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Sobre joaodealmeidasantos1

Professor universitário, escritor, poeta, pintor. Publicou várias dezenas de livros, seus e em co-autoria, de filosofia, política, comunicação, romance, poesia, estética. Foi professor nas universidades de Coimbra, Roma "La Sapienza", Complutense de Madrid e Lusófona (Lisboa e Porto). Publica semanalmente, neste site, ensaios, artigos, poesia e pintura.

Poesia-Pintura

MARÇO

Poema de João de Almeida Santos
Pintura: “Evocação de uma Magnólia”
JAS 2021 (98x126, em papel de algodão,
310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass
AR70, em mold. de madeira)
Original de minha autoria
Março de 2025

“Evocação de uma Magnólia”. JAS 2021

“MARÇO”

"MARÇO: um pouco chove
e logo deixa de chover:
volta a chover, pára,
ri o sol com a água.
Ora um céu celeste,
ora um ar escuro e negro:
ora tempestades d’inverno,
ora um ar de primavera.
Um pássaro com frio 
espera que o sol espreite:
na terra ensopada suspiram
 as violetas...
Catarina! Que queres mais?
Entende-me, meu amor! 
Março, sabes, és tu,
e este pássaro sou eu"

 “Arietta” (1898) do poeta 
napolitano Salvatore di Giacomo,
(1860-1934).

POEMA – “MARÇO”

EU GOSTO DO MÊS
 De arço
(Que está a começar),
Gosto do frio
Que sobra
(O inverno
A declinar)
E da neve
Que me chama
Quando a vejo
Lá no alto,
Lá no topo
Da montanha.

E GOSTO MUITO
Deste mês
Porque traz
A primavera
E a magnólia
Branca
Que acena
Ao passado
E ao tempo
Que aí vem.
...........
Auspicioso
Futuro
Saído
Da Terra-Mãe.

E ASSOMAM
As flores
E os cheiros
No jardim
E renasce
A natureza
Quando volta
Proserpina...
..........
E eu fico
Sempre feliz
De ver
O loureiro
Crescer,
Apontando
Para o céu
Como quem
O ilumina.

TAMBÉM VOLTA
A cameleira,
Anúncio
Do tempo novo
Com o branco
Cintilante
Que me fascina
O olhar
E anuncia
A magnólia
Que chega
Sempre
Despida
E me convida
A ficar.

AH, COMO EU GOSTO
De Março
Mês híbrido,
Mês meu,
Intervalo
Auspicioso
Do veloz
Tempo
Que passa,
Ponte
Que atravesso
Quando espero,
Confiante,
Que a natureza
Renasça.

AH, SIM,
Mas eu sou
Pássaro
Friorento,
Sempre, sempre
A suspirar,
Quando o sol
À minha alma
Insiste
Em não chegar...

MAS MARÇO
É ponte,
É transição,
É esperança,
É passado
E é futuro
E há sempre
Uma mulher
(Sentimento
Do mais puro)
Por quem o poeta
Espera
Às portas
Do seu desejo,
Às portas
Da Primavera.

Artigo

VANCE, A EUROPA E AS ELEIÇÕES ALEMÃS

João de Almeida Santos

“F. Merz – Bundeskanzler”. JAS 2025

ARTIGO - "VANCE, A EUROPA 
E AS ELEIÇÕES ALEMÃS"

ANTES DAS ELEIÇÕES DE DOMINGO, 23.02, na Alemanha, houve uma cimeira mundial sobre segurança, em Munique, com a presença do Vice-Presidente americano James David Vance. O seu discurso diz muito não só como o actual poder americano vê a Europa, mas também como ele próprio se identifica (pelo que diz).

1.

Li com atenção o discurso de JD Vance e ficou claro que ele se centrou sobretudo na crítica àquilo que a chamou crise de valores na Europa (a verdadeira “a ameaça interna”), que, na verdade, e a ter em conta os exemplos que deu e a linguagem que usou, se centra no essencial no valor da liberdade e, sobretudo, como ela é posta em causa pela atmosfera woke (de matriz americana, diga-se) e pelo “politicamente correcto”, que lhe impõe severas limitações; na questão das chamadas linhas vermelhas (expressão usada por ele: “não há lugar para linhas vermelhas”) e no problema da imigração, “descontrolada”, também palavra sua. Os exemplos foram escolhidos a dedo: referindo as declarações de um antigo comissário europeu sobre a anulação das eleições na Roménia e a eventualidade de isso também poder acontecer na Alemanha; a censura digital, a ameaça de fecho temporário das redes sociais em caso de agitação civil –  perante o que é considerado como “conteúdo de ódio”; as rusgas na Alemanha contra comentários anti-feministas online, justificadas como “combate à misoginia na internet”; a punição (em milhares de libras) da reza silenciosa (supostamente contra o aborto), no Reino Unido, ou mesmo do exercício religioso no interior das próprias paredes domésticas que, segundo as autoridades, pode levar ao incumprimento da lei das “Zonas Tampão”, por exemplo, na Escócia, etc. etc. Tudo exemplos escolhidos por Vance para dar bem ideia daquilo a que se estava a referir quando falava de liberdade. A referência parece ser clara: a assunção institucional na Europa do discurso woke e politicamente correcto. Um discurso que tem dado um valioso impulso eleitoral à direita radical e que ela já identifica como discurso do sistema. Depois, as linhas vermelhas, estando a indicar a recusa de alianças da direita moderada com a direita radical, por exemplo, na Alemanha (com a AfD) ou, então, digo eu, em Portugal (com o CHEGA). Não há qualquer dúvida de que a actual administração americana está alinhada com a direita radical europeia (e, consequentemente, com a própria Rússia de Putin, como se vê no modo como a Ucrânia está a ser tratada). Finalmente, o coração de todas as políticas da direita radical: a imigração (“descontrolada”). Diz Trump, na sua rede “Truth”, depois de conhecidos os resultados da eleições alemãs:  “os alemães estão cansados de agendas sem sentido sobre energia e migrantes”. Os números apontados por Vance são significativos e não há  dúvidas de que essa, ao lado da ideologia woke, é a principal linha de combate da direita radical. O alinhamento ideológico da América de Trump com a direita radical europeia e com Putin não oferece dúvidas.

2.

Confesso que temia que, fruto (a) deste namoro americano com a AfD, que começou com as declarações de Elon Musk, com a sua longa conversa, no X, com Alice Weidel e a afirmação de que a Alemanha só se endireitaria com um governo da direita radical (AfD) e, ainda, com a eventualidade de uma intervenção política subliminar da sua rede social nestas eleições, b) do gesto de Vance, ao não aceitar reunir-se com o Chanceler Scholz, mas reunindo-se com Weidel, e do teor do seu discurso e, finalmente, c) de uma eventual intervenção digital da Rússia no próprio processo eleitoral alemão, fruto de tudo isto, a AfD superasse em muito o resultado que as sondagens há muito já lhe atribuíam (regularmente 20%). Mas isso não se verificou. Pelo menos, na parte ocidental da Alemanha, já que na parte oriental (os cinco estados da antiga RDA) a AfD é o partido mais votado. O que deve dar que pensar.

3.

As eleições antecipadas alemãs deveram-se a uma queda do governo de coligação de Scholz com os Verdes e com os liberais, com a consequente dissolução do Bundstag a 27 de Dezembro passado. As sondagens há muito que já davam resultados muito próximos dos que se viriam a verificar nestas eleições: 28.5% (CDU/CSU – 208 mandatos), 20,8% (AfD – 152 mandatos), 16.4% (SPD – 120 mandatos), 11,6% (Gruene – 85 mandatos), 8,8% (Linke – 64 mandatos). Liberais (FDP) e BSW ficaram fora do Bundestag. Tendo-se verificado uma participação excepcional de votantes, cerca de 84%, quando em 2021 fora de 76,4%, não se verificou um ulterior avanço da AfD, relativamente às sondagens que há muito lhe davam este resultado, a verdade é que duplicou os votos obtidos em 2021 (10,4%), com um decisivo contributo das regiões da antiga RDA. O SPD tem a maior queda desde o segundo pós-guerra, reflectindo também ele a crise generalizada da social-democracia. É útil lembrar que o SPD foi sempre o partido inspirador da social-democracia europeia, designadamente do PS.

