A MAGIA DA REGULAÇÃO
E o Poder do Digital
João de Almeida Santos

“Algoritmo”. JAS, 2024. 90×69, pintura digital, papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em moldura de madeira.
O MEU AMIGO JOSÉ MAGALHÃES, a propósito de um Podcast sobre constitucionalismo digital e regulação, de uma conversa entre a Prof.ra Raquel Brízida Castro, Vice-presidente da ANACOM, e Sanjay Puri, Founder & President Regulating AI (Podcast: https://www.youtube.com/watch?v=Htq4TL-ws-g ), depois de, em comentário ao Podcast, ter desenvolvido algumas considerações muito pertinentes sobre esta matéria, desafiou-me, nessa mesma publicação, a dizer algo a propósito, tendo ele até partilhado o Podcast no meu Facebook. Contra aquilo que é habitual, decidi mantê-lo no FB, pelas razões aqui expostas. De resto, sobre esta matéria tive, ao longo do tempo, muitos diálogos privados com ele e até escrevii vários capítulos do meu livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, pág.s 19-68) sobre esta matéria – constitucionalismo digital, algoritmo, plataformas digitais -, numa lógica não meramente jurídica ou constitucional, mas bastante mais ampla, ou seja, sobre os efeitos da IA nos mecanismos internos da própria democracia, designadamente quando ela é aplicada de forma muito consistente, intensa e generalizada pelas grandes plataformas que hoje dominam o universo digital. Como se sabe, trata-se de um universo muito amplo que atinge a esfera das decisões profissionais e operativas em vários campos (robótica, condução autónoma, marketing, redes sociais, etc.), das decisões públicas e da construção do consenso para o governo das sociedades quer seja em regime democrático quer seja em regime autoritário, para além da já longa (de muitas décadas) aplicação ao universo da construção de mecanismos físicos, ao universo da robótica industrial (sobre esta matéria veja-se o livro de Arlindo de Oliveira, A Inteligência Artificial Generativa, Lisboa, FFMS, 2025, pág.s 65-86, 87, 119-129). E é claro que este novo mundo digital, que evoluiu da robótica industrial para complexos e sofisticados modelos de linguagem (baseados no sistema chamado Generative Pretained Transformer – Oliveira, 2025: 72), vem interferir de forma generalizada na vida dos cidadãos e na esfera que regula a sua vida em sociedade. Que interfere, como se diz no Podcast, no exercício dos direitos fundamentais, que devem estar protegidos pelo poder público. A União Europeia já tem vindo a produzir importante legislação regulatória sobre esta matéria (regulamentos sobre a IA e o digital)) e em Portugal também já houve decisões sobre o controlo público do universo digital e o processo regulatório, tendo sido atribuída à ANACOM a responsabilidade de coordenar uma área que já integra numerosas entidades. Desconheço qual é o papel que, nesta matéria, tem a ERC, mas suspeito que esteja a leste do mundo digital, até atendendo à sua inoperância mesmo em matéria de plataformas tradicionais de comunicação (televisão, rádio, imprensa escrita). E, mesmo assim, esta matéria, tendo efeitos nacionais, parece-me ser mais de nível europeu do que de nível nacional, em particular vista a dimensão global do uso da inteligência artificial e das plataformas digitais. A União Europeia tem dimensão mais do que suficiente para ser interlocutora activa, em matéria legislativa e regulatória, dos centros mundiais de inteligência artificial e das grandes plataformas digitais.
I.
