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Sobre joaodealmeidasantos1

Professor universitário, escritor, poeta, pintor. Publicou várias dezenas de livros, seus e em co-autoria, de filosofia, política, comunicação, romance, poesia, estética. Foi professor nas universidades de Coimbra, Roma "La Sapienza", Complutense de Madrid e Lusófona (Lisboa e Porto). Publica semanalmente, neste site, ensaios, artigos, poesia e pintura.

Poesia-Pintura

O ECO DO SILÊNCIO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “O Eco do Silêncio”,
 JAS 2023 (71x82, em papel de algodão,
310gr, e verniz Hahnemuehle; Artglass 
AR70 em moldura de madeira).
Original de minha autoria. 
Agosto de 2024.
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“O Eco do Silêncio”. JAS 2023 – 71×82, em papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle; Artglass AR70 em moldura de madeira.

POEMA – “O ECO DO SILÊNCIO”

AS PALAVRAS
São as asas
Do silêncio,
Dizia o poeta,
E bem,
Elas voam
Mas só voltam
Se seu eco
Voltar também.

O SILÊNCIO
Só tem eco
Se o poeta
Lho der
E o eco
Será sempre
Como um beijo
De mulher.

VÃO AS PALAVRAS,
Vem o eco
E o silêncio
Tem sentido,
Com palavras
Pinta seu rosto
Em perfil
Bem definido.

ASSIM É A FANTASIA
De poeta
Encantado,
A musa
Fica em silêncio
E ele
Em palavras
Enlaçado.

SÓ AS PALAVRAS
Resgatam
Da profunda
Melancolia,
Elas vão
E logo voltam
Como eco
Dessa pauta
Que se chama
Poesia.

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Artigo

FRAGMENTOS

PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA
(S. João do Estoril, ACA Edições, 2024; 217 pág.s)

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EPÍLOGO

TERMINO O ÚLTIMO CAPÍTULO (XV) deste livro com um curto fragmento sobre O Tempo Poético. Tempo diferente do tempo cronológico, o tempo espacializado,  aquele que assumimos quando, como diz Henri Begson, “nous nous servons de l’espace pour mesurer e symboliser le temps”.  Tempo diferente porque não subordinado à clássica métrica, à divisão convencional do tempo, à sua medição através do relógio. E, por isso, sou tentado a subscrever os versos de W. H. Auden sobre o tempo: “And all our intuitions mock / The formal logic of the clock” (The Collected Poetry of W. H. Auden, 1945). Tempo subjectivo, pois.

1.

Há uma palavra francesa que se aplica a este tempo com propriedade: “durée”. Interessa-me, pois, como a define Bergson, no seu ensaio Durée et Simultanéité, de 1922, no III capítulo sobre “La Nature du Temps”:

la durée est essentiellement une continuation de ce qui n’est plus dans ce qui est” ou “c’est une mémoire intérieure au changement lui-même, mémoire qui prolonge l’avant dans l’après” (Paris, Félix Alcan, 2018).

Tempo vivido como fluxo. Continuação do que já não é no que é, através da memória, que acciona a mudança, a transição. A “durée” é esta transição.  Que melhor definição do que esta para o tempo poético? O tempo subjectivo é o tempo da arte e, sobretudo, o tempo da poesia. Neste livro, Fragmentos, e na minha poesia é permanente esta dinâmica da “durée” bergsoniana em acção. É como que a matriz originária da minha poesia. Do tempo da poesia. Que encontra no instante criativo a sua máxima expressão. Poesia é “durée”. E esta é o tempo da arte.

2.

Os gregos tinham a palavra chronos para designar o tempo quantitativo e extensivo. Mas tinham também a palavra kairós para designar um tempo diferente: tempo como o momento oportuno, referido, por exemplo, por Aristóteles na “Ética a Nicómaco”, falando do bem (de agathón, no texto grego “tagathòn”), das múltiplas formas como é dito, sendo uma delas o kairós (1096a, 26-27 e 32). Este tempo, designado pela palavra kairós, é o que mais se aproxima do tempo bergsoniano. O kairós. como “instante eterno”:

surge do encontro entre o passado e o futuro (…), o tempo da recordação por excelência, mas também o tempo onde há espaço para o novo”, tempo qualitativo (Joke Hermsen, Melancolia em Tempos de Perturbação, Lisboa, Quetzal, 2022, pág.s 76-77).

Mas havia ainda, no grego, outra palavra: (tò) eksaíphnês, apreensão instantânea do tempo, ou mesmo raio instantâneo e fulminante do tempo. Tempo subjectivo. O tempo da criação. A riqueza da língua e da cultura gregas a ajudar-nos nesta tentativa de aproximação entre tempo e arte. O tempo devolvido à subjectividade do artista, o passado que, accionado pela memória, se prolonga no futuro, na intuição criativa, no instante luminoso que funde passado e futuro no sublime. Ékstasis. O milagre da poesia. O poder de voo do veículo poético na “durée”, no tempo vivido, no tempo da consciência.

3.

Ao longo dos duzentos fragmentos fui viajando com a palavra tempo, sempre neste sentido, que é o que realmente acontece na poesia. Quando o poeta diz que a poesia lhe acontece é a este tempo que se está a referir. E não só na poesia. Em geral, na arte. Ela, a poesia, de facto, permite reverter o tempo, fazendo do passado futuro e do futuro passado na convergência de um tempo de intervalo – o do instante criativo. O que acontece no interior de uma dinâmica que tem no seu centro o instante, a intuição, o ponto de contacto entre o temporal e o intemporal, entre o individual e o universal, entre o contingente e o eterno. A poesia é, assim, uma arte de intersecção. E o seu tempo também o é. O desenvolvimento é tão-só a sua componente racional, apolínea. Mas a arte é filha do páthos.

4.

Trata-se de uma dinâmica que ganha sentido numa arte onde a palavra é a expressão máxima da liberdade, o veículo, a asa do tempo, a ponto de ter a pretensão de ela própria se transformar em acção efectiva, estímulo da sensibilidade, motor do sentimento e ponto de contacto entre o contingente e o eterno, entre o finito e o infinito, entre o eu e o outro, como muito bem diz Joke Hermsen, referindo a poetisa polaca Szymborska. Só mesmo por isso o poeta Pablo Neruda poderia ter dito que “la palabra es un ala del silencio”. Se as asas servem para voar, também servem para transportar o silêncio. E o veículo poético, tendo, também ele, as palavras como asas, poderá transportar o silêncio. E é por isso que a palavra poética, no seu mistério, no seu dizer velado, pode transportar o indizível, o inefável. A poesia é um ponto de intersecção entre o silêncio e o murmúrio, o sussurro. E é por isso que a verdade em poesia só pode ser alêtheia, desvelamento, como se o silêncio, através da palavra, como seu eco, e nada mais, se fosse levemente revelando. Processo a que só os “iniciados” podem, nos rituais, aceder, mas sem nunca esgotar o mistério. O murmúrio poético é o eco do silêncio. É assim que o silêncio é comunicado através da poesia: como eco.

5.

A poesia é como que a expressão de uma dialéctica entre o tempo remoto da memória, com o seu referente temporal e circunstancial, e o tempo do desejo, animado pela vontade. Desejo naturalmente referido a esse tempo remoto. E quando ela é esteticamente conseguida até pode representar a “vitória” do desejo sobre o facto, do sonho sobre a realidade, do futuro sobre o passado. E, então, o poeta tem direito aos merecidos louros da “vitória”. Em Delfos, sob os auspícios de Apolo.

6.

A fantasia poética tem um tempo próprio, o da intuição, o do instante oportuno que regista as “intensities” e lhes dá forma pela palavra. Ela trabalha no interior do fluxo kairótico, da “durée”. Daí a poesia ser uma arte tendencialmente minimalista. Na sua cumplicidade com o silêncio (a palavra poética é uma sua asa) e o movimento (que nunca quer parar). A pretensão de dizer tudo (como o silêncio) com quase nada (a palavra poética). Onde numa palavra cabe o mundo. Num instante, a eternidade e o seu discurso, o do silêncio. O seu é um tempo incondicionado, ainda que possua raízes temporais no passado. A poesia resulta de intensities registadas instantaneamente, sem mediação cognitiva. Como o amor. Um registo puro de sensibilidade. E é um tempo incondicionado porque se exprime como absoluto no instante, que não é passado nem futuro porque acontece num intervalo, numa fronteira, numa terra de ninguém. Que só o poeta pode habitar. Porque toca a eternidade sem sair da sua incontornável contingência. A poesia agarra o tempo (o passado) no instante criativo e fixa-o em palavras numa pauta poética para ulterior execução… em surdina. Ou em silêncio. De si para si. Em diálogo com a alma. Sinfonia para almas sensíveis.

