Desconhecida's avatar

Sobre joaodealmeidasantos1

Professor universitário, escritor, poeta, pintor. Publicou várias dezenas de livros, seus e em co-autoria, de filosofia, política, comunicação, romance, poesia, estética. Foi professor nas universidades de Coimbra, Roma "La Sapienza", Complutense de Madrid e Lusófona (Lisboa e Porto). Publica semanalmente, neste site, ensaios, artigos, poesia e pintura.

Poesia-Pintura

CONFISSÕES IMPROVÁVEIS
Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “La Peccatrice”, JAS 2023
 Original de minha autoria
Setembro de 2024
LaPeccatrice2024Pub

“La Peccatrice”, JAS 2023 – 57×88, papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, mold. madeira.

POEMA – “CONFISSÕES IMPROVÁVEIS”

RESISTO 
(Como se vê)
Ao cansaço
Indesejado
De te recriar
Aqui,
No meu Jardim,
Busca
Incessante
De palavras
E de cores
Que parece
Não ter fim...

ATÉ AS PALAVRAS
Já nada querem
Dizer,
Braços caídos,
A esvaecer...
E cores
Rasgadas
A desbotar
Em cenários
De abraços
Feridos
Para esquecer.

CANSAÇO,
Melancolia,
Também prazer,
Recriar-te com
Palavras
Em poesia
Pra não sofrer,
Desejo vivo
De sentir
A pulsação
Da tua alma
E com ela
Reviver.

MAS DE NADA VALE
Pedir sinais,
Que os manejas
Com mestria,
Talvez sageza,
Ao sabor
De teus caprichos
Venais,
Mas de inabalável
Dureza.

TALVEZ ANDES
Perdida
Com futilidades
Da vida,
Sem conhecer
O que digo,
Tão alheia
Aos meus desejos
Que até me sabe
A castigo.

NÃO FOSSEM
As cores
Reconstruídas
Do arco-íris
Que tenho
No meu jardim
A pintar o rio
Da tua vida
E talvez eu
Navegasse
Pra outra foz,
Talvez
No meu cais
De partida
Te desse
O derradeiro
 Adeus
De despedida
Do pouco 
Que ainda
Resta de nós.

SIM, MAS VERIA
Sempre a tua
Réplica,
Veria sempre
O cintilar
Dos teus sinais...
...............
E, então,
Ponho-me
A viajar
Em fantasia,
A criar imagens
Com a luz filtrada
Dos meus vitrais,
A ver pleno
Onde há vazio...
.............
E, assim, eu
Já nem sinto
Na minha alma
Aquele frio
Dos teus silêncios
Glaciais.

NarcisaRec

Artigo

A DEMOCRACIA ROUBADA?

O CASO FRANCÊS

Por João de Almeida Santos

La République2

“La République” – JAS 2024

DEPOIS DA ESCOLHA DE MICHEL BARNIER como primeiro-ministro, e não da candidata Lucie Castets, proposta pela Nova Frente Popular (NFP), Emmanuel Macron está a ser acusado pela esquerda de ter roubado a democracia em França. O raciocínio é este: sendo a NFP o bloco político de maioria relativa, saída das eleições, deveria ser ela a responsável pela formação do governo. Mas não foi e daí a acusação feita pelas forças que integram a NFP, A França Insubmissa (LFI), o Partido Socialista, os Verdes e os Comunistas. Mas não se trata só disto: irá ser proposta à Assembleia Nacional (AN), ao abrigo do art. 68 da Constituição francesa, uma resolução para a formação de uma “Haute Cour” com vista à destituição do presidente. Nada menos. Puro maximalismo, ilegítimo e inconstitucional, a evidenciar ódio político a Macron e uma perigosa irracionalidade. A estas acusações acrescem duas críticas ao Presidente: ter decidido, erradamente, ir para eleições legislativas a seguir às europeias e, depois, ter levado cerca de dois meses para indicar um novo primeiro-ministro, como se não fosse mais do que habitual a formação de governos saídos de eleições levar o mesmo tempo ou muito mais (aconteceu recentemente entre nós, como tem vindo a acontecer em Itália desde o pós-guerra e como aconteceu nos países baixos – a formação do último governo levou cerca de sete meses desde as eleições de novembro de 2023). E esta situação até é facilmente explicável se atendermos à nova composição da AN saída das eleições, ou seja, fragmentada em três grandes blocos. Mas a verdade é que o caso francês é tão interessante e elucidativo que vale a pena clarificar o que esteve realmente em causa, para evitar juízos apressados como os que circulam em abundância por aí. E, em particular, na área do centro esquerda. É o que me proponho hoje fazer.

1.

As europeias realizaram-se em Junho e foram ganhas de forma muito significativa pelo Rassemblement National (RN) da senhora Marine Le Pen e do senhor Jordan Bardella. O RN obteve 31,37% e 30 eurodeputados contra 14,6% e 13 eurodeputados do bloco presidencial (“Besoin d’Europe”) ou do partido socialista (“Reveiller L’Europe”), com 13,83 % e 13 eurodeputados, não tendo a LFI sequer atingido os 10% (9,89% e 9 eurodeputados). Note-se que a taxa de participação dos franceses nestas eleições foi de 51,49%, portanto, muito significativa, devendo suscitar por isso ilações políticas fortes, como, aliás, aconteceu. E note-se, também, que o sistema eleitoral é, nas europeias, proporcional.

Foi este resultado  que levou Macron a convocar eleições para que houvesse uma clarificação política, sob pena de, mantendo-se a situação política inalterada depois das europeias, a política francesa ficar inevitavelmente capturada pela sensação pública de ser o RN a força política com maior legítimidade para determinar o destino político de França, ficando consequentemente o governo francês altamente fragilizado.  E não serão os resultados verificados nas legislativas a servir de grelha analítica para avaliar da bondade da decisão de Macron, até porque a primeira volta os confirmou, embora com valores muito mais aproximados. Mas não é necessário frequentar a Sorbonne para perceber que os resultados avassaladores das europeias teriam efeitos políticos disruptivos sobre a evolução da opinião pública e, consequentemente, sobre a política francesa. Efeitos claramente favoráveis ao RN, dada a dimensão da vitória eleitoral. Um resultado tão expressivo como este justificaria, por isso, perguntar aos franceses se confirmavam esta orientação eleitoral em eleições legislativas, mostrando o devido respeito pela cidadania. Por isso, na minha opinião, Macron fez o que devia, tendo esta tendência sido confirmada na primeira volta das legislativas, com o RN a ser de novo o partido mais votado, mas com valores muito inferiores aos registados nas europeias. Um primeiro passo, pois, para relativizar a força eleitoral do RN. Na minha opinião o que Macron fez foi exactamente recusar-se a meter a cabeça na areia para não ver o gigante político que se estava a aproximar cada vez mais do centro do poder.

2.

Com efeito, o RN venceu as eleições na primeira volta, contra as duas coligações União de Esquerda e Ensemble, obtendo 29,28% e 37 mandatos contra 27,99% e 32 mandatos, da primeira, e 20,04% e dois mandatos, da segunda. Não é por acaso que o RN se está a bater por uma alteração do sistema eleitoral com a introdução de um sistema proporcional. Lembro que o sistema eleitoral é, nestas eleições, maioritário em duas voltas. O partido de Marine Le Pen e de Bardella mantém-se, pois, como o maior partido francês e só a natureza do sistema eleitoral francês o viria a impedir de voltar, pela terceira vez, a ganhar eleições. Por isso, não creio que fosse sério continuar, depois das europeias e do nível de participação que tiveram, como se nada tivesse acontecido em Junho. E foi por isso que Macron decidiu, e bem, dar a palavra aos franceses.

3.

Só na segunda volta das legislativas o RN seria remetido para a terceira posição em número de deputados, fruto de uma aliança entre a NFP e o Ensemble que determinava que só os candidatos que estivessem em condições de derrotar os candidatos do RN se apresentariam a eleições. E assim foi, embora este partido (e a fracção dos Republicanos do senhor Ciotti, aliada ao RN) tenha sido o partido que obteve mais votos: cerca de três milhões mais do que o vencedor da segunda volta, a NFP. Mas é preciso não esquecer que o RN ganhou a primeira volta das legislativas, embora não já de forma tão significativa como nas europeias. E isso tem relevância.

4.

O RN é, pois, hoje, politicamente, a força maioritária em França, apesar de ter menos deputados 142 (RN + UXD) do que o bloco de esquerda e do que o bloco de Macron (estes, respectivamente, com 193 e 166 deputados). Mas tem menos deputados porque, como disse, na segunda volta teve contra si uma aliança destes dois blocos centrada numa política de desistências a favor do candidato que estivesse em melhores condições de derrotar o seu candidato. Ou seja, a configuração parlamentar actual decorreu mais da aplicação de uma lógica negativa usada contra o RN do que dos programas que os candidatos propuseram aos eleitores ou da sua exclusiva identidade política. E é este facto incontestável (relembrado na parte final do comunicado da presidência da República) que torna mais frágil a reivindicação da NFP porque não bate certo com a política de compromisso que levou a este resultado final. Não fosse esta orientação eleitoral e o partido que ganharia as eleições teria sido provavelmente o RN (tal como aconteceu na primeira volta e nas europeias).