4.

A Alemanha tem cerca de 60 milhões de eleitores, dos quais 42% têm mais de 60 anos.  A lei de 2023 fixou em 630 os mandatos do Bundestag. O sistema eleitoral é proporcional e maioritário. Os boletins de voto são dois: um, para escolher o candidato local num dos 299 círculos eleitorais; o outro, para votar nos partidos e na relativa distribuição de mandatos. Sistema maioritário para 299 círculos (vence o que tiver mais votos) e proporcional nos restantes para o voto nos partidos. Existe uma pequena quota de “compensação”. Limiar para entrar no Bundestag: 5%. Os principais partidos concorrentes foram a CDU/CSU (centro-direita) AfD (direita radical), SPD (social-democrata), Liberais, Verdes, Linke (esquerda), BSW (esquerda populista). A CDU governou 53 anos em 76 depois da Guerra, sendo os seus principais líderes Konrad Adenauer, Helmut Kohl, Angela Merkel.

As principais linhas de força da vencedora CDU/CSU são

1. controlo da imigração;
2. redução de impostos 
para favorecer a economia;
3. cortes na despesa social;
4. revisão da lei de controlo 
orçamental ("Schuldenbremse).

Por sua vez, a Alternative fuer Deutschland foi criada em 2013, tendo hoje dois lideres, Alice Weidel, proveniente do Goldman Sachs e residente na Suíça, com a sua companheira do Sri Lanka, e candidata a chanceler, e Tino Chrupalla, ex-pintor de interiores, o animador das hostes. Weidel defende:

1. a “re-migração” de centenas 
de milhares de imigrantes;
2. a saída da UE e do euro;
3. Desmantelamento da rede de eólicas;
4. e uma política de aproximação 
à Rússia de Putin.

Nada que Trump não esteja já a fazer, note-se e registe-se. Por sua vez, o programa do SPD alinhava pelas tradicionais medidas programáticas da social-democracia com dominante no Estado social e medidas afins.

5.

Esta situação, em face dos mandatos parlamentares (208 da CDU/CSU e 120 do SPD), parece aconselhar a reconstituição de uma nova “Grosse Koalition” (com 328 mandatos), visto que o número para uma maioria absoluta parlamentar é de 316, não pretendendo Friedrich Merz, ao contrário do que pretenderia Vance, promover uma aliança com AfD. Esta solução tem uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem consiste em dar consistêntcia a um governo com uma clara maioria parlamentar num país charneira para uma União Europeia a braços com uma gravíssima crise com o seu antigo aliado, os Estados Unidos. A desvantagem consiste em, à direita, ficar o AfD praticamente  com o monopólio da oposição ao sistema. É claro que um governo que integrasse também os Verdes poderia ficar perto da maioria qualificada, dando, nesta fase tão crítica da UE, maior robustez política ao governo e permitindo-lhe até mudanças constitucionais, para as quais é, segundo a Constituição, necessária uma maioria qualificada. Mas é conhecido o ponto de viragem que aconteceu em Itália, quando o único partido que ficou fora da aliança que sustentou o governo Draghi foi precisamente o de Giorgia Meloni, Fratelli d’Italia, que acabaria por ganhar as eleições e por formar governo em 2022.

6.

Uma coisa é certa. A direita recolheu cerca de 50% do eleitorado e o centro-esquerda teve um enorme tombo (o SPD perde cerca de 9 pontos). O mesmo que se tem vindo a verificar por essa Europa fora, com os sucessivos triunfos, um pouco por todo o lado, da direita radical. Ou seja, na Alemanha confirmou-se, mais uma vez, o reforço substancial da direita radical: duplicou o número e eleitores.

Em síntese, várias conclusões é possível tirar destas eleições:

1. O crescimento da direita radical, 
sobretudo nas regiões da antiga RDA, 
onde AfD é o partido mais votado.

2. A queda persistente da 
social-democracia, tendo o 
SPD registado o maior tombo 
eleitoral desde o pós-guerra.

3. O claro alinhamento dos USA 
com a direita radical europeia e, 
mais concretamente, com a AfD 
e o seu programa.

4. O reforço global de direita, 
que, somada, ultrapassa em muito 
os 316 mandatos (360 mandatos), 
embora não possam ser somados 
para efeitos governativos porque 
a CDU/CSU não quer entendimentos 
com a AfD.

5. A centralidade política do 
problema da imigração e, em menor
grau, do wokismo e do 
“politicamente correcto”.

6. A estratégia dos Estados Unidos 
de Trump (claramente formulada 
por Vance em Munique) para forçar o 
ingresso da direita radical nos 
governos europeus.
7.

A Alemanha, o maior país da União Europeia, com  mais de 80 milhões de habitantes, e que viu a direita radical duplicar o número de votos que obteve em 2021, provavelmente voltará a ter uma “Grosse Koalition” com o SPD. Provavelmente, o conceito já nem corresponde ao dado de facto devido à queda do número de mandatos da coligação  CDU/CSU – SPD, visto que apenas possuem mais 12 mandatos do que os que são necessários para uma maioria absoluta. Só para se ter uma ideia, a média, em percentageml, dos mandatos de ambas as forças políticas nas cinco eleições que houve em 2005, 2009, 2013, 2017 e 2021 era equivalente a 62% dos mandatos do Bundestag, sendo agora, nas eleições de 2025, equivalente a 52%. Uma diferença de 10 pontos. Mas esta não é uma alteração conjuntural, é uma tendência que se está a verificar de forma consistente um pouco por toda a Europa, com a fragmentação dos sistemas de partidos e o fim da tradicional alternância entre o centro-esquerda e o centro-direita. O que está a acontecer é que a capitalização desta fragmentação é feita sobretudo pela direita radical, por razões que neste artigo não cabe esmiuçar, e para além do que ficou dito. E a grande novidade é a guinada monumental que se verificou nos Estados Unidos e que se soma à que tem vindo a acontecer na Europa. Se, depois, ainda lhe juntarmos a cumplicidade que está a acontecer a olhos vistos entre os Estados Unidos e a Rússia do senhor Putin, é mesmo caso para falarmos num enorme retrocesso na política mundial. Tinha razão Giambattista Vico quando falava dos “corsi e ricorsi” da história, pois já nos encontramos numa fase de grave recessão política e civilizacional.  JAS@02-2025

Poesia-Pintura

ENSAIO POÉTICO

PARA UM DIA DE ANIVERSÁRIO
Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Fascínio”, JAS 2023
Original de minha autoria
(68x88, em papel de algodão, 310gr,
e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70
em mold. de madeira)
Fevereiro de 2025

“Fascínio”. JAS 2023

POEMA - "ENSAIO POÉTICO
Para um Dia de Aniversário"

HOJE NÃO VOU
À cidade,
Neste dia
Deste mês.
No fundo,
Era o que
Queria,
Mas eu disse
Aos meus amigos:
 "Vão vocês".

COMIGO
Não tem de ser,
Mas hoje
(Sei muito bem)
É o seu dia,
Por isso quero
Alertar:
“Esquecê-lo
Não convém,
É festa
Com autoria,
Não se deve
Desertar”.

É FESTA
Por todo o lado,
Há champanhe,
Bolo-rei,

É um dia
Abençoado
Pra brindar
Com poesia.
Eu faço o melhor
Que sei:
Ofereço
A melodia.

FICO EM CASA
(Não posso ir),
Mas sai poema
E também ilustração,

Dedico-os
À minha Amiga,
São prendas,
São sinais 
De afeição.


ADMIRO-LHE
A beleza

E a força
De vontade,
A vê-la no
Instagram
É a deusa

Da cidade.

FAZ ISTO
E mais aquilo,

Sempre, sempre,
A correr,

Esteve ali,
Já não está,
Tinha muito
Que fazer...