7.

Quando a “maquinaria” poética entra em acção, por razões que a razão pode mesmo desconhecer, exactamente como o amor, as palavras são como que submetidas a um processo de livre associação, sem filtros, espontâneo, natural. Como se se tratasse de uma sessão de psicanálise procurando libertar o inconsciente de forças obscuras que oprimem a sensibilidade à flor da pele. Só depois a “maquinaria” intervém com todo o seu arsenal, como se se tratasse de compor uma sinfonia, dando expressão formal a essas pulsões e libertando o poeta. Pauta poética em busca da forma e do sentido aparentemente perdido, mas activo, nos confins do tempo e da consciência. A recriação como acto de sobrevivência e de projecção do tempo no tempo da arte, a “durée”. É no instante oportuno que se dá a recriação, a transição entre o passado e o futuro sob forma de fluxo no grande substracto ( hypokeímenon) que é a memória, locus do tempo vivido. Não são as musas filhas de Mnemosyne?

8.

Evidentemente que a poesia tem de possuir gravitas, densidade existencial, porque é um estado de alma ou mesmo um grito de alma. Um denso e cifrado “desabafo” espiritual. E é claro que o espírito intervém, mas ao serviço da alma. O filósofo diria que resulta de um pacto entre Diónysos e Apóllôn, pois uma coisa é a alma, outra é o espírito. Na primeira, manifesta-se exuberantemente a sensibilidade e a sensualidade; no segundo, o intelecto e a razão. Na poesia coexistem ambos, mas primacial é a alma, onde acontece a inscrição originária da sensibilidade e da sensualidade. Quando se fala de virtuosismo poético o que se está a dizer é que lhe falta, a essa poesia, chão, húmus, dor, sentimento, páthos. É puro tecnicismo desvitalizado e existencialmente neutro. A poesia assim não sobrevive, a não ser como simulacro. O excesso de espírito na poesia equivale a defeito de alma, é verdade, mas também o excesso de alma pode não resultar em poesia, em arte, em beleza.

9.

O Nietzsche reconhecia na tragédia grega a harmonia perfeita entre o “espírito dionisíaco” e o “espírito apolíneo”, a perfeição na arte. O sentimento e a razão. Dois movimentos que acontecem em tempos diferentes (um, na génese, o outro, na forma), mas que devem funcionar em harmonia, sem que um exceda o outro. Melhor: lá onde um incorpora o outro na mesma medida, reciprocamente. E, depois, a música interna da poesia ajuda a este equilíbrio porque como pauta (espírito) ela actua directamente sobre a sensibilidade (alma). Sentido com poder sensorial. E é esta a razão que me leva a considerar a musicalidade de um poema absolutamente indispensável, assuma ela a forma de rima externa ou explícita ou a de rima interna. É a toada melódica que, como fluxo estético-expressivo, confere força performativa à poesia, já que, glosando o Pierre Jean Jouve de Apologie du Poète (Cognac, Le temps qu’il fait, 1982, pág. 52), é sobretudo ela que permite que a poesia toque a alma daquele a quem é dirigida.

10.

Trata-se, pois, de um território muito delicado, mas também muito complexo, onde convergem várias dinâmicas em andamentos diferentes, tudo em perfeita harmonia para um eficaz efeito sobre a fruição esteticamente comprometida, ou seja, para uma partilha integral da beleza proposta à sensibilidade de quem por ela se sente atraída. Foi esta complexidade, esta delicadeza e esta diversidade que procurei mostrar nestes duzentos fragmentos. JAS@08-2024

Livros meus publicados por ACA Edições:

* A Dor e o Sublime. 
Ensaios sobre a Arte (2023)
* Política e Ideologia 
na Era do Algoritmo (2024)
* Fragmentos. 
Para um Discurso sobre a Poesia (2024)

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Poesia-Pintura

DIÁLOGO IMPERFEITO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “La Cortigiana”, JAS 
2023 - 71x88, papel de algodão e 
 verniz Hahnemuehle, Artglass AR70
em moldura de madeira.
Original de minha autoria.
Agosto de 2024.
La Cortigiana2023

“La Cortigiana”. Jas, 2023 (71×88, em papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Arglass AR70 em moldura de madeira). Agosto de 2024.

POEMA – “DIÁLOGO IMPERFEITO”

PERGUNTA
O poeta
À musa:
Não acreditas
Em mim,
Pois não?
Tanto de mim
Neste excesso
De palavras
Para viajar
No tempo
Ao sabor
Da fantasia
E de uma doce
Ilusão...

PARECE
Um jogo,
Não é?
Mas é vida,
É sentida
E pensada,
É em palavras
Tecida
E em palavras
Consumada.

 NO FIM,
É o verbo...
.........
E quando
Te falo assim,
Com palavras
Arrumadas
Num diálogo
Imperfeito,
Volto
A passar
Por ti,
A olhar-te
Sem te ver,
Por fora,
Mas por dentro,
Na exactidão
Cristalina
Do momento.

OLHAR
Da alma,
Digo eu,
Sem ter
A certeza
Que verei
Com nitidez
A tua,
Que o tempo
Há muito
Embaciou...

DE NOVO
Te verei
Como nas
Despedidas
Ao entardecer,
Que foram
Tantas
E tão sentidas,
A doer...

PERCURSO
De vida
Inesperado
Nas margens
Do destino
Pelos deuses
Inexoravelmente
Traçado.

POR ISSO,
A tua
Será sempre
A imagem
Oracular,
Ritual,
Que sai
Da neblina
Onírica
Dos meus versos
De jogral.

MulherLeo2024Luz

Artigo

FRAGMENTOS (XV)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 07-2024

O MEU PASSADO NÃO ACONTECEU,
MAS TENHO SAUDADES DELE

É VERDADE, dói mesmo mais ter saudades do que não chegou a acontecer do que o que aconteceu. As coisas que foram… foram. Aconteceram. E até podem gerar saudades quentes, suaves e pacíficas. Ficaram resolvidas pelo simples facto de acontecerem. As outras, as que desejámos ou as que sonhámos, mas que nunca foram, continuaram como desejos não concretizados.  Saudades frias e cortantes. O tempo, a distância, coloca esses desejos na fita da memória, onde já não podem acontecer… a não ser na fantasia. O desejo do que poderia ter acontecido mantém-se, intenso, mas só como saudade viva em ferida aberta de um tempo interior que já não pode ser revertido, porque não tem retorno.  Por isso, quando o desejo se converte em saudade, ou seja, em impossibilidade… dói.  E para curar a dor só mesmo a fantasia. A poesia. Às vezes até temos saudades do que já nem sabemos se era sonho ou desejo intenso. Só sabemos que foi intenso. E fica a dúvida se verdadeiramente do que temos saudades é, afinal, de nós mesmos, da intensidade com que desejámos ou sonhámos. O objecto do desejo ou do sonho sonhado teria sido pretexto, estímulo ou até mesmo ficção, algo inventado por nós para nos sentirmos intensamente? Para vivermos mais intensamente por dentro. Será? Para o senhor Bernardo Soares era mesmo assim. Só lhe interessavam os seus sonhos e a sua vida interior. Veja-se o que ele diz: “o meu passado é tudo quanto não consegui ser”.  Ou então: “pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser”. E, digo eu, tudo quanto não consegui ter. À minha escala, claro. De resto, “gabo-me para comigo da minha dissidência da vida”. Um passado de desejos e de sonhos. Que continuam activos, precisamente porque desejos não realizados. Só assim se pode construir futuro, não ficando sentado sobre o que se teve.  Nem sobre o que não se teve. E é aqui que entra o poeta. Levanta-se e caminha pelos sendeiros da imaginação em direcção ao futuro.

