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Sobre joaodealmeidasantos1

Professor universitário, escritor, poeta, pintor. Publicou várias dezenas de livros, seus e em co-autoria, de filosofia, política, comunicação, romance, poesia, estética. Foi professor nas universidades de Coimbra, Roma "La Sapienza", Complutense de Madrid e Lusófona (Lisboa e Porto). Publica semanalmente, neste site, ensaios, artigos, poesia e pintura.

Poesia-Pintura

O JASMIM

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Rapsódia”
Original de minha autoria
Outubro de 2024
JAS_Rapsódia2024

“Rapsódia”. JAS. 10-2024

POEMA  –  “O JASMIM”

FLORESCEU
O meu jasmim,
Dele jorra
Poesia,
O seu aroma
Embriaga
E liberta
A fantasia.

DOU COR
Às minhas
Palavras,
O seu perfume
Ilumina,
Bate-lhe o sol
Na folhagem
E o poema
Germina...

JÁ NÃO É SÓ
O loureiro,
Agora canto
O jasmim,
É tão vivo
O seu perfume
Que o estro
Já cresce
Em mim.

INUNDO-ME,
Pois,
De palavras,
De aromas
E de cor,
Subo ao céu
De um poema
Com desejo
De o compor.

SOU ÍCARO
Lá no alto
E quando o sol
Bate forte
Caio em mim
Do poema
E no chão
Da minha alma
Fico perdido,
Sem norte.

LOGO INVOCO
O jasmim,
Para ganhar
Energia,
Volto a subir
Às alturas,
Renascer
Em poesia.

VEJO DE NOVO
O jasmim
Mesmo ao lado do
Loureiro,
Respiro fundo
O perfume
E torno-me
Seu jardineiro.

E ASSIM EU VOU
Vivendo
No jardim da
Minha vida
Onde as palavras
São cores
E os aromas
Melodia,
Os poemas
São canções,
Milagres
Da fantasia.

JAS_Rapsódia2024-Rec

 

 

 

 

 

Artigo

NOTAS SOBRE A CONJUNTURA POLÍTICA

Por João de Almeida Santos

UE

“S/Título”. JAS. 10-2024

1.

O RECENTE EPISÓDIO no Parlamento Europeu, com alguns deputados da esquerda a cantarem a “Bella Ciao” depois da intervenção de Viktor Orbán, suscitou-me algumas perplexidades quando a Presidente do Parlamento interveio, durante o canto, para dizer que o PE não era a Eurovisão e que o gesto mais parecia “La Casa de Papel”, a série televisiva adquirida pela Netflix, que integra, como fundo musical, a “Bella Ciao”.  Esta intervenção de Roberta Metsola suscitou-me uma dúvida que, a confirmar-se, representaria uma falha grave de quem ocupa tão alto cargo institucional na União Europeia. Saberá Metsola que a belíssima canção “Bella Ciao” era um canto da resistência italiana contra o fascismo de Mussolini? E, sabendo, faz algum sentido comparar o gesto dos deputados a “La Casa de Papel”, ultrajando dessa forma a resistência italiana e até a própria beleza da canção, designadamente a da própria letra? “La Casa de Papel” trata de assaltos a bancos, enquanto “Bella Ciao” representa a luta contra o fascismo e o invasor, a luta de um povo pela liberdade. A senhora poderia muito bem ter ouvido, ter dito que um canto tão belo, na música e no conteúdo, no PE seria sempre sinónimo de alegria e de liberdade, vista a função do Parlamento e a diversidade de valores e visões do mundo nele presente. Expressá-la através da música, ainda por cima bela, não deveria constituir motivo de desagrado presidencial.  Mas não, a senhora Presidente preferiu ignorar o hino da resistência italiana, degradando-o a uma qualquer casa de papel ou a um medíocre festival da canção. Intencionalmente ou por ignorância. Não acreditando, todavia, que tenha sido intencional, resta-me ficar convencido que a senhora Roberta Metsola Tedesco Triccas julga mesmo que “Bella Ciao” é somente uma das músicas originais de “La Casa de Papel”. O que, confesso, é espantoso para uma senhora natural de Malta e que tem no seu nome as palavras italianas “Roberta” e “Tedesco”. O que é curioso é que, sem saber o que estaria para acontecer nessa quarta-feira, eu publiquei aqui, nesse mesmo dia, um artigo sobre António Gramsci na prisão fascista de Mussolini. Curiosas coincidências.  Mas para que se entenda melhor a minha perplexidade, que é também estética, além de moral,  aqui deixo a letra de “Bella Ciao”:

«Una mattina mi son svegliato,
oh bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
Una mattina mi son svegliato
e ho trovato l’invasor.

O partigiano, portami via,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
O partigiano, portami via,
ché mi sento di morir.

E se io muoio da partigiano,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E se io muoio da partigiano,
tu mi devi seppellir.

E seppellire lassù in montagna,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E seppellire lassù in montagna
sotto l’ombra di un bel fior.

E le genti che passeranno
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E le genti che passeranno
Ti diranno «Che bel fior!»

«È questo il fiore del partigiano»,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
«È questo il fiore del partigiano
morto per la libertà!»

Uma letra destas, o contexto histórico em que era cantada e o próprio gesto – cantar – deveriam ter motivado a senhora Metsola, caso soubesse do que se tratava, a ter cuidado com os comentários que fizesse a propósito do gesto dos eurodeputados. Mas não. Infelizmente.

2.

As presidenciais americanas de Novembro assumem um relevo excepcional não só por se tratar da maior potência mundial, mas também, por um lado, pelo estado actual da política internacional, com duas situações altamente explosivas, na Ucrânia e no Médio Oriente, e, por outro, por um dos contendores, Donald Trump, representar o que há de mais regressivo na política, representando o que já aqui designei por “plutopopulismo”. Um desbragado “plutopopulismo” sem limites na linguagem e nas referências caluniosas à sua adversária. Basta pensar que não aceitou a derrota, oficialmente reconhecida, nas eleições de 2020 e que, ao que parece, patrocinou o assalto ao Capitólio. Kamala Harris mantém uma dianteira de cerca de três pontos, mas nos swing states verifica-se um empate. Além disso, o radicalismo da campanha de Trump tem agora um novo intérprete, o senhor Elon Musk, que considera Kamala Harris, candidata e actual Vice-Presidente dos Estados Unidos, comunista e extremista, utilizando a sua rede social X/Twitter para alimentar a campanha de Trump. Uma conta, a de Musk, no X,  com 200,8  milhões de seguidores (Le Monde, 11.10.2024, p. 19). Não sei se alguém já se tinha apercebido de que os Estados Unidos têm sido governados, desde 2021, por uma Vice-Presidente comunista. Nada menos. Sinceramente, vem-me vontade de perguntar aos comunistas o que pensam da declaração de Musk sobre Kamala Harris. Mais palavras para quê?

3.

A ditadura do senhor Maduro prossegue com uma estratégia semelhante à que utilizou com Juan Guaidó: a de uso do tempo a seu favor e da saída do caso Venezuela da agenda política internacional quer por “cansaço” e esgotamento noticioso quer pela emergência de outros temas, que passem a dominar a agenda política internacional. E os temas não faltam. Com as costas guardadas pelos generais das forças armadas, que fazem parte orgânica e interessada do poder de Maduro, acabará por ver firmar-se um silêncio que favorecerá a sua permanência no poder, ainda por cima com o vencedor das eleições (parece não haver dúvidas disso, uma vez que o regime, ao contrário da oposição, não consegue demonstrar que ganhou) exilado em Espanha, país que parece ter-se agora convertido no seu inimigo externo, com a Assembleia Nacional a propor a Maduro um corte total de relações com Espanha. Só falta mesmo inventar umas Malvinas venezuelanas para completar a estratégia. As ditaduras sempre precisaram de um inimigo (não adversário) externo, além do interno, que aparece sempre como uma projecção, por infiltração, do inimigo externo. Na Venezuela, o partido bolivariano parece estar destinado a identificar-se eternamente com o Volksgeist venezuelano… para sempre ou até quando os generais acharem que Maduro já não consegue exibir legitimidade suficiente para defender os seus (deles) interesses.

4.

Em França continua o processo de afirmação da direita através de um pacto de estabilidade do governo Barnier com o Rassemblement National (RN), que já se traduziu em nomeações na Assembleia Nacional de membros deste partido e do bloco de governo com os seus votos e os daquele bloco. Aquilo a que se está a assistir é a uma real erosão do chamado “cordão sanitário” em torno do RN. A dinâmica em curso parece ter sido bem resumida por um deputado do RN, Jean-Philippe Tanguy: “D’un côté, il faut se normaliser. D’un autre côté, il ne faut pas s’embourgeoiser non plus…” (Le Monde, 11.10, pág. 13). Interessante, esta frase, “il ne faut pas s’embourgeoiser non plus”, vinda de onde vem. O que apetece, pois, dizer à esquerda do senhor Mélenchon (e, já agora, ao senhor Olivier Faure), depois do processo a que assistimos (e sobre o qual tenho vindo aqui a escrever), é que quem tudo quer tudo perde, embora não se possa ainda prever as consequências, provavelmente politicamente fatais, dos seus actos. Mas creio que uma coisa é certa: o RN tem vindo progressivamente a ganhar influência e a normalizar-se perante a sociedade francesa. Acresce, agora, aos significativos resultados eleitorais obtidos nas europeias e na primeira e na segunda volta das legislativas, a partilha de cargos institucionais e de políticas que lhe são caras. A verdade é que o RN se tornou indispensável para a sobrevivência do governo e para a constituição dos poderes intermédios que governam o sistema institucional. E é muito provável que o processo de normalização da direita radical prossiga e que em 2027 possa mesmo vir a ganhar as eleições presidenciais, com a chamada frente republicana já completamente esfacelada. Não me parece que com esta situação Mélenchon tenha a vida facilitada para as presidenciais, mesmo numa segunda volta. Entretanto, aconteceu, como se sabe, mais uma nova vitória da direita radical na União Europeia: o Partido da Liberdade ganhou as eleições na Áustria, com 28,85%, dos sufrágios, depois de uma consistente participação de austríacos nas eleições, 77,68%. A normalização parece estar a impor-se na União, e agora também na França. Era esta a manchete do “Le Monde” de 11 de Outubro: “Assemblée: le cordon sanitaire autour do RN abîmé”. Este processo em França foi claramente favorecido pela posição maximalista da NFP, inspirada pelo subjectivismo político do senhor Mélenchon. Concordo, pois, com a posição do socialista e ex-ministro do PS, Vieira da Silva, no seu recente artigo no jornal Público, “Marcelo&Mélenchon” (14.10,2024, pág. 10), bem diferente da que defendeu a líder do GP/PS, Alexandra Leitão sobre o mesmo assunto, tendo eu próprio tido ocasião, em vários artigos aqui publicados, de fundamentar detalhadamente a minha crítica (veja sobretudo o artigo “A Democracia Roubada?”, de 11 de Setembro: https://wordpress.com/post/joaodealmeidasantos.com/15819).

5.