MAS QUE IMPORTA
O que faz
(Dizem-me
Os meus amigos),
Não é hoje
O seu dia?

Dá-lhe lá
Os parabéns

E festeja
Os seus anos,
Partilha
Da sua alegria.

ESTÁ BEM
(Respondo eu),
Vou festejar,
Vou fazer-lhe
Companhia,
Com ternura,
Cantando-lhe
Os parabéns

Com a minha poesia...
.............
E com uma bela
Pintura.

CARA AMIGA,
 Parabéns,

Que o seu dia
Seja brilhante,
Luminoso
Como o sol,

Pra de si
Sermos reféns

Como barco
De farol.

CANTE, DANCE
Com os amigos,
Acenda, à noite,
A lua,
Pum!,
Salta a rolha
Do espumante
E vão todos
Para a rua,

Será uma noite
Brilhante

Porque a festa
Será sua.

NOS ANOS
Da minha Amiga
É isto que mais
M’interessa,

Celebrar

A sua vida
Como futura
Promessa.

POR ISSO,
Aqui lhe deixo

Um abraço
De amizade.

Viva, viva,
Neste dia,
Festeje bem
Na cidade,
Festeje 
Com poesia.

Artigo

O GRAU ZERO DA POLÍTICA

Por João de Almeida Santos

“Diktat”, JAS 2025

QUERO REFERIR-ME, com este título, à política tal como está a ser reconfigurada depois da chegada de Donald Trump, de novo, ao poder. Em rigor, do que se trata é da identificação da política simplesmente com o exercício do poder baseado na força, em todas as suas frentes, política, militar, económico-financeira, comunicacional. “Disponho de meios que não podem ser contrastados nem interna nem externamente, uso o poder como força e a força como poder quando e como quiser” – dirá o intérprete qualificado desta concepção de poder. A ideia de poder como relação assimétrica, interdependente e indeterminada, tão exaustivamente tratada no recente livro de Augusto Santos Silva (Lisboa, Tinta-da-China, 2024), conhece aqui uma fortíssima retracção ao identificá-lo  como imposição unilateral, como dominação, prescindindo da componente diplomática, da interdependência, da persuasão e do respeito pelas regras internas e internacionais. Hard power. Mas, como se diz neste livro, “poder não é força” embora a força seja uma “das principais fontes do poder”. A política como poder: uso ilimitado da força e relação incondicionada de dominação, poder de e poder sobre (2024: 26, 36, 79, 82 e passim). As posições de Trump sobre o Canadá, o Panamá, a Gronelândia e a Faixa de Gaza dão uma ideia muito clara disto. As negociações com a Rússia sobre o futuro da guerra com a Ucrânia, sem este país e a União Europeia, também.

1.

Internamente, e uma vez obtido por via eleitoral o consenso para a conquista do poder (usando e abusando do poder do dinheiro e das redes sociais, em particular do X), entrou em acção um plano de contracção drástica e repentina dos poderes não presidenciais que configuram o sistema americano e, em geral, todas as democracias representativas, e são condição de autocontrolo dos sistemas democráticos através do mecanismo conhecido como checks and balances; externamente, entrou em acção um plano de imposição difusa do poder económico e comercial americano (a começar pela imposição unilateral de taxas) e pretensões territoriais unilateralmente declaradas, já referidas. Complementarmente, a própria Casa Branca, identificando-se cada vez mais claramente com o populismo radical de direita, avança com uma estratégia de promoção descarada dos seus pares políticos na Europa ao mesmo tempo que relativiza os poderes ditatoriais, mais que comprovados, da Rússia e da China. O intérprete e porta-voz desta visão foi o Vice-Presidente JD Vance ao afirmar que o perigo para a Europa não vem da Rússia, a mesma que invadiu arbitrariamente a Ucrânia, ou da China, mas sim do seu interior, ao proclamar que a Europa está a trair os seus próprios princípios (sobretudo no plano da imigração e da liberdade). Uma posição que seria plenamente partilhada pelo filósofo do Kremlin, Aleksandr Dugin (o que declarou a decadência do Ocidente, resgatável pela própria Rússia, seguindo as pisadas de Oswald Spengler no livro Der Untergang des Abendlandes, de 1918; 1922*) e pelo próprio Vladimir Putin, a partir do santuário da Praça Vermelha, que, ao que parece, conserva ainda muito do seu antigo poder simbólico e esplendor. Corolário directo disto é a injunção política, primeiro, de Elon Musk e, depois, de Vance, na política interna da Alemanha, através de um claro e não disfarçado apoio à AfD, em período de eleições legislativas, tendo motivado uma forte reacção alemã. Já tivemos o caso do Brexit e não se sabe o que acontecerá no próximo domingo, 23 de Fevereiro, sobretudo se tivermos em conta a influência subliminar das redes sociais, e em particular de X.

2.

Não parece ser necessário fazer um desenho para se perceber que estamos perante uma onda mundial da direita radical que, não se identificando (pelo menos, para já) com as ditaduras russa e chinesa, delas está muito próxima, como se verifica não só com declarações como as de Vance, mas também com as próprias relações internacionais claramente assumidas pela maioria das forças da direita radical, no interior de um modelo de proposta política que procurei identificar no meu mais recente livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024) e que, no essencial, se pode resumir na ideia de reforço intensivo dos poderes do executivo em detrimento dos outros poderes, do legislativo, do judicial, do regulador e também do poder mediático. É o que está a acontecer actualmente também nos Estados Unidos. Veja-se, a título de exemplo, a sanção drumpiana  aplicada à Agência de Notícias americana Associated Press por não ter adoptado a sua decisão de chamar Golfo da América ao Golfo do México: veto indeterminado de entrada na Casa Branca, no acesso à sala oval, e ao Air Force One (El País, 15.02, pág. 6 ). Ou com tudo o que já está a acontecer na máquina administrativa do governo americano. Com efeito, a função do senhor Elon Musk no executivo de Trump (através do já famoso DOGE, o departamento de eficácia governamental, também importante e activa frente de combate contra o “wokismo”) é precisamente o de esvaziar de poderes as outras instâncias, designadamente pelo encerramento (a USAID, por exemplo), pela drástica redução do respectivo financiamento e pelo correspondente despedimento de funcionários públicos, estando em movimento uma autêntica crise constitucional, até pela inopinada usurpação de competências do próprio Congresso. Mas não é menos significativo o governo de Trump através de sucessivos e disruptivos decretos presidenciais: “Trump governa por decretos. Ele deu a Elon Musk o poder de bloquear todo o financiamento que ele considere ilegítimo, em clara violação das prerrogativas do Congresso. É um ataque extremamente radical contra o sistema constitucional americano tal como o conhecemos”, disse Francis Fukuyama (Le Monde, 16-17, 02.2025, pág. 7). A filosofia que subjaz a tudo isto é muito simples: tenho o poder nas mãos e uso-o sem ter de tomar em consideração as clássicas regras do poder democrático, sobretudo o mecanismo de controlo dos checks and balances e o princípio do “judicial review”, a arbitragem final sobre a lei pelos tribunais federais. Vance já declarou que o poder judicial se deve submeter ao poder do executivo: “Os juízes não têm o direito de controlar o poder legítimo do executivo”, disse JD Vance, licenciado em direito pela Universidade de Yale (Le Monde, 16-17, 02.2025, pág. 7).  

3.

