Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XXIV)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

"Chakra". JAS 2025
1.

Nella mia poesia “Catarsi”, con l’illustrazione “Profilo di un Poeta”, si tratta, infatti, di un dialogo con chi non c’è più, rispondevo a una mia cara Amica fiorentina, Laura. Ma è anche un tentativo di far rinascere ciò che sembra perduto, ho aggiunto. Una voce inaudibile che diventa, sì, “musica nell’anima”, come diceva lei. Il miracolo della poesia. 

2.

A ilustração do poema “Catarse” até poderia ter sido um rosto feminino, mas preferi o perfil de um poeta (que é vagamente o de quem escreve) porque é dele a catarse. A poesia tem sempre essa dimensão catártica, mas também se eleva sobre ela porque procura, na fase apolínea, aproximar-se do belo, quer através da cenografia e da coreografia semânticas quer através da música. A poesia também é um bailado de palavras em palco intangível que não precisa de uma orquestra exterior. A música reside nelas, nas palavras, que são notas musicais. É por isso que a poesia é difícil. O poeta não só é cenógrafo, coreógrafo e “narrador”, mas também é compositor. Tem de ter bom ouvido, glosando a Szymborska. Tem de ser polivalente, além de sentir, em si, o pulsar da (sua) vida. Depois tudo acontece no palco da poesia perante aqueles que a partilham.

3.

Purificação, mas também redenção – é o que acontece na poesia. O poeta precisa, para poetar, de movimento emocional directo ou do fervilhar intenso da memória afectiva. Inquietação. A poesia não existe sem ela. E sem ela, será mera retórica poética, mero virtuosismo linguístico, mero divertissement. A poesia é mais, é “pathos”. Começa assim e procede, depois, com o desenvolvimento espiritual, apolíneo. É então que acontece a purificação e a redenção. No fim, ela passa a ser partilhável, na semântica e na estética, na beleza, que, na poesia, é altamente performativa. Na poesia o “pathos” subsiste estilizado. Há sentido e há música. Há cenografia e coreografia nesse bailado de palavras.

4.

O milagre da poesia desenvolve-se no interior de um processo que começa no sentir e, depois, evolui para o plano espiritual, sem que haja um corte com a génese. O poema não é fuga (Szymborska), mas metabolização espiritual do sentimento, que persiste.

5.

A poesia é, pois, catártica. E a leveza é uma sua característica fundamental. A catarse acontece no processo de levitação (poética). A poesia acrescenta vida à vida, como, em geral, acontece com a arte. Ela, enquanto arte, tem vida própria e não tem uma função instrumental. É a inspiração que a sustenta. No momento da composição há como que um “corte” com aquilo que lhe está na origem porque entram no processo exigências estéticas próprias – é o momento apolíneo. Mas não é um corte propriamente dito, porque o “pathos” persiste. E também não é fuga. A dor prolonga-se no exercício poético. E no próprio processo compositivo até acontecem as dores do “parto”. Que são dores diferentes da que deram origem ao poema. Glosando Calvino, privação sofrida, levitação desejada. No fim, o poeta sente-se mais leve e mais livre. A dor transformou-se pela verbalização e pela estilização.

6.

Paixão, amor, pulsão irresistível, tudo gerado por esses seios generosos a que se refere o poema “Os Seios” e que estão retratados na pintura, de minha autoria, “Mulher”. A presença remota dos seios maternos na fantasia do poeta? Tudo se mistura numa poética dos seios. Mulher fatal que se impôs à atenção do poeta? Não sei. Há no poema um pouco de tudo. Alusões e indefinição. A imagem ajuda. Sensualidade? Também, claro. O poeta terá visto algo que o fez estremecer – seios generosos que o fizeram regressar à infância? Ou lhe despertaram a libido a um ponto de não retorno? Uma autêntica fixação que o obrigou a recorrer à poesia para dela se libertar? O desejado, mas inacessível? Uma luz intensa que o encandeou? Há estímulos sensoriais que provocam estremecimento. E a arte em torno dos seios corresponde ao poder que eles exercem sobre a sensibilidade do poeta. Eu creio que este poema procura percorrer todo o espectro semântico que a beleza de uns seios pode gerar – da figura maternal à paixão sensual.

7.

“Em pose / De maternal / Sedução”, diz o poeta. E mais diz: “Criança perdida /No mundo, /Náufrago /Em alto mar… “. Mas também, “et pour cause”, intensa sensualidade nos seios daquela mulher (no referido poema). É a história de uma atracção fatal centrada nos seios de uma mulher. Tão importante que o poeta/pintor os pintou. Todos sabemos que os seios têm uma carga sensual profunda e remota porque aludem ao início da vida, ao momento maternal. É disso que o poema fala.

8.

