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Sobre joaodealmeidasantos1

Professor universitário, escritor, poeta, pintor. Publicou várias dezenas de livros, seus e em co-autoria, de filosofia, política, comunicação, romance, poesia, estética. Foi professor nas universidades de Coimbra, Roma "La Sapienza", Complutense de Madrid e Lusófona (Lisboa e Porto). Publica semanalmente, neste site, ensaios, artigos, poesia e pintura.

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (VI)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

Noite0905

“S/Título”. JAS 2024

LUZ

UM CERTO POEMA, não importa qual, poderia chamar-se “Sonho”. Chamei-lhe “Luz” porque, afinal, no sonho sempre se acende uma luz (ele acontece sempre no escuro do sono). Ou o sonho é ele próprio essa luz. Talvez. O sonho é uma luz no escuro do sono. Qualquer que ele seja. É uma brecha que se abre. Sonho também está por poesia, que é sonho de olhos abertos, de palavras cifradas e de melodia que embala – uma luz que nos guia no caminho luminoso dos afectos. Da saudade ou da melancolia. Ou do amor. E o jardim é pista de onde o poeta descola em direcção ao paraíso, onde a luz é tão forte que há sempre o risco de encandeamento. E, neste caso, de queda. Os olhos do poeta são faróis cuja luz se reflecte no espelho mágico da poesia e, por reflexo, pode mesmo encandear e provocar uma queda no real. Sim, uma queda no real. Mas a queda acabará sempre por ser no jardim, de onde partiu, onde uma densa nuvem aromática e acre de jasmim atenuará o seu impacto. Das libações se parte, às libações se regressa. Vias oníricas para o desejo. Poéticas, porque a poesia é sonho. Sem remorsos. O poeta sonha e não é culpado disso. Acontece-lhe sonhar. Felizardo, mesmo quando o sonho é parecido com um pesadelo. Parecido, digo, porque o sonho poético acrescenta beleza e leveza ao que pode parecer pesadelo pela intensidade da dor que lhe esteve (está) na origem. O poeta desabafa esteticamente e não lhe pode ser imputada culpa por dizer o que talvez não devesse. Mesmo em forma cifrada.  Acontece-lhe.  E ainda bem, dirão alguns, os que se revêem no espelho mágico da poesia.

MUSA

Também a musa é uma luz que se acende à medida do desejo do poeta. Reacende-se na fantasia. Quando ele a procura porque entra em nostalgia ou em sofrida melancolia. Começa o canto e ela vai-se acendendo lentamente até atingir luminosidade máxima. A musa. No fim do poema. E há um ambiente especial onde tudo acontece mais naturalmente. O do jardim. No Symposion do Platão um dos intervenientes dizia que o Eros, que concede o dom da poesia, só se instala onde houver flores e perfumes. E é para lá que os poetas tendem a ir, porque é lá que acontecem as libações com os perfumes mais intensos, abrindo caminho à inspiração. Faz pensar, a poesia? Sim, mas ela realiza-se melhor se se fizer sentir na alma ou até no corpo.

ZÉFIRO

“Eu acho que Zéfiro passou por ti” – disse eu a um Amigo que comentava um poema meu – “como leve brisa que deu asas ao desejo em forma de poético comentário”. Pelo menos, digo eu, levou-o lá para dentro do poema e pô-lo a navegar nele, como habitualmente lhe acontece. Deixar-se ir ao sabor das ondas e da maresia poética.  Sem Zéfiro não sei se isso poderia acontecer. Claro, as palavras têm vida própria e muitas vezes vão por ali sem pedir licença ao condutor que as pôs a caminho. Mas a verdade é que a via já está traçada e elas bailam nas rectas e nas curvas do caminho ou nas ondas de mar encrespado. Sem se desviarem. Por isso, qual perdão, qual quê! – respondi-lhe. O que, mais uma vez, ele fez foi uma viagem por dentro do poema, só que, desta vez, caminhando, ia, poeticamente, dizendo que não, que não estava a caminhar como gostaria de o fazer, que o Zéfiro propulsor não o impulsionava com suficiente energia. E, assim, caminhando com palavras pelos sendeiros abertos pelo poema, ia timidamente invocando a divindade para que soprasse com um pouco mais de energia. “Mas” – disse-lhe eu – “sabes por que razão ela não o faz? Para te obrigar a caminhar lentamente ao sabor da brisa poética que já te sopra na alma, em partilha com o poeta que te chamou ao habitual ritual”. Cumplicidade benéfica. Só isso. Entre o poema e o comentário sopra a brisa da inspiração, que faz feliz o poeta e, espero, o comentador.

A DIALÉCTICA DO SONHO

Oh, mas essa, a dialéctica do sonho, é própria da poesia – exclamei, quando alguém me falou dela. O poeta, depois de declarar o seu fascínio pela musa, termina dizendo que lhe basta o sonho. Pois. Mas o que ele está a dizer é que ela lhe falta e que só por isso é que a sonha. Se a tivesse não a sonharia? Talvez. Ao dizer que o sonho lhe basta, o que está a dizer é que não lhe basta. E que é por isso que tem de continuar a cantá-la (a sonhá-la) para que ela o ouça. Essa é que é essa. Para que ela o ouça. É para isso que ele canta para o vento que passa. Aqui ele não é como o Pessoa, que só sabe amar em poesia, apesar dos beijos apaixonados que, pelo menos uma vez, deu à Ofélia num vão de escada. A verdade é que o poeta tem sempre uma referência. E, se não a tiver, inventa-a. De carne e osso. Há sempre uma Ofélia, mesmo que não haja um vão de escada. Bem sei que ele, o poeta, compõe a poesia partindo do princípio de que a musa o está a ver e a ouvir. É por isso que a sedução faz parte do seu poetar. E só por isso é que ele pode dizer que cantá-la lhe basta. Pudera! Assim é fácil. Digo eu (mas não é). Porque é uma ficção, por mais poder performativo que tenha. E tem (e atenua a dor). Mas a dor continua lá, obrigando-o a continuar poeta e a compor sem parar.

DESEJO

A linguagem do sonho é a linguagem própria do poeta. Para ele, “la vida es sueño” e “el sueño vida es”. Calderón de la Barca. E o sonho comanda a vida, como dizia o nosso Gedeão na “Pedra Filosofal”. E a vida é um longo desejo que se vai cumprindo à medida da ambição de cada um. Do sonho de cada um. Cumpre-se mesmo quando o desejo não se cumpre. A negação também faz parte da vida. E o modo como se reage a ela, à vida, determina o próprio percurso vital. É nesta encruzilhada que se situa o caminhar do poeta.

ESPELHO MÁGICO

Na verdade, o poema funciona como um espelho onde é possível encontrar os nossos próprios sentimentos. Um espelho mágico. Quanto mais isso acontecer maior valor tem um poema. Por isso, é verdade que o leitor pode sentir o poema de forma diferente da do próprio poeta. Quanto mais a construção de um poema lhe der forma de espelho mais possibilidades há de nele sentir o que vivemos ou sofremos. Um poema tenderá sempre a ir ao fundo do sentimento e assim poder ser sentido a partir de experiências diferentes. Mas terá de funcionar como um espelho que devolve a imagem já transfigurada. Um espelho mágico.

A PORTA

Na verdade, o jardim (o meu jardim) existe, mas o jardim poético, esse, é fruto da fantasia. A porta, essa, a da pintura (“Paraíso”), também existe, como acesso ao jardim encantado, não como acesso directo ao cintilante céu onde a fantasia do poeta navega. É sempre necessário descolar com a fantasia a partir do jardim. Digamos que aqui se aplica a natureza híbrida da poesia (como é a do Eros), entre os homens e os deuses, entre o finito e o infinito, entre o jardim terreno e o Éden. Neste sentido, essa porta é a entrada para este espaço intermédio, para esta pista de descolagem da fantasia.

ROUQUIDÃO DA ALMA

Rouquidão da alma, dizia, de si, uma Amiga que comentava um poema meu. É verdade que podemos ficar roucos, por exemplo, quando usamos em excesso as cordas vocais. Dado físico. E podemos ficar roucos de espírito – não de alma, que é diferente – quando usamos em excesso as cordas mentais? Há simetria? Sim, há, e por isso há que moderar o seu uso? No aspecto físico, temos de falar pouco e baixinho para não agredir as cordas vocais. No caso do espírito, mais do que de rouquidão, talvez se deva dizer cansaço, fadiga, havendo pois que moderar a actividade mental. Mas também há espíritos roucos. A rouquidão da alma é estrutural, embora haja quem nunca esteja rouco de alma, por escassez de sensibilidade. No caso da rouquidão do espírito o que é preciso é verbalizar menos, até porque a rouquidão do espírito torna baça e de difícil compreensão a própria expressão. Os que são roucos de espírito são sempre um pouco confusos, sentimentalmente turvos e escuros de alma. O problema é que se não verbalizarmos, não dermos forma às “intensities”, podemos “explodir”, como uma panela de pressão. É por isso que a “rouquidão” da alma é mais perigosa. Os poetas estão sempre em risco e por isso estão sempre em modo poético, não vá a pressão explodir. A poesia de certo modo nasce de uma permanente rouquidão de alma. E é por isso que a sua linguagem é tão minimalista, suave e delicada. Para conter a rouquidão e não “arranhar” as almas, a do poeta e a dos outros.

LIBAÇÕES

Reflecti sobre se uma pintura que ilustrava um poema devia ter título ou não ter. Optei por não ter, porque o título seria o próprio título do poema. Redundância. Mas, pensando no que me disse um Amigo, poderia encontrar uma solução de compromisso, “Rosto para um Poema”, que era “Poema para um Rosto”. E assim decidi mesmo alterar a publicação. Já sobre o nariz do rosto que pintei, ele não é objecto das palavras do poeta, embora o olfacto seja central para a pulsão poética, para as libações aromáticas. Mas está lá. A embriaguez de perfumes do jardim (por exemplo, o do jasmim) é decisiva no seu poetar e ela acontece sensorialmente através do olfacto. Que é, neste caso, tão importante como a boca o é para o beijo, a “poesia dos sentidos”. O poeta, todavia, sente-o como esteticamente pregnante e motivador. Trata-se de libações aromáticas.

Mas ainda há uma outra razão para me ter decidido por não titular a ilustração, nesta “aguarela de palavras”: a sinestesia é intensa e, por isso, deixar a titulação confiada somente ao poema pareceu-me adequado. Mas a solução motivada pela observação pareceu-me que preservaria ou aumentaria mesmo essa intensidade sinestésica daquela “aguarela de palavras”. Por isso, decidi-me pelo título. Não é coisa de somenos, porque do que se trata é da dialéctica da sinestesia.

ROSTO

Comentando uma pintura (“Rosto para um Poema”)  que ilustrava o poema (“Poema para um Rosto”), um Amigo dizia-me que havia ali algumas “parecenças”, como se diz entre nós, com a Amália. “Mas não é ela, a Amália”, respondi-lhe. Essa senhora que também dizia que o canto lhe acontecia. Não é. Aliás, no fado, eu só gosto de alguns poemas cantados e de algumas vozes extraordinárias. Como a dela. Este rosto, disse, é o que eu canto e procura dar forma à alma que seduz ou seduziu o poeta deste poema. O rosto é uma projecção do poema e vice-versa. Há um referente? Não sei. O poema e o rosto valem por si. JAS@12-2024

Noite0905Rec

Poesia-Pintura

A SAUDADE

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Melancolia”, JAS 2022
Original de minha autoria
Dezembro de 2024
JAS_Melancolia2023_12

“Melancolia”. JAS 2022. 80×88, em papel de algodão (310gr) e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em mold. de madeira

POEMA – “A SAUDADE”

NUM DIA
Cinzento
Da vida
Cruzei-me
Com a saudade,
Estava vestida
De negro
E não soube
Que fazer,
Perdido
Lá na cidade,
Nesse triste
Entardecer...