Por cá, alguns processos que estão a ocorrer merecem considerações de natureza crítica. Em primeiro lugar, todo o processo de discussão do orçamento de Estado, em particular o carácter público das negociações entre o PSD e o PS. Não parece ser próprio de negociações sérias elas serem feitas na praça pública, por uma simples razão: transformam-se em peças teatrais para a plateia dos eleitores. Depois, não me parece muito normal que o orçamento seja construído em parceria entre os dois partidos da alternância (a não ser em situações excepcionais ou, coisa absurda, pouco ou nada distinguindo os dois partidos) porque, a ser assim, ele também deveria ser executado em parceria, tendo como consequência a formação de um bloco central (como já aconteceu), com efeitos governativos. O que já não parece ser muito lógico é que a executá-lo seja somente um dos partidos. Estranhas parece serem, pois, certas posições que, ao contrário do que já disse, no passado fim-de-semana, o próprio SG do PS, consideram que o Orçamento do PSD tem uma indelével “marca socialista” (Zorrinho) ou que ele deva ser aprovado por ambos os partidos do sistema para, assim, impedirem que o CHEGA se torne imprescindível na política nacional (Sousa Pinto), incorrendo, deste modo, numa clara petição de princípio – o PS e o PSD conduzirem-se politicamente tendo como objectivo essencial impedir a centralidade do CHEGA (uma espécie de bloco central contra este partido) significa, ipso facto, elevá-lo a pilar central da política nacional, exactamente o contrário do que pretendem. Ou seja, fazer entrar pela janela o que se quis afastar pela porta. Este equívoco de determinar a política nacional pelo imperativo de combater o CHEGA tem sido fonte de graves erros do PS. Mas há quem continue a lutar por eles. Ou, então, a posição radical e frontal de José António Vieira da Silva acerca do orçamento ou das próprias palavras de Pedro Nuno Santos, mais parecendo um anúncio de próximo combate à liderança do actual SG do que uma proposta de solução para a difícil situação em que se encontra, neste momento, o PS.  Terão sido cometidos erros até agora, mas esta posição de Vieira da Silva não ajuda o PS a encontrar o caminho certo para o seu essencial desempenho político.  Tudo isto, para não falar das famosas reuniões secretas do PM (o autor do “não é não”) com André Ventura, ainda por esclarecer cabalmente. A situação parece estar a tornar-se politicamente muito nebulosa e, por isso, uma clarificação eleitoral poderia vir a tornar-se útil para que tudo pudesse ficar mais claro e menos nebuloso.

6.

A recente questão levantada pelo SG do PS acerca do dever de reserva dos dirigentes e deputados comentadores do PS acerca do Orçamento, que está a provocar uma onda de declarações contra e a favor, merece clarificação. Sempre achei estranho que o espaço mediático de comentário político fosse ocupado por agentes concretos da política nacional que ocupam posições políticas institucionais quer no partido quer no Estado. A fórmula que sempre me pareceu boa era a do debate entre eles, não a do comentário, por uma razão: os ditos comentadores tenderão sempre a não procurar a objectividade devido às suas directas responsabilidades políticas. Ora o comentário, destinando-se a esclarecer a cidadania deve, na medida do possível, ser objectivo, imparcial e neutro (categorias dos códigos éticos), e não de parte. É para isso que servem os media, para ajudar o cidadão a tomar boas decisões através de boa informação e boa opinião (de factos, descodificadora e reflexiva). Se assim fosse, uma parte do problema ficaria resolvida. Por outro lado, é compreensível que quem ocupa posições de responsabilidade nos partidos (ou no Estado) deva temperar as suas convicções com o sentido de responsabilidade, remetendo as suas convicções para as instâncias próprias do partido e respeitando funcionalmente os que estão vocacionados para gerir o discurso público, logo a começar no mais alto dirigente, no caso do PS, no Secretário-Geral. Esta lógica, no meu entendimento, não se aplica a mais nenhum membro/militante partidário desde que não desempenhe altas funções de responsabilidade política, designadamente executivas. Utilizar o espaço público para condicionar a gestão política do próprio partido, quando tem direito a expressar a sua posição e a decidir nos principais órgãos de decisão nacionais, ou, em certos casos, para se promover e sobreviver pública e politicamente, não me parece ser politicamente muito saudável.

7.

Depois, a questão das eleições presidenciais. O líder do PS, Pedro Nuno Santos, a uma pergunta sobre eventuais candidatos da área socialista, respondeu referindo alguns nomes, incluído, agora, também o de António José Seguro, além dos que já circulavam. Não me parece que o devesse ter feito, não só porque se trata de uma candidatura pessoal, mas também para não interferir publicamente no processo de eventual candidatura de figuras afectas ao PS, abrindo o leque de possíveis candidatos em condições de obterem o seu apoio. Também aqui, a haver algum activismo do partido, ele deveria ocorrer de forma não pública. Publicamente, a resposta do Secretário-Geral deveria anotar que a candidatura não é de partido, mas pessoal, pelo que só perante o facto o PS se iria pronunciar. Apoiar um candidato, sim; apontar publicamente nomes de possíveis candidatos, seguramente não.

8.

No passado dia 12 tomou posse o novo Procurador Geral da República. Uma escolha de Luís Montenegro, acolhida imediatamente por Marcelo Rebelo de Sousa, mas, ao que se sabe, uma escolha que não foi precedida de consultas aos principais parceiros institucionais e, em primeiro lugar, ao Partido Socialista. Depois, uma escolha alinhada plenamente com as expectativas do Ministério Público, sendo certo que o PGR pode ser escolhido livremente pelo governo mesmo fora do poder judicial. Este alinhamento foi confirmado pelo novo PGR no seu discurso de posse ao dizer, nas barbas do poder político, que recusará alterações à natureza do Ministério Público, sem que tenha legitimidade para isso (falou, designadamente, se não erro, de independência, quando do que constitucionalmente se trata é de autonomia, estando a independência, nos termos constitucionais, reservada aos tribunais, ou seja, à magistratura judicial). Uma posição em tudo idêntica à que, se não erro, já tinha sido tomada publicamente pelo presidente do sindicato dos magistrados do Ministério Público, Paulo Lona. Duas opções, estas (não preceder a escolha do PGR de consultas aos parceiros institucionais e entregar a PGR ao MP), que dizem tudo sobre o que o PM pensa da justiça, em particular depois de o Ministério Público, incluída a própria Procuradora Geral, ter sido posto publicamente em causa por vários sectores da sociedade. É de recordar a demissão do Primeiro-Ministro, seguida de eleições, a seguir a um estranho comunicado da PGR, sem que até hoje esse processo tenha sido clarificado e concluído, e apesar de o autodemitido PM, António Costa, já ter sido declarado Presidente do Conselho Europeu, sem que o famoso inquérito que o levou à demissão tenha sido concluído ou sequer clarificado. Algo muito estranho, pelo menos tão estranho como o silêncio público e mediático que existe sobre este assunto.  Isto para não referir a tão criticada ida de meios militares à Madeira no âmbito de um processo judicial, a prisão excessiva de indiciados ou a escuta telefónica de um agente político durante quatro anos ou, ainda, o uso e abuso de prisões preventivas e de escutas telefónicas. Esta nomeação mais parece ser uma confirmação do governo de que, mesmo assim, está tudo bem, devendo, por isso, o Ministério Público ser premiado com a nomeação de um dos seus como PGR, apesar de jubilado e de fazer 70 anos em Janeiro (o que levanta sérias dúvidas sobre a possibilidade de se manter como PGR depois dessa data, se a lei não for alterada). E causa ainda estranheza que o principal partido da oposição, o PS, se tenha limitado a desejar bom trabalho ao indigitado, sem nada acrescentar.

9.

A política nacional (e internacional) não conhece os seus melhores dias, sendo, pois, pela sua importância e pelos seus efeitos sobre as nossas vidas, dever dos que a estudam e analisam reflectirem, livremente e de forma o mais possível objectiva e imparcial, sobre o que nela está a correr bem e sobre o que está a correr mal. É o que eu aqui tenho procurado fazer, evitando observar a realidade com as minhas próprias idiossincrasias pessoais ou interesses de parte. As idiossincrasias existem, claro, mas procuro que fiquem fora das minhas análises. Só assim se pode dar um contributo positivo a essa política que a todos condiciona, quer no presente quer no futuro. JAS@10-2024UERec

Poesia-Pintura

ÀS VEZES

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “A Lua Desceu sobre Mim”
JAS 2024
Original de minha autoria
Outubro de 2024
JAS1AluaDesceuSobreMim

“A Lua Desceu sobre Mim”. JAS. 10- 2024

POEMA - "ÀS VEZES"
ÀS VEZES 
Tenho saudades
Do tempo
Que não vivi,
Dos encontros
Que falhei,
Das coisas
Que já não fiz
Ou que, fazendo,
Errei.

CONSTRUÍ-ME
Como quis,
À medida
Do desejo
E em cada passo
Que dava
Fazia nascer
Um passado
Que neste poema
Não vejo.

MAS TENHO MESMO
Saudades,
Que mais posso
Eu fazer?
Quem vive
Daquilo que faz
E dá uma voz
Ao que sente,
Vai construindo
O futuro
Pra libertar
O presente.

NÃO ME QUEIXO
Do passado,
Do que nele
Construí
E da vida
Que levei...
.............
Contra ventos
E marés
Muitas vezes
Eu falhei...

HUMANA
Imperfeição,
Quero dizer,
Porque se fosse
Perfeito
Não estaria
O poema
Pronto
Para nascer
Com palavras
Que resgatam
Do que não soube
Fazer.

É VERDADE,
Eu bem sei
Que um dia
Tropecei
E me perdi
No caminho,
Procurava,
Procurei,
Fazendo o percurso
Sozinho...
...........
Mas voltava
A tropeçar,
Até que um dia
Parei
Para não
Recomeçar...

MESMO ASSIM,
Recomecei
E voltei
A caminhar,
Mas não mais
Eu tropecei
Porque em palavras
Peguei
Pra me poder
Resgatar...
..........
Foi assim
Que me salvei.

SALVARAM-ME
Essas palavras
Compostas
Em poesia
Porque fiz
Do tropeçar
Matéria
De fantasia.

JAS1AluaDesceuSobreMimRec

Artigo

UMA HISTÓRIA COMOVENTE

Gramsci, a Prisão e o Fascismo

Por João de Almeida Santos

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“Gramsci”. JAS 2024

HÁ MUITO que não escrevia sobre um político e intelectual de grande projecção mundial ao qual dediquei alguns anos da minha vida. Trata-se de Antonio Gramsci, um marxista atípico, líder do partido comunista italiano, deputado e, com trinta e cinco anos, preso nas cadeias do fascismo italiano, onde viria a morrer, em 27 de Abril de 1937. Mais exactamente, partiu já em liberdade condicional, devido às suas gravíssimas condições de saúde, estando internado numa clínica privada  de Roma, Quisisana. Nascera em 1891, na Sardenha, Ales. Personagem fascinante política e intelectualmente, Antonio Gramsci deixaria uma obra relevante e algumas importantes inovações sobre a política, que continuam plenamente actuais. Melhor: que deveriam integrar o melhor património da política actual, mas que infelizmente estão esquecidas pelos partidos que tem dominado a cena política nos últimos decénios. E, em particular, os de centro-esquerda. Falo, por exemplo, da conjunção da política com a ideia de hegemonia ético-política e cultural, ou seja, da ancoragem da política a uma visão do mundo estruturada que possa ser assumida e partilhada interiormente pela cidadania e que garanta estabilidade ao exercício ao poder, fundado numa adesão consciente e critica e na partilha de valores políticos e sociais articulados com coerência. Em palavras mais simples: uma política que não fique reduzida à mera conquista, conservação e reprodução instrumental do poder. Mas Gramsci não pode ser lido com as categorias do marxismo-leninismo porque, assim, o seu pensamento seria distorcido. Trata-se de um pensamento complexo e original em relação à tradição marxista clássica.