5.

A lógica ditaria, pois, que a mesma política de compromisso fosse aplicada na formação do governo e na constituição de uma maioria parlamentar que garantisse a estabilidade governativa, respeitando a orientação política que levou à derrota do RN. E sabe-se que o projecto de Macron era precisamente o de promover um governo que integrasse membros da NFP, do seu bloco político e dos Republicanos. Não era visto com bons olhos, ao que parece, que a LFI integrasse o novo bloco governativo, mas nem o senhor Mélenchon se importaria com isso, a crer literalmente na declaração que fez a este respeito (não considerando, pois, que foi uma declaração táctica e puramente retórica ou até mesmo um pouco cínica). Uma solução deste tipo teria uma maioria de apoio na Assembleia Nacional. Mas a verdade é que esta solução ficou imediatamente impossibilitada quando a NFP apresentou a sua candidata a Matignon publicamente e, mais, ameaçando o presidente de destituição se não a nomeasse. Esta decisão não só prescindiu do que acontecera antes, na segunda volta, e recusava o projecto de Macron, mas também o obrigou a optar, em coerência com a sua própria estratégia, por uma solução que não encontrasse resistências significativas à direita (a solução que lhe restou), passando, pois, a incluir na equação a posição do próprio RN, o mesmo que na segunda volta fora combatido quer pelo bloco do Presidente quer pela NFP. Não parece ter, pois, fundamento dizer que, no fundo, era mesmo isto que Macron queria.  Não o quis na primeira volta e voltou a não querê-lo quando esteve disposto a nomear o senhor Cazeneuve, ex-primeiro ministro de Hollande, que Faure não quis. Uma autêntica reviravolta, contrária ao espírito que norteou a segunda volta das legislativas.

6.

Não nego, naturalmente, que a NFP tivesse toda a legitimidade para, em negociações não públicas, digo, não públicas, com o Presidente vir a propor a senhora Castets como candidata a PM. Certamente. Mas também não é possível negar a legitimidade de o presidente querer uma solução mais alargada ao seu bloco político e à direita moderada. Esta diferença poderia ter sido objecto de negociações desde que não fossem públicas e não aparecessem como uma imposição da NFP a um presidente ao qual a constituição dá o poder de nomear o PM (omitindo a obrigação de ter em conta os resultados eleitorais, ao contrário do que estipula a nossa CRP) e atribui a competência de presidir ao conselho de ministros. Em poucas palavras, a iniciativa pública da NFP produziu de imediato um curto-circuito no processo negocial, apoucou a figura do presidente francês e as suas competências constitucionais, anulou o significado do processo que esteve na génese da eleição da maior parte dos seus deputados e fechou os olhos ao mais que certo ao chumbo parlamentar de um governo liderado por Lucie Castets. Em nome de quê? Que o senhor Mélenchon, com o seu radicalismo inconsequente e o exclusivo interesse presidencial que o move, pareça querer tudo isto não me admira, mas que o senhor Olivier Faure o siga espanta-me e, por isso, não lhe auguro um futuro muito interessante no próprio PSF. De facto, tenho a convicção de que Faure não irá ter vida fácil no seu próprio partido, se considerarmos que a sua posição sobre o processo (a recusa de Cazeneuve) acabou por passar no partido (no Bureau National) somente por um voto. A situação pode muito bem ser resumida pelo que disse Nicolas Mayer-Rossignol, socialista e presidente da câmara de Rouen: “À força de querer uma esquerda pura, temos  [ agora ] uma direita mais dura” (El País, 08.09.2024, p. 3).

7.

Na verdade, se Macron teve de alterar a sua estratégia, passando a depender da “condescendência” política do RN (“bienveillance” é a palavra usada por “Le Monde”, porque, segundo Marine Le Pen, este é o “mal menor” e evita a paralisia do país, embora não lhe mereça um “cheque em branco”), isso deve-se em grande parte à intransigência e à arrogância da NFP que, no processo de formação do governo, contrariou a lógica que lhe deu a maior parte dos deputados e ao mesmo tempo criou condições para que entrasse pela janela um partido que a política de aliança com o bloco de Macron fizera sair pela porta, na segunda volta. Como já se diz, o grande ganhador desta intransigência e arrogância não é Macron nem a NFP, mas sim o Rassemblement National e a senhora Marine Le Pen, a caminho das presidenciais de 2027. Veremos se as suas exigências irão, ou não, ser cumpridas para que não votem uma moção de censura ao governo Barnier: fim da discriminação do RN; resposta ao problema da imigração; debate sobre a introdução do proporcional no sistema representativo. Barnier já mostrou abertura em relação a estas exigências do RN. E uma coisa é certa: a não oposição activa do RN é condição sine qua non para a sobrevivência do governo. O RN é hoje o árbitro da política nacional e a NFP a oposição. Que efeitos terá isto nas próximas eleições presidenciais não se sabe, mas uma coisa já se sabe: deu-se início à normalização da extrema-direita em França.

8.

Uma bela lição a retirar sobretudo pelos partidos sociais-democratas ou socialistas. Sobre o que não se deve fazer.  Na verdade, o sectarismo nunca leva a bom porto, a confusão entre o adversário principal e o adversário secundário também não (sobre isso aconselho a leitura do interessante livro de Mao Tse Tung:  Da Contradição) e a falta de racionalidade em política nunca é produtiva nem benéfica. Estas três variáveis podem claramente ser aplicadas à NFP e, em particular, à LFI do senhor Mélenchon e ao PSF do senhor Olivier Faure.

Na verdade, não correm bons tempos para o centro-esquerda. Parece ser evidente a existência de uma crise generalizada e que, se não for reconhecida, não será possível encontrar as respostas necessárias, vendo-se, portanto, sujeita a um inevitável declínio.

O caso francês é muito instrutivo sobre a actual filosofia dominante do centro-esquerda, quer quando se torna maximalista quer quando cede às exigências dos neoliberais, variáveis daquela que é a tendência deletéria que, em geral, se tem vindo a verificar nesta área política. E foi esta, sim, a razão que me levou a voltar analisar, com o máximo de objectividade possível e sem “parti pris” (apesar da minha filiação neste espaço político), o caso francês. Um caso tão evidente que espero que mereça a atenção do nosso próprio centro-esquerda, em particular do PS. JAS@09-2024

Presidenciais2021Rec

Poesia-Pintura

PALAVRAS

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Fascínio”, JAS 2023
Original de minha autoria
Setembro de 2024
Fascínio09_2024_2

“Fascínio”, JAS 2023, 68×88, papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em mold. de madeira

POEMA – “PALAVRAS”

PARA QUE SERVE
O poema,
Meu amor?
“Para nada!”,
Dizes tu,
“São palavras
Que usas
Pra te sentires
Menos nu”.

MAS PALAVRAS
São como o vento
(Respondi-lhe
Com verdade),
Vão,
Voltam
E mudam
De intensidade,
Sopram forte
Ou de mansinho,
São volúveis,
Ilusão,
Vão para sul
Ou vão pra norte,
Encontram
O seu caminho,
Mas cruzam
O meu destino
Mesmo que eu diga
Que não.

SÃO INTANGÍVEIS,
São sinais,
Podem ferir
Como espada,
Às vezes,
Como silêncio,
Ou até
Um pouco mais,
Outras, pior,
Como nada,
Nem sequer
Como sinais.

AS MINHAS
Dizem sempre
O que sinto,
Parecendo
Não o dizer,
Mas, às vezes,
É proibido,
Outras simplesmente
Por não querer,
Mas se te escrevo
E até minto
(O que até bem
Pode ser)
É por ser forte
O desejo
De um dia
Eu te ter.

ESTE POEMA
Que te envio
Escrevi-o
Com o vento,
Mas nele eu
Também minto
E até o vermelho
É cinzento,
Pra esconder
Aquilo que eu
Já não sinto,
Pelo menos
No momento,
Pelo menos 
Até ver.

MAS É ESCRITA
Inocente
Que quer chegar
Ao destino,
Como o Sol
Vai a poente
Num poema
Cristalino.

SÃO PALAVRAS,
São sorrisos
E, às vezes,
 Fingimentos,
São murmúrios,
Sentimentos
Daquele que
Sempre te quer,
São o sonho
Do poeta
Quando a vida
Adormece
No rosto
De uma mulher.
Foto_Palavras2024

“S/Título”, JAS 2024

Artigo

DEZ FRAGMENTOS

SOBRE A MELANCOLIA

Por João de Almeida Santos

JAS_Melancolia3_2024

“S/Título”. JAS. 09-2024

1.

No Texto “A Filosofia da Composição”, Edgar Allan Poe diz o seguinte:

A beleza de qualquer tipo, no seu desenvolvimento supremo, invariavelmente excita a alma sensível até às lágrimas. A Melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos”.(Poética, Lisboa, FCG, 2016, 2.ª ed., p. 40).