O que diz Wislawa Szymborska:

  1. a) “Seria belo e justo se bastasse a força dos sentimentos para decidir do valor artístico da poesia. Se assim fosse teríamos a certeza de que Petrarca é uma nulidade em comparação com um rapazolas (…) perdido de amores, enquanto Petrarca conseguiu manter-se numa condição nervosa propícia para a invenção de belas metáforas”.
  2. b) “Cada poeta conserva em si a tentação de dizer tudo numa poesia”.
  3. d) “A poesia não é para eles (poetas) recriação e fuga da vida, mas a própria vida”.
  4. e) ”O poeta lírico escreve prevalecentemente sobre (a partir de) si próprio”
  5. f) “A poesia, apesar de se ocupar de temas eternos como o encanto da primavera ou a tristeza outonal, deve sempre fazê-lo como se fosse a primeira vez”.
  6. g) “Desde que o mundo é mundo, nunca houve um (poeta) que contasse as sílabas com os dedos. O poeta nasce com os ouvidos”.
  7. h) “A poesia (…) foi e será um jogo, e não há jogos sem regras”.
  8. i) “A melhor poesia é a que não tem título (…)”. “…em cada poesia o que conta verdadeiramente é a impressão de que aquelas palavras, e não outras, estiveram séculos à espera de se encontrarem e unirem numa totalidade indivisível”.
  9. j) “o talento não se limita à ‘inspiração’ ”.
  10. l) “Não há professores de poesia”
  11. m) “… também o poeta, se for um verdadeiro poeta, deve repetir continuamente a si próprio: ‘não sei’ ” (Szymborska, 2009: 973-995, 1000, 1040, 1043).
9.

Sublinho, destas frases, que constam da obra desta poetisa (Opere, Milano: Adelphi, 2009, 2.ª edição), as seguintes ideias:

  1. Não basta sentir para poetar. O passo seguinte é de natureza espiritual.
  2. O poeta tem a tentação de dizer tudo num só poema. Dizer tudo com o mínimo, como se as poucas palavras que usa chegassem ao palco poético pela primeira vez.
  3. A poesia não é recriação nem fuga da vida, mas a própria vida. O compromisso estético é com a vida.
  4. O poeta escreve (sobretudo) a partir da sua própria experiência, mas com pretensões de se elevar à universalidade e de provocar a partilha.
  5. Mesmo quando escreve sobre o mesmo o poeta deve sempre fazê-lo como se fosse a primeira vez.
  6. A poesia tem regras, mas não é prisioneira delas. Ela aspira sempre à reinvenção.
  7. O talento não se limita à inspiração – requer muito trabalho e paciência.
  8. Na poesia as palavras (finalmente) encontram-se numa unidade expressiva como se estivessem a esperar por isso há muito tempo.
  9. O poeta deve conservar-se sempre num estado de ignorância expectante.

O exercício poético deve observar estes princípios se quiser atingir resultados verdadeiramente poéticos. É isso que parece querer dizer a poetisa polaca Wislawa Szymborska, prémio Nobel da literatura, em 1996. 

10.

Com Szymborska, mais um passo para chegar às variáveis que integram o processo poético, tal como eu o entendo, mas em boas companhias. JAS@12-2025

Poesia-Pintura

MISTÉRIO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “La Cortigiana”
JAS 2023
(71x88, em papel de algodão
Hahnemuehle, 310gr, Artglass AR70
em mold. de madeira)
Original de minha autoria
Dezembro de 2025
"La Cortigiana" - JAS 2023

POEMA – “MISTÉRIO”

QUE ROSTO
Tão belo,
O teu,
E que voz
Tão afinada
Que dá corpo
Ao teu canto
Nos momentos
De alegria,
Quando és
Por amante
Desejada,
Por quem em ti
Mais confia.

QUE CORPO
Tão perfeito,
Em movimento,
A dançar,
Que magia
No palco
Da fantasia
Quando te vejo
Voar.

QUE MÃOS
Tão criativas
Sempre
Entregues
Às tuas
Belas pinturas,
Com segura
Inspiração,
De todas
Entre as mais puras,
Por divina
Vocação.

QUE MUSAS 
Que nos encantam
Por tudo aquilo
Que são,
Por sua imensa
Beleza
E por tudo
O que nos dão.

MAS, TU,
O que sabes
Tu fazer?
Disse à musa
Que um dia
O encantou;
O que, de ti,
Podes dar?
Foi o que então
Perguntou.

NADA
Tens pra oferecer,
Nada tens
Na tua mão
Para os que apenas
Te amam
Sem saber
Por que razão?

SÃO MISTÉRIOS
Do amor
De que não
Se conhece
Razão
(Respondeu-lhe,
Fria, a musa),
São mistérios,
Isso são,
Enigmas
Que os poetas
Cantam
Com arte
E precisão.

ESTRANHO
Fenómeno
Da vida,
Mistério
Sem causa
Aparente,
Filho incerto
Do destino,
Entra na alma
Do amante,
Qual passageiro
Errante,
Poderoso
E genuíno.

CANTAR,
Dançar,
Pintar,
Nada disso
Já interessa,
Quando o amor
Bate à porta
Logo a aventura
Começa.

E COMEÇA
Sem aparente
Razão,
Nasce ali
E logo nasce
Intenso
Como paixão
Para que a vida
Renasça
Com a força
De um vulcão.

Artigo

REFLEXÕES SOBRE A CRISE DA POLÍTICA

João de Almeida Santos

"S/Título" - JAS 2025
1.

GIAMBATTISTA VICO (1668-1744), um polivalente intelectual italiano, formulou na sua principal obra (Scienza Nuova, 1744)a teoria que viria a ser conhecida como a dos “corsi e ricorsi” que enquadra a evolução histórica das sociedades numa lógica cíclica entre fases progressivas e fases regressivas, sendo estas conhecidas como o regresso da barbárie, mas pior do que a barbárie originária. Lembrei-me de Vico quando decidi escrever este artigo sobre a crise da política porque considero que, infelizmente, estamos a viver precisamente uma fase regressiva da história contemporânea.