1.

Por que razão volto a Gramsci? Porque tive conhecimento de que, recentemente, foram publicadas textos de Gramsci, em Portugal, depois de um longo período de abandono do pensamento deste personagem tão relevante na história do século XX, embora não seja o caso de outras zonas do mundo onde Gramsci continua a ser objecto de grande atenção. Falo, por exemplo, da América Latina. Publiquei vários estudos sobre Gramsci (em particular o livro O Princípio da Hegemonia em Gramsci, em 1986, mas também dois capítulos do meu livro Os Intelectuais e o Poder, em 1999, e outros dois capítulos inseridos no livro colectivo Da Gaveta para Fora – Ensaios sobre Marxistas, em 2006), mas, desta vez, regressei a um livro que me comoveu, quando foi, em 1991, publicado por Valentino Gerratana para as edições Riuniti. Trata-se da obra “Piero Sraffa, Lettere a Tania per Gramsci” (Roma, Riuniti, 1991, 276 pág.s). Uma publicação que torna públicas 79 cartas do grande economista italiano à cunhada de Gramsci, Tatiana Schucht, que servia de mediadora das relações entre os dois amigos. Estão ainda publicadas outras cartas, sobretudo de Tatiana, ou seja, nove; duas de Sraffa a Togliatti e três a Elsa Fubini e  Paolo Spriano; uma de Camilla Ravera a Júlia Schucht, sendo, em notas de Gerratana, ainda transcritas outras cartas, sobretudo de Tatiana). Valentino Gerratana, o responsável pela  fabulosa edição crítica, em quatro volumes, dos Quaderni del Carcere (e com quem iniciei, em 1978, os meus trabalhos sobre Gramsci no Instituto Gramsci de Roma, tendo depois passado a desenvolver o trabalho com Umberto Cerroni), oferece-nos uma excepcional obra, não só pelo valor testemunhal das cartas, dos personagens envolvidos e do contexto em que ocorrem, mas também pelas riquíssimas notas explicativas de Gerratana, que as acompanham.

2.

O livro voltou a impressionar-me porque, apesar de conhecer muito bem toda a história de Gramsci (aconselho, a propósito, a leitura do belíssimo livro de Giuseppe Fiori “Vita di Antonio Gramsci. Roma-Bari, Laterza, 1977), me lembrou, de novo, a lenta e trágica degradação física de Gramsci nas prisões de Mussolini (1926-1937) – Regina Coeli, em Roma, San Vittore, em Milão,  Turi, na Puglia, Civittavecchia, até morrer na clínica privada de Quisisana, em Roma, depois de ter passado um curto período numa clínica de Formia, Latina. E tocou-me particularmente por poder acompanhar a abnegada dedicação de Sraffa e de Tatiana ao longo do penoso processo da prisão de Gramsci. Três personalidades de raras qualidades humanas, de coragem, sensibilidade e inteligência, apesar do lamento, sentido e de profundo pesar, de Tatiana: “abbiamo fatto tanto e non siamo riusciti a fare nulla” (1991: 184).

3.

Um inacreditável artigo do Jornal “Il Messaggero”, de Roma, de 12 de Maio de 1937, “Una sparizione e uma morte” (procurando comparar a morte de Gramsci com o desaparecimento de uma cidadã italiana na União Soviética), quinze dias depois da morte de Gramsci, diz o seguinte sobre ele:

“… o chefe intelectual dos bolcheviques de Itália (…) refugiou-se em Moscovo, de onde saiu oportunamente devido à sua fidelidade a Trotsky. E regressou a Itália, onde pôde acabar os seus dias numa solarenga (soleggiata) clínica de Roma (…) De qualquer modo, na Rússia os adversários desaparecem (e Deus sabe como), enquanto em Itália os mais loucos, fanáticos comunistas (e Gramsci, nisso, não ficava atrás de ninguém) encontram aquela paz que alhures é negada até ao limite da própria morte” (Gerratana, 1991: 265, n. 2).

Esta transcrição aparece quase no fim do livro e é chocante (embora não surpreenda) para quem leu o que estava escrito antes, ou seja, o processo de degradação da saúde de um génio nas implacáveis e desumanas prisões de Mussolini. Um político que era líder de um partido com representação parlamentar, membro do executivo do Komintern, deputado, eleito em 1924, tendo regressado da URSS (e da Áustria, Viena), onde vivera entre 1922 e 1924. Mas quem quiser saber melhor do que falo, e da inconsistência do que diz o articulista acerca da “paz” que se vivia em Itália nessa altura (para não falar das outras mentiras do artigo), pode consultar os dois artigos que aqui publiquei sobre Mussolini e como neles é referido o que é descrito por Antonio Scurati, ao longo de 1924 páginas, nos três volumes sobre o Duce (M. Il figlio de Secolo; M. L’Uomo della Provvidenza; e M. Gli Ultimi Giorni dell’Europa), em particular sobre a violência em que se baseou a formação e a consolidação  desse “solarengo” e resplandecente regime fascista (https://joaodealmeidasantos.com/2021/10/25/artigo-52/; mas sobretudo, porque analisa os três volumes, https://joaodealmeidasantos.com/2023/07/03/artigo-109/).

4.

Este livro mostra de forma comovente a relação entre estas três personagens: Piero Sraffa, o grande economista italiano, professor no Trinity College  de Cambridge, amigo e parceiro intelectual de Keynes, Wittgenstein e Blackett; Tatiana Schucht, irmã mais velha da mulher de Gramsci, Júlia Schucht; e António Gramsci, na condição de prisioneiro político do regime fascista. Foram Sraffa e Tatiana Schucht os grandes apoios materiais, morais e intelectuais de Gramsci desde que entrou na prisão, em Novembro de 1926, até 1937, ano em que viria a falecer. Tatiana era o seu grande, enorme, suporte e funcionava também como mediadora das relações entre os dois amigos. Foi ela que salvou os Quaderni del Carcere. Estas cartas publicadas neste livro dão bem conta da dimensão da amizade dos três e permitem ter uma visão muito clara da lenta evolução da situação de Gramsci, mas permitem também conhecer a solidez moral do político e intelectual sardo. E confesso que da sua leitura (neste caso, releitura) sai reforçada a imagem com que fiquei de Tatiana depois da leitura das Cartas do Cárcere – uma dedicação sem limites. Há uma sua carta, de 1 de Julho de 1937, a Sraffa (Sraffa, 1991: 184-185, em nota) que é um autêntico poema dramático escrito e sofrido depois da morte de António Gramsci. Dor, angústia, desespero infinitamente mais intenso quando pensa nele, “em tudo o que ele perdeu (…), irremediavelmente perdido, pobrezinho, sempre paciente até ao inverosímil, extremamente simples, afectuoso, atencioso como ninguém, como ninguém sensível a qualquer manifestação de afecto, de devoção. Creio que haja bem poucos que, como ele, saibam ser assim tão profundamente reconhecidos e gratos, sem limites, por cada atenção que lhes dispensem, como sempre se mostrou, até ao fim, aquele ser tão nobre, tão excelso, cuja vida e trabalho tinham um valor inestimável”. Há nestas palavras uma profunda estima, um amor e um enorme reconhecimento pela figura daquele homem excepcional. Alguém que resistiu, que manteve uma frieza de razão às vezes inacreditável, dada a sua situação, um sentido de responsabilidade admirável e uma profunda e sincera humildade em relação a todos os que se encontravam na sua situação. Que resistiu, sim, enquanto pôde, conjugando a resistência com um gigantesco trabalho intelectual que chegou até nós como Quaderni del Carcere, uma obra monumental em fragmentos que se viria juntar aos brilhantes escritos anteriores à sua prisão, último dos quais o que aborda a relação dos intelectuais com o Mezzogiorno, de 1926 (Alcuni Temi della Quistione Meridionale).

5.

Não foi longo este tempo de escrita porque já em 1932 os problemas de saúde se avolumavam de tal modo que o impediam de trabalhar ou sequer de estar tranquilamente em paz. É esta lenta progressão para o abismo, testemunhada por estes dois amigos incansáveis, que a tentavam travar de todos os modos possíveis, que este livro documenta e que nos leva a abominar ainda mais um regime que o foi anulando lentamente até à morte, prematuramente anunciada. Um regime que tinha na sua sua matriz a violência. O veredicto do procurador Michele Isgró teria de se cumprir: “devemos impedir este cérebro de funcionar durante vinte anos!”. Prenderam-no e mantiveram as condições que o haveriam de levar à morte, mas não conseguiram anular o seu pensamento, paralisar o seu cérebro, impedir a sua obra, que hoje continua a ser uma das mais influentes obras da esquerda de inspiração marxista. Gramsci tinha bem consciência de que o que estava a fazer (sobretudo entre 1929 e 1933) era fuer ewig, para sempre, para além da conjuntura política. Preso, mas livre naquilo que ele mais valorizava na sua vida: o pensamento virado para a acção e para o futuro. E assim foi e assim é. Até a direita, aquela que ele combatia com tenacidade e inteligência acabou por valorizar a sua obra, em particular a sua teoria da hegemonia. Sobre isso escrevi no capítulo publicado em 2006 na obra já referenciada (“Hegemonia: o primado do consenso na teoria política de Gramsci”; in Neves, 2006: 79-107). Uma teoria que liga a política à história, com profundidade temporal, valorizando a adesão consciente da cidadania a uma determinada concepção do mundo que lhe é proposta, mas que está radicada na melhor tradição nacional: nacional-popular. Infelizmente, a esquerda moderada deixou-se enredar em fórmulas ideológicas sem pregnância histórica (e até contrárias à melhor inspiração iluminista) e num pragmatismo descarnado historicamente em vez de valorizar a política com dimensão ético-cultural, enraizada em “blocos históricos”, socialmente consistentes, com horizonte ideal estruturado e capazes de se sedimentar historicamente, trazendo substância à política e novos horizontes à cidadania.

6.

Houve quem achasse que a relação de Gramsci com o grande economista Piero Sraffa era uma relação de simples, embora forte, amizade, mais significativa do que a relação intelectual.  Por exemplo, Perry Anderson. Mas não é verdade, como, de resto, o reconhece (e prova) Valentino Gerratana e como se vê pela correspondência trocada, através de Tatiana Schucht (para uma crítica das posições de Anderson sobre Gramsci veja o meu O Princípio da Hegemonia em Gramsci,  Lisboa, Vega, 1986, pp. 117-129). Para começar, ambos se inscreviam, de forma assumida, na mundividência comunista, embora um valorizasse mais a intervenção orgânica (designadamente do partido) do que o outro, que era um comunista independente. Independente, sim, mas colaborador com o partido, designadamente com o seu centro político localizado em Paris. Há neste livro duas cartas de Sraffa a Togliatti. Depois, sendo naturalmente Sraffa um economista puro e analítico (embora de vasta formação cultural), diferenciava-se do posicionamento intelectual de Gramsci, que exprimia um pensamento de natureza mais ampla e abrangente, mas também socialmente mais concreto, prático e pragmático nas suas análises. É conhecido o diálogo entre ambos sobre a estratégia política a seguir durante a vigência do fascismo. E, todavia, a formação económica de Gramsci era regularmente alimentada por Sraffa, designadamente por via bibliográfica, mas também por troca de opiniões directa. Sim, é verdade, mas, nestas cartas, o que, além disto, sobressai é a dimensão humana de Sraffa e a sua inabalável amizade, consideração e respeito por Gramsci, uma relação que era acarinhada e alimentada por uma mulher incansável e extraordinária, mesmo quando, pela delicadeza, exigência e complexidade da situação, às vezes surgiam discordâncias, formuladas até com alguma dureza, mas rapidamente superadas pela grandeza de alma de ambos e pela comum dedicação a Gramsci.