Tem razão o poeta, a melancolia é o sentimento poético por excelência. O húmus da poesia. Aquele que tem mais afinidades com ela. Talvez pela sua ambiguidade, nebulosidade, indeterminação, vagueza, mas também pela profundidade, pela delicadeza e complexidade dos seus efeitos espirituais, mais do que anímicos, já que, como sabemos, a alma não se confunde com o espírito. É como a poesia, que nunca parece esgotar o sentido do que diz,  que procura dizer o inefável, que só alude e não descreve, que é conotativa e não denotativa, expressividade anímica em linguagem espiritual que deixa o sentido a pairar como neblina ou chuva miudinha sobre as palavras (mesmo quando o objecto de atenção do poeta parece ser concreto, definido, determinado), que molha a alma de quem escuta e que actua como estimulante sensitivo para a partilha de sentimentos e emoções. A melancolia é irmã gémea da poesia.

2.

A poesia é transfiguração e no processo criativo transforma o referente, tornando-o maior do que é, mais profundo e mais belo, como quando se extrai de um mineral o seu núcleo “aurífero”, se purifica e se transforma em jóia, em obra de arte. Italo Calvino, falando de arte e de poesia, refere-se ao cristal, “con la sua esatta sfaccettatura e la sua capacità di rifrangere la luce”, como “il modello di perfezione che ho sempre tenuto come un emblema” (Lezioni Americane, Milano, Garzanti, 1988, p. 69). Falando de Leopardi, diz que “il poeta del vago può essere solo il poeta della precisione” (1988: 61) e considera Paul Valéry como a personalidade do século XX que melhor definiu a poesia como uma tensão para a exactidão (1988: 66).  Pode parecer estranho, um oxímoro, mas a vagueza só pode ser dita com o máximo de exactidão, de precisão cirúrgica. Por exemplo, a extrema vagueza da melancolia. Demasiadas palavras ou um discurso analítico não a captam, desfiguram-na. Por isso a poesia é a linguagem apropriada para falar da melancolia. Em registo de minimalismo discursivo quase a deslizar para o silêncio. Ou, então, como eco do silêncio. O Poe falava de 100 versos, no máximo. A poesia é, pois, alquimia. E o poeta um aurífice. Do ouro informe resulta uma jóia exacta como um cristal. Tal como da melancolia um poema. Um cristal lapidado com a exactidão das palavras cinzeladas. Uma vasta superfície que se oferece à sensibilidade do poeta, a da melancolia, e da qual este extrai o núcleo aurífero para o lapidar com a exactidão das palavras escolhidas, pela sua força expressiva, pela sua musicalidade, pela sua forma.

3.

Como obra de arte, o poema não é redutível a nenhum referente porque ele dá voz a qualidades esteticamente emergentes que não existiam nele ou existiam apenas “in nuce”, em embrião, somente disponíveis, para ganharem forma, ao olhar comprometido do poeta ou do artista – “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”. Repito sempre, a propósito da criação artística, esta fórmula fabulosa da Yourcenar/Michelangelo, em “Le Temps ce grand Sculpteur”.

4.

É difícil dizer o vago sem correr o risco de o caracterizar excessivamente, acabando por negá-lo, anulá-lo, contradizê-lo. O vago vale precisamente porque é vago, porque é a sua vagueza que estimula o poeta. A poesia sente-o, o vago, e procura pintá-lo com palavras, em polissemia melódica e rítmica. A melancolia é vagueza e é leveza. É mais do que tristeza, mais do que saudade ou do que sentimento intenso e incerto de um vazio que não é possível preencher.  É mais porque atinge já o nível espiritual. É por isso que é terreno fértil para a injunção poética, para a captação exacta da vagueza de um sentimento que resiste a deixar-se capturar na forma ou pela forma. A poesia, que é a menos formal das artes, transforma a tristeza em melancolia, tal como a arte transforma o cómico em humour (Calvino) ou como o aurífice converte o ouro em jóia pronta a ser usada universalmente porque portadora de beleza incondicionada, que pode ser apreendida pelo dispositivo estético, pela sensibilidade educada de que os seres humanos dispõem. O Kant falou de dispositivo universal-subjectivo: o juízo de gosto (quando se trata do belo), não sendo movido por interesse, sendo “contemplativo”, funda a sua validade, não no objecto, mas em algo que é universal, que existe nos sujeitos do juízo estético e que se pode identificar como o livre jogo entre duas faculdades, o intelecto e a imaginação: “o juízo de gosto deve ter a pretensão de uma universalidade subjectiva” (Kant, Crítica do Juízo, I. I. I, § 6; e Della Volpe, Opere, V, Roma, Riuniti, 1973: 26-30 e 456-457). Estamos, pois, a falar de algo aparentemente contraditório, de um aparente oxímoro: a “universalidade subjectiva” que acontece no terreno do sentir, da harmonia sentida interiormente, na livre dialéctica entre faculdades que são comuns a todos os seres humanos. Não se trata, pois, num juízo estético, para o dizer em palavras mais simples, nem de representações conceptuais nem de reconhecimento de qualidades do objecto digno de atenção estética e considerado belo. Trata-se dos sentidos interiores, do sentimento, de algo que, sendo subjectivo, alcança na beleza uma dimensão universal, sim, mas sempre ancorada na imaginação e no sentimento.  Algo que não é muito difícil de entender porque deste jogo resulta uma forma que pode ser apreendida universalmente. Por isso Kant fala da intervenção do intelecto neste processo, nesta dialéctica entre faculdades. Algo, dizia, que a precisão e o minimalismo poéticos propõem eficazmente ao juízo estético, garantindo-lhe essa dupla qualidade – universal e subjectiva. A melancolia pertence a esta esfera da imaginação e do sentimento e é o terreno onde acontece a transfiguração poética, já com dimensão espiritual (correspondente à parte desempenhada pelo intelecto). Falando da sua irmã gémea, a tristeza, poderia dizer que a melancolia é um seu sofisticado upgrade. Como diz Calvino: “la melanconia è la tristezza diventata leggera”, por obra da arte. É esta leveza que a torna universal, retirando-a da esfera individual, a da tristeza, puramente subjectiva ou psicológica.  E a leveza só lhe pode ser dada eficazmente pela poesia (mas também na pintura o tentei fazer com um rosto de mulher, projectando na pintura a semântica do poema). E diria até que a “universalidade subjectiva” de que fala Kant se dá nesse intervalo, nesse “mundo intermédio”, nessa brecha entre o puramente sensível e sensorial e o universal que é o território próprio da arte. Um território que exige precisão, a que se oferece ao juízo estético, como veremos em “O Corvo”, do E. A. Poe. Só a arte pode manter este contacto ou esta fusão entre o sensível e o inteligível (na dialéctica entre a imaginação e o intelecto), nesse instante oportuno (o instante criativo) que os gregos traduziram pela palavra kairós. É isso que faz dela a mais humana das actividades. Eu creio mesmo que a autêntica arte é necessariamente alquímica. E é nesse movimento em direcção ao essencial que se inscreve a sua potencial “universalidade subjectiva”, quando o sentir do poeta pode ser compartilhado universalmente sem lhe retirar o carácter subjectivo, ou seja, a sua dimensão sensível.

5.

Edgar Allan Poe desenvolve uma interessante e minuciosa descrição do processo de construção do seu famoso poema “The Raven”, onde, como vimos, o tom determinante é o da melancolia. Ele diz que é assim em geral e, claro, neste concreto também, como ele próprio o reconhece. E é o recorrente refrão, “nevermore”, que alude à mais radical das ausências de um ser amado – a que é devida à morte. Melancolia levada ao extremo porque morre a amada, que, ainda por cima, é bela. A morte e a beleza como os dois ingredientes fatais da melancolia, quando combinados: “a morte, então, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tópico mais poético do mundo” (2016: 42). O pássaro de mau augúrio, o corvo, repete cruelmente no poema para o sujeito poético que sofre de profunda melancolia: nevermore.  Uma só palavra para dar todo o sentido ao poema, indo ao essencial: a melancolia sofrida (e o poema seria a levitação desejada). Precisão, exactidão. Minimalismo discursivo (embora o poema tenha 108 versos). É neste sentimento de impossibilidade que está ancorada a melancolia – “nevermore”. A morte da mulher amada, a sua beleza, o destino, o reencontro impossível, revelado pelo corvo, aprofundam a melancolia . O refrão é o par inelutável da melancolia. Uma só palavra: “nevermore”. Mais precisão do que isto é impossível. Não foi casual o sucesso e a importância deste poema.

6.