O MILAGRE DO IMPOSSÍVEL

Os poetas conseguem dar forma a desejos e sonhos e concretizá-los em palavras sobre pauta melódica, como se o ritmo, a toada, marcasse a força do desejo e da vontade de o ver concretizado. Milagre: o impossível acontece na melhor das formas. O poeta gosta do impossível e é por isso que o faz acontecer. Oxímoro? Não, obra da fantasia. E o impossível será mais real se for comunicado e partilhado. Porquê? Porque a poesia transcende o tempo e pode converter o passado em futuro. Pode concretizar o que nunca foi… mas, claro, se sentir o desejo como vivo. É aquilo a que se chama o poder performativo da poesia. “A obra mística, pertencendo à esfera humana da beleza, tem como primeira necessidade, tem como fim próximo e longínquo, ser comunicável, para determinar o mesmo na alma que ela deve tocar”, diz Pierre Jean Jouve, na sua Apologia do Poeta. É assim que o impossível acontece… na alma que ele toca. Toca com palavras e acontece. A força da beleza na partilha.

BEIJAR COM PALAVRAS

O outro dizia que o primeiro beijo (desejado) é dado com o olhar. Por que razão o último beijo não há-de poder ser dado com palavras? No princípio era o verbo. E, no fim, também?  Certamente. O Bernardo Soares conhecia bem o poder performativo da palavra e desdenhava a circularidade do encontro físico. Quando falava da posse era da posse da alma, não do corpo. Posse através das palavras. Esta permanece. Aquela esquece, como algo já feito e acabado. Foi bom, passo à frente. Com o desejo a conversa é outra… E pode ser poética. Eu sinto-a assim: a única forma de atenuar a dor que resulta do que nunca foi. O Bernardo diz que não, mas é poeta. Não é a poesia a mais poderosa filosofia existencial?

CUMPLICIDADE

O rosto retratado na minha pintura “O Retrato” não corresponde ao da musa que inspira o poeta e de quem tem muitas saudades? É provável, apesar da sinestesia sempre procurada. Afinal, sempre é um rosto de mulher… Mas digo que não corresponde porque suspeito que haja um certo conluio entre o poeta e o pintor para o perfeito “fingimento”. Um pintor perfeitamente sintonizado com o espírito da poesia. Faz-nos olhar para uma enquanto o poeta canta outra. Não lhe bastava a ilusão (provocada) da palavra, também teve de completar o fingimento com um retrato.  Cumplicidade total. O que, entretanto, sei é que o poeta não se fica por ali, não se sujeita a sofrer passivamente a ausência, carpindo saudades que doem. Sim, doem, mas se há saudades é porque há passado e se doem é porque esse passado foi intenso. Mesmo que tenha sido um passado só de desejos não cumpridos. Seja como for mereceu ser vivido. Como, não sei. Mas sei que se não tivesse sido intensamente vivido não o cantaria assim. Mas talvez tenha razão o Bernardo Soares: doem mais as saudades do que não foi ou não aconteceu. Talvez, mas não sei qual o grau de “compromisso” afectivo que houve entre o poeta e a musa que o inspira. Certamente “compromisso” intenso. Mas somente como desejo? Como sonho? Não há modo de saber. O que se sabe é que houve passado, que esse passado se tornou saudade e que a imagem da musa é o espelho dessa saudade, porque nele se reflecte precisamente o passado. Imagem transfigurada, mas imagem. De mulher. É assim que acontece o encontro entre o passado, o presente e o futuro, a matriz temporal do poema “A Carta”. Na poesia, o futuro. Sim, doem as saudades, mas é porque há passado. E é por isso que o poeta diz que é bom ter saudades. Do que foi e do que não foi. Do que aconteceu e do desejo falhado. Do fracasso. Ah, Cioran, como entendeste tão bem este mundo! O passado foi abençoado, sim, mas, no fim, doeu. As saudades atenuam dele o amargo e repõem o doce afecto quando convertidas em canção. E nada se perdeu, porque tudo foi transformado.

AS MUSAS SÃO COMO AS FADAS

As musas são tentadoras, perigosas, desafiantes e irresistíveis. Eu não sei se é esta, a de “O Retrato”, ou se, como disse, para despistar, o pintor, em conluio com o poeta, lhe alterou os traços para reforçar o mistério que há sempre na poesia e na musa que a inspira. Sim, parece mesmo que a musa está a dar a volta à cabeça do poeta, como disse um Amigo que comentou o poema… Mas se não fosse assim não haveria poesia nem poeta. Essa é que é essa! Dar-lhe, a ela, volta à cabeça? Isso é que não, ainda que ele tente. O poeta não tem esse poder. As musas são fugidias e rápidas, como as fadas. Enfeitiçam e fogem. O único modo de as atrair é com aromas fortes e acres das plantas, das flores. Elas não resistem e às vezes até ficam como que embriagadas. É então que os poetas as cantam, nas libações, na dança dos aromas e das cores. Mas logo elas voam para longe, obedecendo às deusas e sobretudo a Apolo. É este que toma conta dos poetas, depois das libações.

SOBRE A SAUDADE

O poema “A Carta” é uma meditação sobre a saudade, sobre a natureza ambivalente da saudade. A saudade como passado (vivido ou sonhado), mas também como dor, logo, a expressão de uma vida vivida que tem de ser cantada para exorcizar a dor. É bom ter saudades. Não as ter é como não viver. É como não ter passado, logo, não ter futuro, sobretudo se não se tem saudades do que não foi. Depois, elas têm sempre associado um rosto, que é o espelho delas, mesmo se esse rosto não passar de uma projecção onírica de um desejo incumprido. Nelas o poeta revê-se no passado e estremece, de novo. Recomeça a viver como se fosse a primeira vez. Dirige-se a ela, à musa, e volta a interpelá-la, mesmo sabendo que não haverá resposta. E diz de si para si: ah, não há resposta? Pois a resposta dou-a eu. É assim que surge o eco devolvido do seu silêncio sob a forma de canto em surdina. É esta a beleza da poesia. Recriar o real à medida do desejo. A poesia é a linguagem do desejo. Ou do sonho. Por isso, ela é pecaminosa. Mas é tão bom pecar… Em palavras, que sempre é mais do que pecar em pensamento. “Peccato”, dizem os italianos quando um desejo não é satisfeito, apesar de tentado. A poesia é um desejo tentado. “Peccato”.

RESOLVER O PASSADO

Tudo está nas “mãos” do tempo. O futuro que o poeta constrói, com palavras, vai-se convertendo em passado, na medida em que toma forma. Junta-se, pois, ao passado que ele cantou para o “resolver”. Ou talvez se justaponha. Mas como esse passado nunca fica “resolvido” ele tem de continuar a cantá-lo. Enquanto o tempo o permitir.

PROSA POÉTICA?

Prosa poética, a tua, dizia-me um Amigo. Talvez porque na minha poesia, respondi, a semântica  assuma uma forma especial: quase sempre conto uma história ou, então, como neste poema, “O Poeta e o Tempo”, proponho uma reflexão. Mas é claro que são sempre confissões de estados de alma sofridos. Mas é mesmo só poesia. Teimosamente poesia. Procuro não misturar estilos. Como se sabe, há poesia com forma explícita de prosa. E sem musicalidade aparente. Não é o caso. Até porque não gosto desse tipo de poesia. Para mim, componente obrigatória é a musicalidade do poema, a melodia, a toada, o ritmo. Os versos breves, às vezes de uma só palavra, ajudam a compor a toada. Quanto ao título, normalmente uso títulos curtos e que não procurem traduzir a semântica do poema. Há sempre o risco de estar a impor uma certa descodificação do poema, com prejuízo do incontornável mistério. O ideal, para mim, seria sempre um título de uma só palavra. Por sua vez, os versos de uma só palavra significam que essa palavra tem peso específico no tecido poético, seja musical seja semântico. Digamos que esta opção faz parte da minha poética. Eu procuro sempre a harmonia entre o sentido e a musicalidade (a toada, o ritmo, a rima). E isso tem consequências no processo de construção do poema.

ESTADOS DE ALMA, ESTADOS DE FACTO?

A poesia é a expressão de estados de alma do poeta em forma cifrada e, por isso, ao leitor se exige sintonia para lhe aceder. Como se para a leitura fosse necessário instalar-se no mesmo intervalo em que vive o poeta. É isso, creio. Partilhar a inquietação em perfeita sintonia. E a inquietação é, sim, desassossego. A tradução italiana do “Livro do Desassossego” é precisamente “Il Libro dell’ Inquietudine” (da Feltrinelli e com Prefácio do Antonio Tabucchi). Proprio così. Eu acho que a poesia é boa para as almas desassossegadas, inquietas.