7.

A vontade de escrever sobre este livro veio-me, mais uma vez, naturalmente, da relação de proximidade que continuo a manter com o pensamento de Gramsci, mas também da minha profunda admiração por este exemplo de solidariedade incondicional e abnegada, em situação altamente perigosa, difícil e delicada, por parte de Sraffa e de Tatiana para com esse génio da política e do pensamento que tive oportunidade de estudar aprofundadamente durante anos e que continua a constituir para mim uma fonte inesgotável e permanente de ensinamentos sobre as matérias acerca das quais ele se debruçou. E não só as que são objecto de reflexão nos “Quaderni” (tenho a edição original, mas deverei adquirir uma nova pelo desgaste que esta edição sofreu ao longo do tempo, devido às permanentes consultas), mas também os inúmeros escritos que integram toda a sua obra, desde os escritos de juventude. Posso, para terminar, dar como exemplo os seus inovadores e precursores escritos de juventude sobre Luigi Pirandello, que, de resto, tive ocasião de expor no capítulo sobre “O Teatro de Luigi Pirandello, segundo Gramsci” no livro já referido: Da Gaveta para Fora. Ensaios sobre Marxistas (Org. de José Neves, Porto, Afrontamento, 2006, pp. 109-117). Mas poderia enumerar tantos outros se não se desse o caso de sobre eles já ter abundantemente escrito e publicado. JAS@10-2024

antonio-gramsci2024_2CORRec

Poesia-Pintura

AS BAGAS

Arietta
Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “O Jardim”, JAS 2024
Original de autoria
Outubro de 2024
Pasárgada2024Corte2805

“O Jardim”. JAS 2024

POEMA - "AS BAGAS"
Arietta
AO RAIAR
De um belo dia
Visitei
O meu jardim...
Havia
Algumas rosas,
Um azevinho
Sem bagas,
Três cameleiras
Frondosas
E tudo ali
Para mim.

VI DEUSA
Desnudada
Por entre verde
Folhagem,
Uvas frescas
De latada
E o jardim
Como imagem.

MAS AS BAGAS,
As bagas do azevinho,
Vermelhas,
Cor do meu sangue,
Não as tinha,
O pobrezinho,
Era um arbusto
Exangue.

E EU, TRISTE
Por não as ter
A fazer-me
Companhia,
Quis um novo 
 Azevinho
Com bagas
Como as queria.

PEDI LOGO 
Ao jardineiro
Que o encontrasse
Pra mim,
Sem elas
Era mais pobre
O meu bonito 
Jardim.

MAS O TEMPO,
Ah, o tempo,
Não as traria
Até o azevinho
Crescer...
Por isso, pus mãos
À obra
Para em versos
As ter.

EM VERSOS...
Também em cor,
Era assim
Que as teria,
Quisesse
O meu pintor
Ilustrar 
A poesia.

BAGAS
Na fantasia,
Ali prontas
Para criar,
Não as tendo
O azevinho
Desenhei
Um novo arbusto
Para bagas
Ele me dar.

E ASSIM FIQUEI
Feliz
Por ter bagas
Vermelhinhas...
...........
Não sendo
Do azevinho,
Mas da minha
Fantasia,
Todas elas
Eram minhas,
As bagas
De minha cria.

Pasárgada2024Corte2805Rec

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (II)

Para um Discurso sobre a Poesia 
(Em torno de Novalis)

Por João de Almeida Santos

Pasárgada2024Corte2805

“S/Título”. JAS 2024. 10-2024

1.

Dá que pensar esta enigmática frase de Novalis: “Man ist allein mit allem, was man liebt” *. Está-se só, com tudo o que se ama. Amar é, pois, absoluta solidão, a que resulta de isolamento em relação ao mundo circunstante? No amor suspende-se a comunidade de vida? Se o amor for “realmente (wirklich) uma doença” da alma (Novalis, 2024:145; e Stendhal, em “De l’Amour”, no prefácio da edição de 1826), esta solidão é como a que sofremos com a doença física? A verdade é que ninguém pode estar doente por nós e, por isso, ninguém pode amar por nós. O amor e a doença não se podem delegar. O amor, sendo “uma doença da alma”, convoca irremediavelmente a solidão?

2.

Na doença, a solidão dita lei. E no amor, sendo uma “doença da alma”, também? No amor estamos sós, mesmo quando temos à nossa frente o ser amado? Ou a solidão é relativa ao mundo circunstante e exclui o ser amado?  A verdade é que quando se trata de dois seres humanos já não é solidão. Mas a partilha só pode acontecer se for como sentimento, não como doença, a mesma doença, mesmo que essa seja “doença da alma”, não do corpo, seja de amor. Eu sinto-me doente porque tu estás doente. Sentir-se doente significa uma forma de partilha. O que não se poderá dizer é “eu amo-te porque tu me amas”. Mas também é verdade que o amor não é uma relação entre casulos incomunicáveis, onde cada um está encerrado em si próprio. Se fosse, não haveria amor. E também é certo que o amor não é dádiva, por generosidade. Simplesmente, acontece. Exactamente como a poesia. É o próprio poeta que o diz (Pessoa). O amor e a poesia acontecem. Não são objectivos pré-determinados, resultado da vontade. Simplesmente, acontecem.

3.

Alguns chamam platónico ao amor não correspondido. É este o que é vivido em solidão? Ou é o amor em si que induz solidão absoluta, mesmo quando é correspondido? Solidão daquele que ama. A solidão integra o próprio acto de amar? De cada um dos dois que se amam? O amor seria um círculo fechado sobre si mesmo onde o outro seria, sim, imprescindível, mas como  pura ilusão? Mas é difícil que aconteça uma dupla e recíproca projecção da ilusão na relação amorosa. O outro ser para cada um deles a respectiva ilusão especular. Pura projecção noutra pessoa do seu eu mais profundo. Até há a ideia de que o ser amado é, afinal, a ressonância, em diferido, de algo com que nos identificámos na infância ou até mesmo da afeição materna. O ser amado seria, então, como que um espelho. O espelho perfeito. Não sei. Talvez não. Talvez seja mais do que isso. A dialéctica identidade-alteridade talvez possa explicar, em parte, a relação amorosa. Mas sabe a pouco.

4.

Será o amor uma forma de resgate, com força pulsional, do que ficou recalcado na nossa zona de sombra primordial?  O amor é uma pulsão que se basta a si própria e que apenas se serve de outrem para se concretizar? Vulcão que se cristaliza onde a lava parar? Ou amar é sair de si e dissolver-se no outro, ficando por lá, prisioneiro? Como a vela que morre para dar luz, para iluminar (Goethe)? Consumir-se em fogo ateado pelo destino para iluminar? O amor autêntico talvez seja isso: fogo que arde sem se ver, mas que consome interiormente até à anulação total. No fim, cera derretida. Amar é perder-se para si, entregando-se ao outro. O poder avassalador da pulsão.  Por isso, o fim de um amor é insuportável porque parece que já não há regresso possível à condição de partida. A vela que ardeu já não pode ser restabelecida. Porque só ficaram cinzas. Melhor, uns restos de cera ardida. Perante uma entrega total já não há retorno. E não há cartografia que possa repor a “diritta via” (Dante). Por isso, é mais grave do que a solidão. É perdição. Retorno impossível. Dupla perda: do ser amado e de nós próprios. Já não é, pois, solidão. É mais grave. Lembro-me sempre dos versos de Dante Alighieri no começo do “Inferno”, na “Divina Commedia”: “Nel mezzo del cammin di nostra vita / mi ritrovai per uma selva oscura / ché la diritta via era smarrita”. Sim, a partir desse momento é pura errância e perda de sentido, com o chão a perder firmeza e a fugir dos pés. É como entrar num território vazio e escuro.  Ou, então, “selva oscura”.  Sobrevêm a tristeza, a nostalgia, a melancolia. Um sentimento de impotência. Felicidade suprema, dor insuportável. E não há cura para este amor de entrega total?

5.

Este estado de alma pode ter redenção se for cantado e verbalizado em pauta musical e em estado de levitação. Perda sofrida, levitação desejada (Calvino). O desejo. Força arrancada das vísceras da alma. Parece ter sido esta a origem da poesia. Um clarão, estremecimento e queda num buraco negro. Esse instante de que fala Baudelaire no poema “À une Passante”. Um clarão seguido de encandeamento e de despiste existencial: ausência, silêncio, solidão, tristeza, nostalgia, melancolia, dor. Dor pelo que não aconteceu, mas que poderia ter acontecido se essa mulher não tivesse sido engolida  rapidamente pela multidão. Coisa grave, muito grave, se for verdade que, afinal, “o amor” não é só “doença da alma”, porque é “o objectivo final da história do Mundo” (Welgeschichte) – “das Amen des Universums” ( 2024: 92-93). O amen do universo. E, por isso, que o senhor esteja com o poeta, perante tamanha perda, diria um religioso, crente num além promissor, na redenção, no sagrado. Mas não é esta a reacção do poeta. Talvez este seja, afinal, o amor cantado por ele, aquele que está mais próximo  do invisível do que do visível. A cura e, por isso, o “amen do universo”. A doença que, na poesia, se transforma em aleluia, em alegria, júbilo.  Ele tem um remédio terreno (remedium amoris), no lado de cá, que o eleva para além da doença e da dor: a poesia, “a grande arte da construção da saúde transcendental” (2024: 47). Sim, saúde transcendental para esta “maladie de l’âme”. Estranha esta formulação, não é? Não, porque a poesia funciona mesmo no território transcendental (que não se confunde com o transcendente). Este território é o das condições de possibilidade que, a um certo ponto, podem ser assumidas como reais e determinarem comportamentos. O poeta ama com palavras e é um amor efectivo, não inferior, em densidade existencial, ao amor corpóreo. As palavras são o corpo da alma. E têm som, melodia e ritmo. São vivas. O ser amado está ali em frente, na imaginação do poeta, e este dirige-se-lhe com palavras. A performatividade é total. Só assim a dissolução do eu se pode converter, transformar em sublimação, apesar de a solidão ser irremovível. Dissolução-sublimação, a equação poética. E mantém-se a solidão porque a poesia é solidão, ainda que a comunhão exista como processo diferido no espaço e no tempo. O que lhe dá ainda mais realismo. Como possibilidade, como comunhão transcendental. O poeta age como se o ser amado esteja à sua frente. O beijo escrito é beijo dado (se não for bebido pelos fantasmas, ou mesmo assim). O centro da filosofia de Novalis: a poesia como o verdadeiro real absoluto. Por isso, quanto mais poético mais verdadeiro (2024: 77). O que vale também para o amor cantado poeticamente. A cura da “maladie de l’âme”. O poeta antecipa uma comunhão de destino ao lançar os versos ao vento que passa, aparentemente sem destino. Fica só e espera que eles lhe sejam devolvidos como eco. E como acto de amor. A poesia é o eco do silêncio com um imenso poder performativo. É sobre o silêncio que o poeta viaja à procura de sentido. “Desejos e apetites são asas”, diz Novalis (2024: 25). E mais leves quando se reproduzem em palavras. As asas da poesia. É esta a condição da cura, provisória, até à próxima recaída, pois a “doença” nunca se cura totalmente. Afinal, ela é condição de sobrevivência da própria poesia. A pena de Sísifo, para quem a tristeza se torna doce melancolia sempre que atinge o Monte Parnaso.