O paralelismo entre o poema “Melancolia” e o que diz D. Duarte no “Leal Conselheiro”, pode ser feito, como fez um companheiro de viagem poética : “humor menencorico”. Tristeza, que outros dizem ser depressão. Doença, “voontade desconcertada”. Claro, pois a vontade, se for concertada, dirigida pela razão, se for apolínea, pode ajudar a resolver o “humor menencorico”. Por exemplo, através da poesia. E curou-se, mas não foi através da poesia, cheio de trabalho que andava, D. Duarte. Ou, então, porque não tinha recebido esse dom da poesia, lhe faltou esse sobressalto do estremecimento suscitado pela musa fatal (como diz Eliot). Interpretado o texto, nesta parte (no capítulo XIX), conclui-se que não foi, de facto, a poesia que o “guareceu”. Guarecer, guareceu, mas não através da poesia. Mas podia ter sido, ou não fosse, ou não seja, o “humor menencorico” o “mais legítimo de todos os tons poéticos”, como diz Poe. Tornada leve, por força da levitação poética, a tristeza torna-se melancolia. O poder catártico da arte de que D. Duarte não se socorreu, apesar de ter, exactamente como fazem os poetas (e é isto que é interessante), partilhado a sua dolorosa experiência em prosa e também, de certo modo, como resgate, seu e de outros afectados pelo mesmo mal. Permaneceu a tristeza, mais como depressão do que como melancolia, apesar de a ter qualificado como “humor menencorico”. E, no entanto, sentiu necessidade  de complementar a superação da tristeza depressiva com o uso da palavra, embora em prosa. Mais uma vez a palavra e o seu poder catártico. O facto parece não ser estranho à vocação catártica da poesia. Essa, sim, mais eficaz do que a prosa. Porque ela é provavelmente a mais performativa das artes. Portanto, o paralelismo funciona, precisamente pela intervenção da palavra catártica no processo. E bem, no meu entendimento.

7.

Quanto ao poema “Melancolia”, o poeta, não tendo certezas, pois a poesia não lhas dá, suspeita que seja já melancolia o que, também a ele, afecta, por perda ou tristeza,  por ausência ou vagueza sentimental, já transfiguradas pelo poema reparador em curso (no processo de criação) e animado, o poeta, pela “sombra luminosa” do ausente, do que foi perdido. “Sombra luminosa” na fita turbulenta da memória. Essa luz, que também é sombra, que o poeta assume como sua “fiel amante”. Da perda à doce melancolia – é o trajecto que o poeta percorre graças a essa luminosidade onde lhe acontece a criação, a poesia, e onde a leveza do ser ocupa o lugar do insustentável peso da existência. Acho feliz esta expressão (creio que é do R. Barthes, em “La Chambre Claire”, de 1980) porque conjuga a ideia de sombra (a perda, a ausência) com a de luz (a inspiração, a poesia). O passado mantém-se como sombra, como simulacro que só pode ser acedido favoravelmente pela poesia, como uma luz que o traz à consciência do poeta. O que ganha ainda mais sentido se a conjugarmos com a outra ideia (de Kierkegaard) de “fiel amante” (a melancolia, derivada da ausência, por perda). Um mundo todo ele reconstruído pelo poeta e que lhe permite evitar a depressão e converter a (originária) tristeza em doce melancolia.

8.

Sim, sempre as palavras a desempenharem um função essencial de elevação sobre o mar encrespado da vida. Mas aqui, neste poema, “Melancolia”, também o pintor, que acompanha o poeta há anos, já tinha ajudado um pouco ao dar forma visual à melancolia com um rosto, não seu, claro, mas de mulher. Afinal, a melancolia é feminina, tal como a poesia. E é por isso que ela é tão sensível e se pode tornar “fiel amante” do poeta (a mulher do quadro “Melancolia”). O estado melancólico, afinal, é próprio da condição de poeta, condição quase maternal, poder-se-ia dizer.

9.

A Joke Hermsen cita, no seu livro sobre a melancolia (Melancolia em tempos de perturbação, Lisboa, Quetzal, 2022, p. 186), Ernst Bloch e o texto “A Melancolia do Cumprimento”: para Bloch, diz, não há “entrada no paraíso sem a sombra da perda” (palavras de E.B.). O que me lembrou de imediato a “sombra luminosa” do ausente, de que fala Barthes, e o acesso ao paraíso através da poesia. E, claro, a melancolia. Só a sombra da perda, precisamente a melancolia, que é sombra de algo que se perdeu e que se mantém precisamente como sombra, dá acesso ao paraíso, sim, mas só se iluminada pela poesia no instante oportuno. Uma espécie de moinha que exige cuidados, não primários, mas espirituais, para a resolver.  O que poderia também equivaler a uma declarada condição de acesso à poesia. A sombra da perda que se torna luminosa através da inspiração poética. Uma linha evolutiva: perda, sombra, luz, paraíso. É isso. A poesia é uma luz que se acende sobre um passado sombrio. E que, num passe de magia, nos leva ao paraíso. Et voilà.

10.

E diz mais, a Hermsen, referindo-se a Bloch e ao princípio que é o objecto central do seu fabuloso “Das Prinzip Hoffnung”: a esperança é a outra face da melancolia. É, aliás, do estado melancólico que resulta a vontade de futuro, onde a dor seja matizada,  mas também de um futuro desenhado com palavras sob forma de utopia. A melancolia que resulta da falta de “Heimat”, da pátria, leva Hannah Arendt (o que bem se compreende historicamente) a dizer que esses, os que a não têm, são bem-aventurados porque continuam a vê-la e a vivê-la nos sonhos. E a elevá-la para além de si própria, pois sentida em estado de melancolia, de perda, de ausência. O sentimento de perda gera esperança, a esperança gera vontade de ter algo novo e mais perfeito, gera vontade de construir a utopia. E o que é a poesia senão utopia em construção infinda? JAS@09-2024

JAS_Melancolia3_2024Rec

Poesia-Pintura

NEVERMORE

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Sedução”, JAS 2024
Original de minha autoria
Setembro de 2024
JAS_Sedução2024

“Sedução”. JAS 2024

POEMA – “NEVERMORE”

SE NUNCA MAIS
Te encontrar,
Mas disso
Eu tenho a certeza,
Melhor te devo
Guardar
Para não deixar
Morrer
A poética leveza,
A que liberta
A alma
E ajuda
A resistir
Fazendo forte
A fraqueza
E suave
O existir.

FICA COMIGO
A tristeza,
Sobrevém
Melancolia?
Tristeza
Não me faz bem,
Não é boa
Companhia.

SE NUNCA MAIS
Te encontrar,
Vou ter saudades
De ti,
Mesmo assim,
Na tua ausência,
Sou aquele
Que te sorri.

SORRIR FAZ BEM
À alma,
Liberta,
Engana a dor,
O sorriso também
Resgata
Da “doença”
Do amor.

DOENÇA,
Diz o poeta?
Não,
Não é bem isso,
Talvez seja
Perdição,
Ficar, assim,
Submisso,
Numa certa
Solidão...

REGRESSA,
"Doce
Melancolia",
Enche a alma
Do poeta,
Dá-lhe versos,
Poesia,
Essa fala
Tão discreta,
Palavras
E melodia,
A sua força
Secreta!

SE ASSIM FOR,
Eu viverei
Na casa da poesia
Onde a tristeza
Em verso
É suave
E delicada,
É mais quente
Do que fria,
É doce,
Aveludada,
É saudade
Transformada
Em pura
Melancolia.

SOM11_2023REC

Artigo

A CRISE POLÍTICA EM FRANÇA

Por João de Almeida Santos

Politica2024Pub

“S/Título”. JAS. 08-2024

MERECE MUITA ATENÇÃO, sobretudo à esquerda, o que se está a passar, neste final de Agosto, em França. Uma crise grave, de que aqui já dei conta, há oito dias, mas que, como era previsível, acaba de se agravar. A novidade já esperada: Emmanuel Macron rejeitou a proposta da Nova Frente Popular (NFP) para nomear Lucie Castets primeira-ministra de França, com a seguinte argumentação:

“un gouvernement sur la base du seul programme et des seuls partis proposés par l’alliance regroupant le plus de députés, le Nouveau Front populaire, serait immédiatement censuré par l’ensemble des autres groupes représentés à l’Assemblée nationale. Un tel gouvernement disposerait donc immédiatement d’une majorité de plus de 350 députés contre lui, l’empêchant de fait d’agir. Compte tenu de l’expression des responsables politiques consultés, la stabilité institutionnelle de notre pays impose donc de ne pas retenir cette option” (do comunicado da Presidência da República Francesa; itálicos meus).

1.

O que está escrito neste comunicado já era conhecido. Macron queria e quer uma solução que possa sobreviver na Assembleia Nacional. O que não era o caso. Antes da decisão do presidente houvera uma ameaça e uma oferta de boa-vontade por parte do senhor Jean-Luc Mélenchon, líder de “La France Insoumise” (LFI): a ameaça, como vimos (veja, aqui, o meu artigo de 21.08.2024), era a de destituição do PR, por uma “Haute Cour”, se este não acatasse as suas ordens – e parece que a proposta de destituição vai mesmo ser apresentada; a boa-vontade –prescindir de ter ministros de LFI no governo, pretendendo assim demonstrar que o problema não resultava de haver ministros “insubmissos” no governo, mas sim do próprio programa da NFP. De resto, Macron teve oportunidade de interrogar e de ouvir a candidata longamente sobre o que pretenderia fazer no caso de ser nomeada. Uma nomeação que não carece de ratificação parlamentar (mas que pode ser sujeita a uma moção de censura).