Na verdade, o pano de fundo de tudo isto traduz-se na redução do poder a puro uso da força sem tomar em consideração o outro lado, que sempre existe, nessa relação assimétrica e interdependente que define o poder. Levado ao extremo, já sabemos o que acontece: ditadura, totalitarismo. Uso da força pura para impor unilateralmente a vontade de um dos pólos da relação ou, ainda mais radicalmente, para anular a consciência do outro, transformando-a em realidade especular do poder que domina. O poder como dominação. E força, os Estados Unidos têm que chegue, ancorada na maior indústria de armamento existente no globo. O poder simbólico talvez também já esteja ao seu dispor com o alinhamento integral das maiores plataformas digitais que operam em todo o mundo com índices de participação avassaladores. Um só valor: 5,24 biliões de utilizadores dos social media, equivalentes a 63,9% da população mundial. Está tudo dito, se tomarmos em consideração que a quase totalidade das plataformas está concentrada nos Estados Unidos, sendo o seu modus operandi do conhecimento público e já abundante e criticamente estudado (veja-se, por exemplo, a obra de Shoshana Zuboff sobre A Era do Capitalismo da Vigilância, Lisboa, Relógio d’Agua, 2020). E isto representa realmente soft power (entendido em sentido alargado), indirectamente imputável ao Estado americano se tomarmos em consideração o actual alinhamento total das plataformas com a Casa Branca de Trump, em particular X, de Musk, e Meta, de Zuckerberg. Aliás, não é de excluir que a compra do Twitter por Elon Musk tenha visado sobretudo a conquista do poder por Trump, à semelhança do que acontecera em 2016 com o uso dos perfis dos utilizadores do Facebook pela Cambdrige Analytica, então detida pelo multimilionário Robert Mercer e dirigida pelo então ideólogo de Trump, Steve Bannon. Mercer financiou a campanha de Trump (directa e indirectamente) com mais de 15 milhões de dólares, o que comparado com os valores de Musk para o mesmo fim, em 2024, cerca de 280 milhões de dólares, parece ser uma pequena esmola. Mas a verdade é que também em 2016 Trump, ajudado pela parelha Mercer/Bannon e pelos mais de 50 milhões de perfis dos utilizadores do Facebook do senhor Zuckerberg, ganhou as eleições. A experiência do referendo do Brexit, em Junho de 2016, revelara-se preciosa e convincente.

4.

Na verdade, os Estados Unidos controlam o hard power e o soft power mundial (e nem sequer falo do uso e da força mundial do novo esperanto dos povos, o inglês), podendo, se assumirem a visão integrada de poder que parece estar a impor-se a partir da Casa Branca, provocar uma viragem radical na política mundial, alterando as regras de funcionamento quer do Estado de Direito e do Estado representativo tal como os conhecemos quer das relações internacionais, com o estabelecimento de três grandes impérios (o americano, o chinês e o russo) e respectivas zonas de influência à escala mundial. Deve-se tomar na devida consideração a crítica que Vance fez à Europa e a União Europeia: o problema não são as ditaduras chinesa e russa, o problema é a vossa decadência em relação aos valores. Trata-se de uma posição clara relativamente ao centro-esquerda e, em parte, ao próprio centro-direita a partir de um conceito de poder como exercício unilateral e impositivo da força ancorado nos valores conservadores que legitimam as posições do poder de facto já existentes na sociedade. O poder político limitar-se-ia, pois, a reproduzir especularmente as relações de poder existentes, defendendo-as, blindando-as, promovendo-as e impondo-as.

5.

E é aqui que assistimos a uma outra profunda viragem relativamente à tradição política ocidental. Ou seja, o fim da clássica separação funcional entre as elites políticas dirigentes e as elites económicas (refiro-me aos grandes grupos económicos), que, antes, não se confundiam. Esta alteração teve um momento quase fundacional em Itália, com Berlusconi (em 1993-1994) e atinge agora o zénite com Donald Trump e Elon Musk. De resto, é conhecida a confessada admiração de Trump pela experiência política do magnata italiano (sobre a conquista do poder por Berlusconi desenvolvi uma longa analítica no meu livro Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012, pp. 257-338 e passim).  O poder político está, pois, agora nas mãos das oligarquias económicas, anulando ipso facto o velho princípio do “conflito de interesses”, inscrito pormenorizadamente em todos os manuais de direito como prática generalizadamente proibida, mas agora espantosamente e despudoramente exibido como virtude a seguir e a promover, em nome da liberdade. Ora, um regime que funciona assim, já não é um regime democrático, mas uma plutocracia, onde o povo fica reduzido a mera “massa de manobra” para boa legitimação do regime.

6.

Era Giambattista Vico que, na “Scienza Nuova” (1724), no século XVIII, falava de “corsi e ricorsi” na história e assinalava a fase em que acontecia a regressão para uma fase de tirania e de anarquia, por degeneração da última das três fases progressivas da história (era dos deuses, dos heróis e dos homens). Pois parece que aquilo a que estamos a assistir, depois de 80 anos de paz e de progresso civilizacional, corresponde exactamente a essa fase regressiva, devido ao colapso das instituições instauradas pela modernidade. Putin, com a guerra territorial contra a Ucrânia já demonstrara que a regressão podia mesmo acontecer. Agora, com Trump, a regressão aprofundou-se a partir do desmantelamento do modelo da democracia representativa e a instauração de uma plutocracia que reduz a política ao exercício do poder como dominação. Até parece que a filosofia do imperialismo territorial de Putin acabou por fazer escola naquela que era conhecida como modelo de democracia de matriz liberal, ao manifestar, também ela, pela voz do seu presidente, direitos imperativos sobre os territórios mais ou menos confinantes ou mesmo situados noutros continentes, como é o caso de Gaza.

7.

A verdade é que o soft power de que os Estados Unidos dispõem, através daquilo a que Shoshana Zuboff chamou capitalismo da vigilância, poderá já ser suficiente para manter um simulacro de democracia e de consenso eleitoral sem ser necessário recorrer ao hard power, ao poder militar e às fórmulas clássicas das ditaduras. Os processos usados vão fazendo o seu caminho: Brexit, Trump em 2016, provavelmente Bolsonaro, em 2018, Trump em 2024. As movimentações já começaram relativamente às eleições alemãs. Vamos ver como vão acabar.

8.

Não me parece ser muito difícil desenhar o perfil desta nova tendência em curso nem os mecanismos e as técnicas usadas para promover este tipo de poder, numa leitura literal do que já pudemos encontrar em “O Príncipe” de Maquiavel, a propósito da conquista e da preservação do poder do Príncipe: ser “lione” e ao mesmo tempo “golpe”, ser leão e raposa. Se a política sempre tomou seriamente em consideração esta fórmula, seja enquanto ditadura seja enquanto democracia, a verdade é que se para a ditadura a raposa representava somente a astúcia (a propaganda), mas não a virtus, para a democracia a raposa sempre representou algo mais, o saber, a influência, a persuasão, o consenso, a inteligência, a virtude. Falo, neste caso, da natureza centáurica do poder. Assim sendo, o que se está a verificar é uma autêntica regressão na política democrática e nos seus princípios fundamentais, onde o que resta é um esqueleto deformado daquilo que era a democracia representativa ou, pelo menos, o sistema representativo, tal como foi concebido originariamente e como se foi consolidando ao longo do tempo, num processo que, como sabemos, teve muitas e graves regressões, sobretudo na primeira metade do século XX. Não se avizinham, pois, tempos fáceis nem gloriosos para as jovens democracias deste mundo cada vez mais pequeno e concentrado.

  9.

O que parece é que se está a delinear uma nova geopolítica com três fortes esferas de influência imperiais, a dos USA, de Trump, a da China, de Xi Jinping, e a da Rússia, de Putin, excluindo a União Europeia, que, de resto, sendo certo que não ambiciona um poder imperial, parece nem sequer partilhar a própria ideia de “esfera de influência”, a crermos nas palavras da senhora Kaja Kallas, alta representante da UE: “Não acreditamos nas esferas de influência”, disse recentemente no Parlamento Europeu. Sim, “pero que las hay, hay”. Que o diga a China. Influência que, afinal, também sempre correspondeu ao clássico soft power da Europa, pela sua consistente dinâmica civilizacional, científica, cultural e social, hoje em crise. Mas, por outro lado, o que, mais realisticamente, parece é que os Estados Unidos de Trump tudo estão a fazer para perderem a influência que já tiveram, atendendo à agressividade brutal da sua política internacional, centrada na doutrina do “America First”, e nas medidas unilaterais e agressivas que estão a tomar. E também parece ser pouco provável que a sua activa aliança com a direita radical europeia possa vir a tornar a Europa numa zona de influência mais dócil e subordinada do que já era até aqui.