6.

Parece, pois, legítimo perguntar se o poeta espera resultados práticos da sua interpelação poética. A resposta é fácil. Como em todas as artes, as suas propostas são desinteressadas, não visam efeitos práticos que não sejam o ressoar das palavras na sua alma e no ambiente circunstante. Ele canta, pois, por cantar? Não, ele canta porque a vida o interpela e o convoca para cantar. É neste sentido que se pode dizer que a poesia lhe acontece, ao poeta, e que não resulta de um acto voluntário, de um acto de vontade, de uma deliberação. Ela simplesmente acontece-lhe. Mas só lhe acontece porque já existe pré-disposição: “Hauptsatz – Man kann nur werden insofern man schon ist” (Novalis). Só podemos tornar-nos se já formos. Digo muitas vezes que quando falta o “chip” do sentimento nunca será possível a emoção. Nestas condições, ela nem sequer poderá ser induzida. Ao poeta acontece-lhe a emoção sublimada em palavras porque já está marcado (o estremecimento perante um clarão), como destino. Mas se as palavras lhe faltarem a doce melancolia em que se encontra instalado sofre uma regressão e volta a ser tristeza, luto, depressão. Um poeta em falência a regredir para o fracasso existencial, sem redenção. A morte do poeta.

7.

“O poeta utiliza as coisas e as palavras como teclas e toda a poesia repousa sobre uma activa associação de ideias – uma espontânea, deliberada e ideal produção do acaso” (2024: 125). Sim, mas não se trata, como pode parecer, de puro virtuosismo de execução porque, como ele diz, só o artista (e, portanto, também o poeta) é capaz de adivinhar o sentido da vida (2024: 53) e porque o verdadeiro poeta é “omnisciente” (allwissend), enquanto “é um mundo real em pequeno” (2024: 59). Conjugando quanto diz Novalis, verifica-se que a poesia possui densidade ontológica e, através de uma exímia manipulação da sua matéria-prima (coisas sentidas e palavras), consegue produzir conscientemente “acaso”, resultados aleatórios que resultam da sua fecunda imaginação poética, a tal que pode substituir todos os sentidos. Muitas vezes tenho comparado a poesia com as técnicas da psicanálise, designadamente a interpretação dos sonhos e as livres associações de palavras-ideias. Encontrei em Novalis esta formulação, que parece confirmar esse mecanismo poético. Na verdade, ambas, poesia e psicanálise, se alimentam de matéria constante da zona de sombra da consciência, accionando o processo da verbalização. Neste processo a poesia acciona as categorias da arte não só para trazer à consciência, de forma cifrada, os estados de alma, mas também para os projectar esteticamente e assim os partilhar. A natureza da poesia, no seu conceito, garante que não se trata de artificialismo, mas sim de algo vital. Diz ele: “a pura linguagem poética deve ser (…) organicamente viva” (2024: 37). Mais claro do que isto não é possível. De resto, para ele a poesia é a “arte de excitar o ânimo” (2024: 135). 

8.

Lembraram-me que o Bernardo Soares disse que de tanto sonhar ele próprio se tornou um sonho, o sonho de si mesmo. Parece estranho, mas não é. Vejamos por que razão o que ele diz tem fundamento. Sobretudo se for poeta, o que não era o caso do Bernardo Soares. Tem fundamento porque poetar é sonhar. E a figura do poeta é indissociável do sonho/poema. Não era o grande Calderón de la Barca que dizia que “la vida es sueño”. E que o sonho vida é. A vida em palavras, que são o que de mais humano o ser humano tem. Ando às voltas com o Novalis e verifico que ele diz algo que pode ajudar a compreender esta afirmação do Bernardo Soares: “a imaginação é esse sentido prodigioso que pode substituir (em itálico: ersetzen) todos os nossos sentidos” (2024: 78-79). A imaginação com o mais completo poder sensorial. É daqui (e da sua musicalidade) que vem o poder performativo da poesia. Que trabalha com a imaginação, sim, mas com a que está ancorada na alma (não é, pois, um mero exercício estilístico). Só depois ascende ao espírito, que é “a alma cristalizada” (2024: 127). Mas ele diz outra coisa que, essa sim, completa a explicação: “Os verdadeiros produtos devem produzir, novamente, o que os produz. Do produzido nasce, de novo, o produtor” (2024: 87). É só substituir produto por sonho/poesia e produtor por poeta. É a poesia em acto que produz o poeta. Do sonho nasce, pois, o poeta que o escreve. Em cada poema o poeta renasce. Tem, pois, razão o Bernardo Soares. Portanto, mais uma vez de acordo com esse artista que dizia que não se ajeitava com a poesia… e que nem sequer era, dizia ele também, filósofo, apesar de, curiosamente, se identificar ele próprio como sonho sonhado da poesia. Ele era, sim, as duas coisas. Pelo menos porque também era Fernando Pessoa e porque escreveu o “Livro do Desassossego”.

9.

Confesso que já nem sei se viveria em paz comigo próprio sem poesia. O ritual do domingo ajuda. Dá-lhe forma, materializa-a, partilha-a. É a um tempo “durée”, mas também acontece no tempo cronológico.  A minha missa laica. A melancolia é o estado de alma permanente do poeta e os poemas são sempre inspirados na musa do suave, mas inebriante, perfume. Por isso, o lugar de inspiração é (quase) sempre o jardim. Um perfume que excita a imaginação do poeta, aquela que, segundo Novalis, concentra em si todos os poderes dos sentidos. Sim, o poeta viverá sempre nos seus versos porque foi assim que ele nasceu. E é por isso que renasce em cada canto. Há um período de delicada (e sempre difícil) gestação e há a apoteose final – o poema. O poema já é festa, celebração e, de certo modo, redenção, resgate. O ritual integra tudo isto e, no fim, o poeta já é outro. Renasceu.  

NOTA

* Uso a edição da Assírio&Alvim dos Fragmentos de Novalis (Porto, 2024, 3.ª edição, pág. 150), com selecção, tradução e desenhos de Rui Chafes. Trata-se de uma edição bilingue, mas esta frase tem uma gralha no texto alemão, ou seja, onde se lê “mit allein” deve ler-se “mit allem”. JAS@10-2024

Pasárgada2024Corte2805Rec

 

 

Poesia-Pintura

O SONHO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Jardim Espectral”
JAS 2024
Original de minha autoria
Setembro de 2024
JardimEspectral2024

“Jardim Espectral”. JAS 2024

"Estamos perto do acordar, 
quando sonhamos que sonhamos"
(Wir sind dem Aufwachen nah, wenn
 wir träumen, dass wir träumen)
Novalis

POEMA – “O SONHO”

SONHEI,
Um sonho estranho
(Não sei porquê,
Mas os sonhos
São assim),
Que numa tarde
De outono
Eu te vi,
Silenciosa,
Etérea,
Ali,
A meu lado,
Sob o loureiro
Do meu Jardim
Encantado.

NÃO ERA RUBRO
De vida cheia
O teu rosto,
Olhar incerto
Em forma pura,
Retrato
Em papel baço
Ou escultura...
.............
De travertino,
Distante
Destes versos
Que na alma
São reversos
De um sofrido
Destino.

E EU ALI,
Nesse jardim
Espectral,
A sofrer-te
Em suave
Melancolia
Por só poder
Pressentir
Em palavras
A tua alma,
Talvez em fuga,
Talvez vazia.

ROSTO
Impenetrável
Que só ouvia
Interiormente
No que, afinal
Não dizia,
Intermitente,
Mudez gélida
Como o mármore
Do teu rosto
Em travertino,
Olhar vago
À procura
Não sei de quê,
Talvez de nada
Ou das marcas
Do destino.

PRESSENTIA-TE
Sem ouvir
A tua voz.
Era apenas
Desejo
Onírico
De alma
Vagante
E uma silhueta,
Talvez errante,
Em tarde
Já tardia
Na espessa
Neblina
Que me cobria.

DE TI
Sobrou-me
Um rosto,
Tudo aquilo 
Que me resta
Pra te sonhar
Neste intervalo
Tardio
Entre mim
E a tua vida,
Um eterno
Desencontro
Já gravado
Como ferida.

ESSE PERFIL
Marmóreo
Prenunciava
Um glacial
Silêncio que,
 Ao acordar,
Me há-de
Emudecer,
Tornando-me
Máscara gémea
Desenhada
Com palavras
Que eu nunca
Encontrarei,
Por te perder...
O rasto
E os olhos
Negros,
Esses
Que sempre
Para ti
Eu celebrei
Porque sempre
Te quis ter.

JardimEspectral2024Rec

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (I)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

ReflexosPublicado

“Reflexos”. JAS 2023 – 66×82, em papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em mold. de madeira.

1.

SENTIR COM A IMAGINAÇÃO

O Fernando Pessoa sentia com a imaginação, tarefa imensamente difícil, delicada e até perigosa.  Mas não nos esqueçamos que o poeta é um fingidor, como diz na Autopsicografia. Como poeta, ele sentia mesmo porque tinha a sensibilidade à flor… da imaginação. Os poetas são assim. A sensibilidade é o seu principal órgão cognitivo. Regista as mais leves vibrações. Sim, mas ele (pelo menos, o Bernardo Soares) não gostava de tocar a realidade sequer com a ponta dos dedos… a não ser a Ofélia, quando a levava para um vão de escada e se atirava a ela aos beijos. Fraquezas de um poeta, que sente sobretudo com a imaginação. Depois, não sei se se arrependia porque isso lhe tolhia os movimentos de imaginação, a liberdade de compor ao ritmo da fantasia. Não sei se foi por isso que a coisa falhou. O que sei é que para ele a realidade era uma galeria de arte, via-a com a sua sensibilidade poética como se ela já estivesse pré-ordenada esteticamente.  Via um rosto como se ele fosse uma pintura exposta na galeria da vida. Os óculos eram as suas lentes poéticas. Eles marcavam uma certa distância do real. Próteses da alma e seu escudo protector. O Pessoa vivia inteiramente no mundo da poesia. Mas o Bernardo Soares parece que não, era mais filósofo do que poeta, embora também recusasse essa condição. Mas, sim, os fragmentos do “Livro do Desassossego” são filosofia e se, como diz Novalis*, “a filosofia é a teoria da poesia” (veja-se Nietzsche, por exemplo), a coisa acaba por fazer sentido. Sim, é mesmo possível sentir com a imaginação, até mesmo ao nível físico, quanto mais ao nível poético.