2.

Ou seja, as democracias representativas, que se foram impondo historicamente com o seu património de direitos, de liberdade, de pluralismo, de progressiva igualdade e de promoção pública de bens sociais (sobretudo no chamado mundo ocidental), entraram numa fase regressiva, dando lugar a uma retracção democrática que encontra expressão privilegiada na redução da política ao puro exercício do poder e deste ao exercício da força (militar, económica e tecnológica). O que se está a passar nos Estados Unidos, com a presidência Trump e o MAGA, é exemplar e dá uma ideia muito clara disto – soberanismo americano exacerbado e impositivo, ameaças de intervenção militar ou de anexação (Venezuela, Canadá, Gronelândia), imposição arbitrária de tarifas a todo o mundo, ataque directo à União Europeia no recente documento de estratégia de segurança nacional, xenofobia levada ao extremo e alinhamento político com os defensores de políticas autocráticas. Mas também o outro polo mais poderoso do mundo, o da China, se mantém com uma sólida ditadura, ao mesmo tempo que a Rússia de Putin se tem vindo a reforçar como Estado autocrático em clara contraposição com a tradição ocidental (a que, em parte, ela pertence), de resto, considerada pelo Kremlin e pelos seus ideólogos eslavófilos como estando em fase de progressiva decadência. E inimigo a abater.

3.

Depois, no outro polo do poder, a União Europeia, têm ganhado progressivo protagonismo as forças da direita radical, que já governam alguns países, que fazem parte dos governos de outros e que poderão vir, em breve, a conquistar o poder noutros ainda. Forças políticas que se inscrevem na lógica de um decisionismo político soberanista pouco compatível com a natureza da democracia representativa e com a lógica tendencialmente federal para que apontava a União Europeia, nas visões mais avançadas. Cito, a título de exemplo, em primeiro lugar, a Itália e a Hungria, em segundo lugar, a Suécia, a Finlândia, a Eslováquia e a Croácia e, finalmente, o Reino Unido e a França. Não é coisa de somenos.

4.

Se dermos uma volta pelas sondagens mais recentes nos principais países europeus verificamos que, na Alemanha, o primeiro partido já é o Alternative fuer Deutschland, com 26% (mas a cerca de um ponto da CDU/CSU); no Reino Unido e na média das várias sondagens o Reform UK, de N. Farage, já está 9 pontos acima do segundo maior partido (com previsão de maioria absoluta na Câmara dos Comuns), o Labour; na França, para as presidenciais, o seguro vencedor da primeira volta será Jordan Bardella ou Marine le Pen (se puder candidatar-se) com cerca de 34%, podendo vir a vencer a segunda volta, por exemplo, contra Édouard Philippe, do centro-direita, ou Raphael Glucksmann, do centro-esquerda.

5.

Com uma União Europeia em crise, nas várias frentes – desde as actuais lideranças até a um modelo de gestão política inócua exercida por personalidades que mais parece serem meros altos funcionários da União, mas também pelo atraso que se está a verificar no plano da tecnologia, sem plataformas digitais ou agências de rating  dignas de nota, e apenas concentrando a sua acção numa política regulatória que tem punido fortemente os gigantes tecnológicos americanos (por exemplo, a Google recentemente punida com quase 3.000 milhões de euros por abuso de posição dominante em publicidade) e que tem dado origem a forte contraposição com as autoridades americanas -, se nela se vierem a impor de forma significativa os protagonistas da direita radical, alinhados, no essencial, com a linha trumpiana, ela acabará por ficar reduzida ao mínimo denominador comum e subordinada exclusivamente aos interesses nacionais dos mais poderosos países da União (Alemanha, França, Itália), numa claríssima regressão funcionalista cada vez mais distante da perspectiva federalista ou constitucionalista, que animava os maiores e melhores defensores de uma Europa política. Na verdade, o que hoje se está a verificar é um ataque concentrado à União Europeia, com vista à sua fragmentação ou mesmo ao seu desaparecimento. Ataque proveniente de leste (a Rússia), de oeste (os USA de Trump) e de dentro (a direita radical), todos numa preocupante convergência.

6.

A ideia de uma União em decadência conheceu recentemente um avanço no documento sobre a estratégia de segurança nacional americana e pode ser reconhecida nesta passagem do documento:  “But this economic decline (da Europa) is eclipsed by the real and more stark prospect of civilizational erasure”. Apagamento ou erosão civilizacional que se deve à acção da União Europeia e de outros organismos transnacionais, que minam a liberdade política e a soberania, a políticas migratórias disruptivas, à censura da liberdade de expressão, à supressão da oposição política, à queda das taxas de natalidade e à perda das identidades nacionais e da autoconfiança (TheWH, 2025: 25). Neste aspecto, embora num contexto discursivo diferente (os Estados Unidos não querem acabar com a Europa – digo, Europa, não União Europeia -, mas salvá-la), a posição exposta no documento não difere muito das posições (muito mais radicais) do ideólogo A. Dugin (veja-se Santos, 2024: 92-94) ou de Sergey Karagánov (*), um influente intelectual russo, e da de muitos teóricos europeus, num filão que remonta a Oswald Spengler, ao seu “A Decadência do Ocidente” (1923), tão apreciado por Mussolini, e que no essencial identificam a actual Europa precisamente como estando em situação de decadência.  Vejamos o que diz Karagánov:  