FINGI
Que não a via,
Mas olhei-a
De través,
Sem saber
Por que o fazia
Ou receio
De um revés.

MAS ELA
Entrou em mim
Porque de mim
Não saíra,
Memória
Incompleta
De algo
Que não partira.

É SAUDADE
Do que nunca
Aconteceu
E por isso
Atinge forte,
Como raio
E trovão,
Quem revive
O que viveu
Em sofrida
Solidão.

A SAUDADE
Aparece
Onde menos
Se espera,
Ela sempre
Acontece,
Redonda
Como esfera.

E É NOS DIAS
Cinzentos
Que ela
Sempre
Aparece
Disfarçada
De acaso...
.......
É assim
Que acontece,
É destino
A caminho
Do ocaso.

A SAUDADE,
Imprevisível
E forte,
Encandeia
Quem a sente,
Qual clarão
Em noite escura
Nos dias
Cinzentos
Da vida,
Sempre intensa,
Sempre impura,
Uma infinda
Despedida...
................
Que já nem o tempo
Cura.

QUANTO MAIS 
O tempo passa
Mais a saudade 
Dura 
E cresce
Pois se o passado
Não cura
Para sempre
Permanece.

JAS_Melancolia2023_12Rec

Artigo

GRAMSCI E OS INTELECTUAIS

Por João de Almeida Santos

antonio-gramsci2024_12

“Gramsci”. JAS 2024

HOJE, dia 11.12, terei o gosto de participar, na Associação José Afonso, em Lisboa (Rua de S. Bento), na apresentação do livro de Antonio Gramsci, Os Intelectuais e a Organização da Cultura (Lisboa, Relógio d’Água, 2024), juntamente com a tradutora, Prof.ra Rita Ciotta Neves, a Prof.ra Raquel Varela e o Prof. Roberto della Santa.  Trata-se de uma parte dos Cadernos do Cárcere, na edição originária da Einaudi em seis volumes, que ocorreu entre 1948 e 1951 (as Cartas do Cárcere são de 1947), organizada por Felice Platone e Palmiro Togliatti. Foi assim que começou a enorme expansão dos escritos de António Gramsci, com uma reorganização temática dos aparentemente fragmentários Cadernos do Cárcere (escritos entre 1929 e 1935). Digo aparentemente porque sob essa forma existe uma unidade e uma coerência conceptuais verdadeiramente impressionantes, como veremos. Esta forma de organização temática permitiu um mais fácil acesso e uma melhor divulgação da obra (veja Bobbio, 1990: 116-124). A edição crítica dos Cadernos, publicados por ordem cronológica, só aconteceria em 1975, pelo Instituto Gramsci e sob a responsabilidade de Valentino Gerratana  (Gramsci, 1975).

Este livro que hoje apresentamos é o segundo livro de Gramsci que a Prof.ra Rita Ciotta Neves traduz para português, depois de, em 2012, ter traduzido (e com uma excelente introdução) uma selecção de escritos a que deu o título de Gramsci, a Cultura e os Subalternos (Gramsci, 2012), em cuja apresentação, de resto, também tive o gosto de participar. Aplaudo esta nova edição num país em que Gramsci pouco tem sido estudado, traduzido e divulgado, apesar da sua reconhecida importância no panorama mundial.

1.

Três dados, meramente quantitativos, bastariam para mostrar a importância do pensamento de Gramsci (são cerca de seis mil páginas) a nível mundial: 1) são mais de 20.000 os textos sobre o pensamento de Gramsci; 2) são 1544 os livros publicados sobre o político e pensador sardo; 3) são cerca de 40 as línguas em que o pensamento de Gramsci é tratado. Estes dados constam da Bibliografia Gramsciana, fundada por John Cammett, da responsabilidade da Fundação Instituto Gramsci, e agora ao cuidado, em particular, de Maria Luisa Righi. Mas uma visão mais completa da presença de Gramsci no mundo pode ser consultada no riquíssimo volume Gramsci nel Mondo, com textos de 27 importantes autores e sobre os países de língua inglesa e de língua alemã; sobre a África do Sul, Argentina, Brasil, China, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Japão, México; sobre Gramsci no mundo árabe; sobre Gramsci na cultura soviética; e outros temas relacionados com a presença de Gramsci no mundo. O Brasil consta, através de um artigo de Carlos Nelson Coutinho, mas Portugal não consta deste livro  da FIG, com organização de Maria Luisa Righi (Righi, 1995).

2.

Mas os dados quantitativos, que são impressionantes, podem ser um sinal de que algo mais importante está em causa na obra de Gramsci. E está. E não falo da exemplaridade da sua curta vida (morreu com 46 anos na sequência de cerca de 10 anos na prisão, onde as suas já precárias e congénitas condições de saúde se agravaram até à morte), da disciplina interior, do rigor e da verticalidade moral de um homem que em condições verdadeiramente desastrosas consegue produzir uma obra imorredoura, “fuer ewig”, como ele dizia, os Cadernos do Cárcere, contrariando as palavras assassinas do Procurador Michele Isgrò que, durante o “processone” de 1928, afirmara que teriam de impedir que o cérebro de António Gramsci funcionasse durante vinte anos, o tempo de prisão a que foi efectivamente condenado. Ele ficou, sem dúvida, como um dos mais importantes membros do chamado marxismo ocidental, muito mais sofisticado e complexo do que o marxismo ortodoxo, oficial ou institucional, ao lado dos intelectuais da Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Walter Benjamin, Marcuse ou Habermas) do estruturalismo francês ou da italiana escola de Della Volpe; ele inspirou os Cultural Studies, de Stuart Hall; a esquerda latino-americana tem nele um dos mais importantes e divulgados inspiradores; e até a direita o estuda com o objectivo de tentar consolidar uma hegemonia conservadora nas democracias representativas; uma jornalista do New York  Times, Flora Lewis, atribuiu-lhe, em 1989, a introdução do conceito de sociedade civil na política moderna; no mesmo ano, Michael Novak, um ex-embaixador e membro do conservador American Enterprise Institut, escrevia um artigo na revista Forbs com o título “The gramscists are coming” e até o ditador Pinochet afirmaria, em 1992, numa entrevista à Konsomolskaya Pravda que “a doutrina do comunista Antonio Gramsci é o marxismo com fato novo” e que ele “é perigoso porque penetra na consciência das pessoas e, em primeiro lugar, na dos intelectuais” (Santos, 2006: 98); foi notória a influência de Gramsci no pensamento de Louis Althusser (veja-se Lire le Capital e sobretudo o ensaio “Idéologie et appareils Idéologiques d’Etat”), ainda que mediado pelo seu estruturalismo e anti-historicismo e por uma clara distanciação crítica; a famosa obra de Edward Said, Orientalismo, foi escrita sob influência do pensamento de Gramsci, sendo Said confessadamente gramsciano e tendo a ideia central do livro certamente encontrado nos escritos de Gramsci sobre a questão meridional, nas suas relações com o norte industrializado, a sua própria matriz (1); como sublinha, e bem, a Prof.ra Rita Ciotta Neves no livro sobre Gramsci e os subalternos, também os estudos subalternos, designadamente de Ranajit Guha e de Gayatri Spivak, devem a sua inspiração a Gramsci (Neves, 2012: 29-38);  isto para não falar da sua poderosa influência na cultura e na política italiana ou do que sobre dele disse, Peter Glotz, que foi director executivo federal do SPD, governante e deputado ao Bundestag durante dezoito anos: “este homem (…) era dotado de uma visão realista superior à da maior parte dos dirigentes políticos da esquerda de hoje”, tendo ainda formulado a proposta de passar, na esquerda alemã, do “Kautsky que está em nós” para um Gramsci mais moderno e eficaz, metabolizando politicamente conceitos tão originais como “moderno príncipe” (o partido), “intelectual orgânico”, “bloco histórico”  ou “hegemonia”; estes dois últimos “conceitos capazes de assumir significado determinante nos conflitos sociais dos anos oitenta” e de “importância vital para a esquerda europeia” (Glotz; 1987: 24-25). E a lista poderia continuar, mas creio que para o meu objectivo isto chegue.

3.

Gramsci foi, sem dúvida, um marxista original e é necessário sublinhar que o seu pensamento, sobretudo o dos Cadernos, não se identifica com o marxismo oficial ou ortodoxo. Sabemos que este marxismo só viria a ser codificado em 1938, no n.º 2 do capítulo IV da História do Partido Comunista (Bolchevique) da URSS, dois anos depois da primeira e decisiva Constituição da URSS, de 1936: o DIAMAT e o ISTMAT, o materialismo dialéctico e o materialismo histórico (que se tornaria a bíblia marxista-leninista, divulgada em todo o mundo). Gramsci morrera um ano antes, a 27 de Abril de 1937, na clínica Quisisana, de Roma. Por isso, a sua posição sobre este marxismo pode definir-se não a partir deste texto oficial (atribuído a Stalin), mas, sim, a partir da sua crítica a uma obra muito mais sofisticada da autoria de um importante intelectual e político soviético, Nikolai Bukárine: Teoria do Materialismo Histórico. Ensaio popular de sociologia marxista, de 1921, e que também conheceria uma grande divulgação, inclusivamente em Portugal (Bucharin, 1977; e Santos, 1986: 40-61). A crítica de Gramsci é simples: trata-se de uma visão centrada num materialismo positivista e metafísico inspirado mais em Engels (na Dialéctica da Natureza e no Anti-Dühring) do que em Marx. Há uma passagem  muito elucidativa a este respeito no Q., 4, § 11, 433: “Di questa espressione ‘materialismo storico’ si è dato il maggior peso al primo membro, mentre dovrebbe essere dato al secondo. Marx è essenzialmente uno ‘storicista’ “. Fica tudo dito. Daqui o historicismo de Gramsci, mas não o que do assunto pensa Althusser, em Lire le Capital (2). Uma análise aprofundada da crítica de Gramsci a Bukárine fi-la no meu livro O Princípio da Hegemonia em Gramsci (Santos, 1986: 40-61). Não se trata, todavia, de uma mera divergência filosófica, mas estrutural, centrada numa rede conceptual inovadora e muito diferente da de Bukárine. De resto, poderíamos recuar até 24 de Novembro de 1917 para vermos como Gramsci se apercebera de imediato das características da revolução russa e da sua diferença relativamente às teses de Marx, ao escrever um famoso artigo no “Avanti!” sobre a Revolução de Outubro: “La rivoluzione contro il ‘Capitale’ ” – de Marx, entenda-se  (Gramsci,1958: 149-153). Uma exaltação da vontade colectiva contra um certo determinismo de inspiração positivista. Mais tarde, explicará que a revolução russa foi desencadeada como “guerra de movimento”, que, pela natureza da sociedade civil russa, podia ser desencadeada sem que fosse atingido o grau de desenvolvimento previsto por Marx para acontecer. Diria também que nas sociedades onde a sociedade civil é mais robusta já não é possível uma “guerra de movimento”, mas, sim, uma “guerra de posição”, aquela que deve estar virada para a conquista da hegemonia e para a formação de um sólido e compacto bloco-histórico. E é aqui que ele verdadeiramente centra o processo político nas sociedades mais desenvolvidas.

4.