2.

Lembro que os deputados desta coligação de partidos (LFI, PSF, Verdes e comunistas) que resultaram das eleições são 193 contra os 166 da coligação Ensemble. Estes deputados, excluídos os 32 obtidos pela Nova Frente Popular (NFP) e os dois obtidos pelo Ensemble, na primeira volta, devem a sua eleição, em grande parte, a uma política de desistência, negociada entre os dois blocos políticos, a favor dos candidatos que estivessem em melhores condições de derrotar o candidato do Rassemblement National (RN), na segunda volta. E assim foi. E é a esta situação que parece referir-se (no final) o comunicado da presidência:

“Les partis politiques de gouvernement ne doivent pas oublier les circonstances exceptionnelles d’élection de leurs députés au second tour des législatives. Ce vote les oblige”.

Ou seja, foi mais a circunstância de evitar o perigo de uma vitória da extrema-direita do que a adesão a um programa que determinou a eleição dos deputados dos dois blocos políticos. Aliás, nem é o programa eleitoral que é escolhido, mas sim os representantes (na democracia representativa não há “vínculo de mandato”), sendo o programa apenas uma das três variáveis essenciais que determinam a eleição do representante (valores/princípios/ideologia, programa/policies,  rosto, do candidato ou do líder, como agente fiduciário). Esta razão, a que se junta a certeza de que um governo da NFP viria a ser objecto de aprovação imediata de uma moção de censura na Assembleia, levou Macron a rejeitar a proposta. Na verdade, como disse, o que Macron pretende é uma solução que envolva várias sensibilidades políticas, eventualmente com um PM exterior aos blocos ou uma figura politicamente prestigiada, em condições garantir uma maioria parlamentar de apoio e, consequentemente, estabilidade governativa. Este tipo de solução é muito frequente, por exemplo, em Itália. É esse o papel do PR que a constituição prevê, garantir a estabilidade institucional, e não o de cumprir ordens impositivas do senhor Mélenchon sob pena de ser levado a uma (política) corte marcial. Lembro que as eleições legislativas foram marcadas na sequência dos resultados disruptivos das eleições europeias, ganhas pelo RN, com 31, 37% dos votos (mais do dobro do resultado do Ensemble, o segundo, com 14,60%, ou do PS, Lista de União à Esquerda, com 13,83%).

3.

A antecipação da NFP, impondo publicamente um candidato e ameaçando destituir o Presidente se não acatasse a imposição, só poderia ter como desfecho o que se viria, de facto, a verificar, sob pena, isso sim, de o PR não estar a cumprir as funções que a Constituição lhe atribui: “ Le Président de la République nomme le Premier ministre” (art. 8) e “Le Président de la République préside le conseil des ministres” (art. 9). Note-se que a Constituição não diz, como a portuguesa, “o Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais” (n.1, art. 187). E, ao contrário do PR português, o PR preside ao Conselho de Ministros. Duas diferenças essenciais, que dão um poder e uma responsabilidade ao PR francês que não existem no caso português. E não me parece que esta redacção da Constituição seja inocente ou que a regulação dos poderes presidenciais peque por defeito. Se assim é, isso tem um claro significado político acerca dos poderes e das responsabilidades do presidente. Ousaria até dizer que, se não fosse grave, a injunção do senhor Mélenchon é ridícula e megalómana. O processo de destituição exige uma sólida fundamentação (não resulta de uma pura projecção da vontade política de um qualquer sujeito político) e é complexo, envolvendo as duas câmaras e uma maioria qualificada de dois terços dos deputados e senadores.

4.

É claro que o guião de tudo isto parece ter uma clara autoria: a do senhor Jean-Luc Mélenchon. As suas opções, no essencial, são determinadas por claro objectivo: as presidenciais de 2027. Mais uma vez. Poder ser ele a polarizar, numa segunda volta, o voto contra a extrema-direita, sem se aperceber, digo eu, que com as posições e os discursos que vai tendo o que conseguirá será precisamente a vitória de Marine Le Pen e a destruição da credibilidade da esquerda que diz defender. Ele e o senhor Olivier Faure (a fractura no seio do PSF já está a acontecer, precisamente sobre as relações a estabelecer com o presidente da República, na sequência da recusa de Macron em nomear PM a senhora Lucie Castets).

5.

Se reflectirmos um pouco nestas últimas posições do senhor Mélenchon, não seguido em tudo pelos partidos que integram o bloco político NFP (como, por exemplo, na destituição do Presidente), veremos que não fazia grande sentido apresentar publicamente, e nos termos em que foi feito, a candidata ao lugar de PM. Teria toda a legitimidade para a propor, mas no quadro de negociações, não públicas, com o PR, com o Ensemble e com os Republicanos. Fazer o que fez, no meu entendimento, significou não só não querer acordo, mas também induzir a negativa do PR. A constituição diz que o PR nomeia, sem explicitar, como disse, condições e, mais, diz também que preside ao conselho de ministros. A nomeação de um PM envolve-o, pois, directamente, pelo menos por estas duas razões. Abdicar deste poder, isso sim, seria não cumprir as suas funções, como previsto no art. 68: “manquement à ses devoirs manifestement incompatible avec l’exercice de son mandat“.

6.

O que noto aqui é uma série de incongruências que me levam a pensar que só fazem sentido pela negativa – não quererem governar nem quererem outras soluções. Pura oposição a Macron, sejam quais forem as consequências, incluindo a de aplanar o terreno (não assumindo responsabilidades, mas dando a parecer exactamente o contrário) para uma vitória da extrema-esquerda nas presidenciais de 2027, isto é, do senhor Jean-Luc Mélenchon. É estranho, mas é o que parece, a usarmos a lógica linear do bom senso. E é esta conclusão que me leva a Mélenchon e, já agora, ao senhor Olivier Faure… mas não a Raphael Glucksmann que, não sendo do PSF, foi o seu cabeça de lista nas europeias. Na verdade, o grande salto em frente do PSF nas europeias deve-se a Glucksmann (líder do movimento Place Publique). Este, nestas eleições, deixou a LFI ( que teve 9,89%) a cerca de 4 pontos de distância do PS, que obteve 13,83%. “É preciso acabar com a estética da radicalidade, que mais não é do que sectarismo”, diz Glucksmann. “Em 2027, será a social-democracia, e não um sucedâneo do macronismo ou um avatar do populismo de esquerda, que defrontará o lepenismo”, disse na entrevista que concedeu ao Figaro/AFP (20.08.2024). Foi Faure que o escolheu para cabeça de lista, mas hoje as relações entre eles parece não conhecerem os melhores dias.

A verdade é que Glucksmann e o seu movimento parece poderem ser uma lufada de ar fresco na debilitada social-democracia francesa. O populismo de esquerda, a avaliar pelo que está a acontecer nestes dias, não parece ser a melhor das companhias do PSF, que se arrisca, depois das europeias, a voltar a cair na insignificância.

7.

Mas em França também se joga o destino da União Europeia, uma responsabilidade que parece não ser a dos partidos que integram o NFP, em especial a do senhor Mélenchon, chefe de um “parti europhobe”, para usar as palavras do jornal Libération. Se descontarmos a vitória de Keir Starmer, a esquerda vive momentos de grande dificuldade um pouco por todo o lado. E não será com posicionamentos e discursos destes que a França ajudará o projecto europeu e, diga-se, a si própria. Bem pelo contrário, o risco que se corre é o de a mancha da extrema-direita alastrar de tal modo que se torne difícil contê-la. JAS@08-2024

Politica4Rec

Poesia-Pintura

MELANCOLIA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Melancolia”, JAS 2022.
Original de minha autoria.
Agosto de 2024.

JAS_Melancolia2023_12

“Melancolia”. JAS, 2022. 80×88, em papel de algodão (310gr) e verniz Hahnemuehle. Artglass AR70 em mold. de madeira. 

POEMA – “MELANCOLIA”

EU PRECISO
De falar
Da melancolia
Que sinto,
Mas não sei
Bem o que seja...
.........
Talvez se
Em poesia
Vertida
Bem retratada
A veja.

TENTEI
Pintá-la
Num rosto
Para ver se
Conseguia
Ficou no rosto
Pintada
O melhor
Que eu sabia.

TER CERTEZAS
É coisa que eu
Não tenho
Nem a poesia
Mas dá,
Mas se sinto
Melancolia
Por algum motivo
Será.

NÃO É FÁCIL
Definir
Com rigor
A melancolia
Que sinto
E se a procurar
Num poema
Pode até parecer
Que minto...

BOM, FINJO,
Não minto,
Mas fingir
Pode bem ser,
Porque é
Melancolia
O que sinto
Se em perda
Eu viver.

TALVEZ
A melancolia
Seja perda,
Seja vazio
E tristeza,
Mas se a sofrermos
Em arte
Mais do que peso
É leveza.

O POETA
Tem razão,
Tristeza é
Doce
Melancolia
Se a sentirmos
Com palavras
Na pauta
Da poesia,
Quando a dor
De uma perda
Se torna leve
E constante
E a “sombra
Luminosa”
Do ausente
A nossa mais
“Fiel amante”.