Em condições de decadência moral e política da Europa (ou desse ocidente que “provocou a guerra na Ucrânia”), é necessário começar a siberização o mais depressa possível”-

Mas vale a pena continuar a ler o que diz Karagánov:

Recordo o óbvio, mas que normalmente nos tem sido ocultado: a Europa é o centro de todos os principais males da humanidade, duas guerras mundiais, inúmeros genocídios, colonialismo, racismo e muitos outros ‘ismos’ repugnantes. Nos últimos anos, o totalitarismo liberal, misturado com o transhumanismo, o lgbtismo, a negação da história e, na essência, a antihumanidade”.

Sem mencionar os seus exageros alucinados relativos ao uso do nuclear, ele sublinha a necessidade de dissolução da União Europeia a par de uma viragem decisiva para Oriente, para a “terra prometida” da Sibéria, para a “siberização da Rússia” (Karagánov, 2025). Mais palavras para quê?

7.

Para o filão conservador americano MAGA, para os eslavófilos radicais, como Karagánov ou Dugin, e para a direita radical europeia a União Europeia representa um enorme obstáculo para a implementação de uma política de redução dos direitos de cidadania e do Estado Social e da afirmação do soberanismo assente num nacionalismo serôdio em contraste com uma globalização que, já não sendo possível travar, pode, todavia, ser pilotada e exclusivamente dominada pelas nações mundialmente mais fortes. A União Europeia, tal como ainda é, representa um obstáculo consistente a esta estratégia de confinamento do mundo em “zonas de influência” controladas por países geridos por sistemas autocráticose não só como soft power, de que ainda dispõe, mas também pela sua economia, a terceira mundialmente maior, pela importante quota detida no comércio mundial (só inferior à da China) e pelo poder internacional do próprio euro, hoje a segunda moeda mais forte nas transações internacionais e enquanto reserva mundial de capital.

8.

Neste processo, o que se nota é uma clara exaustão, a nível nacional e comunitário, quer do centro-direita quer do centro-esquerda, que, por um lado, se deixaram adormecer nos braços do modelo social europeu, numa política essencialmente redistributiva e numa prática de alternância governativa sustentada numa insistente dialéctica endogâmica; e que, por outro lado, se deixaram infiltrar por um incomportável maximalismo de direitos com a chancela do politicamente correcto e de um suave, mas difuso, wokismo identitário, como se eles pudessem colmatar a pobreza política e ideológica dos partidos da alternância governativa, alapados comodamente na imensa e generosa máquina do poder estatal. De resto, tem sido esta pobreza ideológica e esta gestão asséptica e sem alma do poder, contaminada gravemente pela ideologia identitária dos novos direitos, que tem servido de alimento essencial à direita radical e permitido um seu enorme crescimento eleitoral.

9.

Por outro lado, esta direita radical em crescimento tem-se afirmado com um projecto cada vez mais claro de exercício do poder: soberanismo, decisionismo político (de que é exemplo o famoso premierato da senhora Giorgia Meloni), políticas anti-imigração, duro combate ao construtivismo social e defesa da componente orgânica natural dos processos sociais e humanos, ataque frontal ao identitarismo da esquerda dos novos direitos e à sua infiltração nas instituições nacionais e internacionais, drástica redução da separação dos poderes a favor do poder executivo (decisionismo exacerbado), minimalismo da União Europeia e alinhamento com as tendências autocráticas dos principais polarizadores políticos internacionais, a começar pelos USA de Trump.   

10.

O que se tem visto é que estas linhas de orientação têm dado bons resultados eleitorais, têm alimentado o seu crescimento e têm constituído a âncora deste processo regressivo, que se espera não venha a ter consequências equivalentes ou piores (Deus nos livre dos Karagánov que por lá, pela Rússia, pululam) do que as que se verificaram nos trinta anos regressivos do século XX (1914-1945).

11.

Como reagir a estas tendências em nome da democracia e da União Europeia – é o desafio que se põe. Precisamos de lideranças à altura, que é o que não temos neste momento na União; a este respeito, é muito sintomático que o “Politico Europe”, 12/2025, pp. 17-47, não inclua nos 28 mais influentes na Europa o Presidente do Conselho Europeu, o português António Costa. Precisamos de dotar a União de uma estrutura política de vértice robusta e legítima que esteja em condições de tomar decisões políticas sustentadas e avançadas e não de agir exclusivamente de acordo com a lógica e os protagonistas das diplomacias nacionais, contra o poder das quais se bateu energicamente Altiero Spinelli. E precisamos de uma profunda renovação da política em vez de continuarmos a agir como se vivêssemos em período de normalidade democrática. Precisamos de um sobressalto cívico da cidadania e não da polarização da atenção social para assuntos política e socialmente irrelevantes e desviantes ou de uma política que apenas funcione por inércia, por incapacidade das classes dirigentes dos países que integram a União. E precisamos de visão para dotar a União de instrumentos de desenvolvimento e de defesa próprios para salvar aquela que ainda é uma forte posição na geopolítica e na economia mundial e que reforcem e revigorem aquela que foi uma sua importante característica na política mundial: o seu soft power e o poder de influência modelar sobre os países em desenvolvimento.