Não é, pois, difícil perceber que Gramsci via mais longe e isso poderá ser confirmado quando na famosa carta do PCd’I ao Comité Central do PCUS, de outubro de 1926, pede que seja superada a grave divisão interna entre a maioria e a minoria chefiada por Trotsky, Zinoviev e Kamenev e sobretudo que “Il Comitato centrale  dell’URSS non intenda stravincere nella lotta e sia disposta ad evitare le misure eccessive” (Spriano, 1988: 133; e Gramsci, 1978: 124-137 ). Todos viriam a morrer por ordem de Stalin, incluído, depois, o próprio Bukárine. Quem ler as duas cartas trocadas entre Gramsci e Togliatti poderá verificar a diferença radical de posições dos dois líderes a propósito da famosa carta. Embora Paolo Spriano, o historiador oficial do PCI, autor dos 5 volumes da História do PCI (Spriano, 1970), no livro acima citado, procure demonstrar o alinhamento entre Gramsci e o partido, e designadamente com Togliatti, a verdade é que a divergência com o futuro líder do PCI já era efectiva. Togliatti era um homem completamente alinhado com Moscovo e até viria a ser autor do relatório que levou à expulsão, em 1948, da Liga dos Comunistas da Jugoslávia do Kominform, tendo sido convidado por Stalin, em 1951, para presidir ao Kominform e aceitado a intervenção soviética na Hungria em 1956. Stalin diria, por ocasião do seu 70.º aniversário, que Togliatti viria a ocupar “um lugar que, até agora, poucos ocuparam na história da humanidade” (Santos, 2003: 171). Diga-se, todavia, e em abono da verdade, que esse mesmo Togliatti, já líder incontestado e reconhecido do PCI,  haveria de promover activamente a obra de Gramsci logo a seguir ao fim da guerra. Mas é verdade que as diferenças do pensamento de Gramsci em relação ao marxismo oficial são claras e profundas e podem ser compreendidas a partir dos conceitos de ideologia, guerra de movimento, guerra de posição, hegemonia, bloco histórico, partido como “moderno príncipe”, intelectual orgânico, nacional-popular, Estado, bloco intelectual, revolução passiva, materialismo histórico.

5.

Não é o caso de aqui esmiuçar todos estes conceitos, mas é possível assinalar alguns aspectos, para além do que já referi acerca do conceito de materialismo ou de guerra de movimento e guerra de posição. Evidencio, todavia, os conceitos de ideologia, de hegemonia e de intelectual, na sua profunda articulação. O conceito de hegemonia difere do conceito leniniano porque é mais amplo, tratando-se de uma realidade ético-política e cultural e não somente de supremacia política. Só uma ideia de ideologia como vasta esfera onde os indivíduos reconhecem e identificam a realidade, desde os níveis mais elementares (como, por exemplo, o do folclore ou o do dialecto) até aos níveis mais elevados da filosofia pode articular um conceito de hegemonia como ele a concebe. Em A Ideologia Alemã, a ideologia era considerada como falsa consciência, ilusão, inversão do real na consciência dos indivíduos e, de qualquer modo, imputável aos “ideólogos activos” como seus agentes. Não é esta a concepção de Gramsci, uma vez que lhe atribui uma tripla dimensão: cognitiva (o reconhecimento do real por seu intermédio), ontológica (esfera real que tem como expressão orgânica as ideias, a filosofia, os valores, as crenças, as religiões, as atitudes, as tradições, a língua, os dialectos, etc., etc,) e normativa (poder de levar à acção). Estas dimensões positivas da ideologia, como um vasto e diferenciado campo significante com dimensão ontológica, e não como realidade simulacral, é que constituirão o universo onde ocorre o processo hegemónico, a dimensão ético-política da história, e é nelas que intervêm os intelectuais enquanto mediadores entre a sociedade civil e a superestrutura política e jurídica, capazes, pois, de conquistar a hegemonia e de promover um sólido bloco histórico. Ele difere também daqueles – e são muitos; por exemplo, Althusser – que consideram que o seu uso do conceito de sociedade civil é impróprio do marxismo, apesar de ele o ter ido buscar ao pequeno volume Zur Judenfrage, de Marx (Santos, 1986: 129-152).  Mas é precisamente na sociedade civil, nos organismos da sociedade civil (e não aparelhos ideológicos de Estado, como quer Althusser, que considerava a sociedade civil como um conceito próprio dos escritos de juventude de Marx), enquanto esfera privada, que se produz e reproduz a ideologia e que intervêm os intelectuais tendo como objectivo conquistar a hegemonia, num processo que pode ser definido como guerra de posição. Também poderia ainda acrescentar que há um autor, Franco Lo Piparo, que radica o conceito de hegemonia no conceito linguístico de prestígio (Ascoli), constituindo uma sua reelaboração e enriquecimento (Lo Piparo,1979, pág. 145; mas veja-se pág.s 103-151). Em O Princípio da Hegemonia em Gramsci desenvolvo uma longa informação e argumentação sobre este assunto (Santos, 1986: 111-152; especialmente 140-152).

6.

Interessante, a este respeito, o que Gramsci escreve sobre o taylorismo, o americanismo e o fordismo e como estas considerações podem explicar a sua ideia sobre a sociedade regulada. Em poucas palavras,  o processo produtivo nos Estado Unidos levou a uma racionalização global da sociedade americana, até porque esta não era condicionada por “um resíduo passivo de todas as formas sociais ultrapassadas na história” (Q., III, 2168, § 11), como acontecia na Europa, que impedisse o processo de racionalização das condições elementares de desenvolvimento histórico e, assim, a própria possibilidade de racionalização da produção e do trabalho (Santos, 1986: 69-79). Este processo, ao generalizar-se, implicava toda a sociedade pelo que implicava também a sua gestão política, replicando-se deste modo, no plano superstrutural do Estado, a separação entre programação e execução taylorística do trabalho produtivo. Ou seja, a dissociação entre proprietários/managers e operários/produtores encontraria uma equivalência na dissociação entre governantes e governados. Por isso, ao Estado eram requeridas poucas funções e até os intelectuais pouco contribuíam para uma hegemonia que nascia da fábrica, que assentava na generalização da racionalização produtiva, com todos os dispositivos normativos correspondentes a determinarem a vida dos produtores directos (fordismo). Portanto, de um lado, a programação económica e política centralizadas e, do outro, a execução técnica pelos produtores atomizados e confinados no processo produtivo. O que diz Gramsci? Que a solução seria a da organização não corporativa dos produtores directos (sindicatos e partido ou partidos) de modo a reabsorverem as duas realidades separadas: a da programação económica e a da programação política. Esta reabsorção, neste universo racionalizado permitiria evoluir para a chamada sociedade regulada, onde não se já não verificaria esse fosso entre programação e execução. Cito do meu livro sobre o princípio da hegemonia: “a crítica de Gramsci há-de centrar-se, portanto, no facto de, pelas exigências internas do processo de racionalização, a sociedade civil, por um lado, se generalizar, reproduzindo-se como sociedade política, à custa do aprofundamento do controlo privado do destino social da produção através da programação alargada e, por outro, se atomizar, individualizar e particularizar sempre de modo crescente pelo aprofundamento da separação da esfera da produção directa  e parcelar em relação à do controlo global desta esfera. Se, por um lado, uma parte da sociedade civil se reproduz sempre mais como género através da esfera política a outra reproduz-se simetricamente e de modo crescente como natureza individualizada (o “gorila domesticado”), na medida em que crescem as exigências de especialização”, ao mesmo tempo que o controlo social sobre a produção só pode funcionar como poder político (Santos, 1986: 76-77). Esta situação só poderá ser superada pela emergência do trabalhador colectivo organizado e hegemónico e pela reabsorção da sociedade política na sociedade civil. É evidente aqui a influência da Questão Hebraica, de Marx. Como é evidente a crítica da concepção hegeliana de Estado. O que, de resto, já acontecera na Kritik des Hegelschen Staatsrechts. É claro que aqui reside um núcleo crítico da teoria gramsciana: o organicismo que se opõe à teoria da representação. Mas não é o caso de aqui discutir os fundamentos da sua utopia da sociedade regulada.

7.

Neste contexto, o partido teria uma função essencial, desempenhada pelos seus “intelectuais orgânicos”. Gramsci fala, sim, do partido como o “novo príncipe” (Q., 5, 662, §127). Moderno Príncipe: “formazione di uma volontà colettiva nazional-popolare di cui il moderno Principe è appunto espressione attiva e operante, e riforma intellettuale e morale”. “Egli prende il posto, nelle coscienze, della divinità e del imperativo categórico, egli è la base di un laicismo moderno e di una completa laicizzazione di tutta la vita e di tutti i rapporti di costume” (Q, 8, §21, 953). Por um lado, alternativa ao fundamento divino do poder, por outro assunção partidária do princípio moral expresso na imperativo categórico. Na verdade, podemos pensar num contraponto ao monarca que encarna o Estado (ou, então, como diz Gramsci, no “condottiero ideale”), por exemplo, como em Hegel, mas que deriva da aristocracia reinante; o “príncipe moderno” – o partido – que interpreta a vontade colectiva nacional-popular e que deriva dela, aspirando a gerir o Estado para promover uma reforma intelectual e moral.  De laicização se trata, pois, lá onde o povo-nação emerge, por analogia com a aristocracia, com pretensões de se elevar à chefia do Estado e de, assim, promover uma profunda reforma intelectual e moral. Nada de estranho, pois.

8.

Gramsci tem um conceito alargado de intelectual tal como já acontecia com a ideologia: vai dos “simples administradores” até aos grandes filósofos, como, por exemplo, Benedetto Croce, que ele chega a apelidar de “papa laico”, porque conseguiu ligar os intelectuais meridionais que compactam as massas camponesas, promovendo um bloco histórico que integra o bloco agrário  do mezzogiorno e a burguesia industrial do norte. Croce projectava, assim, os intelectuais meridionais a um plano nacional e mesmo europeu, construindo deste modo um sólido “bloco intelectual” capaz de recobrir, de compactar e dar coerência ao “bloco histórico” formado pela aristocracia agrária do mezzogiorno e a burguesia industrial do Norte. O “bloco intelectual” faz a mediação entre a sociedade civil e a superestrutura política e jurídica, dando-lhe coesão no plano ético-político. É daqui, da actividade propulsora e integradora da filosofia de Croce, que nasce a sua condição de “papa laico”.

Como se vê, a importância funcional dos intelectuais é em Gramsci enorme pois eles funcionam como promotores da ligação orgânica entre a sociedade civil e a superestrutura político-jurídica. E esta função deve-se também à ideia que Gramsci tinha da ideologia como vasto campo significante com densidade ontológica onde acontece o reconhecimento e a identificação da realidade social e onde se processa a hegemonia. Nisto, Gramsci reconhece-se na célebre passagem do Prefácio à Contribuição para a Crítica da Economia Política, de 1859 (3). O consenso como cimento ideológico e político de uma solução histórica e política. Trata-se de intelectuais orgânicos e não de marketeers; de uma narrativa ético-política com profundidade temporal e não de fórmulas publicitárias dirigidas ao mercado eleitoral para vencer as próximas eleições; de guerra de posição e não de uma guerra de movimento

9.

Com efeito, muitas vezes se coloca a questão de saber acerca da compatibilidade do pensamento de Gramsci com a democracia representativa. Sim, mas uma coisa é certa: a sua resposta não será igual à do marxismo ortodoxo. A esta questão já respondera nos escritos de juventude dizendo que só seria possível superar a democracia parlamentar, vivendo-a. Depois, o primado da teoria do consenso e a necessidade de travar uma guerra de posição em sociedades com uma sociedade civil robusta, rejeitando, nelas, a guerra de movimento; depois, ainda, a ideia de um “novo príncipe”, fundado no nacional-popular e numa política totalmente laicizada. Sobre o conceito de nacional-popular, julgo útil citar uma passagem do meu livro Os Intelectuais e o Poder, porque permite ver como ele resolve a velha dicotomia nação-povo: “o conceito gramsciano de nacional-popular, operando em conjunto com a teoria dos intelectuais orgânicos e a teoria da hegemonia, visa exactamente resolver essa questão da separação entre nação e povo, sem dissolver um conceito no outro: nem essa totalidade concreta que é o povo na universalidade mais formal e funcional da nação, para não retirar a esta (nação) a legitimidade substancial de que carece, nem esta naquele, para que o povo não se reduza a um mero agregado orgânico e contingente de indivíduos fisicamente determinados” (Santos, 1999: 107-108). Como se vê, a chave desta relação reside na mediação dos intelectuais orgânicos e do “moderno príncipe” ou partido, que aspira à hegemonia.