10.

Entretanto, no fim do encontro de segunda-feira, em Paris, o que sobrou foi mais divisão do que a que já existia, neste caso sobre o envio de tropas de manutenção de paz para a Ucrânia, na imaginária fase do pós-guerra, decretada uniteralmente pela Rússia e pelos Estados Unidos de Trump. Por exemplo, Scholz e Sánchez acham totalmente prematura a questão. A verdade é que a UE, com a actual configuração institucional e com as fracas lideranças de que dispõe não parece estar à altura do desafio que a situação internacional lhe está a colocar. E não se trata sequer de um problema de dimensão, em todas as frentes, de uma área em comunidade com cerca de 450 milhões de habitantes. É certo que a UE nunca se preocupou muito com a questão da defesa, com a dotação de uma agência de rating europeia, com a criação de plataformas digitais de grande dimensão, mas também com um dispositivo institucional que facilitasse rápidas e consistentes decisões operativas sustentadas em legitimidade directa (como, por exemplo, aquela de que dispõe o presidente dos Estados Unidos). E, todavia, a dimensão, a consistência económica e cultural da UE exigiriam muito mais do que aquilo que é e que tem. Muitos foram aqueles que sempre o quiseram. Infelizmente, as diplomacias nacionais sempre procuraram ser elas e decidir, tendo-o conseguido, com resultados políticos verdadeiramente pífios ou mesmo regressivos em relação aos necessários avanços. Lembro-me bem da luta de Altiero Spinelli para acabar com essa supremacia das diplomacias europeias na gestão do processo europeu, consideradas mais fonte de paralisia do que de acção e progresso. E estamos a pagar o preço disso. Esperemos que a resposta da UE não esteja somente  ancorada numa lógica da reacção, mas seja fruto de uma visão realmente estratégica sobre o papel de uma região do mundo que sempre foi decisiva na história mundial. JAS@02-2025

NOTA

* Achei muito curiosa a forma como o autor da entrada Spengler (Oswald Spengler, 1880-1936) no Dicionário de Filosofia da Editora Garzanti (Milano, Garzanti, 2001) se refere à sua doutrina: “Alla civiltà occidentale dovrà pertanto succedere uma civiltà russa. Ma prima della ricaduta nella barbárie deve ancora venire la fase del cesarismo” (pág. 1093). Acrescentando-lhe, agora, as recentíssimas palavras do putiniano filósofo russo Aleksandr Dugin sobre a Alemanha e os alemães, a propósito das eleições do próximo domingo  – “Votai na AfD ou ocuparemos de novo a Alemanha e dividi-la-emos entre a Rússia e os Estados Unidos” –, as posições ainda se aproximarão mais: Musk, Vance e Dugin, a mesma luta.

 

Poesia-Pintura

TEMPO E MEMÓRIA

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “A Esfera do Tempo”
Pintura de minha autoria
Fevereiro de 2025

“A Esfera do Tempo”. JAS 2025

POEMA – “TEMPO E MEMÓRIA”

JÁ NÃO SEI
Se me ouves,
Ó musa
Cuja melodia
Me ressoa
Na alma
Sempre que viajo
Em palavras,
Inspirado,
Em busca
Do instante
Perdido
Nesse tempo
Tão fugaz
E tão sofrido, 
Nesse distante 
Passado.

É NA ESFERA
Do tempo,
Sempre em rotação
Sobre si,
Que eu te posso
Encontrar
Reflectida
No meu espelho
Encantado,
Silhueta
Intangível
Que se esgueira
Na neblina
Do tempo...
.............
E sem destino 
Marcado.

TEMPO
Implacável,
Meteorito
Incandescente,
Inesperado,
Tsunami
De emoções,
Ruínas
Por todo o lado.

E EU FUI
Atrás dele,
Levitando,
Vestido de
Azuis celestes
Que se manchavam
De nuvens
Carregadas
Para susterem
Seus raios
Intermitentes
Em combustão
Que ameaçavam
Desintegrar
O tempo novo
Da reconstrução.

ÉS PASSADO
Em ebulição
Permanente
(É assim que
Eu te sinto),
Mas só te posso
Rever
(Para não 
Petrificar)
Através de um
Espelho
Já baço,
Mas iluminado
Por um clarão
De palavras
Que reconstrói
Os destroços
Do passado.

O MEU TEMPO
É fluxo,
É movimento
Entre o que foste
E o que serás
Na busca 
Permanente
De uma poética
Da salvação
Que me conduz
À memória
Dos afectos
Inacabados...
............
E à piedosa
Ilusão
Dos que foram
Rejeitados.

DENTRO DE MIM
Há, como sabes,
Um fogo intenso
Que me põe
A alma em chamas,
Que me fascina
E me seduz
Como borboleta
Amarela 
Atraída pela luz...

E ARDO,
Ardo em palavras,
Em cada poema
Em que te ouso
Cantar,
Como vela
Que derrete
Para te iluminar.

E, ENTÃO, VEJO
Um clarão
De palavras
E de cor
Que te ilumina,
Antes da cíclica
Noite escura
Que me trará,
De novo,
O sonho
Reparador
E que para sempre
Perdura.

VIVO ASSIM
Em eterno retorno,
Clepsidra
Da existência
Em cíclica rotação
Onde o sonho
Se torna vida
E a vida ilusão.

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS  (X)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

“O Pintor”. JAS 2025

O SONHO

A VIDA, o sol, a chuva, o sonho, o tempo que flui e nos arrasta consigo, a alegria, a tristeza, o amor, a perda, o desejo, o corpo, a fuga para lugares desertos… tudo, mas mesmo tudo, nos vai acontecendo… e disso dá conta o poema “Sonho ou a Porta do Tempo”, em registo onírico. Os sonhos quase sempre se desenvolvem como uma miscelânea de elementos realistas e fantásticos, com lógica, mas irreais, umas vezes prosseguindo depois do sonho, outras apagando-se de imediato, tornando-se inacessíveis. A luz do dia tende a apagar o que sonhamos, deixando-o na penumbra. A realidade tende a esbater a utopia. Mas uma coisa é certa: há como que um desenvolvimento pulsional em código e simbólico no sonho do que foi acontecendo em vigília. Uma livre tradução em código onírico do que aconteceu ou podia ter acontecido, sempre dependendo das intensidades experimentadas na vida real. O sonho é vida e a vida também é sonho. E a poesia é como o sonho, mas com uma intervenção suplementar da razão, melhor, do espírito, tornando-se uma espécie de dialéctica viva entre a alma e o espírito, em linguagem mais ou menos cifrada. A memória é, aqui, magmática e o fundo é sempre pulsional. Depois, a melodia, a toada, o ritmo exprimem-no com maior vigor do que a semântica inscrita simplesmente nas palavras. Mas o registo semântico é muito importante na poesia. Se não for, estaremos simplesmente perante virtuosismo. Depois, a pintura, em registo sinestésico, pode ajudar a tornar mais sensitivo, mais sensorial, o poema. Mas o que acrescentei a este poema, relativamente a uma sua primeira versão, foi a melodia. Foi difícil, mas, em parte, julgo tê-lo conseguido, tornando-o mais sensitivo.

O tempo, aqui, equivale à fugacidade de um reencontro (impossível) porque logo desfeito por um vidro, frio, que se entrepõe, tornando impossível o contacto. Nos sonhos há sempre um vidro. E é a porta do tempo que, abrindo-se, faz com que os encontros oníricos aconteçam, mas também terminem e se desfaçam. Mas é mais importante a saída do que a entrada. Porque a saída representa sempre dor. Um dos personagens sai por ela, o sonho termina ali e o poema começa, como acção reparadora. Um sonho racionalmente controlado. Ma non troppo. A metáfora da vida, onde há sempre uma porta aberta… para entrar e para sair.