JAS_Melancolia2023_12Rec

Artigo

NOTAS POLÍTICAS

DE UMA TARDE DE VERÃO

Por João de Almeida Santos

YouTube_Viajante

“S/Título”. JAS. 08-2024

ARTIGO – “NOTAS POLITICAS”

1.

Começo por referir um conjunto de artigos que li em “Le Monde” (14.08.2024) acerca do senhor Elon Musk  (foi manchete : “Elon Musk, acteur politique de la droite extrême”) e a sua entrada fulgurante em política, ao lado e em plena sintonia com Trump, promovendo as três grandes bandeiras do populismo de direita e do plutopopulismo de tipo trumpiano: contra a imigração, contra o wokismo e contra os media tradicionais. O Twitter, agora X, como espaço de combate de Musk à escala planetária (e, em particular, nos USA). Sabemos o que aconteceu com o Facebook e a Cambridge Analytica, em 2016, sob a gestão do ideólogo radical-populista Steve Bannon. E, agora, às políticas de guerra em curso, junta-se-lhes o senhor Musk a accionar politicamente a sua plataforma digital para dar combate ao já difícil e delicado funcionamento das democracias. E, ao que parece, fá-lo em nome da liberdade – “eu sou um absolutista da liberdade de expressão”, terá afirmado em 2022. E toca de dar, de novo, espaço no X aos ideólogos de extrema-direita que tinham sido erradicados do Twitter antes da sua gestão, a começar pelo próprio plutopopulista Trump. Imaginemos agora que o senhor Zuckerberg faça o mesmo. E que o patrão da Google também. A normal dialéctica do consenso que é activada nas campanhas eleitorais seria totalmente desvirtuada, sabendo-se que a comunicação, no essencial, passa hoje pela internet e pelas redes sociais. E a expansão destas redes é planetária.

Sempre se discutiu acerca da neutralidade da tecnologia (sendo os seus efeitos dependentes do tipo de uso que dela fosse feito), mas hoje, com lideranças tecnológicas na esfera da comunicação a declararem activa e militantemente a sua filiação e a desencadearem combates políticos e ideológicos a coisa muda de figura. É aqui que os Estados nacionais e as instituições internacionais devem intervir estabelecendo linhas vermelhas que estes poderes supranacionais, sobretudo estes, não podem ultrapassar. Porque, em boa verdade, estamos perante uma terceira “constituency”, depois da financeira e da (original) do cidadão contribuinte. E enquanto a financeira determina programas de governo (veja-se o caso de Portugal e da troika), esta entra directamente na delicada área da construção do consenso (veja-se o caso da eleição de Trump e do BREXIT, em 2016). Com Musk, a coisa até não parece ser difícil de gerir pois o homem quando lhe tocam nos negócios parece acomodar-se de imediato, como já aconteceu com vários países. Mas que é caso para se reflectir com seriedade sobre o assunto, lá isso é.

2.

Começou na segunda-feira e termina na quinta, com o discurso de Kamala Harris,  a Convenção do Partido Democrata, em Chicago, já na era pós-Biden, com Kamala Harris a liderar o processo eleitoral, nas mais recentes sondagens, com mais 3 ou 4 pontos do que Trump, “o esquisito”, agora em sérias dificuldades, depois da atmosfera de vitória que se instalou depois do debate com Biden. Há uma característica na sua presença no espaço público muito interessante e que contrasta com a atitude de Trump, não só “o esquisito”, mas também o zangado – a alegria que ela transmite, ancorada na figura de uma mulher bonita, decidida e que respira optimismo. Não sei se os quatro combates (alimentação, saúde, habitação e crianças) que anunciou no recente discurso programático convencerão os americanos, mas o que parece é que a personagem está a seduzi-los. Sabe-se que é na formação do colégio eleitoral que está o segredo da vitória, não bastando, pois, ter mais votos (a senhora Clinton teve mais cerca de 3 milhões de votos do que Trump e não ganhou a Presidência), mas o que se anuncia é que, mesmo nos swing states (Michigan, Pennsylvania, Winsconsin, North Carolina,  Georgia, Arizona, Nevada, os referidos pelo W. Post), Kamala Harris está a crescer eleitoralmente de forma muito expressiva (“Harris has gained ground in most if not all those swing states since Biden left race”, W. Post, 18.08.24, p. 12). Talvez seja desta que os USA possam vir a ter, pela primeira vez, uma mulher na Presidência. Para os difíceis equilíbrios internacionais em que vivemos a sua eleição seria menos problemática do que a de Trump, além de democraticamente muito mais salutar. Mas muita água ainda correrá sob as pontes.

3.

Em França, no processo de formação do novo governo, estamos a assistir a algo que, para mim, é incompreensível. A Nova Frente Popular (NFP), o bloco político vencedor, a reivindicar a liderança do governo e a propor publicamente um nome para PM, em vez de negociar com o Ensemble, para que, à semelhança do que aconteceu na segunda volta das eleições, das negociações resultasse, sim, um nome aceite pelas partes. Por uma razão: a maioria dos deputados de ambos os blocos foi eleita porque o parceiro de acordo retirou o seu candidato para que o que estava em melhores condições de vencer pudesse derrotar o candidato do Rassemblement Nacional (RN). Foi, como se sabe, vistos os resultados da primeira volta, a dialéctica que mandou para a terceira posição o RN, apesar de este ter obtido mais de três milhões de votos sobre o vencedor. Cada bloco político, NFP e Ensemble, deve a eleição da maior parte dos seus deputados a esses acordos de desistência. Mandaria, pois a lógica, que fosse essa dialéctica a determinar quem seria o novo chefe do governo e não exclusivamente o resultado obtido e o programa apresentado pelo bloco vencedor aos eleitores. Mas não. E por isso parece estar dificultado o processo de formação do governo e, talvez, a eleição de um candidato presidencial não radical de direita, em 2027. Se a emergência democrática valeu para a eleição dos deputados deveria valer também para a indigitação do PM e para acordos a estabelecer tendo em vista a eleição presidencial de 2027.

Já tinha escrito esta nota quando, ontem, li, no jornal “Público”, a notícia da ameaça do inefável Mélenchon (e outras luminárias, o par Bompard&Panot e a senhora Trouvé) de que, baseando-se no artigo 68.º da Constituição, promoveria a destituição do Presidente (“la proposition lunaire faite par LFI”, lê-se no Editorial de hoje do Libération) se não acatasse as suas instruções e não nomeasse a senhora Castets PM. Melhor é impossível: o senhor Mélenchon nomeia o PM e destitui o PR. Afinal, ele é o monarca absoluto de França e ninguém sabia. A senhora Castets (e as outras forças políticas do NFP) evidentemente não aprovou a declaração do senhor Mélenchon (veja-se a entrevista que deu ao Libération de hoje, 21.08), que ficou a falar sozinho, com os seus correligionários.

4.

Na Venezuela está estabelecida definitivamente uma ditadura: a de Nicolas Maduro e das Forças Armadas. O ónus da prova da vitória de Maduro cabe ao poder estabelecido, ao Estado venezuelano, e não à oposição. Ora a prova da vitória não foi apresentada, tendo, todavia, uma consistente prova em sentido contrário sido apresentada pela oposição. A que acrescem investigações de várias entidades internacionais credíveis, como, por exemplo, o Washington Post, entre outras, que dão a vitória a Edmundo González por cerca de 66% dos votos expressos. Isto seria o suficiente para não reconhecer a vitória de Maduro, que só se mantém no poder porque é apoiado pelas forças armadas. Aliás, o que mais parece é que Maduro seja simplesmente a máscara de um poder detido realmente pelos inúmeros generais do regime. Dois mil, ao que parece (“La Razón”, “La Vanguardia”, referindo uma informação do almirante Craig Faller, Chefe do Comando Sul dos USA). Portanto, o regime de Maduro só cairá em dois casos: ou os generais consideram que a farsa já foi longe demais e que é necessário mudar de aparência (mudar alguma coisa – por exemplo, Maduro – para que tudo fique na mesma, seguindo a lição do transformismo) ou, então, os oficiais intermédios tomam conta da situação, independentemente de qual seja a vontade dos inúmeros generais de serviço. Algo parecido ao que, por obra dos capitães de Abril, aconteceu em Portugal, com a famosa “brigada do reumático”.

5.