Se a democracia é compatível com monarquias constitucionais, mais fácil será admitir que ela pode coexistir com a hegemonia do “moderno príncipe”. A diferença reside na génese e, consequentemente, na legitimidade. Claro, Gramsci tinha uma utopia: a sociedade regulada. A sociedade onde o consenso fosse dominante em relação às formas de governo burocráticas e dotadas de mecanismos coercitivos e impositivos. A sociedade regulada como uma forma de organização superior onde a legitimidade derivava da hegemonia entendida como triunfo do consenso, da cultura e de uma vontade colectiva verdadeiramente representativa do espírito nacional-popular. Gramsci era marxista e talvez o seu pensamento até se destaque com mais actualidade do que o dos outros e ilustres representantes do marxismo ocidental porque, no essencial, ele densifica, laiciza e enobrece a política ancorando-a, através da ideologia, nas formas culturais difusas que exprimem essa dimensão nacional-popular. Num tempo em que a política parece cada vez mais simulacral e uma via para o exercício do poder pelo poder, a densificação da política que se reconhece no pensamento de Gramsci é decisivamente cada vez mais necessária. O papel que ele atribui aos intelectuais orgânicos e o modo como os define é indicativo do papel que ele atribui à consciência e, por isso mesmo, à cultura e ao reconhecimento do real através das diferentes formas culturais, das mais elaboradas às mais simples. Este papel dos intelectuais orgânicos, a sua centralidade, não é do mesmo modo reconhecido pelo marxismo ortodoxo. Talvez também por isso Gramsci se destaque dos outros expoentes e brilhantes intelectuais do marxismo ocidental.

NOTAS

(1) Veja o interessante ensaio de Gramsci “Alcuni Temi della Quistione Meridionale”, de 1926. In Gramsci, 1978: 137-158.

(2) Paris, Maspero, 1973, I, V: “Le marxisme n’est pas un historicisme”, pp. 150-184, especialmente pp.174-175.

(3) Veja o meu ensaio “A Questão da Ideologia: de ‘A Ideologia Alemã’ aos ‘Cadernos do Cárcere’. In Biblos, LIII, 1977, 207-268.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, N. (1990). Saggi su Gramsci. Milano: Feltrinelli.

BUCHARIN, N. (1977). Teoria del materialismo storico . Saggio popolare di sociologia marxista. Firenze: La Nuova Italia.

GLOTZ, P. (1987). “Il ‘Moderno Principe’ nella società dei due terzi”. In Rinascita, Roma, n.º 8.

GRAMSCI, A. (1958). Scritti giovanili. Torino: Einaudi.

GRAMSCI, A. (1978). La Costruzione del Partido Comunista (1923-1926). Torino: Einaudi.

GRAMSCI, A. (1975). Quaderni del Carcere. Torino: Einaudi (I-IV).

GRAMSCI, A. (2012). Gramsci, a Cultura e os Subalternos. Lisboa: Colibri.

LO PIPARO, F, (1979). Lingua, intellettuali, hegemonia in Gramsci, Roma-Bari, Laterza, 1979, pág. 145; mas veja-se 103-151.

NEVES, R. C. (2012). “Introdução” a Gramsci, a Cultura e os Subalternos. Lisboa: Colibri.

RIGHI, M. L. (Org.). 1995. Gramsci nel Mondo. Roma: Fondazione Istituto Gramsci.

SANTOS, J. A. (2006). “Hegemonia: O primado do consenso na teoria política de Gramsci”. In Neves, José (Org.), 2006. Da Gaveta para Fora. Ensaios sobre Marxistas. Porto: Afrontamento (pp. 79-107).

SANTOS, J. A. (2003). “Novas formas de comunismo e radicalismo de esquerda”. In Reis, A. (Org.). 2003). As grandes correntes políticas e culturais do século XX. Lisboa: Colibri/IHC da FCSH da Univ. Nova de Lisboa.

SANTOS, J. A. (1999). Os Intelectuais e o Poder. Lisboa: Fenda.

SANTOS, J. A. (1986). O princípio da hegemonia em Gramsci. Lisboa: Vega.

SPRIANO, P. (1970). Storia del Partito Comunista Italiano. Torino: Einaudi.

SPRIANO, P. (1988). Gramsci in Carcere e il Partito. Roma: L’Unità.

JAS@12-2024

antonio-gramsci2024_12Rec

 

Poesia-Pintura

A FIGUEIRA

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Pasárgada”
JAS 2021
Original de minha autoria
Dezembro de 2024
Jas02Pasárgada2021

“Pasárgada”, JAS 2021, 108×138, impressão Giclée em papel de algodão (310gr) e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em mold, de madeira

POEMA – “A FIGUEIRA”

EU TINHA
Uma figueira
Lá onde está
O tão cantado
Loureiro.
Generosa
E fagueira
Dela fiquei
Prisioneiro
Ou até
Enamorado.

NA AURORA
Da minha vida
Dava figos
Ping’o mel
Que, deliciado,
Comia.
Crescendo, assim,
A seu lado
Era belo
O que sentia...
...........
Ser por ela
Acarinhado.

MAS UM DIA
Ela morreu.
Fiquei triste
E calado,
Sem saber
O que fazer...
..............
Mas logo plantei
Um loureiro
Mesmo ali
A seu lado
E fiz tudo
(Mesmo tudo)
Para por ele
Ser amado,
Para com ele
Eu crescer.

TORNEI-ME
Um bom
Jardineiro,
No afecto
Imaculado
Para ver se
Conseguia
Ficar de novo
Encantado.

E NÃO É QUE
Consegui!
Partira
À aventura,
Já sem figos
E doçura,
Mas foi tão forte
O que senti
Que ainda hoje
Perdura.

PERDER
Ou ganhar,
São estas
As leis da vida,
Perdi
A minha figueira,
Logo encontrei
Um amigo
No dia
Da despedida.

E ASSIM
Eu consegui
Recriar
O que perdi
Ao plantar
O loureiro,
Porque vê-lo
No jardim
(Também ele
É fagueiro)
Estimula
A fantasia:
Recrio
A velha figueira
Com um golpe
De magia,
É emoção
Verdadeira
Em forma
De poesia.
Jas02Pasárgada2021Rec

“Pasárgada”, JAS 2021. Detalhe

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (V)

PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA

Por João de Almeida Santos

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“Transfiguração”, JAS 2024

SONHO COM OLHOS ABERTOS

A poesia é sonho com olhos abertos, com os sentidos em alerta e a fantasia em movimento.

RITUAIS

Os rituais, mesmo os que acontecem no universo digital, têm poder, dão forma, solenidade e regularidade a acontecimentos relevantes. Neste caso, a intensities. O ritual poético dá forma, sentido e solenidade à relação do poeta com a musa e com os amantes da poesia. Uma forma especial de partilha. Nos rituais há evocações, sim, mas também invocações que chamam a musa à presença. E o lugar deputado é um templo porque nele o silêncio, a refracção da luz pelos vitrais e a penumbra dão solenidade ao chamamento poético. Algo de que a poesia sempre precisa para acontecer em plenitude.

POESIA NÃO É MONÓLOGO

Transformar a perda em criação, vestir o passado de palavras e dar voz ao silêncio. É verdade. É esta a missão do poeta. Por imperativo existencial. E se o fizer bem fala de si e de todos. O poeta sente isso como missão. A poesia não é monólogo, ela deve falar por todos e para todos, sem deixar de ser a fala de um poeta singular.

A SINA DO POETA

Sina de poeta. Concordo. Até considero que poeta sem sina não é poeta. Ele é escolhido pelo destino ou pelos deuses. E é daí que lhe advém a responsabilidade e o desejo de universalidade. E a humildade de alguém que foi escolhido, a quem foi concedido um dom e a responsabilidade de o honrar. Mas também a necessidade de, nessa medida, que o ultrapassa, recriar o seu tempo de vida, para além daquele com que o destino o marcou. Para ser um pouco mais livre, porque é no intervalo entre a necessidade e a liberdade que se inscreve o discurso poético.

VER COM A ALMA

A poesia dá conta do que a alma vê. O sublime só pode ser visto e atingido com a alma. Os sentidos não chegam. A técnica também não, mesmo quando é virtuosa. É por isso que a sinestesia ajuda a ver melhor.

ASSALTO PULSIONAL

Que seria dos poetas sem as musas? Elas inspiram, provocam, muitas vezes com silêncio teimosamente reiterado e como castigo, e agitam-se nas profundezas da memória afectiva. Tudo isto se converte em imperativo existencial a exigir resposta. E o pobre poeta tem mesmo de obedecer. Mas, no fim, acaba por ficar feliz, porque deu forma a este assalto pulsional que o fez (o faz sempre) estremecer e o pôs (põe sempre) em sobressalto. A pintura ajuda a pacificar porque nela intervém o olhar. É a versão sensorial do que ocorre na alma, lá mais profundamente, daquilo de que a poesia dá conta. Na pintura “Perfil de Musa” o perfil sereno, mas severo, da musa, o negro dos seus cabelos e o vermelho dos lábios fazem a ponte para o poema (“Confissão”).

NEBLINA

O pintor-poeta sentiu alguma dificuldade na execução de um certo retrato (e foi por isso que teve de estilizar o rosto com um perfil, “Perfil de Musa”, deixando apenas algumas marcas, acenadas no poema) porque a nitidez da memória visual  (do referente, que às vezes existe) com o tempo diminuíra. Interpusera-se uma leve neblina que não deixava ver o rosto com essa desejada nitidez, apesar de a visão interior, a da alma, se manter fresca e, com essa, sim, poder desenhar-lhe poeticamente o rosto, à perfeição. Claro, a perfeição seria a da poesia e os riscos seriam as palavras. A estilização plástica seria quase obrigatória, mas somente com algumas marcas identificáveis no poema.

RESISTÊNCIA

A poesia está protegida pela blindagem do sentimento, que se conserva dentro, na alma, e não sofre a mesma erosão que afecta os sentidos físicos. A resistência dos sentimentos (a força das pulsões) é tão forte que até exige fugas para não provocar danos (como as panelas de pressão). Aqui entra a verbalização poética, com toda a sua riqueza plástica e musical, dando asas ao sentimento, pondo o poeta em levitação e libertando-o dessa poderosa pulsão que tende a oprimir se não for libertada – a tristeza que se converte em doce melancolia.

RELAÇÃO ESPECULAR

O que fica do que aconteceu ou do que não aconteceu é o que ele significou. O que foi até pode ter sido pobre ou mesmo pura ilusão. A relação amorosa ser, por exemplo, unilateral, ou seja, não ter sido verdadeiramente uma relação, por falta de correspondência. As saudades do que não aconteceu são mais fortes do que as do que aconteceu, dizia o Pessoa (o Bernardo Soares). Portanto, o que conta é o que significou, o que foi sentido, não o modo como isso aconteceu ou não, ficando como saudade. E não é solipsismo. O Aristófanes (o crítico de Sócrates, por exemplo, nas “Nuvens”) no “Symposion”, de Platão, dizia que o amor é a busca da nossa outra parte de que os deuses, por castigo, nos privaram. Ou seja, no amor sou mais eu do que o outro que amo. Ou, pelo menos, o outro tem de ser como que a outra parte que nos falta, o nosso complemento. Uma relação de tipo especular. No espelho reflecte-se o que, de nós, parece permanecer ainda oculto. O espelho, neste caso, é o outro. E nele vemos o que de nós ainda não encontráramos. Por isso, não se trata propriamente de uma relação. Algo parecido é o que também dizia o Bernardo Soares: “Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. (…) “em suma, é a nós mesmos – que amamos”. Por outro lado, ou do mesmo lado, é provável a ideia de que a memória visual se esbata no tempo, enquanto a memória afectiva persiste, às vezes até de forma excessiva, a ponto de doer, doer muito, e de representar mais o próprio do que o outro. Os poetas sofrem desta dor, desta “maladie d’amour”. O amor encontra-se no amante, não no ser amado, lê-se também no “Symposion”. Não há simetria perfeita no amor. Depois, se passarmos para o amor cantado em poesia, o crescimento subjectivo do amor (ao nível daquilo que o Kant designava por “universal-subjectivo”, na “Crítica do Juizo”) é sem limites.