AS MUSAS E A NEVE

É verdade que, neste poema, aludo ao belíssimo poema de Augusto Gil. “Batem leve, levemente / Como quem chama por mim”. Não era, como aqui, a musa. Era a neve. Mas as musas são como a neve. Batem leve, levemente, à porta da nossa sensibilidade. Mas às vezes são como os grandes nevões, cobrem tudo de branco, imanência total e deixam-nos maravilhosamente perdidos e encantados no meio de uma brancura total. Um sonho. Uma luz que nos incendeia a sensibilidade. A beleza natural na sua forma mais pura. Mas, tal como a neve, a sua presença é sempre fugaz. Parece dissolver-se quando o sol do afecto já é forte demais. Elas, as musas, são leves e rápidas como a neve e como as fadas. E, como a neve, cada vez mais uma certa musa, talvez Erato, vai batendo menos à porta do poeta, provocando nele uma necessidade cada vez maior de ir lá às profundezas magmáticas da memória à procura dela. “Branca e leve, branca e fria / Há quanto tempo a não via! / E que saudades, Deus meu!”. Assim dirá o poeta da sua musa inspiradora. Não a vê, porque ausente. Por isso, fá-la bater à porta da memória para entrar, assim, em diálogo com ela. Mas o tempo é implacável e ela acaba por se escapulir pela porta do tempo (em direcção ao passado, onde permanecerá quieta e muda). Até novo sonho.

PENUMBRA

A memória é o lugar do tempo subjectivo e a viagem poética, que é, ao mesmo tempo, onírica, atravessa todas as “intensities” que as palavras registam como emoções desde que abriu a porta do tempo até que a musa partiu para lugar incerto, sem deixar rasto. Fica apenas o registo do poeta sobre tão fugaz visita. Ele foi visitado pela musa, viu-a com os olhos da alma, sem lhe poder tocar, porque tudo acontecia no território do intangível. Momentos intensos, mas simulacrais, representados por aquele vidro fino, um pouco baço e frio, que representava a brecha temporal. A porta do tempo é um espelho que reflecte a fantasia onírica do poeta e, naturalmente, é por ela que a musa entra e sai, silenciosa e rápida, para parte incerta. Lugar que ele desconhece. Separar-se do poema, o poeta? Impossível, porque ele o escreveu com a alma em frente desse espelho luminoso e simulacral onde a sua vida se reflecte. É uma viagem no tempo, sim, porque o poeta tem passado – que, nele, transborda – e, por isso, tenta devolvê-lo ao futuro, já reconstruído com materiais resistentes ao tempo, as palavras. É assim que se resgata e alimenta um presente, o seu, cheio de silêncios e de ausências que o inquietam. E, então, instala-se numa certa penumbra existencial (a tal que existe na catedral de palavras), mas, de quando em quando, expõe-se ao sol purificador, para, depois, regressar purificado à quietude da penumbra, onde, finalmente, pode experimentar o prazer sublime da doce melancolia

SONHAR

“Sempre o sonho….continue a fazer-nos sonhar” , dizia alguém, comentando um poema meu. A poesia é sonho a olhos abertos. Umas vezes, traduz sonhos; outras, constrói-os. O sonho é o ambiente onde vive o poeta e, por isso, ele convoca os leitores para a experiência onírica com as palavras sedutoras e melódicas de que é feita a poesia. Se os deuses e as musas não o expulsarem do Parnaso e continuarem a agraciá-lo com o sopro da inspiração, ele continuará a subir ao Monte, transportando consigo palavras com melodia, e ao templo de Apolo. Lá, comporá as suas canções para oferecer a quem goste do seu canto e de sonhar.

O INSTANTE ONÍRICO

É verdade que a “Rua da Carreira” (a ilustração do poema “Um Sonho na minha Aldeia”) é, no poema (e não só), muito mais do que um lugar físico – é lugar de partida e de chegada, é passado, é presente e é futuro. Por isso, que melhor lugar poderia haver para um encontro onírico e de profundo afecto? Para um encontro impossível, mas intenso, reconstruído, neste lugar, no interior do tempo subjectivo do poeta, tornando-se deste modo “efectivo”. Um lugar onde a neve acontecia na sua inexcedível beleza, enquanto, farta e fria, ia caindo lá do alto para logo desaparecer com o despontar do sol da manhã. O poeta estabelece uma analogia da neve com a mulher do encontro, com a beleza do encontro, mas também com a sua fugacidade. Também ela parte com o despertar. Essa mulher era como a neve. Na fugacidade e na eternidade. A neve, como ela, foi-se, mas ficou para sempre. E foi por isso que ela, a musa, teve de vir a esta rua, marcada pela neve. O sonho poético a navegar no tempo, onde passado, presente e futuro se confundem no instante onírico. Kairós – o “momento oportuno”.  Uma espécie de tempo sem tempo (a lembrar-me o aoristo da língua grega – um tempo verbal sem tempo, pois não era nem presente, nem passado, nem futuro). Depois, esse encontro num lugar matricial. Dar à musa a profundidade temporal que coincida com a do poeta, com as suas raízes e os seus afectos originários. Veio cá e por cá ficou como marca indelével. A neve e, agora, depois do sonho, a musa. O sonho existiu e foi reconstruído com palavras e com uma imagem. Foi, assim, superada a sua própria fugacidade, entregue ao futuro e partilhado, voando para além do tempo subjectivo do poeta sonhador. Alguém disse, pois, “Sempre o sonho… continue a fazer-nos sonhar”. Aqui está: na partilha, a viagem do sonho, transcrito em palavras com melodia, para além do tempo subjectivo do sonhador acontece quando se converte em poesia. 

O CANTO SEDUTOR

Que elas, as musas e as deusas, protejam e inspirem o poeta, dizia alguém. E ele bem precisa. Mas elas, as musas, também precisam dos poetas. Diria mesmo que há uma espécie de natural cumplicidade entre elas e eles que torna o discurso “picante” e sedutor. As musas gostam que as cantem, sobretudo quando fingem desinteresse. Pudera! Afinal, o poeta também não finge? É uma das características da sua linguagem. Aqui, são elas que ouvem a insinuante melodia, sim, mas atam-se ao mastro do navio em que viajam para melhor resistirem ao canto sedutor do poeta. As musas não podem ficar cativas. E, então, fingem que não ouvem. Mas o poeta sabe que o canto lhes está no ADN. Na verdade, são os deuses, patronos das musas, que concedem a graça e a inspiração ao poeta, mas são elas, as sedutoras musas, que o estimulam, encantam e põem a cantar, sob o alto patrocínio da divindade.

A MUSA NA ALDEIA

Esse sonho (“Um Sonho na Minha Aldeia”) aconteceu e a rua era mesmo a da pintura “Rua da Carreira”. A musa é habitual companheira do poeta nas suas lamentações, como não poderia deixar de ser. Destino. Há sempre uma musa. E talvez a personagem Paola Valenzi, do romance “Via dei Portoghesi”, ajude a entender este destino sofrido em melancolia e em sonho e poeticamente convertido. O poeta tem muito de Gianni della Rovere, o amante. Mas aqui, neste poema, a recondução da musa à origem natal do poeta e aos momentos em que a magia da neve – que caía abundante e com frequência – o encantava era obrigatória. Como sonho ocasional ou como indução poética do sonho. A analogia entre a fugacidade da neve e a fugacidade do seu encontro com a musa tinha de acontecer. Quase como poética autojustificação. Mas também o mesmo encanto e a mesma pureza de sentimento. A neve no seu (dela) olhar. Pelo menos, era o que ele via nele, no olhar dela. Porque é pelo olhar que a neve lhe entra na alma. Tudo a convergir para a aldeia que o viu nascer nessa casa onde a neve o procurava (“batem leve, levemente, / como quem chama por mim”) e onde, cada vez com mais frequência, vai regressando, apesar da ausência persistente desse brilho cintilante que tanto o fascinava. É natural que, por isso, ele queira levar a musa consigo. Tudo é reconduzido às origens, como síntese da sua própria vida vivida e cantada. Sim, o canto já foi metabolizado e, por isso, já faz parte do seu próprio passado, do seu património vivido e guardado na memória dos afectos. Tudo se entrelaça na fantasia do poeta. 