MOVIOLA

Mas eu acho que o poeta se deixa ir ao sabor das suas memórias mais quentes – olha pra dentro, apesar de também ter óculos – e parte em quinta para o céu azul da sua fantasia. É o que lhe resta e tem de o aproveitar o melhor que sabe e que pode. Só assim não vive em permanente sobressalto. Mas que, no princípio, estremeceu, lá isso é verdade. E não foi só o verbo. Furon le cose, como gostava de dizer o Galileu. Que a musa o visitou, é verdade. Que, depois, passou a ser visitado pelos fantasmas, também é verdade.  E que sente vontade de levitar, depois da perda sofrida, disso não resta qualquer dúvida. É poderosa a memória quente dos afectos. E funciona como a moviola: o poeta põe-se a ver o filme da sua vida e começa a sentir com a imaginação, mas com a mediação do olhar interior. Como o Pessoa, afinal.  Não é bem como na pintura digital, onde há um IMac de 27 polegadas, um programa e fotografias para o início do voo. Não, aqui é tudo interior – chove-lhe na fantasia e nem sequer abre o guarda-chuva. Deixa-se molhar, lá em cima, no meio de nuvens carregadas ou mesmo quando está sentado num arco-íris a olhar cá para baixo. É neste estado que cria. Encharcado. As musas andam por lá. E os fantasmas também. Quando falo delas, das musas, quase sempre uso a palavra musa em minúscula para significar que não se trata da Erato, mas de seres reais que lhe deixaram marcas, ou até feridas, na memória. Uma? Várias? Não sei. Elas podem variar conforme as condições atmosféricas interiores na imaginação do poeta. Por isso talvez sejam várias ou, então,  uma só, mas com capacidade de se metamorfosear. Na imaginação do poeta. Sim, mas que aqui haja mesmo mistério parece não oferecer dúvidas. O mesmo que acompanha o sentimento do amor ou a vagueza da melancolia. Uma intensa neblina que quase não deixa ver um palmo à frente do nariz. Mas, sim, há sempre boas relações com a musa (ou com as musas), sobretudo porque elas estão ancoradas no silêncio. E o poeta não é precisamente o intérprete privilegiado dos ecos do silêncio?

O POETA É FELIZ?

Muitas vezes tenho dito que a poesia funciona como o divã dos psicanalistas, embora, claro, exiba uma beleza que aquele (e aquela, divã e psicanálise) não tem. Falo, por exemplo, da livre associação ou da interpretação dos sonhos. Por isso, o Pessoa não precisava da psicanálise para nada. Tinha poesia onde se deitar. Nem sequer o Bernardo Soares que, não se ajeitando com a poesia, tinha lá em casa os irmãos poetas que lhe davam o que ele dizia não ter. Uma casa cheia de palavras, de sonhos e de livres associações. Por isso, eu não acho que ele, o Pessoa, fosse infeliz. Creio mesmo que era mais feliz do que os outros. Quem, como ele, conseguia ser (sem sair de si ou, então, saindo de si para outro lugar em si) tantas e tão belas “Pessoas” ao mesmo tempo? Uma felicidade a que poucos podem aceder. Pelo contrário, a felicidade mais fácil é simplesmente curta e circular, redonda. A outra, a dele, é uma felicidade em espiral e sem fim. Lembram-se do que o Bernardo Soares dizia do sonho? O que no sonho há de mais reles é que todos o têm, que todos sonham. Mas os sonhos dele eram muito diferentes. Eram sonhos de poeta feitos de palavras. Musas e fantasmas reais? Sim. Vivem na alma do poeta e é por isso que ele lhes pode dar vida cá fora, com palavras. E a felicidade aumenta quando se espalham por quem delas pode fruir.

PRESSENTIMENTO

A musa faz parte integrante da identidade do poeta, que nasceu com ela e com ela vai continuar. Tinha razão o T. S. Eliot. Claro, depois surgem os fantasmas. Isso é inevitável num mundo de relações tão delicadas. Surge sempre um fantasma que ameaça perturbar as relações entre o poeta e a musa. Mas isso, sendo disruptivo, faz, por isso mesmo, parte do processo criativo. Haverá sempre um fantasma que quer beber os beijos que o poeta envia à silenciosa musa. E às vezes consegue. Consegue roubar os beijos. Paciência, diz o poeta. É roubo legítimo, reconhece o poeta, porque sabe que os fantasmas se alimentam de beijos ao longo do trajecto que percorrem para chegarem às musas. Por isso tem de continuar, pois nunca sabe se os beijos, levados pelo vento que passa, chegam à casa da musa. Bem sei que os ecos ressoam na alma do poeta e, por isso, ele consegue pressentir o que aconteceu. Mas não passa de pressentimento.

SENHORES DO TEMPO

Li recentemente uma entrevista de Francis Ford Coppola no jornal francês “Libération” sobre o seu novo filme “Megalopolis”, onde dizia que os artistas são os senhores do tempo e que até o conseguem parar. Acho que ele tem razão porque a arte, e, portanto, também a poesia, consegue modelar o tempo, trazer o passado ao presente e até projectá-lo no futuro, levar o futuro ao passado e até tornar o presente um absoluto temporal. A arte é a senhora do tempo. E até admito que o próprio tempo seja o grande cúmplice da arte porque não só preserva o que a ela interessa, mas também a preserva a ela própria. O tempo escultor respeita a arte porque ela tem o poder de viajar nele livremente em qualquer uma das suas três dimensões. A arte liberta o espírito (do tempo cronológico) e cura as maleitas da alma. E o amor é uma delas (dizia o Stendhal e também o Novalis: “Liebe ist durchaus Krankheit”). E a poesia cura, cantando-as. “A poesia é a grande arte da construção da saúde transcendental. O poeta é, portanto, o médico transcendental” – isto dizia-o Novalis. Depois, a pintura, quando associada à poesia, dá-lhe maior realismo, beleza e até eficácia sensorial, para não dizer curativa.

POETAR

Poetar é voar mais alto, não ficar preso às exigências da rotina, ao circunstancial, à contingência, tantas vezes aos impulsos momentâneos, ruídos que nada têm a ver com o essencial. A vida é o que é. E deixa marcas profundas. O que o poeta tem de fazer é mesmo elevar-se sobre elas, sem fugir, mas metabolizando-as com arte e como arte. Aconteceram? Então, cantêmo-las. É isso a liberdade. É o que eu procuro fazer quando mergulho poeticamente. Cantar o que aconteceu. E propor o canto como forma superior de vida. Chega um momento em que podemos fazê-lo e, então, é pôr mãos à obra. Com alegria, com prazer e com elevação: a poesia é “Erhebung des Menschen ueber sich selbst” (Novalis). A poesia é elevação. Nela, o poeta supera-se.

VOAR

Voar é a palavra, quando se fala de poesia. Então tinha mesmo de ser o quadro intitulado “Voar” a ilustrar o poema com o mesmo título. A poesia é voo. É liberdade. Mas com ela, no voo, levamos também a nossa vida, os tropeções, o que perdemos ou nunca encontrámos, o que ficou registado e sublinhado na memória, quase sempre como ferida. Não é, pois, fuga, mas metabolização através da verbalização em pauta melódica e rítmica. É levitação, retira peso à existência. E só por isso se pode traduzir pela palavra “voar”. As palavras são as asas que sustentam o voo do poeta, mas a pintura, quando o processo é sinestésico, pode materializar melhor a metabolização. Palavras com cor e com movimento visível, maior poder sensorial. Palavras, música, cor, movimento. Está lá tudo e tudo é real. Assim, a performatividade da poesia é ainda maior. É por isso que eu procuro sempre a sinestesia perfeita. O poema é uma acção. Um acto pleno.

CRISTALIZAÇÃO

 Os meus poemas contam sempre uma história, não tanto como narrativa, mas mais como “grito” de alma. Lamento espiritual. Cifrado desabafo. Não se trata, pois, de artifício literário, embora, como é natural, haja sempre um duro e difícil trabalho estilístico. O poema sai da alma. E, como se sabe, e o disse também Novalis, “der Geist entsteht aus der Seele – Er ist die kristallizierte Seele”. Na poesia podemos encontrar a alma cristalizada, sob a forma de espírito materializado em pauta verbal e melódica, a dimensão apolínea da poesia. O Stendhal dizia coisa parecida do amor ao falar de “cristallisation”. E no poema cada palavra deve simultaneamente corresponder à exigências da semântica, mas também às da melodia e do ritmo, da toada, dando unidade e autenticidade ao poema. É esta conjunção entre a alma e o espírito que permite evitar a artificialidade. A “cristalização” nunca pode ser artificial. Não era por acaso que Nietzsche via a superioridade da tragédia grega na harmonia entre e “espírito dionisíaco” e o “espírito apolíneo”.

CANSAÇO

As palavras do poeta, às vezes, parecem cansadas, mas mais por terem sempre de estar a interpretar os ecos do silêncio da musa do que por serem convocadas para se perfilarem na pauta melódica e rítmica da poesia. Disso elas gostam. Gostam mesmo muito. Mas, como se sabe, até o poeta tem de lutar contra um certo cansaço, que não é poético, mas prévio, talvez precocemente melancólico, na fase da tristeza. Isto de ter sempre de subir (e descer, para logo voltar a subir) ao Parnaso com as palavras às costas para se libertar do peso remoto da memória também cansa. Mas ele é como Sísifo, os deuses assim determinaram e tem mesmo de ser… a caminho da doce melancolia. Nunca ele ousará desafiar a ira dos deuses… e talvez também a da musa. Mas, no fim, a recompensa enche-o de felicidade e dá-lhe forças para continuar o seu canto. E assim continuará a ser.

MISTÉRIO

Há sempre mistério na poesia. O poeta nunca diz tudo mesmo que diga demais. O simples facto de ser poesia induz esse sentimento de discurso velado. Depois há um intervalo entre o ser do poeta e o do sujeito poético e é nesse intervalo que se situa o discurso poético. Há um fragmento do Novalis que alude a uma relação próxima desta: “o lugar da alma está no ponto onde o mundo interior e o mundo exterior se tocam”. A poesia é primordialmente coisa da alma e reside na intersecção da vida interior com o mundo, o lugar da alma. E é também por isso que, na poesia, a paz coexiste com a inquietação – é essa coexistência que torna bela, mas também dinâmica, a poesia.

LAURA

À pergunta de uma Amiga sobre se a minha musa era a Laura do Petrarca respondi negativamente, mas deixando uma pista que pode ligar o poeta à amada de Petrarca. Respondi que tenho, sim, uma velha amiga italiana que se chama Laura e vive em Florença, mas que é de Veroli. E que não é ela, a musa. Que é somente uma querida amiga, e há muitos anos. O nome Laura vem do latim Laurus (Loureiro), o arbusto de Apolo, o saber e a glória. Teria podido, então, perguntar: é desta Laura que se trata? Eu responderia: talvez. O Olimpo, o Parnaso, Apolo, o louro, o saber e a glória dos vencedores. Neste caso, o poeta vence o quê? O poeta não vence nada. Limita-se a fazer da fraqueza força, ajudado por Apolo, isso sim. É daqui, desta ascensão ao Monte, que o poeta recebe o louro. O Petrarca amou Laura até ao fim dos seus, dele, dias. Mesmo quando ela já tinha partido, provavelmente em 1348. É este o destino dos poetas. Amar para além das contingências do tempo vivido. A seta atinge-os lá no centro e a ferida fica para sempre, mesmo quando o arco fica menos tenso, como Petrarca diz no poema que transcrevo. Laura, Beatrice? Talvez mais Laura. Até pelo nome e pela proximidade a Apolo e ao arbusto sagrado. Melancolia? Sim, não há poesia sem melancolia. Aqui deixo o soneto de Petrarca sobre Laura (século XIV):

“Erano i capei d’oro a l’aura sparsi
che ’n mille dolci nodi gli avolgea,
e ’l vago lume oltra misura ardea
di quei begli occhi, ch’or ne son sì scarsi;
// e ’l viso di pietosi color’ farsi,
non so se vero o falso, mi parea:
i’ che l’esca amorosa al petto avea,
qual meraviglia se di sùbito arsi?
// Non era l’andar suo cosa mortale,
ma d’angelica forma; e le parole
sonavan altro, che pur voce humana.
// Uno spirto celeste, un vivo sole
fu quel ch’i’ vidi: e se non fosse or tale,
piagha per allentar d’arco non sana.”