12.

O problema é que isto chegou a um tal ponto crítico que até mais parece que devamos deixar exaurir este processo regressivo para que se verifique uma “destruição criativa” (para usar este curioso conceito da economia) em condições de dar início a uma nova fase progressiva, exactamente como nos sugere a filosofia da história do Giambattista Vico. Mas esta seria uma infeliz esperança que aconteceria no meio e longas e irreparáveis perdas até que uma nova fase de progresso chegasse. Vivemos tempos de difícil composição entre o pessimismo da razão e o optimismo da vontade.

Nota e Referências

* Doutor em História, foi Conselheiro de Yeltsin e de Putin, amigo de Lavrov, professor e  director científico da Faculdade de Economia Mundial e Política Mundial da Universidade Nacional de Investigação Económica, presidente honorário do Conselho de Política Externa e de Defesa.

1. Karagánov, S., 2025, “Europa: Uma Despedida Cruel”.  In: https://sociologiacritica.es/2025/09/04/una-mala-ruptura-con-europa-sergei-karaganov/.

2. The White House, “National Security Strategy”, November, 2025.

3. Santos, J. A. (2024). Política e Ideologia na Era do Algoritmo. S. João do Estoril: ACA Edições. JAS@12-2025

Poesia-Pintura

CATARSE

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Perfil de um Poeta”
JAS 2025
Original de minha autoria
Dezembro de 2025
"Perfil de um Poeta" - JAS 2025

POEMA – “CATARSE”

SINTO A TUA FALTA
E como a sinto
Eu danço
E não descanso
Até cair exausto
No palco
De um poema.

OUÇO O ECO
Do teu silêncio
Apenas sussurrado
E, como o ouço,
O meu canto
É um pouco
Triste,
Desencantado.

MAS JÁ NÃO SINTO
O veludo
Da tua pele
E como não o
Sinto
Eu pinto-a
De cores intensas...
...........
Numa folha
De papel.

NÃO OUÇO
A tua melodia
E como não a
Ouço
Fico em silêncio
Para melhor
Te sentir
Cá dentro
Da fantasia.

FAZ-ME FALTA
A tua voz,
Faz-me falta
O teu sorriso
E por isso
Te recrio
E te levo
Ao paraíso.

DA TUA FALTA
Nasce em mim
A orquestra
Para uma sinfonia,
Andamentos
Sem fim,
Contrapontos do
Silêncio,
Corpos que
Dançam,
Luzes, cores,
Aromas, flores,
Uma bela
Cenografia
Neste palco
De palavras,
Neste palco
De magia.

E ASSIM NASCE
Este meu canto,
Do silêncio e
Da dor,
Na dança
E no amor,
Em poesia,
Nas palavras
Que lanço
Ao vento
Construindo
Estas pontes
Pra te ter
Por companhia.

VISITO-TE
De mil maneiras,
Procuro-te
Numa torre
De marfim
Enredado
Numa teia
Para melhor
Te sentir
Com a leveza
Da arte
E em forma
De sereia,
Naufragar
Nesses teus olhos
Ao som
De uma bela
Melopeia.

Artigo

DECLARAÇÃO DE VOTO

Nas Eleições Presidenciais

João de Almeida Santos

"S/Título". JAS 2025
1.

APESAR DE CONSIDERAR que o Presidente da República deveria ser eleito por um colégio eleitoral alargado, como já aqui tive oportunidade de referir e de fundamentar, naturalmente que votarei nas próximas eleições de Janeiro. E o meu voto irá para António José Seguro (AJS). Em primeiro lugar, porque a sua candidatura se inscreve na minha área política, que é a da social-democracia. Depois, porque reconheço que ele dispõe, pelas funções políticas e institucionais que desempenhou, de experiência política suficiente para o desempenho de uma função em que se destaca o poder de dissolução do Parlamento, quase sem limitações (a não ser nos últimos seis meses do mandato e no início de uma nova Assembleia, também seis meses). Mas também porque julgo ser um candidato democrata, moderado e dotado de bom senso, que é uma característica fundamental para a função. Depois da extravagância expositiva e do activismo dissolutivo que tivemos durante os últimos anos é aconselhável alguma prudência e algum recato e bom senso. E creio que AJS tem as características necessárias para esta mudança.

2.

Mas há uma razão estritamente política que merece ser considerada. AJS ao propor-se como candidato independente (de partidos), obedecendo exclusivamente às suas próprias razões pessoais e ao resistir estoicamente a ataques públicos um pouco indecorosos por parte de uma parte da chamada elite socialista, conseguiu manter-se firme, acabar por ficar como candidato único do centro-esquerda e por merecer o apoio público do PS. Só esta razão seria suficiente para lhe dar o meu voto. Certos personagens do PS, tendo desempenhado funções relevantes no partido e no Estado, deveriam sentir-se obrigados a uma certa contenção nas declarações públicas acerca de uma pessoa que desempenhou durante três anos as funções de líder do partido que, ao longo do tempo, lhes foi confiando importantes responsabilidades no Estado. As razões pessoais, que são legítimas, não se devem sobrepor, num caso desta natureza, às razões políticas. Mas, mesmo assim, tendo AJS levado a bom porto a sua candidatura como a única do centro-esquerda também acabou por impor uma derrota a estes intemperados personagens. O voto é livre e secreto, certamente, mas a responsabilidade política de certos protagonistas obedece a critérios morais que, neste caso, sendo também políticos, não me parece que tenham sido devidamente considerados.