O PRESENTE E O PASSADO

O presente como sobrevivência do passado. É verdade, mas o presente é mais do que sobrevivência do passado porque também é antecipação do futuro. O presente é intersecção do futuro com o passado. Mas há passado e passado. Há, sim, o que resiste porque significou muito… e até pelo que não aconteceu e poderia ter acontecido. E quando a poesia o assume ele já é mais futuro do que passado, podendo mesmo identificar-se com a eternidade. A poesia vai lá para o trazer de volta e, dando-lhe forma, colocá-lo no futuro. Aqui está o que eu penso do passado que sobrevive. JAS@12-2024

TransfiguraçãoRec

Poesia-Pintura

TREME A TERRA, QUANDO PASSA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Perfil de Mulher”, 
JAS 2022. Original de minha autoria
(Colecção Privada). Dezembro de 2024
Silhueta2022_1505G

“Perfil de Mulher”, JAS 2022 – 94×114, impressão Giclée em papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em mold. de madeira (Colecção privada)

POEMA – “TREME A TERRA, QUANDO PASSA”

SINTO UM CERCO
Muito quente
Que me envolve
O corpo
Quando ela passa
Na rua,
Mas o silêncio
É frio,
Não responde
Ao chamamento
Quando eu a desafio
A mostrar-se
Um pouco nua.

TREME A TERRA
Quando passa,
Passos lentos,
A olhar,
Como alguém
Que se perdeu...
........
E sofro
Porque esvoaça
Nesse céu
Que não é meu.

SILÊNCIO
É a palavra
E diz mais
Do que parece,
Eu vejo,
Quando ela passa,
Silhueta
De mulher
Que se esgueira
Ao olhar
De quem olha
E não esquece,
De quem sabe
O que é amar.

E MESMO QUE SE
Esconda,
Que finja
Que não é ela
E na multidão
Se dilua,
Quem sempre
 A vê
Da janela
Sempre a sente
Um pouco sua.

TREME A TERRA
Quando passa,
Mas não a sinto
Perdida
Pois se o cerco
É sempre quente
Quando passa
Dá-me vida.

NÃO É ACASO
(Não é),
Talvez seja
O destino
Ou desejo
Desigual,
Se a terra
Treme
Quando ela passa
Não é efeito
Banal
Pois também eu
Estremeço
Ao seu primeiro
Sinal.

TREME A TERRA
Quando passa,
Estremeço
Também eu,
É a vida,
Uma graça
Que vem
Lá de cima
Do céu.

PerfildeMulherRec

Notícia

NOTÍCIA

LANÇAMENTO DO LIVRO “POLÍTICA 
E IDEOLOGIA NA ERA DO ALGORITMO”
 (S. João do Estoril, 
ACA Edições, 2024), 
de JOÃO DE ALMEIDA SANTOS, 
NO SALÃO NOBRE DA CÂMARA 
MUNICIPAL DA COVILHÃ.

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NA PASSADA QUARTA-FEIRA, 27.11, às 18:30, foi apresentado o meu novo livro – Política e Ideologia na Era do Algoritmo, S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, 262 pág.s – no Salão Nobre da Câmara Municipal da Covilhã, em sessão presidida pelo Senhor Presidente da Câmara, Dr. Vítor Pereira. Apresentaram o livro o Dr. Alberto Costa, ex-Ministro da Justiça e da Administração Interna, e o Dr. José Conde Rodrigues, Presidente do Movimento Europeu (Portugal) e ex-Secretário de Estado da Cultura, da Justiça e da Administração Interna. Tive o gosto de contar com uma qualificada assistência de cerca de meia centena de personalidades da região.

1.

Trata-se de um livro sobre política e ideologia. Por que razão decidi publicá-lo? Porque as profundas mudanças que estão a ocorrer em todos os sectores da sociedade contemporânea não têm conhecido uma correspondente resposta no plano da política, a não ser nos seus aspectos mais instrumentais, ou seja, nas técnicas de captação do consenso, ficando, pois, confinada na mera ideia de poder. Por isso, o que está verdadeiramente a acontecer é uma autêntica regressão da política: a conquista e o uso do poder pelo poder. O assalto à cadeira do poder. O grau zero da política. O triunfo do poder como fim de si próprio. Exemplo? O plutopopulismo declarado e triunfante da dupla Donald Trump/Elon Musk, nos Estados Unidos, que não é um país qualquer (veja aqui o artigo de 20.11.2024 em torno do conteúdo do livro: https://joaodealmeidasantos.com/2024/11/19/artigo-178/)

2.

Na sua intervenção, o Senhor Presidente da Câmara, Dr. Vítor Pereira, traçou um quadro geral dos temas tratados no livro, numa análise que apreciei particularmente não só pela sua qualidade e pelo seu carácter exaustivo, mas também pela especial atenção que o livro lhe mereceu. Esta intervenção permitiu que o Dr. Alberto Costa evoluísse para um amplo enquadramento global da temática do livro e que o Dr. Conde Rodrigues o inserisse no quadro das investigações que há muito venho desenvolvendo, muito em particular a partir do Homo Zappiens (2000). No final, eu próprio tive ocasião de finalizar as intervenções de modo a que ficasse completo o quadro geral das matérias que integram este livro.

3.

Este livro foi publicado pela Editora ACA Edições e quero aqui deixar um especial agradecimento ao seu principal responsável, Eng. Ricardo de Almeida Santos, que também integrou a mesa da sessão de apresentação, tendo ocasião de anunciar para Março de 2025 um novo livro de minha autoria: FRAGMENTOS – Para um Discurso sobre a Poesia. Finalmente, quero agradecer à Câmara Municipal da Covilhã a oportunidade de lançar este livro no seu belíssimo Salão Nobre e ao Senhor Eng. Hélio Fazendeiro o eficaz acompanhamento do processo que levou a esta sessão. Ao Dr. Alberto Costa e ao Dr. Conde Rodrigues o meu obrigado pelas suas belíssimas intervenções. JAS@27.11-2024

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JAS@27.11-2024

Artigo

REFLEXÕES EM TORNO DO SYMPOSION, DE PLATÃO

Por João de Almeida Santos

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“Aphrodite”. JAS 2024, baseada numa cópia romana da deusa (Museu Arqueológico de Nápoles)

REGRESSEI recentemente à filosofia grega, desenvolvendo uma reflexão em torno do Symposion, de Platão, uma obra do século IV a.C., num evento promovido pela prestigiada empresa vitivinícola Quinta dos Termos (Carvalhal Formoso, Belmonte), de certo modo inspirado no modelo grego. Symposion é o nome em grego do que nós designamos por Banquete, mas verdadeiramente ele refere-se mais ao momento da bebida (vinho) do que ao repasto propriamente dito, o deípnon, pois a palavra Symposion designa em grego precisamente bebida com, de syn + pósis, -eôs. Beber acompanhado, portanto.

1.

Naturalmente que, como é óbvio, algumas das características que estavam presentes naqueles banquetes gregos não são transponíveis para os dias de hoje – por exemplo, comiam deitados, em leitos, e os escravos lavavam os pés dos convidados. Mas, como veremos, há neste Symposion de Platão, muito de intemporal: por exemplo, a celebração da vitória do poeta Ágaton numa exigente competição literária entre tragédias. O sucesso muitas vezes é celebrado com banquetes. Mas nem sempre eles incluem, como este, o de Platão, momentos de cultura.

2.

A ideia de celebrar num banquete a vitória numa qualquer actividade humana é, pois, antiga e remonta não só à Grécia do século IV a. C, mas também à Florença do século XV, ao tempo dos Medici, como reposição integral e ao vivo do Symposion. Este género literário, o da tragédia grega, em que Ágaton, o protagonista, se destacou, é considerado por Nietzsche, em “A Origem da Tragédia”, o maior da arte grega por conseguir estabelecer uma harmonia perfeita entre o “espírito dionisíaco” e o “espírito apolíneo”, ou seja, entre o sentimento e a razão, entre as pulsões da alma e a sua estilização espiritual. E foi por Ágaton ter recebido este prémio que o Symposion foi realizado.

3.

Os banquetes eram uma prática institucionalizada na Grécia Antiga e este, o de Platão, viria a conhecer revisitações ao longo dos séculos, na literatura, na pintura, na música, na arte, em geral. Referências é possível encontrá-las no historiador e filósofo Plutarco, nos escritores Ateneu e Petrónio (séc.s I e II, d. C.); mas também na Florença renascentista e na iniciativa de Lorenzo de’ Medici de passar a celebrar o nascimento e a morte de Platão com um banquete, com a leitura integral deste texto e com representações vivas das intervenções dos participantes no Banquete; no humanista italiano Marsilio Ficino; nas inúmeras edições que conheceu em toda a Europa, no século XVI; na pintura de Botticelli, Rubens ou Canova; na filosofia de Kierkegaard; no romance; em Thomas Mann, como veremos, ou em André Gide; na música e até mesmo em televisão. Tudo isto apenas para sinalizar a importância do Symposion e a sua influência na cultura ocidental (2018: 35-39) *.

4.

Este Symposion ficou também famoso e celebrado porque nele entravam personagens de grande importância na vida cultural ateniense, logo a começar pelo famoso filósofo Sócrates, mas incluindo também o seu admirador Alcibíades e o comediógrafo e seu crítico Aristófanes (por exemplo, na comédia “As Nuvens”) ou Ágaton, o vencedor do prémio, entre outros, como Fedro ou Pausânias. E, claro, pela influência do seu autor, o grande Platão, além dos relatores Apolodoro e Aristodemo com os quais começa a obra.

5.

Os banquetes tinham uma estrutura bem definida (as mulheres não era admitidas, a não ser, por exemplo, na qualidade de músicas ou noutras ocasiões muito especiais): o jantar propriamente dito, chamado deípnon, a que se seguiam as abluções (purificação), os cânticos aos deuses, as libações (a fase da bebida, o symposion propriamente dito) e a componente cultural, o debate acerca de temas de cultura.

6.

Neste caso, a tradição cumpriu-se, mas de forma moderada, na fase das libações, pois todos os intervenientes já tinham usado e abusado delas no dia anterior, e sempre na celebração da vitória de Ágaton, encontrando-se, por isso, fisicamente diminuídos, isto é, com ressaca, o que levou a que fosse aconselhado a todos os intervenientes beberem  somente de acordo com o apetite, mas moderadamente, pois iria ser privilegiado o debate cultural sob um tema proposto por Fedro, um dos convivas.

7.