Também neste poema encontramos uma combinação entre um amor eterno (a Laura, identificada aqui, por alusão, como vento, l’aura), a beleza angélica e intemporal da amada que o recusou (era casada desde os 15 anos), os ingredientes que fazem deste poema de Petrarca uma poema profundamente melancólico – o amor eterno perante a beleza de Laura, mas, infelizmente, inacessível ao Poeta amoroso: um  sol resplandecente foi o que eu vi: e mesmo que já não fosse como era, a ferida não se curaria mesmo que o arco (de Cupido, entenda-se) já estivesse menos tenso. A poesia a projectar o amor impossível numa doce e eterna melancolia (o poema terá sido escrito, julgo, durante a vida de Laura).

PALAVRAS

As palavras regressam sempre ao poeta que as diz. Gosto desta ideia de regresso das palavras. Mas não é boomerang. E não é só o seu eco que regressa. O sentido que, combinadas, delas resulta. Também é, mas não só. São elas mesmas, inteiras, porque o poeta precisa delas intactas, cheias de sentido próprio. Cada palavra é um mundo. Um poeta sem palavras, sem as suas palavras, seria como uma borboleta sem pólen. Ou, pior, sem pólen e sem asas. Sem elas ficaria aninhado num silêncio mudo e sofrido, incapaz sequer de emitir sinais. Paralisado. Falo, claro, de palavras com densidade, não das que compõem a tagarelice ou os jogos florais, o mero “divertissement”, ou de palavras que são pura arma de arremesso. Palavras há muitas, pois há, mas as palavras do poeta são de uma natureza especial. Glosando Novalis, diria que as palavras (como a linguagem, e como ele refere) do poeta são instrumentos musicais das ideias. Mas eu acrescentaria: sobretudo do sentimento. A poesia também é música e só isso (mas há mais, muito mais) faria a diferença. A poesia é o habitat natural das palavras. Nenhuma acção as valoriza tanto como o acto poético, onde uma palavra pode valer mais do que mil imagens. E são pautas musicais. E é com elas que o poeta beija. É com elas que age, que ama, que pinta, que sonha, que viaja, que canta e que se entrega ao mundo de forma desinteressada, sem pedir retorno. É com elas que se desnuda. Sim, mas é um striptease com véu translúcido espesso. Neblina que requer imaginação para se ver o que está para além dela. Murmúrios, estados de alma – tudo o que faz de nós seres humanos. A nossa identidade, como membros do género humano, algo para além da condição de membros da espécie, é-nos dada pelas palavras em acção. São elas que permitem o processo de espiritualização e até o acesso ao silêncio, ao eco do silêncio São veículos com propulsão anímica (são suspiros da alma) e ultraligeiros, capazes de viajar no tempo, para o passado e para o futuro. As palavras têm vida própria, mas precisam de quem as conduza. Do poeta, sobretudo do poeta. As palavras gostam da poesia e o poeta gosta das palavras.

FINGIMENTO

Na verdade, o chamado fingimento poético decorre das próprias características do discurso poético, que é cifrado, que obedece a critérios estéticos (e só isso o obrigaria a descolar do referente, por mais belo que ele fosse) e à exigência de musicalidade (toada, ritmo, leveza), ao uso de figuras de estilo. Numa palavra, o fingimento poético não é verdadeiramente fingimento e muito menos mentira. A poesia é livre e a sua liberdade reside na sua procura do belo e da universalidade, sem anular a dimensão subjectiva, sensível.  O dizer poético nunca é linear, é mais do que o eventual referente, responde a exigências estéticas e usa uma linguagem cifrada (com figuras de estilo e rupturas na lógica convencional). Foi por isso que o outro disse, na Autopsicografia, que o poeta é um fingidor. E fingir, no sentido em que o disse, não é, como se sabe, mentir, porque pode somente significar de forma não denotativa, aludir veladamente, não revelar explicitamente. “Palavras que o vento não leva”, disse um leitor. Gosto disto. Umas vão e outras ficam. E pode até dar-se o caso de que precise delas para responder a outra musa com outros tons e outras cores, volúvel como é. Mas a verdade é que algumas ficam resguardadas porque o poeta nunca se esgota num poema, embora tente sempre atingir o absoluto. Mas são tantas e tão densas, essas palavras, que nem todas vão com o vento. Ficam também como garantia segura das que vão com o vento. Uma espécie de apólice. Ou barras de ouro que garantem o valor das que vão ser trocadas por sentimentos. Como o dinheiro, embora mais preciosas. É inesgotável a fonte discursiva do poeta, apesar de, em cada acção poética que pratica, ele agir como se essa seja sempre a derradeira acção da sua vida. Procura sempre o absoluto… que nunca atinge. Se atingisse, ficava por lá. Felizmente que há palavras para todos os seus gostos. A poesia é um tónico vital feito de palavras.

NOTA

* O asterisco sinaliza a obra Fragmentos de Novalis, Porto, Assírio & Alvim, 2024, 3.ª edição. Edição bilingue, alemão-português, com selecção e tradução de Rui Chaves. Foi desta obra que retirei as citações e as referências a Novalis – Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (1772-1801). JAS@09-2024

ReflexosPublicadoRec

Poesia-Pintura

VOAR

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração - “Voar”, JAS 2023
Original de minha autoria
Setembro de 2024
VoarFinal

“Voar”. JAS 2023 (71×88, papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em moldura de madeira).

POEMA – “VOAR”

EU CANTO E PINTO 
Tudo o que sinto,
Sonhos velados,
O meu destino,
Versos e cores,
Os meus brocados,
É poesia,
É desatino,
Vivo na vida 
Meus sonhos 
Cantados.

É ASSIM, 
É a vida,
É um lugar
 De partida,
É viagem,
Nada mais...
.............
E quando parto
Lá pra cima,
Azul do céu,
É festa rija
Lá no meu cais.

VOU COM AS AVES
Voo pra longe
E com mais cor
Porque no céu
Há mais azul
E nos meus sonhos
A vida
Tem mais sabor.

POR ISSO VOO
Sempre mais alto,
Trepo nas cores
Pra lá chegar,
O vento 
Dá-me alento
Para voar...
............
E lá em cima,
Junto das nuvens,
Os meus segredos
Posso guardar.

POR ISSO
Eu canto,
Por isso subo
Lá para o alto,
Nada mais vejo,
Nada mais ouço
E assim não vivo
Em sobressalto.

LEVO PALAVRAS
E levo cores,
Levo tudo
Do mesmo jeito
E logo sinto,
Azul e leve,
Ar rarefeito
E menos peso
Na minha alma
E menos frio
Cá no meu peito.

CHAMO A MUSA
Pra ir comigo
E dou-lhe asas
Para voar
No infinito
Do céu azul...
.............
E liberdade
Para sonhar.

VOO COM ELA
Sem um destino
Na imensidão...
................
E lá bem alto,
Já de mãos dadas,
Voamos juntos
Ao ritmo certo
E bem marcado
Da emoção.

VoarFinalRec

Artigo

O ESPAÇO PÚBLICO E A LEGITIMIDADE DO PODER

O Espaço Digital

Por João de Almeida Santos

Ballot box

S/Título”. JAS. 09-2024

NUMA CURTA ENTREVISTA ao novo caderno do “Expresso”, “Ideias” (13.09.2024), a autora do famoso livro sobre o chamado capitalismo da vigilância, Shoshana Zuboff, diz, textualmente, que a) “nossa praça pública já não o é, é uma praça privada, é propriedade”; e que b) “a privacidade, como existia no ano 2000, já não existe, é uma espécie de palavra zombie”. Espaço público e privacidade, dois conceitos decisivos para identificar a civilização ocidental e da democracia representativa que parece estarem hoje em causa. Estranho, não é? Avança o privado e acaba a privacidade? Mais parece um oxímoro. Mas não é. Vejamos.

1.

A autora, filósofa de Harvard, faz estas afirmações no quadro da tese central do seu livro: a da desmontagem do modo de produção, existente à escala planetária, do capitalismo da vigilância, promovido pelas grandes plataformas digitais, ou seja, a transformação dos utilizadores em matéria-prima para a determinação preditiva de comportamentos futuros e ulterior venda aos grandes clientes, entre os quais podem estar precisamente as grandes organizações políticas (A Era do Capitalismo da Vigilância, Lisboa, Relógio d’Água, 2020). Utilizadores que, de clientes, acabaram por se tornar matéria-prima para modelar e vender como produtos preditivos de comportamento futuro aos novos clientes das plataformas. Uma viragem de cento e oitenta graus e uma profunda alteração do seu primeiro modelo, o que tinha os utilizadores como clientes primários.

2.

Ela não se refere, nesta entrevista, ao espaço público mediático, mas essencialmente ao espaço digital, ao das grandes plataformas digitais, sendo, todavia, evidente que mesmo o espaço público mediático se pode considerar, em certa medida, privado, pois o acesso a ele é gerido pelos famosos gatekeepers, os seus guardiões, e carece de autorização quer para nele intervir quer para a ele aceder (mediante pagamento ou contrapartidas publicitárias ou até também orçamentais, no caso das televisões em canal aberto, quando públicas). Sobretudo depois da privatização generalizada dos meios de comunicação. Sim, mas aqui, com o espaço digital, essa dimensão privada é alargada, aprofundada e reconfigurada pelas razões que passo a expor.

3.

Se o primeiro era um espaço de mass communication aberto, embora sob as condições acima referidas, onde o emissor estava claramente identificado e regulado por lei e por códigos éticos (as clássicas plataformas: imprensa, rádio, televisão) e onde os conteúdos eram produzidos sob o seu directo controlo e difundidos uniformemente, o segundo, ou seja, o espaço digital, não obedece a estas características. Em primeiro lugar, trata-se somente de infraestruturas abertas de acesso livre quer para a produção de conteúdos quer para obtenção de informação; em segundo lugar, já não se trata de mass communication, mas sim de mass self-communication (Castells), comunicação individualizada de massas (o conceito de massas é aqui transformado em multiplicidade de indivíduos singularmente considerados e não massa homogénea, mesmo quando seja classificada por targets) num espaço aberto onde se regista uma participação (navegação) bidireccional activa e individualizada (o utilizador como livre produtor e livre receptor, o já famoso prosumer); em terceiro lugar, e no seu mais recente desenvolvimento, a relação entre as plataformas digitais e os utilizadores está a ser, como vimos, sujeita a um processo de pré-determinação dos seus perfis para futura devolução individual de conteúdos devidamente formatados e tipificados, tendo como objectivo a sedução, por identificação com as próprias idiossincrasias, dos utilizadores. Uma função de natureza especular. Neste processo, verifica-se como que uma relação contratual tácita entre as plataformas e os utilizadores (a plataformas oferecem o serviço e os fruidores autorização para uso dos seus dados pessoais), numa espécie de constituency que vê como protagonistas as plataformas e os utilizadores individuais, num processo paralelo ou lateral ao espaço público político normativamente regulado pelo Estado. Uma terceira constituency, portanto: um imenso espaço privado onde acontece o processo informal, e pilotado, de conquista do consenso, com base numa lógica de contrato privado. É esta a diferença fundamental e é neste sentido que se pode dizer que estamos perante um gigantesco espaço privado subliminar que funciona como um ilimitado território de conquista do consenso para, neste caso, fins directamente políticos. Ou seja, as plataformas digitais são sucedâneos muito mais sofisticados e radicais das clássicas plataformas de comunicação: mass self-communication. Um aprofundamento da lógica que já se insinuava no velho espaço público, sobretudo a partir do momento em que, como disse, se deu a privatização generalizada dos meios de comunicação. A diferença abissal é a que vai do marketing clássico (concebido para os media e os respectivos consumidores) ao marketing 4.0, concebido para o universo digital (Kotler).