3.

Sim, é verdade que AJS não conseguiu reunir os apoios da esquerda fragmentária que persiste em dar batalha ao centro-esquerda mesmo quando este se pode revelar fundamental para impedir más soluções políticas. Acham-no demasiado de direita para os seus gostos políticos e, por isso, talvez prefiram o original em vez da cópia. Coisa, de resto habitual, se exceptuarmos os quatro anos da “geringonça”, construída em dois pilares essenciais: não permitir que a direita que ganhou as eleições formasse governo e salvar a pele de António Costa, que, depois de um grave período de austeridade, não só não ganhou as eleições sequer por “poucochinho”, mas perdeu-as por muito.  Agora, em linha com a clássica orientação, PCP, Bloco e Livre provavelmente vão disputar a primeira volta e contribuir para que o candidato do centro-esquerda não chegue à segunda volta, abrindo fileiras para que seja a direita a disputar a segunda volta e a ganhar as presidenciais. Dir-se-á que, deste modo, ou seja, mantendo-se distante da esquerda radical, AJS possa vir a obter votos do centro-direita, colmatando as brechas eleitorais que venham a verificar-se no seu próprio espaço político. Mas, no essencial, tomando em consideração, por um lado, a dimensão eleitoral do PS e a dimensão conjunta de toda a esquerda radical e, por outro, a fragmentação da direita, o mais provável seria que AJS chegasse à segunda volta, podendo disputar efectivamente a presidência. Não sendo assim, e tomando em consideração as sondagens, será mais difícil que o candidato do centro-esquerda chegue à segunda volta.

4.

Mais uma vez, a esquerda radical só pensa em usar o período eleitoral da campanha presidencial para se promover e para testar o valor eleitoral de alguns dos seus personagens, pouco lhe importando o desfecho das presidenciais. Mais, conquistando o bloco da direita a presidência, o seu capital de queixa aumentará, podendo, deste modo, prosseguir melhor o rumo de uma progressiva e inelutável irrelevância política.

5.

O Presidente da República dispõe de poucos poderes, mas dispõe de um que é muito importante: o de poder dissolver o parlamento ainda que haja uma maioria absoluta parlamentar, como se viu, por exemplo, com esta presidência que agora, e felizmente, chega ao fim, com os resultados que conhecemos.

6.

A eleição do Presidente da República é, juntamente com as legislativas e as autárquicas, um dos pilares fundamentais do nosso sistema democrático. E, por isso, e porque dispõe de um poder único no sistema – o de dissolução do Parlamento, sem que haja um instrumento equivalente que também a ele se possa aplicar, como é, por exemplo, o do impeachment –, o seu uso pode produzir profundas alterações no equilíbrio de forças, como se viu com a dissolução decidida em 2023, que levaria o PSD ao poder, depois de uma breve maioria absoluta do PS.  Uma dissolução que tem muito que se lhe diga, designadamente pelo facto de o PS a ter aceite passivamente, sem que os seus órgãos electivos se tenham pronunciado e reivindicado energicamente o direito de o PS continuar a governar, embora com outro primeiro-ministro. É conhecida, em parte, a mecânica insólita deste processo e o resultado a que ele levou, e não parece ser difícil, para já, tirar dele algumas, e preocupantes, ilações. Até por isso, julgo ter fundadas razões para votar em António José Seguro. É apenas um voto, em urna, mas aqui publicamente argumentado e justificado. JAS@12-2025

Poesia-Pintura

OS SEIOS

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Mulher”.
Pintura de JAS (2025) sobre foto
artística de autor anónimo
e de minha propriedade.
Dezembro de 2025.
"Mulher". JAS 2025

POEMA – “OS SEIOS”

ERAM OS SEIOS
De uma mulher
A sua atracção
Fatal,
O que ela
Lhe dizia
Para ele
Era banal,
Mas a forma
Do seu peito
Era desenho
Perfeito
De um corpo
Sensual.

CONTOU-ME,
Em tarde
De melancolia,
Da arrebatada
Pulsão,
Quando ele
Nesse dia
A perdera
E ali mesmo
Vira morrer
Essa fatal
Atracção.

ERAM SEIOS
Generosos
(Disse-me,
Com certo brilho
Nos olhos,
Mas serena
Amargura)
Os dessa linda
Mulher,
Uma imensa
Alvura
Em formas tão
Sensuais...
............
Era a física
Mais pura
Dos corpos
Que se atraem
E seus embates
Fatais.

CONFESSOU,
Com olhar
Um pouco vago,
Que o seu corpo,
Insistente,
O convidava
A olhar,
Bem de frente,
Com a libido
A ferver...
..........
E, então,
Estremecia,
Ficava paralisado,
Não sabia
O que fazer.

MAS NADA MAIS
Ele queria
(Foi o que sempre
Lhe disse)
Do que vê-la
Em pose
De maternal
Sedução,
Alimento
Dessa sede
Tão faminta,
Dessa irresistível
Pulsão...