TEMPO

O presente não existe? Talvez não. Talvez seja só um intervalo. E é por isso que o poeta vive nele. É o seu espaço vital. Cada presente que vivemos torna-se imediatamente passado, numa dialéctica entre o passado e o futuro. Na lógica do tempo, esse intervalo é um lugar de passagem. Lugar de movimento. Uma fronteira que (só) pode ser atravessada com o veículo poético. Num sentido e no outro. Para a frente e para trás, porque a poesia tem esse poder de fazer reverter o tempo. Era o Pessoa que falava desse intervalo. Que pode ser entre si e o mundo ou entre o passado e o futuro. Não parecendo, é um não-lugar privilegiado, porque é na fronteira que se vê melhor para os dois lados. Para o passado e para o futuro ou para o mundo e para si. É por isso que o poeta é um ser privilegiado. Um pouco irreal, sim, mas visionário. Como todos os visionários. Vê o que outros não conseguem ver. Com um pequeno excesso de fantasia. Até o passado ele observa como futuro, porque, ao convertê-lo (com palavras), o subtrai à inelutabilidade do tempo e o projecta no próprio movimento do tempo, ou seja, num tempo que ainda não é, mas que, quando for, se tornará, não presente, mas passado. Como identidade e como diferença. Ecco. A dança do tempo. Mas é por isso mesmo que os poetas são os seus melhores intérpretes. O poetas dançam com palavras ao som da própria melodia. Só eles podem (sobre)viver nesse intervalo entre a identidade (como passado) e a diferença (como futuro).

EKSAÍPHNÊS

O tempo e o espaço medem-se pela forma como os sentimos. E como nos movemos neles. O veículo poético, que se move com combustível emocional, está estacionado num intervalo e sempre pronto a descolar, seja para o passado seja para o futuro. O condutor é, naturalmente, o poeta. Descolar seja em direcção a si seja em direcção ao mundo. Ele reside na fronteira. Que, de facto, também é a que existe entre si e o mundo. Por isso, ele é, sim, o condutor, o que decide a direcção a tomar, embora o destino final seja sempre o futuro (que também se há-de tornar passado). Tal como o tempo também a poesia é movimento e só voando com ela é possível transcender a inelutabilidade do tempo. Na verdade, é pela sua colocação nesse intervalo entre o passado e o futuro e entre si (como outro) e o mundo que o poeta se torna um ser transfronteiriço, ao mesmo tempo pertencente a dois mundos e a nenhum. E pode olhar para um a partir do outro. O poeta é um ser de fronteira. Está no ponto de chegada do passado e no ponto de partida do futuro. E até consegue reverter ambos. O seu tempo é o do “insight”. Os gregos tinham uma palavra mais intensa para designar isto: “eksaíphnês”. Apreender o tempo de forma instantânea. E qual é, pois, a linguagem mais apropriada para isso? A da poesia, claro. E a da música, que, aliás, a poesia procura sempre incorporar, para se densificar. A matéria orgânica da poesia é composta de “intensities” e por isso ela tem de ser convertida esteticamente com os instrumentos adequados. Que nunca são de natureza analítica.

O TEMPO POÉTICO

O passado abriu caminho ao futuro e é nesse caminho que o veículo poético se move. Mas algo inquietou originariamente o condutor do veículo, funcionando a inquietação como o combustível para a viagem. O tempo poético à medida da pulsão criativa. E esta está ao serviço do tempo não poético, do passado sofrido, agora reconstruído à medida do futuro desejado. Privação sofrida, levitação desejada. JAS@07-2024

IlustFragmXVRec

Poesia-Pintura

O POETA E O TEMPO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “O Silêncio e o Tempo”
Original de minha autoria
Julho de 2024
Sil&Temp2024COR

“O Silêncio e o Tempo”. JAS. 07-2024

POEMA – “O POETA E O TEMPO”

O POETA
É um ser
Em solidão,
Vive na terra
De ninguém,
Todos se foram
De lá
E quem se foi
Já não vem.

ELE VIVE
Entre
O passado
E o futuro,
Um tempo
Que não existe
Porque se o passado
Passou
No presente
Não persiste.

O TEMPO
Voa
Em direcção
Ao futuro
E deixa
O presente
Pra trás,
Mas quando
Volta
Pra nós
Já é passado
Que traz.

NÃO É POSSÍVEL
Travá-lo,
Porque voa
Para a frente
E voa também
Para trás,
Mas se voarmos
Com ele
Não é só passado
Que traz.

O TEMPO
É devir,
É movimento,
É balanço,
É medida,
É a via
(Que é sempre
Indefinida)
Entre o que foi
E será
E como tudo
Na vida
O que trouxer
Se verá.
Sil&Temp2024CORRec

“O Silêncio e o Tempo”. Detalhe

Artigo

JOGOS DE SOMBRAS

João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 07-2024

LI E OUVI MUITOS comentários de entendidos em táctica, dizendo que António Costa era o padrinho do CHEGA porque, assim, dividia a direita para reinar à esquerda. Palavras de especialistas em táctica. Pois bem, viu-se agora, com as eleições legislativas de Março, a justeza destas belas análises: a direita obteve em conjunto cerca de 53% dos sufrágios e o PS perdeu as eleições e a chefia do governo, enquanto o PSD conservava o seu núcleo duro eleitoral. Uma bela táctica esta, com frutos ao retardador. O PS perdeu, embora António Costa, a suposta vítima do famoso e triste parágrafo, tenha ganho: conquistou o tão desejado cargo de Presidente do Conselho Europeu. Do ponto de vista pessoal, António Costa merece palmas. Do ponto de vista do PS talvez não as mereça.

1.

Mas o curioso é que o PSD (ou essa ficção que é a AD, se quisermos) tendo ganho por um fio, na verdade ganhou por mais. Ganhou a certeza de que o PS tão cedo não irá conseguir formar governo, ainda que em eventuais eleições venha a ser vencedor. Lá estará o CHEGA (e a Iniciativa Liberal), agora em evidente recuperação das europeias, segundo as mais recentes sondagens (uma delas já lhe dá 17,5%), para impedir que isso aconteça. O CHEGA nunca viabilizará um governo PS, porque isso seria contranatura. O “não é não” de Luís Montenegro tem, pois, o sabor de uma enorme hipocrisia, porque ele sabe muito bem que tem uma arma secreta que não precisa de ser ele a disparar, podendo dizer que não é sua e que até a despreza. Mas a verdade é que o CHEGA é o seguro de vida de Montenegro ou, pelo, menos do PSD.

Esta é a situação real, não ficcionada. O PSD navega em águas aparentemente tumultuosas, mas, no que conta, navega em águas muito, mas mesmo muito, calmas. O seu seguro de vida chama-se André Ventura. Ou seja, a situação é tecnicamente muito clara e só isso explica a arrogância com que o PM fala para a oposição. Porque sabe que ela é, de facto, minoritária.

2.

O que quanto a mim é grave é que esta situação já foi interiorizada pelo PS sem que, todavia, tenha daí retirado as devidas consequências. Porque, se for assim, o que Pedro Nuno Santos tem a fazer é seguir o seu caminho sem ziguezaguear: deve levar por diante a sua estratégia assente nos princípios por que se rege o PS, sem necessidade de recorrentemente fazer o discurso da estabilidade e da responsabilidade, porque essa, queira ele ou não queira, estará garantida por muito tempo. E também porque um partido como o PS não precisa de o fazer, depois de décadas de governo.

3.

Na verdade, este é o legado de António Costa, ao deitar a toalha ao chão por um medíocre parágrafo escrito sabe-se lá com que intenção e deitando às urtigas uma sólida maioria absoluta do PS. É verdade que esse seu mandato de 2022 começou mal, mas ainda terminou pior. No futuro se fará a história destes dias.

4.