Qual foi, pois, o tema proposto por Fedro (nome que dá título a um dos diálogos de Platão, precisamente sobre o amor) e quem eram os intervenientes no debate? O tema proposto, que foi imediatamente acolhido por todos, foi o elogio do amor, sendo os participantes no debate, por ordem das intervenções, Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Ágaton e Sócrates, este ajudado pelo relato que fez do que a sábia Diotima um dia lhe relatara acerca do amor. A última intervenção, já tardia, foi a do célebre Alcibíades (considerado como o amante de Sócrates), já um pouco embriagado, mas ainda lúcido, que se centrou exclusivamente no elogio sem limites, não do amor em si, mas de Sócrates, ou, se quisermos, do amor que ele próprio professava por ele, um amor incondicionado e de certo modo não correspondido na dimensão também física em que ele o desejava, como veremos. Este tipo de relação era muito comum e aceite entre os gregos, a chamada relação homoerótica, incluindo a própria pederastia, vista como relação de integração e de educação para os valores superiores dos jovens – desde que já maduros e conscientes, e não sujeita a impulsos menos nobres ou por pura lascívia – pelos adultos para que pudessem alcançar a virtude e a sabedoria.

8.

O Symposion termina com os últimos três resistentes: Agatón, Aristófanes e o próprio Sócrates, que foi o último a abandonar o Symposion, já pela manhã. Ele era, segundo Alcibíades, sempre e em tudo, o mais resistente.

9.

Qual é o interesse desta obra de Platão? A reflexão sobre o amor, algo que foi ao longo da história da cultura ocidental um dos temas mais tratados pelos maiores artistas da cultura ocidental, muitas das obras, como vimos, por influência desta obra de Platão. E, digamos, tema que tem dominado em absoluto a poesia ao longo dos séculos, não só devido à delicadeza, à centralidade, ao poder e à universalidade do amor, mas também por ter sido, et pour cause, sempre sujeito a um forte condicionamento social, precisamente devido à influência daquelas suas características na vida das sociedades, desde o plano público até ao plano da mais íntima relação. Se é verdade que a relação homem-mulher traduz ao longo dos séculos o nível de desenvolvimento civilizacional das sociedades (Marx, nos Manuscritos de 1844 assim a considera), também é verdade que os desvios à norma dominante, nesta relação, foram sempre objecto de sancionamento social e moral, de repressão, e, por isso, objecto de conversão estética, de fuga, de sublimação por parte dos que, sendo agentes de cultura, sofriam mais directamente na carne essa repressão. A história da poesia e a da pintura e as biografias dos seus maiores têm muito a dizer sobre isto, com poetas e pintores a encontrarem na arte uma  forma de superior resolução das suas próprias vidas e de libertação das amarras sociais à sua orientação amorosa ou sentimental.  A arte como salvação, sublimação dos infortúnios existenciais, sobretudo amorosos. Alguns nomes: Leonardo da Vinci (por exemplo, o seu amor pelo famoso “Salai”), Michelangelo Buonarroti (o seu colaborador Gherardo Perini), Caravaggio (os jovens de Roma), Óscar Wilde (que, por isso, foi preso), Walt Whitman, Paul Valéry, Verlaine, Rimbaud, Mário de Sá Carneiro  ou até, talvez, Fernando Pessoa (embora no caso do seu eventual homoerotismo se verifique uma certa nebulosidade, não sendo sequer a monumental biografia de Richard Zenith sobre Pessoa muito clara e definitiva sobre o assunto). E tantos outros. Génios da pintura e da poesia O mesmo se poderá dizer de Thomas S. Eliot, prémio Nobel da Literatura (1948), cuja orientação sexual (o homoerotismo) é ainda objecto de debate e de incerteza. E até se discute também a orientação sexual de Shakespeare (de novo o seu homoerotismo), encontrando-se nos seus Sonetos o elogio do amor por um jovem, “Fair Youth” (por exemplo, no CXVI Soneto). A que se poderia ainda juntar os amores heterosexuais frustrados ou inconsequentes, como, por exemplo, o de Stendhal ou o da nossa grande, mas tão infeliz, Florbela Espanca. Ou seja, a grandeza artística como superação das fracturas, das cicatrizes existenciais e sociais dos artistas. Através de um salto na eternidade. Em geral, na sociedade e na cultura gregas, o tema da pederastia e do homoerotismo era um topos habitual no debate, pela razão que já referi. E também aqui, no “Banquete”, com Alcibíades a contar, perante os convivas, os seus avanços falhados para com o amado mestre Sócrates.

10.

É claro que o elogio do amor tem em Platão uma clara dominante que tem a ver com a sua própria filosofia, pondo a visão de Sócrates, pela voz de Diotima (2018: 103) – chamada por ele ao discurso -, como a mais próxima da sua própria visão. Há uma passagem no Banquete, precisamente na fala de Diotima, muito elucidativa a este propósito, e que refiro textualmente. Cito:

E aqui tens o recto caminho pelo qual se chega ou se é conduzido por outrem aos mistérios do amor: partindo da beleza sensível em direcção a esse Belo é sempre ascender, como que por degraus, da beleza de um único corpo à de dois, da beleza de dois à de todos os corpos, dos corpos belos às belas ocupações e, destas, à beleza dos conhecimentos, até que a partir destes alcance esse tal conhecimento, que não é senão o do Belo em si, e fique a conhecer, ao chegar ao termo, a realidade do Belo” (2018: 122).

Belo em si e por si – a finalidade do amor superior, aquele que está alinhado com o Bem e com a Verdade, com a Aphrodite celeste, como diria Pausânias, e que não se reduz à beleza corporal, nem sequer à imortalidade que, por via do amor e do prazer que lhe está associado, pela procriação, garante a reprodução da própria espécie. Aliás, Thomas Mann (que também poderia ser incluído na lista de nomes que já citei),  em “Lotte em Weimar – O Regresso da Bem-Amada” (de 1939), identifica a procriação como luxúria, enquanto o amor expresso no beijo, diz, é alegria, é a “poesia do amor”. Ou então, como diria Honoré de Balzac, o amor é mesmo a poesia dos sentidos. Algo, que está, pois, para além do princípio do prazer. O livro de Thomas Mann “Morte em Veneza” tem muito daquilo que se encontra em Platão: a relação estilizada e homoerótica entre o aclamado escritor Gustav von Aschenbach e o jovem e belíssimo Tadzio. O belo em si e por si encarnado no corpo divino de um jovem polaco contemplado por um Aschenbach literalmente possuído por essa irresistível beleza que acabará por conduzi-lo à morte, nessa também bela Veneza, infestada com a peste (e que ele podia ter abandonado a tempo). O filme, com o mesmo nome, de Luchino Visconti (para mim um dos maiores realizadores de sempre, também ele integrando a fileira do homoerotismo) é absolutamente expressivo e belíssimo sobre esta relação homoerótica. “Ecos do Banquete platônico ressoam na escrita de Mann”, em “Morte em Veneza”, diz um autor brasileiro, Daniel Barbo (2014: 59) **. E diz mais: “Além do fundo comum classicista, Goethe, Nietzsche, Freud e Mahler integram a polifonia de Morte em Veneza. A obra simboliza paixão e degradação, Eros e Thánatos. Aschenbach é hipnotizado por Tadzio. Hýpnos, o irmão gêmeo de Thánatos, anda de mãos dadas com Eros” (2014: 61). O amor e a morte. Palavras certeiras, estas, pois a paixão de Aschenbach acaba por se situar numa esfera tão elevada que as circunstâncias terrenas (por exemplo a devastadora peste que assolava Veneza) já pouco importam…

11.

No Symposion, e em geral na filosofia de Platão, estamos perante uma dialéctica ascendente que, por intermédio de Eros, que não é mortal nem imortal, eleva até ao ideal supremo – ao Tò Agathón, o Bem. O amor que visa a imortalidade, não só pela descendência, mas também pelas obras e, destas, sobretudo, pelas obras do espírito, pela elevação espiritual. Uma dialéctica ascendente que não prescinde do mundo sensível (o Eros tem uma dupla condição, terrena e divina), mas que se eleva sobre ele até a um plano ideal, o que garante a imortalidade. E o Eros é, neste processo, o grande mediador entre deuses e homens, pela sua natureza híbrida, filho como é da Pobreza-Penía e do Engenho-Poros, mas que por isso mesmo pode conduzir, nesta dialéctica ascendente, ao ideal supremo – o Belo em si e por si (Tò Kalón), ou o Bem (Tò Agathón), valores que, de resto, em Platão são indissociáveis. O Eros tem uma natureza híbrida, sim, mas, no fim, por seu intermédio, a alma vence sobre o corpo e o espírito vence sobre a alma, a caminho da Beleza em si. Como exemplo prático e humano poderia referir a história contada por Alcibíades acerca de um encontro com o amado Sócrates, que, amando também ele, nunca se deixa, todavia, capturar pelos avanços sexuais de Alcibíades. Vejamos, por exemplo este passo muito significativo, no Symposion, do elogio de Sócrates por Alcibíades:

Pois certifico-vos, pelos deuses e pelas deusas, que, depois de passar a noite com Sócrates, nada mais tinha acontecido, ao levantar-me, do que se tivesse dormido com o meu pai ou com um irmão mais velho” (2018: 140)

O que aqui temos é uma valorização da esfera ética o sobre o corpo, personalizada em Sócrates, visão que esteve também presente nas intervenções dos outros convivas, e que espelha a própria visão de Platão. Visão quen poderá ser  melhor compreendida através da famosa “Alegoria da Caverna”, no início do Livro 7 da obra maior de Platão A República (Politeía): a realidade, para os confinados na caverna, confunde-se com imagens do que se passa fora da caverna onde estão os prisioneiros, imagens essas projectadas como sombras na parede do fundo da caverna, provocando um efeito de ilusão sobre a realidade. Como os que estão na caverna nunca de lá saíram, julgam, pois, que a realidade se identifica com as sombras que vêem projectadas na parede. E se algum deles sair verá como é difícil adaptar-se à luz do sol, acontecendo, com alguns, acabarem por preferir o reino das sombras, identificado, esse sim, com a realidade.  Transpondo para o amor: o amor carnal como ilusão do verdadeiro amor para os que nunca se libertaram das amarras do mundo sensível, do culto físico do corpo, do mero prazer como seu fim último.

12.

Esta dimensão ideal do amor encontra-se, pois, enquadrada de diversas formas nas intervenções dos participantes no Banquete. Vejamos.

  1. na inspiração divina e virtuosa do amante em relação ao amado e o heroísmo provocado pelo amor, o mais antigo dos deuses (Fedro);
  2. o amor celeste, inspirado na Afrodite celeste (a deusa do amor) – e não na Afrodite popular (o amor vulgar) -, centrado na alma (masculina, não feminina), e não no corpo. Amor que visa exclusivamente a virtude e a sabedoria e que permanece durante toda a vida (Pausânias);
  3. na dialéctica entre opostos visando, no amor, a harmonia entre eles, desde os corpos singulares até à própria natureza em geral (Erixímaco, médico);
  4. o amor que visa restaurar a nossa primitiva natureza como seres duplos (todos têm tudo em duplicado) masculinos, femininos e andróginos (metade homem, metade mulher), ao reencontrarmos a nossa outra metade, perdida por castigo dos deuses, e ao voltarmos a unir-nos a ela, depois de a procurarmos movidos pela saudade e pelo amor, como busca dessa parte da nossa identidade que perdemos (2018: 85; Aristófanes); Freud cita esta fala de Aristófanes no seu livro Além do Princípio do Prazer-;
  5. o amor, o mais feliz dos deuses (e o mais jovem), dotado de todas as qualidades que o tornam sofisticado e delicado, é impulsionador da beleza e da concórdia e anima no prazer e consola no sofrimento (Ágaton).

Portanto, visões ideais do amor que sobrelevam a sua dimensão puramente orgânica, circular e passageira, confundida simplesmente com o prazer. No fundo, a luxúria, como diria Thomas Mann.

13.

Diotima-Sócrates sublinha o desejo de imortalidade no accionamento do amor, seja ele físico e reprodutivo, seja ele espiritual e fautor de perpetuação do criador. O amor é, sim, filho da Pobreza e do Engenho e é desta sua dupla condição que resulta a sua qualidade de mediador (daímon, divindade que exerce influência sobre o destino dos homens) entre os homens e os deuses e a sua capacidade de nos impulsionar em direcção ao Belo em si, ao Bem, mas também à Verdade (Alêtheia, no sentido de desvelamento, não oculto), como vimos na passagem que já transcrevi.