SENTIA-OS
Como fetiche,
Como se a vida
Lhe pedisse
Apenas um seu
Olhar,
Criança perdida
No mundo,
Náufrago
Em alto mar...

MAS, AGORA,
Já sem a visão
Que sempre
O atraíra
(Foi o que logo
Me disse),
Só sentia
Melancolia
E uma doce
Nostalgia
Desse corpo
Sedutor
Onde naufragara
Um dia,
Em busca de
Salvação...
................
Ou talvez mesmo
De amor.

MULHER-MÃE
Era destino
Que só nela
Se cumpria,
Fruto de uma longa
Solidão
Que se consumou
Nesse dia,
Como se tudo
Só fosse
Uma doce ilusão,
Um fruto
Da fantasia...
...............
Ou, então, fosse
Paixão!

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XXIII)

PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA

João de Almeida Santos

"S/Título". JAS 2025
O ESPELHO

É SEMPRE BOM VIAJAR à procura de nós, olhando de frente a diferença. A identidade reconhece-se na diferença. Pode não ser muito cedo, mas talvez não seja, sempre, tarde demais para reconhecer a identidade que pode andar um pouco perdida, depois de termos viajado longamente pela diferença. O que é preciso é viajar… para a conhecer melhor.  Sair da ilha, como diz o outro. Olharmo-nos no espelho do tempo e do espaço. Mas não sei se o que diz Bernardo Soares sobre o espelho não será uma grande verdade: “o criador do espelho envenenou a alma humana” (2015: 368). E o espelho é essa diferença que nos devolve a identidade. Será? Nesse espelho reflecte-se a nossa imagem, já gasta pelo tempo cronológico, e até pode acontecer alguma angústia e alguma melancolia ao observarmos o reflexo daquilo que somos e do que não somos. Envenenar a alma? Talvez seja demasiado. O espelho devolve-nos a identidade que o tempo esculpiu. É a nossa relação com esse tempo que se reflecte no espelho, gostemos ou não do que vemos sobre o que somos e sobre o que fomos ou não fomos. Perante a imensidão de possibilidades que a vida põe à nossa disposição será sempre minúsculo o que delas faremos. Certamente, mas o tempo poético, esse, que é muito diferente, não regista a idade cronológica nem envenena a alma. Transforma as rugas em beleza. A arte como espelho não envenena – eleva, sublima, espiritualiza a alma. O tempo da arte é um tempo salvífico. É tempo de resgate. E subtrai peso à existência, podendo sempre ser livremente percorrido em direcção a um futuro libertador. E, por isso, talvez nunca seja tarde demais (a referência é ao poema “Tarde Demais”). Não há marcas cronológicas no tempo poético? Pode haver e pode não haver. É o desejo que o determina. Sobretudo o desejo insatisfeito. E ter saudades dele. E reactivá-lo para o transcender. O sujeito poético pôs essa hipótese, bem consciente de que a frase “tarde demais” poderia ter um interessante efeito retórico sobre o passado encarnado pela musa a que o poema se dirige. Só que ele é um efeito válido em si, não um desabafo perante outrem. Ou mesmo perante a musa, porque ela é interna à própria poesia. Este tipo de desabafo embacia o espelho e na superfície baça é possível redesenhar o passado à medida do desejo. O desabafo poético não é como os outros. É uma outra imagem que se reflecte no espelho. Sim, é como desabafar perante um espelho, que até pode assumir a forma de musa, tornando-se verdadeiramente eficaz. E, por isso, sendo um diálogo com a musa-espelho, é necessário dar um significado particular ao que o sujeito poético diz. Como se se tratasse de um diálogo diferido no tempo… mas em forma de monólogo. Será que ela lhe responde (poeticamente), dizendo, com um silêncio com eco ou ressonância, em surdina, que nunca é tarde demais? É, sim, o problema do tempo poético. O que ele quer – e isso é possível – é encontrá-la no amanhecer de um poema para, com o olhar, lhe dizer tudo aquilo que não pode dizer com palavras que talvez já estejam demasiado gastas. Pretende assim fazer sair de si a (sua) alma com um simples olhar. “Amo com o olhar, e nem com a fantasia”, dizia o Bernardo Soares (2015: 424). É este olhar (poético) que forma o objecto olhado. Os poetas olham com palavras directamente nos olhos das musas, visto que os amanheceres de poemas só assim podem acontecer, mesmo quando elas parecem já gastas. Quando a palavra já aconteceu (em forma de poema) a fantasia (do poeta) retira-se. Será isto que o BS quer dizer, ele, que não se ajeita com a poesia? É que ele bem sabe que os poetas olham com palavras e que esse olhar é como uma “cristalização”. Como a do amante. Tarda a encontrá-la, mesmo guiado por um poema, é certo. Pode acontecer. Mas o encontro sempre acontecerá num amanhecer de palavras, porque o vento é seu (dele) amigo. Com palavras a observa, com palavras lhe fala, com palavras a interpela, sabendo que sempre o seu eco lhe será devolvido pelo vento. Porque ele sopra sempre a favor, sobretudo quando os afectos estão inacabados. Sim, quando os afectos estão inacabados… e persistem. Afinal, é por isso que há poesia. Ela está lá para nos dar o que a vida nos negou. Pelo menos algum conforto. Nunca é tarde demais, para o poeta, ainda que seja tarde. Há sempre um espelho mágico em frente dele. Que nunca lhe envenena a alma.