Em Espanha agudiza-se a crise provocada por denúncias do VOX e de organizações derivadas, por exemplo de “Manos Limpias”, contra a mulher do PM Pedro Sánchez. Quem tem seguido o processo verifica, sem margem para qualquer dúvida, que o juiz Peinado anda em roda livre ao serviço de uma estratégia política (de direita e, sobretudo, de extrema-direita) contra o PSOE e contra Sánchez. E o PP do senhor Feijóo está a alinhar com esta estratégia, reforçando-a, sem reservas. Agora é a número dois do PP, Cuca Gamarra, que anuncia uma nova ofensiva no mesmo sentido contra Sánchez. Estamos também aqui a assistir ao que vem sendo designado como “lawfare”. Só que agora é já também o PSOE a declarar que se isto não pára passará também ele a promover investigações sobre a família de Feijóo, na Galiza, e sobre o companheiro da senhora Ayuso. Uma escalada do “lawfare”, o uso da justiça, qual nova “arma branca”, para fins políticos. Quem perde é a democracia espanhola e quem ganha é o VOX. Depois admiram-se que a extrema-direita esteja a ganhar terreno eleitoral nas democracias da União Europeia. Não me parece que a liderança do senhor Feijóo esteja a demonstrar grande sentido de responsabilidade democrática. Sabemos que a questão da Catalunha tem pesado muito no agravamento da situação, mas sabemos também como o independentismo foi alimentado pelo PP de Mariano Rajoy ao enviar para o Tribunal Constitucional o Estatuto da Catalunha, que tinha sido aprovado pelas Cortes, sabendo que seria reprovado. Por mais criticável que seja a posição de Sánchez para sobreviver enquanto PM, a verdade é que o PSOE, que defende a unidade de Espanha, não só ganhou as eleições na Catalunha como conseguiu pôr um socialista, Salvador Illa, como Presidente da Generalitat, enfraquecendo politicamente o Junts e o seu fugitivo líder. Ou seja, a acção política de Sánchez resultou muito positivamente. Avançou na resolução política do problema da Catalunha sem o reduzir a um processo de natureza puramente penal, a ser resolvido com a força.

6.

Fiquei estupefacto com o anúncio de Luís Montenegro de que, em Outubro, vai dar um “bónus” de 100, 150 ou 200 euros (não repetível, até prova em contrário) aos pensionistas que auferem uma pensão até um pouco mais de 1500 euros. Estupefacto porquê? Já aqui tenho criticado a ideia de um “Estado-Caritas”, a propósito de outros “bónus” atribuídos aos “pobrezinhos”, porque o Estado Social é outra coisa, ou seja, assenta na ideia de direitos sociais de cidadania. Não de favores feitos por quem está no poder. Pois este “bónus” não passa de uma esmola do governo aos cidadãos que auferem aquele tipo de pensão. Uma esmola sem qualquer justificação. Quando o governo de António Costa atribuiu a meia pensão houve, pelo menos, uma justificação: o aumento das pensões para o ano seguinte não iria obedecer ao que a lei previa, portanto, haveria que compensar os pensionistas. Tantas foram as críticas, e justas, que esta decisão, a de não cumprir a lei, acabaria por não se verificar. Entretanto, a meia pensão ficou atribuída, pois já tinha sido processada. Agora nem sequer isto se verifica, pois não se conhece justificação que tenha sido avançada, a não ser a da solidariedade com os que têm pensões mais baixas. Algo verdadeiramente iníquo e indigno, que devia ser recusado pela generalidade dos cidadãos, em nome da decência e da dignidade. A solidariedade do Estado deve acontecer, sim, por um lado, com um Estado Social que funcione eficazmente, e, por outro, com a equidade fiscal e o fim do esbulho que é aplicado aos que pagam impostos directos (IRS), isto é, a cerca de metade dos agregados fiscais. Aqui nem deveria ser aplicada a crítica de eleitoralismo (ainda que seja também isso), mas sim uma crítica mais forte: a da indignidade de o Estado andar a distribuir esmolas aos “pobrezinhos. O cidadão que deixa de ser cidadão titular de direitos para passar a ser “pedinte” à porta de um Estado rico e gordo… mas (precariamente) solidário. Da pior maneira. Os aprendizes de feiticeiro (de turno) reinventam-se no admirável mundo do deslumbramento.

YouTube_Viajante

Poesia-Pintura

CIAO, MAMMA, TI MANDO UN BACIO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Mamma”
Original de minha autoria
18 de Agosto de 2024

Mãe2024_05

“Mamma”. JAS. 08-2024

POEMA - "CIAO, MAMMA, TI MANDO UN BACIO"
EU GOSTO
De viajar
Em palavras,
Gosto mesmo
De palavrar
E há números
Que são palavras
Que eu gosto
De cantar.

NÃO FALO
Do número três
Ou do sete,
Que são,
Para vidas
imperfeitas,
Sempre perfeitos
Demais,
Falo de vidas
Contadas
Com palavras
Desenhadas
De que os números
São sinais.

EU TENHO NÚMEROS
Tão cheios
De palavras
Com sentido
Que são vida
 Em movimento,
Sinais de tempo
Vivido,
Já levado
Pelo vento...

HÁ NÚMEROS
Que são palavras
E outros que
São flores,
Há números
Que são
Como beijos
E outros
Pintados a cores
Que evocam
Um passado
De que fomos
Escultores.

E HÁ O NÚMERO
De hoje
Que traz consigo
Um nome,
 Um poema
Que me fala,
Um abraço
Que me aquece,
Um regalo que
Me embala,
Uma imagem
De ternura
Que me sorri
E me cura
Das asperezas
Da vida,
Âncora bela
E segura.

É O NÚMERO
Que traz consigo
O nome
Que me conta
E me sustém,
Nome
Que guardo
Sempre comigo...
.......
O nome
De minha Mãe.

Mãe2024_05Rec

Artigo

A DOR E O SUBLIME

Ensaios sobre a Arte

De  João de Almeida Santos

CapaD&S


A PARTIR DE HOJE, 14.08.2024, por decisão da Editora, e porque a versão on paper se encontra esgotada, ficará em ACESSO LIVRE, aqui e no site da Associação Cultural Azarujinha-ACA, a versão digital deste livro. O acesso, na secção Ensaios (Ensaio 42):

https://joaodealmeidasantos.com/wp-content/uploads/2024/08/a-dor-e-o-sublime_online07-2023final.pdf

João de Almeida Santos
A DOR E O SUBLIME
Ensaios sobre a Arte
(S. João do Estoril,
ACA Edições, 2023, 232 pág.s)
1.

Este livro reúne ensaios sobre a arte, escritos sobretudo com o objectivo de confrontar a minha própria experiência estética, enquanto produtor de arte (romance, poesia, pintura), com o que grandes nomes da arte e da estética, mas sobretudo poetas, produziram ou escreveram. Verificar se neles se encontram as clivagens essenciais com que me confronto na minha experiência. Dominam, pois, como se compreende, as reflexões sobre a poesia, que, afinal, constituem o núcleo essencial deste livro. Escolhi, pois, os meus interlocutores pela sua dupla condição de poetas e pensadores ou críticos (como Eliot, Poe ou Baudelaire, por exemplo), levando muito a sério essa afirmação do Edgar Allan Poe, em “Carta a B”, que sugere que as melhores críticas de poesia são as que são feitas precisamente por poetas:

“Tem-se dito que uma boa crítica a um poema pode ser escrita por alguém que não seja ele próprio poeta. Sinto que isto é falso, de acordo com a sua e a minha ideia de poesia – quanto menos poético for o crítico, menos justa será a crítica e vice-versa (Poe, 2016: 5; Poe, 1903)”.

Estas palavras valem o que valem, que não é pouco, ditas por quem as diz, mas são sugestivas e correspondem, no essencial, ao que eu próprio sinto e penso. Ou seja, tratando-se de uma arte muito especial, normalmente activada por intensas exigências interiores, talvez mesmo por imperativos existenciais, em virtude de um forte sentimento de dor, por melancolia, por perda ou por intensa nostalgia, ela solicita, na tentativa de compreensão e interpretação, algo que se assemelha a empatia, ao que os alemães designam por Einfühlung ou, então, no seu significado grego original, a pathein ou páthos, palavras que significam sentir/sentimento, doer/dor, comover/comoção. Só quem experimentou o estado de comoção (poética) está em condições de compreender em profundidade a poesia, ou seja, os poetas, por mais que eles procurem traduzir em linguagem universal o que, de certo modo, é inefável, a sua própria experiência interior. Eles convertem, como diz Bernardo Soares, os seus “sentimentos num sentimento humano típico” (Pessoa, 2015: 230) para que possam ser compreendidos, suscitando partilha estética. O inefável pode ser poeticamente convertido através desta operação, mas, mesmo assim, são os poetas aqueles que melhor podem aceder, nem que seja por processo analógico, ao que o poeta sente na sua experiência interior. Eles experimentam a Einfühlung em profundidade e por isso podem aceder a essa experiência originária, seminal. Uma experiência de delicado e incompleto acesso, portanto. Não basta, todavia, aos que procuram aceder ao discurso poético que experimentem eles próprios comoção ou dor. É preciso estar em condições de as metabolizar poeticamente. É esta a condição do ser-poeta. Porque “dizer-se é sobreviver”, como dizia o Bernardo Soares no Livro do Desassossego (2015: 55). Mas esta é também, em parte, a condição dos amantes de poesia. Sim, dos amantes, para retomar a célebre frase de García Lorca: “la poesía no quiere adeptos, quiere amantes”. Ser “adepto” não garante, pois, autêntico acesso à experiência poética. É preciso amá-la e sofrê-la. Senti-la por dentro, transportando-se para o interior das estrofes, experimentar o sentido e sentir a vibração da toada que se desenrola verso após verso. Esta é a sua diferença, talvez mesmo uma diferença ontológica, a que a coloca num patamar muito especial entre as artes e a distingue da mera experiência do sentir. Há um “quid” na experiência poética que não se compadece com uma aproximação meramente ornamental e exclusivamente física. A poesia não tem exterior, evolui de dentro para dentro sem concessões ao artifício ou à pura fisicidade.  Para o poeta, mas também para o amante de poesia.