Um outro Amigo, profundo conhecedor do universo do direito e destas matérias que envolvem o digital e a União Europeia, dizia-me que a vontade reguladora da União lhe parecia, mais do que eficaz resolutora dos problemas emergentes, uma atitude crepuscular desfasada da dinâmica do real, sobretudo quando esta atinge níveis globais de alta eficiência, designadamente tecnológica, aplicada à esfera da comunicação (no caso das grandes plataformas digitais que gerem as redes sociais) e também à esfera da decisão sobre os processos sociais e políticos. Não duvido da necessidade de legislar e de regular a IA e a actividade global das grandes plataformas digitais cuja maioria mais que qualificada continua a ter a sua sede nos Estados Unidos. Mas não esqueço que poderosas autocracias como a Rússia (com o VKontakte dos irmãos Durov, por exemplo) e a China (com a Huawei e as suas poderosas plataformas digitais) se preocuparam mais em criar alternativas tecnológicas digitais às que têm sede nos USA em vez de desenvolverem um constitucionalismo digital que, de resto, em regimes autocráticos, nem tem grande sentido, sobretudo se se considerar as próprias limitações constitucionais das liberdades, dos direitos e das garantias da cidadania nestes regimes. Nestes, o importante é o controlo estatal sobre os fluxos de comunicação. Em 2017, num Ensaio na Revista “ResPublica” (17/2017, pág.s 51-78), sobre a Net na China (e em Itália) e o sistema de controlo da Net implementado pelos chineses relativamente ao acesso às plataformas digitais (“Mudança de Paradigma: A Emergência da Rede na Política. Os casos Italiano e Chinês”), tive ocasião de referir que o gigante asiático usou os serviços da empresa norte-americana Cisco Systems (o famoso Projecto Escudo Dourado) para se dotar de um supercomputador com essa finalidade de controlo (além, naturalmente de inúmeros dispositivos legais e serviços de vigilância digital de que já dispunha). Hoje, todavia, a China parece, no essencial, já não precisar dos americanos para esse fim. Fizeram eles próprios a revolução tecnológica de que precisavam a ponto de já competirem eficazmente com os próprios USA. E têm gigantescas plataformas digitais, como, por exemplo, a WeChat ou a Weibo, entre outras. Coisa – e este é o ponto – que a União Europeia não fez, preocupando-se mais com o chamado soft power e a sedução normativa, numa atitude, sim, mais crepuscular do que realista e eficaz. A UE não tem uma grande plataforma digital, não tem uma grande agência de rating, mas começa a ter uma grande máquina, comunitária e nacional, de constitucionalismo digital que opera sobre realidades globais cujo centro está completamente fora do espaço da União (sobretudo nos USA e na China). E em curso está agora essa decisão, através de regulamentos, imposta aos Estados-Membros e, consequentemente a Portugal. Daí este Podcast global com a Vice-Presidente da ANACOM, até porque os governos de António Costa (em Fevereiro de 2024) e de Luís Montenegro já deram alguns passos em frente neste sentido.
II.
A vontade reguladora da União tem um sabor a impotência. Como disse, autocracias que antes dependiam das grandes plataformas digitais desenvolveram-se tecnologicamente e passaram a gerir-se autonomamente, seja para o bem seja para o mal, seja para produzirem bens transaccionáveis e serviços seja para pilotar e controlar a circulação da informação. Por que razão a Europa não o faz, preocupando-se agora, pelo contrário, em se dotar, com procedimentos mais do que duvidosos, como exposto, na passada quinta-feira, no DN, por Alberto Costa (DN, 07.08), de uma política de rearmamento, três anos depois, perante a aparente ameaça de uma potência que, afinal, anda há três anos a tentar derrotar a Ucrânia sem ainda o ter conseguido? Creio que uma das queixas de Donald Trump relativamente à União Europeia se refere também às multas aplicadas aos gigantes tecnológicos americanos. Imagine-se, por exemplo, que a Google (Alphabet Inc.) decidia interromper os seus serviços digitais à Europa ou que outras plataformas (por exemplo, o Facebook ou o Instagram) o faziam também. Bem sabemos que a União Europeia é um gigantesco mercado para estas plataformas, mas em linha de princípio sempre é possível imaginar uma interrupção para medir as suas gravosas consequências. Seria o caos e talvez uma revolta generalizada. De qualquer modo, é evidente que a actual configuração política e institucional da União, para não falar das actuais lideranças, explica, em muito, o bloqueamento que se verifica em relação a esta matéria.
III.
Este é, quanto a mim, o principal problema. Maior do que o da inoperância da legislação e de regulação sobre serviços que actuam a uma escala maior do que ela, que têm sede fora dela e que dispõem de bases de dados gigantescas com dados oriundos da própria União. E nem sequer se pode dizer que isto é um sonho, uma utopia, porque países há que já o fizeram e com sucesso. E o mesmo vale para as agências de rating, dominando, as americanas, cerca de 93% do mercado europeu de rating e tendo elas, portanto, o poder de ditar o valor dos juros das dívidas públicas a cobrar pelos grandes grupos mundiais que financiam as dívidas públicas. Estes são exemplos do declínio da Europa e da perda de poder, com a contrapartida da fuga para um normativismo insuficiente e pouco eficaz. Não digo absolutamente que a regulação não seja necessária, mas seguramente não é suficiente. E até temo que venha a ter resultados pífios, mas seguramente suportados por máquinas imensas de burocratas a viverem disso. Se elas existirem para fazer um serviço igual ao da ERC, estamos conversados.