ANALOGIAS

O que aconteceu aos dois personagens do romance “Uma Viagem no Tempo” (Rosa de Porcelana Editora, 2022), de António de Castro Guerra, que tive o gosto de apresentar, encontra semelhanças com o encontro onírico do poeta: fugaz, intenso, enquadrado pela natureza, belo. Fugaz, sim, mas que a beleza e a intensidade perpetuaram, agora sob forma de arte (romance e poesia). Também no romance, passado, presente e futuro convergem no tempo vivo da narrativa, onde o próprio autor se revê como num espelho que lhe devolve o passado a um olhar comprometido, sofrido e nostálgico. O romance como solução da própria vida lá onde ela não encontrou modo de se completar. Dizem que a velocidade intensa cega (Virilio), tal como a vertigem da intensidade fugaz, mas é por isso mesmo que os despistes podem acontecer, ficando para sempre registados na penumbra da consciência, a provocarem uma moinha dolorosa ou mesmo estragos que só as palavras podem atenuar.  A arte pode trazê-los à consciência e, deste modo, atenuar os efeitos devastadores que podem ter. A arte tem poder de resgate: a tristeza (pelo silêncio ou pela ausência) que, nela, se torna doce melancolia ou mesmo sofrida, mas doce ternura. O canto poético é, sim, um murmúrio do passado a convocar o futuro. JAS@02-2025

 

Poesia-Pintura

A NEVE

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “A Neve e a Montanha”
JAS 2025
Original de minha autoria
Fevereiro de 2025

“A Neve e a Montanha”, JAS 2025

POEMA – “A NEVE”

EU SINTO
A falta da neve
Como a falta
De um amor,
É saudade,
Melancolia
Que sofro
Como uma dor
Que outrora
Não sentia.

MESMO SE A VEJO
Ao longe,
Lá no alto
Da montanha,
E a tenho
Cá muito dentro
De mim,
Sua falta
É moinha
Que parece
Não ter fim.

ESCASSEIA
Ou já não vem
Ao encontro
No jardim
Ou nas ruas
Da minha aldeia
Como sempre
O fazia,
Era amor
De juventude,
Era assim
Que a sentia.

AMORES ANTIGOS
São pra sempre
(Os que foram
No passado),
Até que um dia
Revivam
E surjam ali
A teu lado,
Mesmo que seja
Assim...
.............
Num encontro
Inventado.

ERA SEGREDO
Da neve
Vir ter
Ao jardim,
 Comigo,
E eu crescia
E vivia
Num mundo
De fantasia
Que era o meu
Seguro abrigo...
............
Onde melhor
A sentia.

NÃO ERA
Turista de neve,
Fazia parte de mim,
Brincava sempre
Com ela
Nas ruas
Da minha aldeia
Ou, então
(era segredo),
No recanto
Do jardim.

MAS AGORA
O que me resta?
Ir à fonte glaciar
Trazer a neve
Comigo,
Vê-la descer
Lá do alto
Em forma de água
Gelada
A caminho
Do meu rio,
Neve pura,
Neve fria
(Não seca,
Mas já molhada)
Que me refresca
A alma
Como quando
Lá do céu
A neve 
Se oferecia
Como beijo
De uma fada.

Artigo

O PRESIDENTE – QUE PERFIL?

Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

NÃO SERÁ A PRIMEIRA VEZ que defendo que o Presidente da República deveria ser eleito por um colégio eleitoral. As últimas experiências parecem aconselhar esta solução. Nos últimos vinte anos tivemos dois presidentes de sinal oposto que parece acentuarem ainda mais a necessidade de uma solução deste tipo. A presidência de Cavaco Silva caracterizou-se por uma forte rigidez protocolar e discursiva e por uma acentuada tendência conflitual relativamente ao executivo (é conhecido o ridículo episódio, inventado por Belém, de espionagem do PR pelo executivo – por um adjunto – de José Sócrates). Não deixou grandes saudades. Depois veio uma presidência de sinal oposto: populista, com exposição excessiva da figura presidencial, desvirtuamento da função presidencial, designadamente, por excesso de intervenção na esfera do executivo (é conhecida a tentativa de demissão de um ministro, recusada pelo PM). Tudo isto suportado, afinal, numa legitimidade reforçada obtida por sufrágio universal e directo.

1.

No modelo constitucional que vigora os poderes do presidente são muito limitados, a não ser nas circunstâncias excepcionais em que é chamado a intervir sobre a recomposição do executivo e do legislativo e na promulgação de diplomas legais. A influência do presidente, ancorada na legitimidade directa de que dispõe, resulta mais do prestígio da figura institucional e do valor político da sua palavra do que das competências que lhe estão atribuídas. Quem desempenha a função deve, pois, cultivar um exercício da palavra e da acção que contribua para reforçar o prestígio da figura institucional do presidente no quadro do actual modelo constitucional. Ora, nenhum dos dois casos que referi se desenvolveu neste sentido. Antes pelo contrário, ambas as dimensões se degradaram com o andar do tempo.

2.

Deste modo, a figura mais adequada para o desempenho da função presidencial será a que mais contribuir para boas relações com o executivo, qualquer que ele seja, a que possa contribuir para o prestígio e a recuperação da figura presidencial, a que mais eficazmente possa representar a unidade do Estado e a que possa contribuir para que a sua voz seja tomada na devida consideração, se identifique mais com “auctoritas”, no seu sentido latino, com “virtus”, do que com “potestas” (Cícero). Um perfil, portanto, de bom equilíbrio que respeite a constituição, as suas competências, que seja capaz de construir um espaço eficaz de intervenção, na lógica do poder moderador. Acresce ainda que não é aceitável a possibilidade de Belém se tornar um espaço por onde circulem facilmente interesses em porta giratória. Um candidato que tenha, durante toda uma vida, circulado neste ambientes corre sempre o risco de vir a pagar um preço por isso ou de o fazer pagar à República. Não me quero referir a algum candidato em particular,  mas tão-só alertar para esse risco, contribuindo para o prevenir. A função e o simbolismo do cargo são demasiado delicados para serem contaminados por interesses de parte.

3.

Muitas vezes se fala da inadequação de um militar para a presidência, ainda que na reserva ou já completamente fora da instituição. Não me parece que essa observação seja razoável num Estado de Direito. Parece-me, todavia, que toda uma vida levada no interior da instituição militar tem um ponto a favor e outro contra. A favor, é o respeito pelas instituições e a sintonia com a ideia de Estado e de Nação, ideias que creio que estão ou devem estar enraizadas na instituição militar. O factor tendencialmente negativo é o da lógica de funcionamento da instituição militar, ou seja, a dominância do princípio do comando, algo desalinhado relativamente ao princípio que deve determinar o poder moderador na sua relação  com a dialéctica democrática, ou seja, a busca permanente de consenso que possa suportar as decisões e tenda a absorver ou a atenuar o conflito.  Eu creio que este será o principal obstáculo a que seja um ex-militar a desempenhar a função presidencial. Bem sei que “a função faz o órgão”, mas a passagem de uma condição para outra não se revelará fácil.

4.

Por outro lado, a legitimidade directa, através do sufrágio universal, tende, como é natural, sempre a funcionar como ulterior reforço dos poderes políticos do presidente mesmo para além daquelas que são as competências constitucionalmente configuradas. São conhecidos alguns casos em que isso aconteceu na presidência de Marcelo Rebelo de Sousa. É por isso que, conjugando a exiguidade de competências do presidente, a tendência a exorbitar devido à legitimidade directa de que dispõe e a natureza parlamentar da nossa democracia, faz sentido pôr em cima da mesa, para uma futura revisão constitucional, a eleição do Presidente por um colégio eleitoral. Mas, por agora, do que se trata efectivamente é de tomar em boa consideração o modelo que está em vigor.

5.