Mas, falando de tácticas e do crescimento do CHEGA, na verdade o que se deve perguntar é sobre quem é que realmente promoveu, por táctica ou por ausência dela, este partido? O antigo Procurador-Geral da República, Cunha Rodrigues, falava, a propósito da justiça, numa entrevista publicada no jornal “Público” (18.07.2024), de duas teorias da comunicação, ou melhor, de duas teorias dos efeitos, que é conveniente conhecer: o agenda-setting (do senhor McCombs) e a espiral do silêncio (da senhora E. Noelle-Neumann). E o que diz a primeira? Que o importante é ser colocado no topo da agenda pública, menos importando o que concretamente se diz. E a segunda diz que uma corrente maioritária na opinião pública tende a gerar uma espiral do silêncio relativamente às tendências minoritárias. Pois a verdade é que a esquerda colocou constantemente o CHEGA no topo da agenda, ao promovê-lo a uma espécie de inimigo externo que ameaçava as fronteiras da democracia e que, por isso, era necessário elevá-lo à condição de perigo maior a combater e a aniquilar. Deste modo, talvez tenha conseguido accionar uma espiral do silêncio, mas, depois, no anonimato da câmara de voto, a confiança foi para quem ocupou o topo da agenda, não importa por que motivo. Os discursos disruptivos de André Ventura (normais para quem quer polarizar a atenção social) ajudaram muito à festa (ou seja, à polarização) e a verdade é que este partido obteve cerca de 19% nas legislativas (é este, 18,88%, o resultado que consta no DR, 1.ª Série n.º 59-A 23-03-2024, publicado pela CNE). Posição que não afectou o essencial do eleitorado do PSD e nem sequer o eleitorado da Iniciativa liberal. 53% foi o resultado. Da maioria absoluta do PS, em 2022, à enorme maioria absoluta da direita, em 2024. Falando de táctica, estamos conversados. A boa táctica ficou, sim, para outros fins.

5.

Perante esta situação o que deve, afinal, fazer o PS? Seguir o seu caminho, que será longo, e repensar a sua orientação política e ideológica, tomando em consideração que o centro-esquerda está em crise um pouco por todo o lado e que alguma razão haverá para isso. E não serve de conforto a lição do Labour porque na verdade o que os britânicos, no essencial, quiseram foi mandar para a oposição os conservadores (que governavam à 14 anos), sendo certo que a extrema-direita do senhor Nigel Farage obteve uma expressão eleitoral (não em mandatos, por via do sistema eleitoral) preocupante: mais de 4 milhões de votos. A terceira força política em número de votos obtidos, dois pontos percentuais acima dos liberais, que obtiveram 72 mandatos contra os 5 do Reform UK. Apesar do excelente resultado do Labour, somente um pouco superior ao que obtivera Corbyn em 2019, mas em que a participação fora superior em cerca de 7 pontos percentuais (cerca de 67% contra cerca de 60%), veja-se o que se diz no Relatório da House of Commons Library sobre os resultados das eleições gerais de 2024: “Labour’s vote share was 1.6 percentage points up on 2019 and was a lower vote share than any party forming a post–war majority government” (18.07.2024. 1.1.1, pág. 7; itálico meu). Quanto a França nem é bom falar, tão grande é a barafunda que se instalou na Nova Frente Popular (NFP). De resto, o Rassemblement National teve mais três milhões de votos do que a NFP, que venceu, em mandatos, as eleições (também aqui devido ao sistema eleitoral). A direita radical avança a grande velocidade e só o centro-esquerda estará em condições de a travar, desde que proceda a profundas mudanças e reconquiste a sua relação com a sociedade civil. Entretanto, e antes que a NFP tenha conseguido propor um nome para a indigitação como PM (nesta terça-feira em que escrevo ainda não se conhece um nome), Macron obteve, com o apoio dos Republicanos, a eleição de uma deputada do seu partido (a anterior Presidente) como Presidente da Assembleia Nacional. Sim, ´é verdade, mas uma coisa é certa: a vitória da NFP deveu-se aos acordos de desistência, na segunda volta, estabelecidos com o Ensemble, com o objectivo de travar a vitória do RN. Acordos pela negativa, portanto. Pois bem, também agora, e com os olhos postos no futuro, parece ser lógico que a eleição da Presidência da AN e a indigitação do novo PM devessem resultar de novos entendimentos entre estes dois blocos políticos, de onde resultaria uma base parlamentar de 350 deputados. Seria esta, no meu entendimento a via a seguir, prevalecendo o interesse do país sobre jogos de poder que acabarão por beneficiar o RN e a candidatura de Marine Le Pen à Presidência da República, em 2027.

6.

Por cá, se o PS tiver que chumbar o orçamento isso não deverá criar angústias, pois lá estarão o CHEGA e a Iniciativa Liberal para o aprovarem. De resto, ao CHEGA, com o numeroso grupo parlamentar que tem, não parece interessarem muito eleições antecipadas. Terá de se consolidar como partido (a começar logo pela máquina partidária, usando os recursos que resultam da dimensão do seu grupo parlamentar) para, então sim, seguir o seu próprio percurso, procurando inverter a relação de forças com o PSD. O encorajamento vem-lhe, de forma muito consistente, do coração da União Europeia. Por isso, que venham, pois, os “estados gerais, mas que não seja o filme habitual, com os mesmos de sempre (muitos desempregados políticos da esquerda, com ou sem think tank de apoio) prontos a ocupar lugares de destaque no PS. Sei bem o que aconteceu nos “estados gerais” de Guterres. Estava lá. De qualquer modo, a haver eleições, o PS estaria, como disse, condenado a manter-se na oposição, mesmo que as ganhasse, pois seria certa a oposição do CHEGA (e da Iniciativa Liberal) à formação de um seu governo. Perdendo-as, talvez Montenegro saísse (a crer nos seus próprios e declarados princípios), mas logo viria alguém que estabeleceria um acordo com aquele partido para a formação de um governo de direita. Os exemplos abundam, lá fora.

7.

Assim sendo, não compreendo a intriga galopante que, com a ajudinha de uma jornalista de serviço (do “Público”, São José Almeida), parece estar a grassar por terras do PS. Se erro houve, de Pedro Nuno Santos, ele consistiu em o PS ter dado a mão a um partido e a um governo que não precisavam dela por fazerem parte de uma maioria parlamentar enorme e de direita, nem que seja para funcionar somente como bloco de rejeição (de uma solução alternativa). Por isso, agora, há tão-só que corrigir o discurso e a prática e seguir em frente de acordo com uma responsável “ética da convicção”, enrobustecida por uma séria reflexão sobre a identidade do PS e sobre a sua orientação programática e estratégica. Terá tempo para isso. A não ser que, como disse Luís Montenegro acerca do PSD, também o PS não tenha problemas existenciais. Mas tem. E não são poucos, como tenho vindo aqui a sinalizar em inúmeros artigos. E confesso também que não seria muito interessante ver repetida, em Novembro, a famosa “abstenção violenta” do PS de António José Seguro, mesmo que, agora,  não violenta, mas violentíssima. Essa posição só menorizaria o PS, transformando-o em “tigre de papel”, como se dizia outrora em linguagem maoísta. O risco é mesmo esse: o de Pedro Nuno Santos se transformar num “tigre de papel”. Espero que não. JAS@07-2024

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Poesia-Pintura

A CARTA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “O Retrato”
JAS 2022
* 68x80, papel de algodão
- 310gr - e verniz Hahnemuehle,
Artglass AR70 em moldura
de madeira.
Original de minha autoria.
Julho de 2024.

JAS_ORetrato072024

“O Retrato”. JAS 2022.

POEMA – “A CARTA”

OLÁ, COMO ESTÁS?
Eu estou bem
E saudades
Não me faltam,
Não caio
Em negação,
Quando elas
Mais apertam
Subo ao Monte,
Lá no alto,
Em busca
D’inspiração.

NÃO PARECE,
Mas é bom
Ter muitas
Saudades de ti,
Quer dizer
Que há passado,
Esse tempo
Abençoado
Que contigo
Eu vivi.

POR ISSO, SIM,
Eu estou bem
De saudades,
Embora mal
De passado,
Com imaginação
Vou vivendo
Como te tendo
A meu lado.

E, OLHA,
Se nunca mais
Te encontrar
Passo
A inventar
Encontros
Que nunca
Hão-de ter fim,
Recrio
A tua alma,
Desenho-te
Só para mim.

NÃO ME FIXAREI
No teu corpo,
Ia doer,
Faz sempre mal,
Por isso vou
Projectar-te
Num ecrã
Que é mental.

COM A FORÇA
Do desejo
Recrio o tempo
Que foi,
Recrio
Esse passado,
Evito, assim,
O vazio
E revejo-me
A teu lado.

QUE MAIS POSSO
Eu fazer?
Perder-te
Como poeta?
Deixar
As saudades
Pra lá?
Repetir o abandono
E perder-te
Também cá?