IV.
Num interessante livro sobre o constitucionalismo digital na Europa, Giovanni de Gregorio (Digital Constitutionalism in Europa, Cambridge, Cambridge University Press, 2022), fala da emergência de uma “functional sovereignty” que seria imputável à relação entre o cidadão/user e as grandes plataformas digitais, numa espécie de nova constituency estabelecida por contrato privado entre estas e aquele, ao lado da clássica soberania fundada na relação entre o cidadão e o Estado. Seria uma espécie de terceira constituency, depois daquela que parece existir, mediante contrato privado, entre os financiadores das dívidas soberanas e os Estados nacionais, a ponto de determinarem verdadeiros programas de governo (veja-se os casos de Portugal, Grécia e Irlanda e o excelente livro de W. Streeck, Tempo Comprado – Coimbra, Actual, 2013). No caso das plataformas digitais verifica-se uma relação subliminar entre os utilizadores (que, no caso das redes sociais, já representam cerca de 63% da população mundial) e as plataformas, capaz de configurar um ambiente de construção de consenso que se traduz, depois, em conversão eleitoral e, consequentemente, em acesso ao poder de Estado por parte dos protagonistas cujos fluxos comunicacionais são pilotados eficazmente pelas grandes plataformas (já existe um marketing específico para trabalhar com estas realidades, o marketing 4.0, do senhor Kotler). Ao lado do espaço público mediatizado cresceu, pois, um enorme espaço privado onde ocorre a relação contratual entre o cidadão/user e as plataformas (cedências de direitos em troca de funcionalidades oferecidas), com consequências profundas não só no plano económico, mas também no plano político (o livro de Shoshana Zuboff sobre o Capitalismo da Vigilância fala abundantemente disso). Aqui crescem autênticos partidos-plataforma em condições de dominar o espaço público a partir de relações (contratuais) que são privadas, não públicas. Uma novidade que parece estar a crescer a uma intensidade imparável e capaz de mudar radicalmente o panorama político mundial com a desfiguração irreparável da própria democracia representativa. A “soberania funcional” viria, assim, a substituir a soberania clássica que se exprime na ideia de povo-nação.
V.
Visto este panorama, é claro que se torna necessário desenvolver um constitucionalismo digital, sendo, todavia, também evidente que ele não basta por ser evidente a assimetria entre o poder regulatório dos Estados nacionais ou mesmo da União e o poder efectivo das plataformas sediadas nos USA ou na China. Mas este é só um dos aspectos da soberania, porque, como vimos, há um outro que se exprime também como “soberania funcional”, ou seja, o da segunda constituency, a dos credores da dívida pública, a que se junta o poder efectivo das “big three”, das três agências de rating americanas. Uma imponente “soberania funcional” em dois níveis que tende a abafar a clássica soberania do povo-nação ou do povo-União (se é que podemos usar esta expressão para designar a cidadania europeia). O problema é, pois, o da progressiva imposição de uma vasta “soberania funcional”, decorrente das duas constituencies (financeira e digital), àquela que, afinal, é a constituency originária que se exprime na relação pública entre a cidadania e o Estado, entre o contribuinte e o Estado, com o resultado de vermos a democracia esvair-se, mantendo-se como mero invólucro formal e simulacro apenas com funções de legitimação do poder.
VI.
Torna-se, pois , necessário reponder a este problema, certamente com mecanismos e normas de regulação, mas sobretudo com a criação urgente das suas próprias plataformas digitais e agências de rating (para não referir sistemas de dívida pública ancorados no financiamento nacional, como acontece, por exemplo, em Itália e no Japão) de modo a que os cidadãos/users/contribuintes possam tranquilamente ver os fluxos comunicacionais e financeiros migrar para elas. Sempre coexistiria uma “soberania funcional” com a clássica soberania e outras constituencies com a constituency primária, mas elas ficariam mais directamente ao alcance de uma gestão política da própria União Europeia. Mas não creio que, com estas lideranças, a União enverede por este caminho. E, assim, veremos a direita radical progredir na sua caminhada para o poder. JAS@08-2025