14.

Este aspecto merece algumas considerações, um curto excursus elucidativo em relação à arte, às suas razões mais profundas. Muito se tem dito quando se fala do idealismo em filosofia, por exemplo, de Platão ou do próprio “amor platónico”, da sua aparente irrealidade, do seu carácter onírico. Não é o que eu penso e creio mesmo que não o pensam de igual modo os artistas, os poetas, os pintores, os romancistas, os compositores. Todos os que trabalham com a imaginação, a fantasia, com símbolos, com matéria intangível, com ideias e formas,  todos os que criam, com desejo de eternidade ou com desejo de resolver a própria vida com a arte, com a poesia, com a pintura, com a música, movidos pela dinâmica da sua própria relação com a vida – todos eles encaixam plenamente neste chamado idealismo que, frequentemente, também assume a forma do chamado “amor platónico”, o amor impossível, mas real, como teria sido o de Aschenbach. A um certo momento da sua vida, Beethoven ficou surdo, não ouvia o que compunha, perdeu capacidade sensorial, orgânica, mas continuou a compor e a “ouvir” com os sentidos interiores (a memória auditiva) o que compunha na pauta. Produzia arte com os sentidos interiores e com o espírito, através da notação musical. Por exemplo, a nona sinfonia. Estamos no domínio do imaterial, do intangível, sim, mas que faz parte da vida, talvez do seu lado mais belo. Um poeta que, carregando a dor do seu maior fracasso amoroso, homoerótico ou heteroerótico, decide transpô-lo para a poesia como forma de o resolver superiormente. Resolvê-lo, elevando-o. E são tantos os poetas nessas condições. A nossa fantástica Florbela Espanca, por exemplo, com os seus sonetos. O grande escritor francês Stendhal, que se apaixonou desesperadamente pela senhora Matilde Viscontini, carbonária e divorciada de um general polaco, até escreveu um livro sobre o amor “De l’Amour” (1822), inspirado nela, sendo também certo que ela está presente nos seus romances, designadamente em “Le Rouge et Le Noir” (Mathilde ou, sobretudo, Madame de Rênal).  É a resolução da vida pela escrita, como viria a dizer Robert Musil. E talvez não tivesse sido sequer o mesmo Stendhal se não se tivesse cruzado com a senhora Matilde Viscontini e com o fracasso que daí resultou (para ela Stendhal era eroticamente frívolo). A atenuação da sua infelicidade foi obtida certamente pela arte. Pois bem, na verdade, é possível reconhecer que o amor é o principal propulsor da poesia, como, de resto, diz Ágaton de Eros, o deus do Amor, no Symposion:

“e para que também eu preste as honras à minha arte (a poesia, a tragédia), tal como Erixímaco (médico) prestou à sua, começo por falar na sabedoria do deus como poeta: um poeta tão hábil que sabe, inclusive, transmitir a outros a sua arte! Certo é que todo o homem bafejado pelo Amor, ‘mesmo antes avesso às Musas’, adquire o dom da poesia… E eis o testemunho ideal para mostrar a excelência do Amor em todo o género de criação ligado às artes” (2018: 92).

Mais palavras para quê? O amor, homoerótico ou heteroerótico, concede o dom da poesia, diz Platão pela boca do anfitrião do Symposion.

15.

No Symposion encontramos, sim, esta tensão, presente no amor, que visa a superação do estado de facto daquele que ama, uma tensão que tende para a imortalidade, em diversas dimensões, desde a gestação para a reprodução da espécie até ao trabalho que produz obra que persiste para além da vida do seu criador, ao conhecimento, ao Belo, esse, sim, imorredouro e universal e que, por isso, torna imortal o seu criador. Trata-se, aqui, de um importante deus do Olimpo, Eros, deus todo-poderoso, que, segundo Fedro, o poeta grego Hesíodo e o filósofo pré-socrático Parménides consideravam primordial filho do Caos e contemporâneo da Terra (2018: 37), “o mais antigo e venerável dos deuses como o que tem mais poder para levar os homens a alcançar o mérito e a felicidade”, na vida e no além (2018: 61). Em todas as intervenções dos participantes no Banquete a dimensão espiritual sobreleva, domina, ficando a dimensão física, corpórea, sexual num plano inferior, mesmo aquela que supostamente leva à eternidade através da procriação e da reprodução da espécie. Mesmo essa que, afinal, era considerada por Thomas Mann (mas num romance, entenda-se) como Luxúria. Gustav von Aschenbach via em Tadzio, não a luxúria, mas a imagem ideal da Beleza no corpo divino do jovem Tadzio, pelo qual se apaixonou perdidamente até à morte. O amor superlativo (neste caso, homoerótico), o Eros, e a morte, Thánatos, que sobreveio, em Aschenbach, na fascinante cidade de Veneza. Palavras que poderiam ser subscritas por Freud. O belíssimo filme de Visconti permite uma extraordinária visualização de tudo isto.

16.

Eu creio que uma parte muito importante da filosofia só pode ser entendida com as categorias da arte porque é a arte que melhor interpreta a força existencial das ideias, nos leva a acreditar não só na sua existência como parte importante da vida, mas também no seu poder sobre ela, na sua capacidade de fascínio, de sedução e de mover o mundo numa direcção muito melhor do que aquela a que o puro pragmatismo nos conduz. O sonho comanda a vida, dizia o poeta. E basta pensar no poder da música. Mas esta dimensão pode estar presente na mais simples das actividades práticas: num quadro, num vinho, num livro, num objecto. Sim, mas como algo que transcende a sua mera função prática: o valor monetário; o mero prazer físico da bebida; as instruções práticas contidas num livro; o valor instrumental de um objecto. Não, algo que transcende estes valores meramente instrumentais, quando quem os executa põe neles algo a alma e a transcendência temporal.

17.

Um exemplo da relação entre a filosofia e a arte: a filosofia do grande Nietzsche que, no meu entendimento, só pode ser entendida com as categorias da arte. Ou a de Platão, que também era poeta. A filosofia tem na arte a sua mais potente aliada, aquela que lhe pode conferir realismo e poder de sedução.  O Nietzsche quando falava, em “A Origem da Tragédia”, na exigência de equilíbrio entre o “espírito apolíneo” e o “espírito dionisíaco”, o que estava a dizer é que o espírito é vazio se não tiver dentro de si as pulsões magmáticas da alma, o eros, porque é na alma que se localizam os sentimentos imprescindíveis para que a obra de arte, por exemplo, a poesia, já formalmente trabalhada pelo espírito, tenha sentido, não seja pura retórica, pura forma, puro virtuosismo de palavras e de ritmo. Puro exibicionismo. Mas isto é o que defende também o nosso famoso neurocientista António Damásio, por exemplo no livro Sentir e Saber (de 2020). Sim, o deus Dionísio, que é o deus do teatro, mas também o deus do vinho, as libações, os cânticos, o perfume inebriante da vida (ou do jasmim), o estremecimento da alma perante um clarão que quase cega (de amor), como no poema de Baudelaire “À une Passante”, em “Les Fleurs du Mal”, esse deus e essas pulsões têm de estar lá a estimular a vida que, depois, Apolo há-de sofisticar com a maquinaria poética, com o duro trabalho do espírito. No fundo, poder dar asas ao desejo, à vontade, ao sentimento, para além dos fins meramente pragmáticos, imediatos. Estes dois deuses, tal como a alma e o espírito, estão condenados a conviver e a cooperar para gerarem obras de arte que resolvam a vida, a imortalizem: como dizia a Marguerite Yourcenar, em Le Temps ce Grand Sculpteur, pela boca de Michelangelo Buonarroti, dirigindo-se ao seu amante: “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”. A minha obra de arte imortalizar-te-á naquilo que só eu pude ver em ti, porque te amei. E porque partes… Mas, assim, com a arte, na partida, eu não te perderei, pois (só) pela arte é possível possuir (isto dizia também o Pessoa do Livro do Desassossego) e só pela arte é possível ver aquilo que mais ninguém consegue ver, sobretudo quando o motor cognitivo é o amor. A arte ajuda-nos a ver o que, de outro modo, ficará oculto ao nosso olhar. E o tempo, esse grande escultor, torna-se assim cúmplice da arte e ambos retiram da vida passada e vivida o seu núcleo aurífero, aquele que resiste ao natural efeito de erosão, projectando-o na imortalidade, eternizando-o. A arte, por isso, é alquímica e o seu principal motor é o amor, a energia propulsora que projecta os seres humanos para um tempo e um espaço que já se situam para além deles próprios. É disto que, afinal, fala o Symposion, em diversas formas e discursos a que o pensamento de Platão dá unidade estratégica, que é esta que tenho vindo a referir. De resto, e para finalizar, sempre poderia recorrer à psicanálise, a Sigmund Freud, e referir as duas pulsões vitais que dominam a dialéctica da nossa existência: o thánatos, a pulsão da morte, e a pulsão representada pelo Eros, pelo amor, a pulsão da vida, que, felizmente, tende sempre a levar vantagem sobre aquela outra pulsão, mantendo-nos vivos, no presente e no futuro, através da procriação que, no meu entendimento, é mais do que luxúria, porque se inscreve na própria dialéctica da natureza. Esta relação está vitalmente muito bem retratada em “Morte em Veneza”: Aschenbach que, permanecendo em Veneza, pois é incapaz de renunciar à visão/paixão de e por Tadzio, o divino num corpo, acaba por morrer nesta cidade única no mundo. Thomas Mann e, depois, Luchino Visconti. Uma obra deste enorme romancista, Thomas Mann, que muito deve ao classicismo grego, designadamente a Platão. Também a psicanálise coloca o Eros no centro da nossa dinâmica vital. E, que mais não fosse, só esta conclusão de uma teoria que está reconhecida como uma importante especialidade médica bastaria para evidenciar a pregnância e o realismo da teoria que subjaz ao Banquete de Platão.

NOTAS

* Veja a introdução a Platão, O Banquete, Lisboa, Relógio d’Água, 2018, pág.s 35-39, de Maria Teresa Schiappa de Azevedo, que também o traduziu do grego e completou com um rico acervo de notas.  Mas veja também a excelente edição da Garnier-Flammarion (Paris, 1964, com tradução, introdução e notas de Emile Chambry, pág.s 5-29).

** Barbo, Daniel (2014). “Homosexualidade e Paiderastía em Thomas Mann”. In Calíope: Presença Clássica, 2014.2. Ano XXXI. Número 28. JAS@11-2024

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Poesia-Pintura

RITUAIS

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Catedral”, JAS 2024
Original de minha autoria
Novembro de 2024
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“Catedral”. JAS 2024

POEMA – “RITUAIS”

NESSE DIA,
Imaginei
Um templo
Revestido de vitrais,
Celebrações
Em palavras
E singelos rituais...

EVOCAVA,
Assim,
O tempo
Em que sempre
Me perdia
Nesse seu olhar
Esquivo
Que quase tudo
Dizia,
Em que os silêncios
Sobravam
Como se fossem
Castigo
De pecados
Em que nunca
Me revia.

O QUE RESTOU
É alimento
Da alma,
É fervilhar
De memórias,
Inscrições
Sensoriais,
Silêncio
Profundo
A poético
Chamamento
E nada mais...
.........
Um poema,
A catedral,
Invocação
Em tormento,
Oficiar
Rituais.

FUTURO
Imaginado
De voluntário
Amante
Construído
Nas ruínas
De um passado
Que já é
Muito distante.

O QUE SOBRA
É um brilho
Coado,
Melancólico,
Cinzento,
O negro
De seus olhos
Inquietos
E de seus cabelos
Fartos,
Ao vento...