AH, ISSO EU
Não farei,
Ganhei nova
Identidade,
Voltar atrás
Já não posso,
Não depende
Da vontade,
Por isso eu vou
Em frente
Pra cantar
A tua imagem
Como espelho
Da saudade.

ORetrato2024Pub

Artigo

FRAGMENTOS (XIV)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

OSilêncioeoTempo2024

“O Silêncio e o Tempo”. JAS. 07-2024

“APANHAR OS CACOS”

RECRIAR O QUE SE DESLAÇOU – é para isso que existe a poesia. Tarefa delicada, a de voltar a reconstruir as palavras que se deslaçaram e, com elas, o real, que, também ele, ficou à deriva. Em linguagem popular dir-se-ia que o poeta “apanha os cacos” e reconstrói o vaso, tornando-o mais belo do que já era.

ALQUIMIA

O tempo selecciona e valoriza o que pode perdurar. Extrai da matéria a parte preciosa, o núcleo aurífero, e dá-lhe forma para que resista. Alquimia. Também a poesia tem algo de alquímico. A beleza é o resultado deste processo e é obra desse escultor, o poético alquimista. O tempo deita fora o contingente e fixa-se no que pode perdurar. Há, claro, neste processo uma componente subjectiva, como existe em todos os processos sujeitos a crise. E o tempo é o grande cúmplice do artista. Ambos valorizam e fazem perdurar o essencial. E é assim que dão sentido à vida. Da miséria existencial eles retiram o que a transcende e permite que a vida não fique por ali. E que perdure. A arte é alquímica, não química, é espiritual e está menos sujeita à erosão. Ela é aliada ou cúmplice do tempo. A beleza é o ouro da arte, mas para a obter é preciso extraí-la e lapidá-la. Alquimia. Sim, alquimia.

 “DURÉE”

Há muitos anos que prossigo o meu ritual poético, ao domingo. É o meu ritual. Não vou à missa, vou à poesia. Nela há deuses e deusas. E oráculos. E libações. E cânticos. E orações. Sim, o tempo vai transformando as imagens registadas na memória, mas as  impressões sensoriais originais evoluem para imagens cada vez menos nítidas que, por isso, e para ganharem nitidez, precisam de ser convertidas em palavras. Se valer a pena? Não, se ficaram inscritas na fita da memória. Se for algo que perdurou. E é claro que existem fragmentos de memória mais intensos do que outros e que se impõem ao processo selectivo. Depois, o passado fica mais nítido graças às palavras. E diferente. E se essas forem escritas e ditas com assonâncias, com a melódica toada poética a caminho da harmonia, da beleza e do sentido, então, ficará garantida a “durée”, a preservação do que foi sentido originalmente de forma intensa. A preservação do efémero transfigurado. O intervalo entre o sensível, o contingente e o metatemporal, o absoluto, o intemporal é o terreno dinâmico da poesia. Ela conquista essa espécie de “terra de ninguém” (mas é claro que há lá sempre alguém) e nela constrói as suas edificações, os seus castelos, as suas fortificações. A arte selecciona, porque só regista o que foi intenso e perdurou na memória com canais de acesso. O registo da intensidade é do poeta, da sua sensibilidade.  É como o tempo. Só resiste à sua erosão o que é precioso, como nos minerais.  Mas é preciso aceder à profundidade da memória e lapidar o que lá ficou inscrito. A poesia, para o fazer, faz como que associações livres num discurso estético até que chega ao resultado final. Uma espécie de processo de tipo psicanalítico revestido de beleza. Traz à consciência poética o que por lá estava em silenciosa ebulição.  A poesia, assim, fica a meio caminho entre o contingente e o eterno, entre o sensível e o intemporal, o absoluto. Tem elementos de ambos, do sensível e do intemporal. É uma arte em movimento, aberta. E é por isso que é polissémica e que pode ser partilhada “por dentro”.

 EROSÃO

A erosão da relação sensorial originária do poeta com a musa acontece. Mas é uma erosão que pode ser contornada pelo recurso ao poder de resgate da palavra poética. O tempo é escultor e, portanto, selectivo. E a poesia quando é cúmplice do tempo pode fazer milagres com as “palavras deslaçadas” do passado, as que o pintor exibe quando, a pedido do poeta, reinterpreta o poema e o devolve à sua origem. É deste milagre que o poema “O Tempo e a Palavra” fala.

TUMULTO

Alma em tumulto é a que é pacificada pelo choro poético. A poesia é lugar de onde já nunca se sai. Um amigo pergunta-se, em diálogo comigo, se, afinal, a vida não será mais dor do que felicidade. Respondi que não sabia. Mas que sabia, isso, sim, que a poesia nasce do impacto não resolvido da sensibilidade com o real, por onde se passeiam as musas tentadoras e fugidias, sim, mas também onde acontecem embates da aveludada sensibilidade do poeta com tudo o que é áspero, crespo, anguloso, rígido. A poesia é murmúrio de almas em permanente tumulto.

PALAVRAS DESLAÇADAS

Foi na releitura de um seu belíssimo livrinho (La Terra dei Lotofagi, Milano, Vanni Scheiwiller, 1993) dedicado a Mécia de Sena (mulher do seu amigo Jorge de Sena), que a Luciana Stegagno Picchio me ofereceu, em Roma, no ano da publicação (1993), que tive a ideia de desenvolver um poema a partir de “Lotofagi”, uma sua breve poesia. O poema “O Tempo e a Palavra” (que também é uma modesta homenagem in memoriam) valoriza as palavras, dando-lhes o poder de criarem o passado, como ela diz. Mas a verdade é que no passado também às palavras lhes acontece deslaçarem-se. Também elas fazem parte do passado, sofrendo erosão, embora tenham um ilimitado poder de resgate. A pintura com que ilustrei o poema, “Palavras Deslaçadas”, representa-as, por isso, deslaçadas, enquanto o poema procura reconstruí-las para recriar esse passado à medida do poeta e do seu próprio presente. Para darem nova vida ao passado deslaçado. Utopia de poeta.

O BEIJO

O dia seis de Julho é o dia do beijo. Há outro dia, em Abril, que também é. Ainda bem. O beijo merece muitos dias, muitos meses, muitos anos. Até séculos. Mas não sei se os beijos em forma poética chegam sempre ao seu destino. Se é que eles têm destino marcado. Talvez não. Mas, se tiverem, podem não chegar. Andam muitos fantasmas no ar sempre prontos a interceptá-los, para os beberem. O Kafka testemunhou isso. E di-lo nas Cartas a Milena. Eles estão sempre famintos de beijos. Os fantasmas embriagam-se de amor e poesia, logo, de beijos cantados? Ou, simplesmente, esse é o seu alimento? Prazer ou sobrevivência? Talvez as duas coisas. O poeta, quando nasce, passa a trazer consigo um fantasma que o seguirá sempre, toda a vida. E onde há musas, há poetas e há fantasmas. Se o alimento dos fantasmas são mesmo os beijos que o poeta envia à musa, pode ele deixar de os dar, de os enviar? Não. Perder-se-iam os fantasmas (eles na vida multiplicam-se e precisam de muito alimento) e, consequentemente, o próprio poeta. É por isso que ele tem sempre de recomeçar a escalada ao Monte, como Sísifo. Um incansável produtor de beijos em forma de verso. Como se vivesse permanentemente em pecado e tivesse constantemente de se redimir através da poesia. O pecado inocente como forma de vida. Através de beijos poeticamente comprometidos. O preço a pagar? Sim, perdendo no trajecto os beijos que destina à musa. Talvez seja mesmo castigo. De algum modo tem razão o Emil Cioran ao falar de poética do fracasso. Mas felizmente que é poética, mesmo que seja do fracasso: supera-se no modo como o enfrenta. Faz da fraqueza força. E mais: partilha o que sente. Na partilha, o poeta redime-se, procurando seduzir. É a beleza que o salva. E ela cobre como um véu o sentir do poeta. O fingimento, de que se fala, está concentrado todo na forma e a verdade é a própria energia propulsora. O que o move. É isso? Não sei. Seria necessário perguntar ao fantasma de estimação… Mas será que ele não diria que vale mais um beijo do que mil palavras? Ou que há palavras que, afinal, valem mil beijos? Porque são dadas com a alma. Não sei o que me diria. O que sei é que o beijo é a poesia dos sentidos (Balzac) e que quem beija perde-se, como o poeta se perde (sai de si) quando entra em êxtase e diz o que lhe vai na alma. Perde-se na partilha. É como se no encontro do beijo as almas transmigrassem, desaparecendo as fronteiras corporais. Já não se sabe o que é de um e o que é do outro. O mesmo acontece na partilha poética, onde a componente física é a sonoridade, sopro físico da alma. A sintonia (a simbiose) que um poema pode provocar entre o criador e o fruidor é como a do beijo. O poema – lugar de encontro, de partilha e de abandono. O traço de união: a beleza.

