho, porque ele regista o tempo que passa por nós. O espelho é mais do que a sombra, é o reflexo do tempo que passa. O tempo é sombra e é reflexo especular. É daí que resulta o poder do espelho de Athena. Apercebo-me do fluxo temporal sobre mim através do espelho. Mas é uma visão indirecta. Não petrifica. Se te observares no espelho também o tempo te observará, mas sem te petrificar. Viver o presente? Talvez não seja possível porque cada instante vivido já é passado. O presente é uma ficção. Melhor: é uma tensão entre o futuro e o passado. O presente verdadeiramente corresponde ao desejo. É por isso que ele é o tempo da poesia. E só ela permite a reversibilidade do tempo. E assim dá poder ao presente porque permite a sua livre projecção quer para o passado quer para o futuro. Poesia é liberdade.

TEMPO-AORISTO

No tempo poético não manda Chronos, o Deus do tempo espacializado. Há um tempo próprio dos poetas: o kairós. O tempo oportuno. É esse o tempo dos poetas. Que é também o tempo dos deuses. No tempo dos poetas convergem todos os tempos: passado, presente e futuro. E até o aoristo, esse tempo sem tempo dos gregos. É nele, neste tempo sem tempo, que os poetas se movem. Porque é um tempo de liberdade, um tempo reversível. É essa a ampulheta que mede o tempo dos poetas.

AS SAUDADES DOEM

Compreendo: as saudades podem doer. É melhor voar com o tempo e para o futuro, montados em palavras ao sabor do vento que nos sopra na alma. A ilustração do poema “Tempo” tem as duas faces de Janus, a que olha o passado (para trás) e a que olha para o futuro (para a frente). O passado dói menos se o contarmos com os olhos postos no futuro. Tinha razão a Karen Blixen.

POESIA E SAUDADE

É curioso, a saudade pode, de facto, ser induzida pela poesia, pela fantasia, elevando-a a canto sofrido, mas esteticamente fruído, a doce melancolia. A memória revisitada com dor e prazer – essa mistura explosiva de onde pode sair a obra de arte. Ou as obras de arte quando a poesia e a pintura cooperam na construção de beleza. Reviver em arte é projectar o passado no futuro através da forma que dá corpo aos frutos da fantasia. Memória, tempo e fantasia. O poeta é, sim, fingidor, mas a ficção reside essencialmente na forma e no estatuto da linguagem poética, onde acontece a transfiguração do referente, quando e se ele existir. A musa inspira o poeta, sim. Não há poesia sem musas nem fantasmas. Ambos povoam a imaginação do poeta e até lhe servem de aconchego existencial e espiritual. Ele quer sempre chegar à fala com a musa, mas sabe que os fantasmas estão sempre ali, à esquina e à espera dos beijos escritos que ele lança ao vento. Pois é. Um desafio enorme, esse, o de chegar à musa. Mas tem de ser porque sem ela ele definha. Um sem-abrigo que está sempre a tentar construir a casa onde se possa encontrar com ela. Essa casa é o poema. Uma tarefa de Sísifo.

RESSONÂNCIA

O poeta está situado temporalmente no “instante oportuno”, no kairós. De certo modo, a poesia é favorável a um temp(l)o de iniciados, pois trata-se de uma linguagem cifrada. Assim: tempo que acontece num templo: Temp(l)o. Vitrais, silêncio, penumbra, o eco do silêncio, o sagrado. Mas é uma linguagem universal. E vale pela sua “ressonância” na alma de quem a lê. E é altamente performativa.

O PODER DA POESIA

“A poesia pode tudo”, dizia-me um habitual leitor da minha poesia. E pode tanto mais quanto mais bela for, quanto mais musical e sensitiva for.

POESIA E REVELAÇÃO

O pintor e, sobretudo, o poeta nunca devem revelar (se houver) os referentes ou informações que possam induzir interpretações das obras, sobretudo porque, no essencial, não são decisivos para o efeito estético que se pretende propor. A obra deve falar por si, como se não existisse uma qualquer exterioridade que a tivesse suscitado ou a que se possa referir. E, neste caso (o da ilustração do poema “Saudade”), a “Musa” até está associada intimamente ao poema que ilustra em registo sinestésico. Um perfil de mulher (“Musa”). Não é poético procurar o referente da pintura ou do poema.

A INVENÇÃO DO AMOR

No poema “Saudade”, a rua proibida a que o poeta se refere, pelo que sei, não era a mesma da do Daniel Filipe, a do poema “A Invenção do Amor”. Mas era uma rua interdita pelas circunstâncias da vida. É claro que o amor é perigoso, rompe barreiras, não obedece aos cânones racionais nem à autoridade e vai por ali adiante sem cuidar de se proteger. É por isso que ele está irmanado com a poesia. Na liberdade e na beleza. Ambos vão por ali adiante sem cuidarem de se resguardar. O amor poético é vida, é a vida escrita em liberdade plena. A invenção poética é uma invenção do amor. Não há ditadura ou obstáculo que o possa parar ou oprimir. Se isso acontecer ele reactiva-se em intensidade. É este o sentido do poema de Daniel Filipe. JAS@08-2025

Poesia-Pintura

QUEM ÉS TU?

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Corpo”
Original de minha autoria,
baseado em foto em contraluz,
de autor anónimo
 (Colecção privada)
Agosto de 2025

“Corpo”. JAS 2025

POEMA – “QUEM ÉS TU?”

HÁ POESIA
No teu corpo
(Dizia o poeta),
Delicada
Geometria,
Contraponto
Expressivo
De uma quente
Melodia.

HÁ MÚSICA,
Pauta
Da beleza física
Que levita
Entre cores,
Aromas
E sons,
Em surdina,
Construindo
Enigmas
Que só o
Poeta
Pode decifrar,
Como quem
Te ilumina.

TENS A ALMA
Inscrita
No corpo,
Como eu
A tenho
Nas palavras
Com que construo
Os poemas
No discurso da
Beleza
Em que me vou
Enredando
Como em teia
Que me prende
E me liberta...
...........
Com leveza.

VEJO-TE
Num bailado
A solo,
Dançando
A despedida
E canto-te
Num poema
Ao ritmo do
Corpo
E da alma
Com que te
Vais retratando
Nas telas
Pintadas
Da vida.

E PEÇO-TE
Que não pares
Esse teu
Silencioso
Bailado
Até que eu
Te desenhe
Em palavras
Pra que nelas
Te revejas
Como num espelho
Encantado.

MAS, AFINAL,
Quem és tu?
(Perguntou
O poeta)
Tu, que tantos
Rostos tens
E me falas
Com o silêncio;
Tu, que danças
Em movimentos
Que apenas
Acontecem
Na alma
De um poeta;
Tu, cuja melodia
É a do vento
Que me responde
Com o eco
Dos poemas,
Vindo não sei
De onde?

NÃO SEI MESMO
Quem és...
Talvez a musa
Inventada
E constante
Que me aquece
A alma
Quando o calor
Das palavras
Desaparece
E ameaça
Tornar-se
 Gelo puro
E cortante.

QUEM ÉS TU,
Afinal?
Uma só com
Muitos rostos
Ou todos
Os rostos
Num só
Que se esfuma
Cada vez mais
Na bruma espessa
Do tempo,
Sem piedade
Nem dó?