SINFONIA

A poesia é movimento que embala. A música interna de que é composta enleva, seduz, toca mais de perto e intensamente a sensibilidade. Os poemas são sinfonias. Levamo-los até um qualquer lugar à procura da musa que, com o silêncio, nos interpela. Sobre o seu silêncio cresce essa sinfonia, como música em catedral. A poesia é resposta a um chamamento que ressoa, como eco, dentro do poeta. Adensa-se o silêncio e aumenta a ressonância. E a poética orquestra faz-se ouvir em concerto para almas sensíveis.

O TRIO SAGRADO

Talvez a poesia procure responder ao desafio de um trio sagrado: “Alêtheia”, a verdade; “Tò Agathón”, o bom; e “Tò Kalón”, o belo – aquilo a que a arte aspira. Resposta só possível porque ela se eleva sobre a contingência, embora estimulada por ela. Desvelar o que lhe vai na alma, é o que o poeta faz, com algum artifício, técnica, e com gosto. A beleza que procura nas palavras com que se revela é o seu desafio moral máximo – age de tal modo que a máxima da tua sensibilidade possa valer sempre, e ao mesmo tempo, como princípio de beleza universal  (veja Santos, 1999: 45).

INTERVALO

Talvez nunca seja tarde para o poeta que foi interpelado pelo eco do silêncio da musa. A máquina do tempo leva-o sempre para onde ele quiser desde que guiado pela sua fantasia. Mas talvez tenha sempre de ser tarde demais… para que a poesia aconteça. No tempo cronológico. No outro tempo, o poético, pode ser tarde, mas nunca é tarde demais. Naquele outro, talvez seja. Mas é neste intervalo entre um e outro que a poesia acontece.

IMPOSSIBILIDADE

Este “tarde demais” (do poema) talvez seja uma alusão temporal à impossibilidade. Resta ao sujeito poético encontrar-se com a musa no amanhecer de um poema. A impossibilidade é relativa ao tempo cronológico, pois o encontro no tempo poético é sempre possível. A musa, neste tempo, nunca se perde, nunca está ausente. Porque ela existe como correlato do próprio poeta e do poema com que a interpela. Não há poesia sem musas. E não há musas sem poesia. Um poeta nunca morre, tal como a musa. Porque ele se confunde com a sua obra e com ela, mas também porque não está subordinado ao tempo cronológico. A poesia é intemporal e atemporal. O seu tempo é “durée” (Bergson), não é tempo com fronteiras e não conhece solução de continuidade. Claro que a ordem do tempo (cronológico) a marca. Mas não no essencial… porque o que ela busca é a marca da eternidade.

O DESEJO E A NATUREZA

“Oh, se é teimoso, o poeta!”, respondi eu a um Amigo que dizia que o poeta teimava em ter um azevinho com bagas no seu jardim. Mas ele precisava mesmo das bagas e não desistiria enquanto as não conseguisse. Até lhes deu vida num poema (“As Bagas”) e numa pintura (“Bagas no Jardim”). Coisas de poeta. Na natureza, e com a ajuda da fantasia, é sempre possível encontrar algo que serve de projecção antropomórfica. Neste caso, não  se conhece a razão específica que explique essa obsessão do poeta. O Stendhal, em “Do Amor” (1822), diz, a este propósito (sempre sobre o amor), o seguinte: “… não há nada na Natureza que não lhe (ao ‘homem que ama de verdade’) fale do objecto amado” (2009: 123). É a conhecida fórmula da “cristalização”, como “ilusão encantadora” ou “uma certa febre da imaginação”, onde as realidades “se ajustam imediatamente aos desejos” (2009: 43, nota; 37). E a poesia é um território de desejos incumpridos no tempo cronológico. Mas, em Stendhal, trata-se de amor, não de bagas. Só que os azevinhos com bagas sempre atraíram o poeta. Não sendo amor, é atração irresistível. Vá-se lá saber por que razão. Não sei se será alguma reminiscência natalícia muito antiga e resistente ou uma “certa febre da imaginação”, como no amor. O que importa é que já tem um azevinho com bagas no jardim. E não é coisa de imaginação. Está mesmo lá. Mas também já tem dois poemas e duas pinturas sobre bagas e azevinhos. E isso encanta-o. Até porque “os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor” (2015: 55), como dizia o Bernardo Soares. Há mais bagas no dizer-se do que no azevinho plantado? “Talvez, mas não me importa porque tenho as duas coisas comigo”, diz o poeta.

A FRONTEIRA DO TEMPO

O poeta resiste à marcha inelutável do tempo cronológico, combatendo-o com o tempo poético. Será possível? Sim, é possível, desse modo, atravessar a fronteira do tempo.

REFERÊNCIAS
  1. Bernardo Soares (2015). Livro do Desassossego. Porto: Assírio & Alvim.
  2. Santos, J. A. (1999). Os Intelectuais e o Poder. Lisboa: Fenda
  3. Stendhal (2009). Do Amor. Lisboa: Relógio d’Água. JAS@12-2025