FANTASMAGORIA

Cada verso é um beijo. Dado com a alma. Um poema é carícia feita de beijos. Mas pode nunca haver chegada: um beijo que nunca chega, a não ser com os olhos da alma, seja o primeiro seja o último. O poeta parte, ficando. Tal como a musa, que, partindo, fica na fantasia do poeta. E, por isso, ele leva a perda consigo e verbaliza-a, canta-a, partilha-a. Lapida-a como pedra preciosa. O poema “O Beijo”, que sempre publico no dia seis de Julho, é feito de beijos escritos. É uma longa carícia. O vento levou-os, mas não sei se, quando estão a ser levados para o seu destino, foram ou estão a ser bebidos pelos seus cúmplices, os fantasmas. Talvez nem tenham destino. Talvez sejam dados para se perderem no caminho. O beijo confunde-se com o processo criativo. A poesia, de certo modo, é fantasmagoria. Creio que foi o T.S. Eliot que disse, falando de Coleridge, que o poeta quando é visitado pela Musa atrai fantasmas que o hão-de perseguir durante toda a vida. E o Kafka, numa carta a Milena, diz que os beijos escritos são bebidos pelos fantasmas durante o trajecto. É mesmo fantasmagoria o ambiente em que a poesia acontece. E são beijos de verdade, os do poeta, apesar de ser fingidor. Se não fossem beijos de verdade, os fantasmas, enganados, morreriam à sede. Eles não podem sobreviver alimentando-se de simulacros. Mas, se assim fosse, também o poeta definharia. E a musa? Que seria da musa sem uns e outros? É ela que lhes dá vida e, por isso, sem eles, também ela definharia. Não poderia reproduzir-se. Está tudo ligado.

RAPTO DA ALMA

Apesar de haver outra, eu fixei-me nesta data, seis de Julho, vá lá saber-se por que razão. Talvez seja dos astros. Talvez seja das musas. Mas, se é verdade o que diz o Eliot, talvez seja da musa. Como poderia duvidar deste enorme poeta? Sim, é verdade que o beijo não é remédio que tenha contraindicações. Nem se lhe conhece efeitos de habituação ou perda de eficácia.  Pode dar-se à vontade. E se o beijo físico requer consentimento, que o diga o Rubiales, o beijo poético é livre. Uma vez dado voa com o vento. Vai por aí, à espera de quem o acolha. Na verdade, o beijo é um rapto da alma. E também é um repto da alma. De repente, acontece. Basta o olhar para provocar estremecimento e o desejo de beijar. No primeiro beijo e por aí em diante. É um rapto e é um repto: físico, da alma, poético. Desde que seja beijo.

OS VERSOS SÃO BEIJOS

Os beijos vão com o vento e não se sabe para onde o vento os levará. E os fantasmas viajam com o vento. Porque sabem que os beijos escritos é assim que viajam. Os poetas dão assim, com a alma, os beijos que falharam, com os sentidos. Não sabem se chegarão até às musas, mas, mesmo assim, eles tentam. É no tentar que está o ganho. Tentações. Não conseguiram seduzir com os sentidos tentam com a alma. Tentam seduzir com a beleza. Tentam o rapto da alma. E, ao mesmo tempo, lançam um repto. Os beijos poéticos. Se, como dizia o senhor Honoré, o beijo é a poesia dos sentidos, então, a poesia é o beijo da alma. E é por isso que os fantasmas o podem interceptar. Eles gostam de beijos. E esse é o mundo deles. E também é o mundo dos poetas, que nascem da visita da musa. E do estremecimento que esse encontro provoca. E da vontade de beijar, que se lhe segue. Depois, vão por aí, como jograis. O seu destino é cantar até doer. E porque dói. O Cioran tinha razão. Tudo na vida é contingente, imperfeito e destinado ao fracasso. Mas felizmente que há a poesia (e em geral a arte) para nos resgatar. Sim, a ideia de que os versos são beijos é certeira. Os beijos resgatam. E se o primeiro beijo é dado com o olhar por que razão não poderíamos beijar com as palavras. No princípio, afinal, era o verbo. No princípio não se beijava? O beijo é como o verbo – conjuga-se. E há dias que são mesmo dias de conjugação. Por exemplo, o dia seis de Julho.

ABRAÇO

O abraço é um beijo conjugado no masculino.

ANARINA E A BRISA

Beijos enviados e recebidos da e na beira-mar. São mais frescos, em tempo de Verão. Há brisa, como no Nordeste do Bandeira e da Anarina. E é bom que o beijo chegue como brisa, suave, fresco. Os beijos da alma são assim. Quase se pode viver deles como da brisa de que o poeta, com a Anarina, queria viver. Porque perduram. Mesmo que fantasmas os bebam. Sobrevivem transfigurados, mas perduram. Estes beijos da alma são mesmo para comer e para beber. Mas não só pelos “subalimentados do sonho”. Também pelos que se banqueteiam de sonho. Os fantasmas, esses sim, precisam deles para sobreviver, não porque sejam subalimentados do sonho, mas porque habitam o próprio sonho. A pintura (“O Beijo”) alude a isso mesmo: o beijo como alimento da alma. Dá-se e recebe-se… sobrevive-se.

A FRONTEIRA

O beijo é dado às portas do paraíso? Talvez. É um território de fronteira. Sensorial e espiritual. A poética dos sentidos. O dia do beijo é todos os dias, embora possa ser mais de uns dias do que de outros. Acontece ao ritmo da emoção, da pulsação sensorial e dos chamamentos da alma. Beijar é como estar na fronteira. E a tentação é passar para o lado de lá. Pecado.

PRETEXTO?

Não sou grande adepto dos dias especiais. Mas no caso do Dia Internacional do Beijo acabo sempre por usá-lo como pretexto para viajar até ao centro desta bela manifestação de afecto humano através da poesia, assumindo-a como se, neste dia, eu próprio sentisse uma absoluta necessidade interior de beijar, um autêntico imperativo. Assim, a efeméride ganha substância, sentido e beleza, tudo o que o beijo encerra em si. É um pretexto porque, afinal, todos os domingos beijo com os versos que escrevo e partilho, se é verdade que a poesia é um beijo da alma, tal como o beijo é poesia dos sentidos. Para mim, a poesia resulta de uma exigência interior. Pois também esta, sobretudo esta, a do beijo, resulta de uma incontornável exigência interior. E é também um acto de liberdade. Beijar assim, sem esperar que o beijo seja retribuído. Mas, se for, tanto melhor.

BEIJAR COM PALAVRAS

Sintetizar o universo que um beijo encerra é praticamente impossível, mesmo para um poeta. “E mesmo assim eu tentei”. Talvez porque o receio de que o beijo não chegue leve a que ele se concretize plenamente nas palavras com que é dado, e em todas as dimensões possíveis. Procurar com palavras o que não se consegue com actos, de modo a que as palavras se tornem actos, a que cada verso se transforme em beijo e o poema num demorado e apertado abraço. Falo muitas vezes na performatividade da poesia. E aqui, no beijo escrito na pauta melódica da poesia, ela é intensa. Sente-se. “How to do things with words” reza o título do livrinho do Austin. Nada melhor, para isso, do que um poema. Dizer num poema “amo-te” é bem mais performativo do que dizer “está aberta a sessão”. Trata-se de beijar com a alma, na ausência do corpo. Não podendo escrever a poesia com os sentidos, dá-se o beijo com a alma… através da poesia.

JARDINS

A natureza que se exprime nos jardins dos poetas é sempre especial. Os poetas cuidam dos jardins e regam-nos com palavras. O idiota olha para o jardim do poeta e diz: “precisa de ser regado”, sem olhar para o seu, onde as flores estão todas murchas.