TUDO A FERVILHAR
Na minha sofrida
Memória,
Delicada recriação
Em palavras
Com história.

DOU-LHE, ASSIM,
Nova vida,
Renovo-me
Também eu,
Falo ao mundo
Comovido
De um tempo
Que é só meu.

IMAGINO
Esse templo
Sempre que
Regresso
Do meu Jardim
Encantado,
Vibrante de cores
E por fora
Perfumado,
Mas por dentro
Melancólico e
Sofrido
Por a ter,
Nesse tempo
Já passado,
Dolorosamente
Perdido...
Inscrições

“Inscrições”. JAS 2024

Artigo

“POLÍTICA E IDEOLOGIA NA ERA DO ALGORITMO”

UM NOVO LIVRO

(Apresentação no Salão Nobre da Câmara Municipal da Covilhã,
27 de Novembro, pelas 18:00)

De João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS 2024, inspirado numa imagem do documentário “The Social Dilemma”, da NETFLIX

De hoje a oito dias, 27.11, às 18:00, será apresentado este meu novo livro (Política e Ideologia na Era do Algoritmo, S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, 262 pág.s) no Salão Nobre da Câmara Municipal da Covilhã, em sessão presidida pelo Senhor Presidente da Câmara, Dr. Vítor Pereira. Apresentarão o livro o Dr. Alberto Costa, ex-Ministro da Justiça e da Administração Interna, e o Dr. José Conde Rodrigues, Presidente do Movimento Europeu (Portugal) e ex-Secretário de Estado da Cultura, da Justiça e da Administração Interna.

1.

É um livro sobre política e ideologia. Por que razão decidi publicá-lo? Porque as profundas mudanças que estão a ocorrer em todos os sectores da sociedade contemporânea não têm conhecido uma correspondente resposta no plano da política, a não ser nos seus aspectos mais instrumentais, ou seja, nas técnicas de captação do consenso, ficando, pois, confinada na mera ideia de poder. Por isso, o que está verdadeiramente a acontecer é uma autêntica regressão da política: a conquista e o uso do poder pelo poder. O assalto à cadeira do poder. O grau zero da política. O triunfo do poder como fim de si próprio. Exemplo? O plutopopulismo declarado e triunfante da dupla Donald Trump/Elon Musk, nos Estados Unidos, que não é um país qualquer.

2.

A ideia de autogoverno dos povos como eixo central dos regimes democráticos está a ser cada vez mais reduzida à de exercício do poder, não pelo povo, mas pelo mais forte, por aquele que dispõe de mais meios instrumentais para obter a delegação do poder. O que está a acontecer é um efectivo embrutecimento da política, onde já nem sequer parece ser necessário fingir. A própria brutalidade compensa porque apela aos sentimentos mais básicos e viscerais do ser humano. A política desligada da ética pública, dos valores sociais, de uma visão estratégica para o desenvolvimento  económico e civilizacional, onde os cidadãos são vistos como mera massa de manobra para fins puramente utilitários de poder e não como fim expresso da própria política. Plutocracia, não democracia. Guerras de conquista territorial na era da globalização. Uso e abuso da mentira e da força como eficazes meios para chegar ao poder. Instrumentalização do medo para fins políticos. Nacionalismo retrógrado sob forma de soberanismo.

3.

O que é muito estranho é que, dispondo, hoje, a cidadania de meios extraordinários para se informar e para condicionar, por essa via, a vida pública, o que, afinal, se está a verificar é que essa possibilidade se está a converter em regressão, dando razão a Giambattista Vico e aos seus “corsi e ricorsi”, com prevalência dos “ricorsi”. Ou seja, todas essas plataformas de comunicação hoje disponíveis parece terem sido convertidas em instrumentos de opressão simbólica, em vez de tecnologias de libertação, como no início eram conhecidas. Ainda está por fazer o estudo da sua utilização na recente campanha presidencial americana, mas já sabemos que a plataforma “X” foi usada despudoradamente pelo seu proprietário ao serviço da campanha de Donald Trump (tem cerca de 100 milhões de utilizadores nos Estados Unidos), sendo duplamente recompensado por isso: pela enorme subida do valor das acções da Tesla e pelo cargo para que irá ser nomeado pelo novo presidente (Departamento de Eficiência Governamental, DOGE). O que aconteceu em 2016 repetiu-se agora, mas em dose reforçada. O novo Steve Bannon, o da Cambridge Analytica, é agora o plutocapitalista Elon Musk e a sua plataforma Twitter/”X”. O poder económico já dispensa mediadores – assume ele próprio directamente o poder. Já tínhamos visto isto em Itália, com Berlusconi (modelo muito apreciado por Trump). Vêmo-lo agora, agora, outra vez, e sem disfarce, nos Estados Unidos.

4.

A verdade é que estamos a assistir a uma segunda fase de evolução das novas tecnologias, com a sua utilização massiva ao serviço de estratégias estranhas ao interesse dos seus utilizadores por parte das respectivas administrações, designadamente naquele processo nevrálgico que legitima o poder nos regimes democráticos: as eleições e os comportamentos eleitorais. O exemplo de “X” basta para ilustrar esta afirmação. E há uma diferença substancial relativamente às plataformas tradicionais (imprensa, radio, televisão): estas são directamente imputáveis pelas acções que praticam; aqui, só as administrações das grandes plataformas podem ser responsabilizadas genericamente pelo seu uso ilegal e ilegítimo, mas somente no plano comercial e concorrencial, não nos processos de condicionamento do comportamento eleitoral (e em tempo útil). A “mass self-communication” permite uma intrusão no comportamento individual de natureza subliminar, sem visibilidade pública e eventual imputabilidade, sendo também certo que os seus accionistas dominantes alinham politicamente muito à direita. Por exemplo, Elon Musk e  Mark Zuckerberg.

5.

E é esta a razão pela qual dedico, no livro, muitas páginas ao chamado “constitucionalismo digital” como modo de superior regulação do comportamento das grandes plataformas digitais. Não me incluo nos apocalípticos, os que vêem nestas plataformas exclusivamente uma nova forma de opressão, de capitalismo ou de imperialismo (a que Shoshana Zuboff, no seu livro A Era do Capitalismo da Vigilância, chama precisamente “Capitalismo da Vigilância”), porque elas vieram dar voz a todos os que não mereciam qualquer atenção por parte do establishment mediático, dos famosos guardiões do espaço público (gatekeepers), quer no plano da informação quer no plano da produção de conteúdos, tendo sido, por isso, conhecidas originariamente como “tecnologias da libertação. Reconheço, todavia, que estamos perante uma realidade altamente sensível e perigosa se as plataformas não estiverem enquadradas por normas rigorosas que delimitem e possam punir a sua acção, em caso de graves desvios, e em especial na área política. É neste sentido que falo em “constitucionalismo digital”. Sabemos que a Cambridge Analytica foi desmantelada, na sequência do escândalo que também viu envolvido o Facebook por ocasião do Brexit e da primeira eleição de Donald Trump. Mas agora também vemos o homem mais rico do mundo e dono do “X” (mas também da Tesla, de SpaceX, de xAI e de Neuralink) pôr ao serviço de Trump, e sem limites na forma como foi usada, a sua rede social. Depois de Steve Bannon, o estratega de 2016, veio Elon Musk, muito mais poderoso e perigoso. O poder do dinheiro e dos meios de condicionamento do comportamento eleitoral e o perfume do poder.

6.

Até agora, e ao que parece cada vez mais, estas plataformas têm sido usadas com mais eficácia pela direita radical (que analiso em três capítulos do livro), não só pela proximidade ideológica dos seus dirigentes, mas também porque as formas de actuação são mais adequadas à linguagem e às suas práticas do que às das formações políticas mais moderadas, designadamente do centro-esquerda. Isto para não falar do desejo de reproduzir o dinheiro e o poder. Algo muito diferente, certamente, mas equivalente ao tabloidismo que tem vindo a colonizar os meios de informação, em especial o audiovisual – o apelo ao negativo como processo mobilizador (de audiências). Um negativo que, no caso das redes sociais, já tem nomes próprios: “fake news” e “pós-verdade”. Disto falo abundantemente no livro, mas falo também, e pela positiva (na III Parte), de um processo em curso que pode ajudar a resolver a velha crise de representação, especialmente porque ele dá voz à cidadania num plano diferente e superior ao que se verifica precisamente no velho tabloidismo mediático. Falo da política deliberativa, que visa uma maior e mais esclarecida intervenção da cidadania nos processos decisionais, logo a começar nos processos eleitorais. Na verdade, já existem poderosas plataformas (ou mesmo partidos-plataforma) cujo objectivo é dar voz organizada à cidadania nos processos públicos, resolvendo o problema da hiperfragmentação e da comercialização da cidadania. Mas muito há a fazer para reorientar a política no perigoso caminho que está a percorrer nos nossos dias.

7.

O que certamente não ajuda a uma evolução em direcção à democracia deliberativa é a nova e avassaladora onda ideológica promovida por aquela que eu designo por “esquerda identitária dos novos direitos” (wokismo, politicamente correcto, revisionismo histórico, etc.) e a que dedico criticamente cerca de 60 páginas (na parte IV do livro). De resto, esta onda ideológica multifacetada e em expansão tem constituído um alimento muito nutritivo e eficaz da direita radical para se afirmar perante uma cidadania que claramente não embarca no radicalismo e nas absurdas reivindicações e princípios desta doutrina identitária. E o que também não ajuda é a tendência do centro-esquerda e do próprio centro-direita a deixarem-se generosamente infiltrar por esta ideologia na ilusão de estarem a colmatar o seu evidente défice ou vazio doutrinário por um enganador progresso civilizacional e por um construtivismo social completamente absurdo. Um exemplo. Um site falso da campanha de Harris, criado e financiado por ordem de Musk, e muito divulgado, procurando enganar o eleitorado democrata e deslocar eleitores para Trump, dava a entender que a campanha democrata estava a promover comportamentos enquadrados nesta ideologia, ou seja a encorajar “a transição sexual nos menores da LGBTQIA”  (veja o artigo do matemático David Chavalarias, do CNRS francês, no Libération, de 18.11, pág. 20). É um mero exemplo, mas muito elucidativo. Esperemos que estudos sejam feitos sobre esta campanha porque o assunto é mesmo muito sério.

8.

A conversa sobre a inteligência artificial está a ocupar muito do debate acerca do futuro das sociedades contemporâneas, estando a ser sublinhada a intervenção dos processos automatizados de decisão, independentes da vontade e do processamento humano. O recente livro de Yuval Harari, Nexus, é disso que fala, alertando para os seus perigos. A distribuição e a reprodução digital alargada dos conteúdos pelos algoritmos segundo lógicas que radicam nos comportamentos dos utilizadores, mas que são finalizadas estrategicamente a critérios de programação predefinidos e orientados a objectivos exógenos à comunicação dos utilizadores é já uma constante que pode ser observada por quem se move na rede. Foi isto que aconteceu com os algoritmos da “X” de Musk nesta campanha. É aqui que, de resto, reside, por um lado, o imenso poder das plataformas e, por outro, a impotência do cidadão-utilizador, dedicando o livro muitas páginas a explicar este processo e as suas consequências, designadamente políticas. E todavia, não se trata, como já disse, de uma visão apocalíptica das redes sociais e das grandes plataformas digitais, como infelizmente – mas com alguma razão, pelo que se está a ver nesta segunda fase da evolução das TIC – parece já ser a tendência dominante no mainstream. No livro, procuro não só mostrar os riscos que ameaçam a democracia, mas também as enormes potencialidades que a rede apresenta para um futuro progressivo e amigo da cidadania e da democracia. Mas, como tudo na vida, isto não acontecerá se não lutarmos por um uso decente e positivo das possibilidades que a rede nos oferece, designadamente na política. JAS@11-2024

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