4.

Daqui, mas não só, decorre uma intervenção fortemente intrusiva na privacidade, pois para determinar preditivamente os comportamentos é necessário traçar os perfis dos utilizadores, o que é feito pelas plataformas e pelos algoritmos: toda a sua actividade na rede é estudada, seleccionada e desenhada para efeitos de previsão dos seus comportamentos futuros. Se a isso juntarmos a informação registada por todos os dispositivos usados na rede (e autorizada explicitamente pelos utilizadores) e geridos pelas plataformas (por exemplo, pela Google), é, sim, possível dizer que a ideia de privacidade já é pura ficção. Ou seja, que a “soberania digital” do utilizador desapareceu.

5.

Shoshana Zuboff apela a uma intervenção dos poderes públicos para repor o espaço público no seu devido lugar, mas, a verificar-se o que já acontece com as plataformas tradicionais – o crescente uso e abuso de um tabloidismo desbragado e o uso instrumental da informação -, há muito pouco a esperar, ainda que já tenha havido iniciativas positivas como, por exemplo, o código assinado entre a Comissão Europeia e as maiores plataformas, Facebook, Google, Twitter e Youtube, por ocasião das europeias em 2019, com resultados muito significativos e interessantes (tratou-se de apagar a desinformação circulante). Mas, na verdade, será deveras preocupante se os senhores das plataformas, Mark Zuckerberg, Sundar Pichai ou Pavel Durov, por exemplo, seguirem o exemplo do senhor Elon Musk e desatarem a promover, ajudados pelos famosos “engenheiros do caos” (Da Empoli) ou spin doctors 4.0, as campanhas dos populistas de direita ou mesmo dos ditadores, intervindo maciçamente, e de forma subliminar, nos processos eleitorais, quer de forma activa e directa quer de forma indirecta, por exemplo, orientando arbitrariamente o processo de difusão e reprodução das mensagens nas redes sociais e condicionando fortemente os cidadãos não só nos processos eleitorais, mas também ao longo do tempo não eleitoral (permanent campaigning). Quando Shoshana Zuboff fala de privatização da praça pública é a este território digital que se está a referir. De resto, este território também já absorveu as tradicionais plataformas, pelo que é possível identificar quase todo o espaço público com o espaço digital e constatar que, sim, já se trata mais de espaço privado do que de espaço público, quer no plano da gestão quer no plano do acesso. É de um espaço intermédio que estou a falar, o que se localiza entre a cidadania e o poder político. Um espaço que deveria conter as duas características de espaço público e de espaço privado, uma conjunção indissociável entre o público e o privado naqueles processos que  são funcionais à construção do autogoverno dos povos. Ora se este espaço for subtraído à esfera pública e ficar totalmente sob a alçada dos poderes privados e da correspondente lógica contratual (alheia ao dispositivo político previsto constitucionalmente, sendo precisamente por isso que hoje já se fala da necessidade de um constitucionalismo digital) a política democrática sofrerá consequentemente danos irreversíveis (com o Estado a ser transformado em pura longa manus do poder privado). É claro que também a faixa privada deste vasto espaço intermédio não pode ser anulada sob pena de a política sofrer danos opostos, mas igualmente danosos: a subordinação integral da sociedade civil ao Estado. Por exemplo, nas ditaduras. A verdade é que este espaço intermédio se estende entre o território privado e o território público na medida em que é nele que se estabelece a ligação interactiva entre um e outro, entre o privado e o público, entre o indivÍduo singular e o Estado. Os partidos políticos são claros exemplos desta dupla natureza (e é considerado desvio quando eles se entregam nos braços do Estado, apagando a sua natureza civil). E é precisamente neste território que acontece a luta pelo consenso, com regras específicas e de forma transparente, procedimentos rigorosos, definidos pelo Estado e aceites pelos competidores, numa dialéctica que deverá decorrer à luz do dia e que deve garantir condições equitativas para todos. Um processo que não pode, pois, ser integralmente capturado pelas plataformas e gerido de acordo com a lógica contratual puramente privada.

6.

Nada disto seria assim se as plataformas digitais tivessem mantido a sua original vocação como tecnologias de libertação e não estivessem a enveredar pela construção de um mundo paralelo cada vez mais pilotado, não só pelo que Zuboff refere no livro “O Capitalismo da Vigilância”, mas agora também pela intervenção despudorada nos processos políticos nacionais (como já o tinham sido no Brexit e na eleição de Trump, por Steve Bannon e pela Cambridge Analytica e com dados fornecidos pelo Facebook), como está a acontecer com o senhor Elon Musk e a promoção descarada de Donald Trump (mas, diz ele, em nome da liberdade de expressão), como parece ter já também acontecido, mas agora de forma mais disfarçada, com Zuckerberg (ao referir, dirigindo-se aos republicanos, em plena campanha para as presidenciais, que a administração Biden/Harris o pressionou insistentemente em relação ao COVID 19), aparentemente a favor de Trump, ou como pode também acontecer com o senhor Pavel Durov, da Telegram (embora não se conheça directas razões de natureza política, mas somente de natureza criminal, para a sua detenção em França).

7.

No meu livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024) discorro abundantemente sobre aquilo que designo por uma terceira constituency, a das plataformas digitais, depois da do cidadão contribuinte e da das plataformas financeiras internacionais (referidas no excelente livro de Wolfgang Streeck, Tempo Comprado, Coimbra, Actual, 2013) que financiam as dívidas públicas e impõem autênticos programas de governo (veja-se o caso de Portugal, da Grécia e da Irlanda). Se for verdade que já estamos perante uma privatização ou apropriação privada do espaço público pelas plataformas digitais, mas também, afinal, pelas plataformas tradicionais de comunicação, embora em menor grau (o gatekeeping e o pagamento para o acesso), o que acontece é que o conhecimento focado dos perfis dos eleitores, conseguido pelo estudo das suas preferências no uso das plataformas, numa injunção inaceitável sobre as suas vidas na rede, permite um forte condicionamento em larga escala do seu próprio comportamento eleitoral, designadamente através da determinação preditiva dos comportamentos eleitorais futuros e daquele que hoje já é designado como marketing 4.0 (que se segue ao estudo dos comportamentos na rede e à determinação dos perfis, para posterior devolução em pacotes informativos que contêm as suas preferências) e que até integra processos de participação voluntária dos utilizadores na relação comunicacional. Por aqui podem correr os processos eleitorais e a construção da opinião pública, deslocando a formação da opinião política para este espaço privado e deixando na superfície apenas o processo formal de decisão eleitoral, como mera confirmação do que subliminarmente e substancialmente foi entretanto conseguido. Assim, é esta constituency, a terceira, que importa evidenciar aqui. Uma constituency sem território, sem fronteiras, sem promotores visíveis e reconhecidos formalmente, sem accountability, sem procedimentos pública e institucionalmente vinculantes, mas com impacto directo e profundo nos processos eleitorais e de formação do consenso. Espaço público totalmente privatizado e a “privacidade” usada como mera matéria-prima para a construção de estereótipos focados (individualizados) com vista à conquista e à manutenção do poder.

8.

Radicalizando um pouco, o que se verificará é que a democracia representativa se encontrará, assim, esvaziada de conteúdo, de sentido e, pior, de transparência na imputação das responsabilidades aos detentores formais do poder e da representação, decorrendo o essencial da formação do consenso numa vastíssima e influente  zona de sombra. Tudo passaria ao lado dos procedimentos formais da democracia representativa, que se limitariam a ser um mero simulacro de processo democrático.

9.

Na verdade, eu não me incluo na fileira dos novos apocalípticos e tenho vindo, frequentemente, a sublinhar os aspectos positivos das plataformas digitais, sobretudo na sua primeira fase de implantação. Mas tenho bem consciência dos perigos que espreitam e que podem desvirtuar o essencial do processo democrático, transformando-o em pura ficção, em puro simulacro. É aqui que deve entrar o poder político legítimo para reconduzir as plataformas à sua essencial função original, desenvolvendo um constitucionalismo digital e negociando, neste quadro, com aquelas a sua própria esfera de acção e de intervenção, em particular, na política, não usando prevalecentemente os instrumentos coercivos ou punitivos (excesso de leis, “gold plating” e 270 “regulators active in digital networks across all Member States”) de que os Estados ou a União Europeia dispõem, e até atendendo a que não é possível regredir para uma fase pré-digital. Por exemplo, no recentíssimo Relatório Draghi, acima citado, fala-se de iniciativas da União para garantir “sovereign cloud” – não só através da promoção de uma “cloud industry” própria, mas também através de uma cooperação com “fornecedores de cloud UE e extra-UE” (“The future of european competitiveness”, CE/EU, 09.2024, parte A, p. 30). Um só dado a este respeito, citado no Relatório: o maior operador cloud europeu só dispõe de 2% de quota de mercado na EU. A União Europeia não possui uma plataforma digital (como, de resto, nem sequer possui uma agência de rating), mas este seria um importante instrumento que ajudaria a promover uma melhor regulação do universo digital, interna e externa (o Relatório refere a necessidade de criar um “digital transatlantic marketplace”). De resto, o Relatório Draghi insiste muito na promoção do investimento no digital e em IA e na criação de, neste sector, uma economia de escala europeia (pondo fim à excessiva fragmentação existente), maior financiamento e de natureza comunitária, redução da carga administrativa e normativa, maior investimento público, para melhor enfrentar o futuro, desde a protecção da soberania digital europeia à sua competitividade no mercado global.

10.

Parecendo ser complexa esta situação, ela é, afinal, muito simples. O cidadão, claro, decide na sua esfera privada quem o deve governar. É a esfera da sociedade civil. Sem dúvida. Mas esta decisão deve acontecer à luz do dia, num sistema devidamente regulado pelo Estado, e não num imenso subterrâneo de manipulação científica das consciências, sem qualquer accountability ou imputabilidade das mensagens enviadas para orientação directa ou indirecta dos eleitores. O espaço público político tem, de facto, duas dimensões, uma pública e outra privada. Por exemplo, os partidos políticos, sendo organizações privadas, são constitucionalmente reconhecidos de interesse público, sendo-lhes inclusivamente reconhecida, entre outras importantes prerrogativas, a exclusividade de propositura nas candidaturas à representação política nacional. É disto que se trata. Não aceitando o radicalismo da análise de Shoshana Zuboff, reconheço a pertinência da sua análise neste livro, tal como me acontecera em relação a Naomi Klein e à perspectiva desenvolvida no seu excelente livro No Logo, considerado a bíblia dos movimentos anti-globalização. Um livro talvez mais partilhável do que o de Shoshana Zuboff ou do que a filosofia implícita no célebre documentário da NETFLIX sobre as redes sociais, em que ela própria participou. Nem apocalípticos, mas também não integrados – entre uns e outros é possível desenvolver uma lógica crítica, mas de bom senso, realista e pragmática.

11.

Posto isto, julgo que seria altura de os partidos políticos democráticos de centro-esquerda ou de centro-direita se debruçarem sobre estas questões em vez de continuarem a fazer política como se nada, entretanto, tivesse acontecido, queixando-se, apenas, do perigo do populismo emergente, sem se interrogarem sobre o grau de responsabilidade que lhes cabe e sobre as razões do seu aparente falhanço. JAS@09-2024

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