2.

Só no caso de Hermann Hesse me ative exclusivamente à sua poesia, embora tivesse sempre presente no meu espírito a famosa viagem existencial de Siddharta. Na verdade, a exigência radical do discurso poético levou-me a revisitar poetas de topo mundial, sim, mas aqueles que foram também, ao mesmo tempo, críticos literários de igual e relevantíssima dimensão. Basta pensar em Eliot ou em Baudelaire para se compreender o que pretendo significar. De certo modo, a minha própria experiência serviu-me de suporte e de guia no diálogo interessado, ou mesmo interesseiro, com os grandes poetas. Esta atitude não é, pois, uma atitude de natureza metodológica ou simplesmente teórica. Ela também corresponde àquilo que eu próprio, na minha prática, encontro como génese da arte – um imperativo, uma exigência existencial que leva o artista a criar. Não um “amusement”, um sofisticado jogo de palavras ou um exercício académico, mas uma necessidade incontornável, como a de respirar. Seguramente não um exibicionismo linguístico que cobre pobreza semântica. Poesia sem alma. Arte sem alma. Não, porque “dizer-se é sobreviver”, repito, com o Bernardo Soares. Por isso, talvez surja mesmo como uma solução para a própria vida, um acto sublime de sobrevivência. O Giovanni Verga escreveu um romance “Una Peccatrice”, onde um dos personagens se cura da paixão avassaladora pela arte, mas morre-lhe a arte quando sacia fisicamente a paixão, pondo-lhe fim. A impossibilidade alimenta-lhe o estro, mas quando o sucesso na arte torna o impossível possível até à consumação final, também aí o estro morre. A arte precisa sempre de ocorrer em intervalo.

3.

Se assim for, o despertar poético é como a descoberta que se foi tocado pela graça, sem predestinação, mas como dom recebido na sequência de um acontecimento que devastou a alma do poeta e o pôs em estremecimento e em levitação, através da palavra e da sua melodia. Privação sofrida, levitação desejada, disse o Italo Calvino nas suas Lezioni Americane. Tristeza, melancolia, perda ou privação, algo que o toca muito profundamente e o leva a criar, para se salvar, para se redimir. Uma dádiva de sofrimento concedida pelos deuses. Com uma prova de fogo: não se deixar abater nem dominar pela dor, mas assumi-la, transfigurá-la e metabolizá-la poeticamente para se elevar ao sublime. Mas, cuidado, diria o Bernardo Soares, não tocar na realidade sequer com a ponta dos dedos, porque pode acontecer o que aconteceu ao Pietro Brusio de Verga. A felicidade mundana parece não constar dos anais da poesia, poderia mesmo dizer, com um pouco da necessária radicalidade. Uma salvação que é mais transfiguração do que fuga, ou seja, uma sofisticada metabolização que incorpora sentimentos já transfigurados – uma feliz melancolia, por exemplo.

4.

A maior parte dos capítulos é dedicada à poesia, estando a pintura, a música ou a dança em segundo plano. Também aqui não foi uma escolha puramente intelectual, mas um imperativo que decorreu da minha própria experiência de oito anos consecutivos de intensa produção poética. E não só, mas também pela importância que reconheço nela, na poesia, relativamente ao conjunto das artes. No livro dou conta desta posição e explico as razões da centralidade que lhe atribuo, em particular na sua relação com a música. Essa sua posição intermédia entre a dimensão conceptual e o sentimento, equivalente à que o sentimento ocupa na relação entre a dimensão fisiológica e corpórea do ser humano e a sua consciência, muito bem esclarecida por António Damásio no livro Sentir & Saber. A Caminho da Consciência (Damásio, 2020). O poder performativo da poesia e, por isso redentor, substitutivo, salvífico, resulta desta sua posição como ponto de contacto, como ponte entre o sentimento e a consciência, construída por uma materialidade sonora que acentua e reforça a sua dimensão sensível, sensorial. Uma arte que, todavia, não se eleva em fuga para o território irreal da pureza conceptual, para a pura esfera ideal ou para a crença, a fé incondicionada, mas que permanece no terreno do sentimento, da emoção, da melancolia, da nostalgia, da perda, da ausência sofrida, do amor, do desespero, submetidos a um processo de transfiguração e de metabolização para os elevar ao território do sublime. “Cristallisation”, dizia Stendhal, em “ De l’Amour”, a propósito do amor, no mesmo sentido. Sublimação, elevação ao sublime. A poesia permanece no terreno do sensível, do sensorial, ajudada pela sonoridade rimática, pelo poder envolvente da música que a integra como sua componente interna. É a sonoridade poética que atinge de forma imediata a sensibilidade do próprio poeta ou de quem frui um poema. A poesia funciona como se se tratasse de uma ponte de ligação entre as palavras, com a sua carga semântica e a sua sonoridade melódica, a sensibilidade e o real. O primeiro visado pelo poema é sempre o próprio poeta. Se assim não fosse a redenção poética nunca aconteceria.

5.

Encontrará no livro inúmeras páginas sobre grandes vultos da literatura mundial, como T.S. Eliot, Emil Cioran, Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Hermann Hesse, Fernando Pessoa, Pierre Jean Jouve, Italo Calvino. Mas encontrará também reflexões mais amplas sobre a arte ou sobre a cultura, por exemplo, sobre Friedrich Nietzsche (sobretudo sobre “A Origem da Tragédia” ou “Ecce Homo”) ou sobre Theodor Adorno e o seu escrito sobre as indústrias culturais, incluído na Dialéctica do Iluminismo, mas também sobre Pina Bausch e o Tanztheater, com um enquadramento global e histórico sobre a dança, desde os seus primórdios.

6.

Trata-se de um livro sobre a arte guiado por uma posição de fundo que encontrará confirmada nos diálogos com os autores-referência escolhidos. E essa posição de fundo assume a arte como dimensão ontológica, não como mero exercício profissional, como técnica de “amusement”, como virtuosismo cultural ou como especialidade académica. É nesta posição que julgo encontrar a diferença fundamental entre a grande arte, a grande literatura, a grande poesia e as produções que mais não visam do que o consumo imediato em posição de  “distracção”, como diria Adorno, referindo-se às indústrias culturais. Não, do que aqui se trata é de arte entendida como imperativo existencial, como procura do humano lá nas profundezas da alma com os sofisticados instrumentos de que ela dispõe e, no essencial, com as categorias que o Italo Calvino propõe para o milénio que já começou. A poesia marca uma espécie de diferença ontológica relativamente à experiência do sentir, ao sentimento.

7.

Este livro também desenvolve e prolonga a reflexão que propus na Introdução ao meu livro de poesia (Sobre a Obra de Arte”), bem como as respostas aos meus leitores digitais (”Reflexões em torno dos Poemas”), ambas nele incluídas (Poesia, Lisboa, Buy The Book, 2021, pp. 13-39 e 351-420). A Dor e o Sublime é como que a outra face, em prosa, das minhas concretas propostas de poesia, de pintura e de romance (em Via dei Portoghesi, Lisboa, Parsifal, 2019). Um livro que poderá, pois, ser melhor compreendido por quem visitar o que há anos venho propondo publicamente, em joaodealmeidasantos.com, seja poesia ou pintura, ou mesmo no referido romance, como resultado da minha própria, sofrida e levitada, relação estética com a vida. Seguir-se-á, já neste mês de Agosto, um outro livro exclusivamente dedicado à poesia: FRAGMENTOS – Para um discurso sobre a Poesia, um conjunto de 200 fragmentos que constituem uma reelaboração das minhas respostas aos comentários que os meus leitores vão fazendo regularmente aos poemas que publico todos os domingos no meu site (joaodealmeidasantos.com).

NOTA

QUERO aqui deixar um agradecimento à ACA Edições pela honra que me deu em ser eu a iniciar a sua actividade editorial com este livro. Outros já se seguiram, como Política e Ideologia na Era do Algoritmo, 2024, e agora, neste mês de Agosto, como disse, FRAGMENTOS – Para um Discurso sobre a Poesia, 2024.

REFERÊNCIAS
CALVINO, I. (1988). Lezioni Americane. 
Milano: Garzanti.

DAMÁSIO, A. (2018). Sentir & Saber. 
Lisboa: Círculo de Leitores.

PESSOA, F. (2015). Livro do Desassossego. 
Porto: Assírio&Alvim.

POE, E. A. (2016). Poética. 
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

SANTOS, J. A. (2021). Poesia. 
Lisboa: Buy The Book.

paginacao_teste_final_v2