Entretanto, também se tem vindo a constatar que no seu discurso eleitoral os candidatos tendem a confundir a função presidencial com a função executiva e isso deve-se, em parte, à escassez de competências e de poder de iniciativa da função presidencial (tornando politicamente mais difícil o discurso), ainda que também seja de grande importância conhecer, na decisão do voto, o que pensa o candidato sobre as questões essenciais que se põem ao sistema político no quadro constitucional, sobretudo porque é ele o garante do cumprimento da própria Constituição: “Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa” (art. 127.º). O que já não parece aceitável é confundir os discursos, porque o presidente não governa nem legisla.

6.

Creio mesmo que o perfil do presidente se deve centrar muito na sua personalidade, nos seus valores, na sua relação com a política e com a vida, as dimensões que, no meu entendimento, podem fazer dele um bom presidente. Não creio, pois, que o presidente deva exibir uma personalidade forte, um curriculum cheio, ou mesmo a transbordar, e pensamento politicamente muito comprometido e muito activo. Até pela natureza das funções que será chamado a desempenhar: facilitar o bom curso da dialéctica democrática em vez de procurar imprimir as suas idiossincrasias políticas ao desenvolvimento democrático. Atrever-me-ia a dizer que entre as características do presidente deva estar a humildade, temperada com uma personalidade bem definida e dotada de auto-estima, pessoal e institucional.  O que se requer a um candidato é, ao fim e ao cabo, um patriotismo constitucional em condições de facilitar e promover uma boa e livre dialéctica democrática.

7.

O PSD já declarou o seu apoio a Luís Marques Mendes. O PS prepara-se para ouvir a sua comissão nacional acerca das presidenciais, certamente para conhecer as sensibilidades presentes no parlamento do partido e, a partir daí, desenvolver a sua estratégia de promover uma candidatura única no seu próprio espaço político, evitando também fracturas internas que possam perturbar a sua própria estratégia. Não lhe cabe traçar um perfil porque esse pertence aos potenciais candidatos, que não deverão ser objecto de prévia escolha partidária. Mas, por outro lado, também não necessita de definir o quadro político e de valores em que se inscreverá o seu apoio a um candidato porque esse é mais que conhecido.  De qualquer modo, e pelo que os potenciais candidatos já terão dito (António José Seguro ou António Vitorino, até agora), a vontade de candidatura só será manifestada mais lá para a frente, provavelmente não seguindo aquela que foi a estratégia de Jorge Sampaio. Quanto aos outros, as candidaturas estão, no essencial, confinadas à estratégia de promoção dos seus partidos de referência, incluída a de André Ventura. O que, todavia, não é o caso do Almirante Gouveia e Melo, hoje dado regularmente pelas sondagens como o potencial vencedor. Sim, é verdade, mas, primeiro, é necessário que anuncie a candidatura e, depois, também é verdade que a campanha eleitoral (ou mesmo a pré-campanha), muito importante, neste caso, ainda nem sequer começou, a não ser a de Marques Mendes, que, essa sim, começou há muitos anos. JAS@02-2025

Poesia-Pintura

O POETA E O ARCO-ÍRIS

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Arco-Íris no Vale”
Original de minha autoria
Fevereiro de 2025

POEMA – “O POETA E O ARCO-ÍRIS”

DOS CAMINHOS
Serpejantes
Da montanha
Vêem-se
Silhuetas
De poetas
Lá no alto,
Lá no ar,
Sentados
Em arcos-íris
Sobre o vale
Da minha terra,
Agarrados
A palavras
E prontos
Pra desenhar
Os ecos
Da nossa serra.

TANTA LUZ
Nesse imenso
Mar
De gotículas
Coloridas,
Nesse céu
Bruxuleante
(Que já é
Um pouco meu),
Espelho
Dos meus sonhos
De amante
Que deu asas
Ao olhar
Onde a fantasia
Nasceu
Para poder
Navegar.

ÀS VEZES
É denso
O arco-íris
Que paira
Sobre o meu vale,
Subo nele
E entro
Na frescura
Colorida
Para me ver
Caminhar
Pelos sendeiros
Da vida.

LÁ DO ALTO
Vejo o vale,
Vejo a vida
Que se move,
Vejo a água
Da ribeira
Que corre
E  que cresce
Quando chove,
Dou asas
À fantasia
Para trazer
Ao meu vale
Tudo aquilo
Que me comove
E tem força
De magia.

ENTÃO, PINTO
A comoção
Com palavras
Cinzeladas
Em pauta
De melodia
Que provoca
Emoção
Em quem as ouve
Cantadas
Em plena
Harmonia
E desejo
D’evasão.

SÃO BELOS
Os arcos-íris
Que vejo
Cá no meu vale,
Iluminam
A memória
Dos tempos
Que já lá vão,
Quando a vida
Tenteava
Cada passo
Que ela dava
Em busca
Da perfeição.

E ASSIM VOU
Desenhando
Cada minuto
Que passa
Com a luz
Que vem do céu
Pois se ele
Já é de todos
Também é
Um pouco meu.

Poesia-Pintura

UM SONHO NA MINHA ALDEIA

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: "Rua da Carreira"
JAS 2022
Original de minha autoria
Janeiro de 2025

“Rua da Carreira”. JAS 2022. Pintura digital, 68×70, impressão Giclée em papel de algodão (100% I 310gr) e verniz Hahnemuehle. Arglass AR70 em moldura de madeira.

POEMA – “UM SONHO NA MINHA ALDEIA”

SONHEI-TE
Esta noite
Numa rua
Da minha aldeia...
..............
Não sei porquê
(Os sonhos são
Sempre assim),
Caminhámos
Lado a lado
Sem dizer
Uma palavra,
Sem um olhar
De través,
Apenas
Pressentimento,
Cá bem no fundo
De mim,
Sentindo-te
Como tu és.

DUAS VEZES
Lá estive
A sentir-te
Nesse tempo
Diferido
Dos encontros
Intangíveis
Que se desfazem
Nas nuvens
Quando o céu
É proibido
Aos afectos
Impossíveis.

MAS VI-TE
Com nitidez
(Um pouco baça,
É certo)
No silêncio
Do meu sonho,
Em encantada
Alvura
A recordar
Tempo antigo
Quando a neve
Regressava,
Branca e pura,
E nela me via
Contigo.

FOI NA "RUA DA CARREIRA",
Em frente
Da minha casa,
Sendeiro da minha
Vida,
Onde me via
Passar
A caminho do futuro,
Minha porta
De partida
Onde sempre
Me procuro.

CAMINHÁMOS
Por pouco tempo,
Como na vida real,
Nem um olhar
Nos trocámos,
Tão fugaz foi
Este sonho,
Intenso,
Mas espectral.

MAS SE A VIDA
Também é sonho
E sem sonho
Pouco mais é
Do que nada,
Sonâmbulo
Me encontraste
Na rua
Da minha aldeia,
Nunca antes
Visitada.

E AQUI ESTOU EU
A sonhar-te
Outra vez
Nos versos
Com que te chamo,
Recordando que
Te vi
Neste lugar
Que eu amo.

É SEMPRE ASSIM,
Meu amor,
Quanto mais tu
Te esfumas
Na vida
Ou, então, mesmo
A sonhar,
Mais me cresce
Esta dor,
Que não consigo
Parar...
................
Procuro, então,
Combatê-la
Com armas
De sonhador,
Que me põem
A voar.

DE TANTO EU
Te sonhar
Acabei por
Te encontrar
Na terra
Onde nasci,
Onde a neve
Derretia
Quando o sol
Já despontava
E o manto
Da saudade
Logo de dor
Me cobria
Porque ela
Me faltava.

AGORA A NEVE
És tu,
Fugaz que foi
A passagem
No chão dorido
Da vida,
Como a brancura
De outrora
Que de saudades
Doía
Em cada fatal
Despedida,
Quando a dor
Mais me vestia.

MAS SE EM SONHO
De novo
Te encontrar
Talvez eu volte
A sentir
A cativante
Magia
Da neve
No teu olhar,
Como a da minha rua
Que não há sol
Que a derreta
Na penumbra
Da memória...
..............
Que no sonho
E no poema
É mesmo
Como a tua.