INTROSPECÇÃO

Os versos do Guerra Junqueiro no poema “Idílio” (“A Musa em Férias”), em leitmotiv do poema “A Visita”, enaltecem o jardim, o cantado e o pintado (“A Musa e o Jardim”). E é verdade que no jardim corre vida, tal como ela é – renovação, mas também frustração. É a beleza de tudo o que é vital e contingente, sujeito a erosão. O poeta assistiu a uma transfiguração e julgou que com a musa em forma de arbusto a ser assaltada por rosas também o estro se esfumava. Há sempre esse risco, pois há. Mas a fragrância da vida põe-lhe remédio. E ele lá recupera o que julgava estar a perder. E canta, canta o regresso da musa e da inspiração. Introspecção? Sim, o que é a poesia senão uma estética introspecção estimulada pelos aromas que circulam na sua vida, na vida do poeta? E, com os aromas, as musas, que não lhes (aos perfumes) resistem. A relação do poeta com as suas musas, mas há sempre uma que domina (neste caso, a Erato), é sempre muito delicada e acontece sempre num ambiente de um certo velamento, ou fingimento, para que ele possa chorar a sua dor sem suscitar compaixão, cobrindo o choro de beleza musical. É a poesia que lhe permite isso, a beleza e a musicalidade do choro. O poeta confunde-se com as palavras com que age, esconde-se e revela-se nelas. E elas são a sua própria fronteira. Prosseguir para além delas é sempre perigoso… para a sobrevivência do poeta. Mas a tentação existe…

TRANSFIGURAÇÃO

No poema “A Visita” fiquei-me pela “ilha dos amores”, o andamento nono do poema (o último), o meu jardim encantado, onde um loureiro dá uvas e também pode dar rosas. E quando isso acontece o poeta é provocado para cantar o insólito, mas também fica um pouco perdido porque lhe parece que a sua musa se transfigurou. Tenta cantar, mas é-lhe mais difícil. Ele precisa mesmo que a musa o olhe nos olhos e lhe diga: “canta, poeta, canta para mim”. Mas, transfigurada, ele (quase) não a reconhece. Só os aromas do jardim o resgatarão, porque onde há perfumes há musas e ele, inebriado, sente a sua presença e recomeça a cantar. Só depois percebe que também o loureiro precisa de rosas, precisa do aroma do jasmim e até de uvas. Que ele ganha vida assim. Transfigura-se e provoca espanto no poeta. Afinal, não são só os filósofos, também os poetas são estimulados pelo espanto. Na poesia diz-se estremecimento. É mais sensitivo. Mas equivale ao espanto. Mistérios da poesia. Só geríveis com a fantasia. O arbusto está ali e fala, tem olfacto, visão e acasala com roseiras ou com videiras. Embriaga-se com o perfume do jasmim e engravida do sol que entra por ele adentro. É um ser vivo. E o poeta sabe disso. Por isso, quando vai ao jardim nunca sabe o que acontecerá. Certamente poesia, mas que poesia nunca sabe. Serão os aromas a decidir. Eles embriagam e será nesse estado que o poeta cantará. Dionísio, o reino de Dionísio. Só depois chegará Apolo.

INQUIETUDE

As musas são imprevisíveis. Oh, são mesmo. Os poetas vivem em permanente sobressalto. Nunca sabem o que pode acontecer. E sem elas não há poesia. Mas eles também sabem que elas são perdidas por aromas, por perfumes. Por flores. E que não resistem a um perfume acre e intenso. É por isso que tenho jasmins no meu jardim. Aquele aroma é potente e atrai-as, sobretudo ao entardecer. Mas, mesmo assim, a vida de poeta é uma inquietação permanente. Um desassossego. É como tudo na vida. Tudo é contingente. Mas é claro que o poeta tem recursos que dependem só dele. Nem poderia ser de outro modo. Conserva na memória as imagens mais impressivas da sua tumultuosa vida e dispõe do mecanismo da “moviola” para rever esses fragmentos de vida vivida e para os converter num filme poético. Os aromas que andam no ar também atraem os poetas e não só as musas. E eles estimulam-nos. Mas, como na vida, nada é seguro. É por isso que cada poema é um milagre. E os poetas acreditam em milagres. E em fantasmas. E as musas são como as fadas. São rápidas e imprevisíveis, mas também elas dependem dos poetas, dos fantasmas e dos milagres. Esse é também o mundo delas. Por isso não há razão para nos inquietarmos se algum poema denunciar instabilidade na vida poética do poeta. Os milagres acabam sempre por acontecer. Haverá sempre um perfume que inebria uma musa e a atrai ao poema. E lá estará o poeta para o compor.

A RESSURREIÇÃO DO POETA

A poesia tem diversas camadas de subjectividade, do sentir aos recursos estilísticos. E ao ler o que uma leitora me disse sobre o perfume dos jasmins (os versos exalam intensamente o acre perfume do jasmim) senti como real a dimensão performativa da poesia. Talvez a musicalidade, a toada, a melodia ajudem a isso. Sim, acho mesmo que cada poema é um milagre. Nele o poeta “ressuscita”, reinventa-se e no fim nem sabe bem como é que tudo isso aconteceu. E até chega a olhar para o poema como algo que lhe é exterior e até estranho, apesar de não ser. Às vezes lembro-me da doutrina da predestinação e do modo como descobrimos se fomos tocados pela graça. Claro, aqui num plano integralmente laico. Talvez seja o poder de um sentimento muito forte que nos atravessa como raio e que fica registado em nós como energia em tensão. Uma experiência seminal que acciona de modo especial a sensibilidade e que fica como se fosse um dispositivo congénito. Accionado o dispositivo, ele permite pôr em movimento a maquinaria poética. Por exemplo, o dispositivo do amor.

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“O Silêncio e o Tempo”. Detalhe

Poesia-Pintura

A VISITA

Poema de João de Almeida Santos
em nove andamentos.
Ilustração: “A Musa e o Jardim”.
Original de minha autoria.
Julho de 2024.

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“A Musa e o Jardim”. JAS. 07-2024

LEITMOTIV

“Ah, que inefável pureza!
Que candura imaculada!...
Dir-se-ia que a Natureza 
Nasceu esta madrugada!...”

Guerra Junqueiro, “Idílio”
(A Musa em Férias)
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.

(...)

Desce. Virá um dia em que mais bela,
Mais alegre, mais cheia de harmonias,
Voltes a procurar a voz cadente
Dos teus primeiros dias.
 
Machado de Assis, “Última Folha”
(Crisálidas)

POEMA – “A VISITA”

I.
FUI VISITAR
O jardim
Num quente dia
De Verão
Às voltas
Com a memória,
Nem sei bem
Por que razão...
II.
E QUE VEJO
No jardim
Quando acabo
De chegar?
Vejo loureiro,
Vejo jasmim,
Vejo mil cores
Fabulosas,
Camélias
Brancas
E rosas,
Explosão
De alegria,
Um bailado
De aromas
Num jardim
Em euforia.
III.
AH, MAS À SOMBRA
Do loureiro
O insólito
Acontece:
Rosas trepam,
Dão-lhe cheiro,
Já nem loureiro
Parece.

IMITAM
O velho enlace
Da videira
Cardinal
E provocam-me
A rima
A cada passo
Que dão
Na subida
Lá pra cima,
Para o alto
Do arbusto,
Onde rosas
Lá não chegam
Nem sequer
A muito custo.
IV.
O ESTRO
Já é escasso,
Foi-se a musa,
Não a sinto,
Procuro-a,
Mas troco
O passo,
Fica difícil
O verso,
Impossível
O abraço.

NEM O JARDIM
Já me salva
Da funda
Melancolia,
Vou tentando
E não consigo
Já ver nele
O que eu via.
V.
E SE VOLTAREM
Aromas,
Mas faltar
A minha musa,
Mesmo assim
Há poesia?
Aromas
Atraem musas
E o poeta
Não sabia?
VI.
AH, ENTÃO 
Agora
Que sinto
Aromas
Renascendo
No jardim
Talvez a musa
Regresse
Como aroma
De jasmim
E talvez ela
Desperte
Os versos
Que eu conservo
No mais
Íntimo de mim.
VII.
O LOUREIRO
Já tem rosas,
A musa já
Regressou
E o estro
Do poeta
É fonte
Que não secou.
VIII.
VIVA A ARTE,
Viva o poeta
E os aromas
Do jardim,
Viva a musa
Que regressa
Com poemas
Para mim.

VIVA EU
E viva ela
 Quer a veja
No jardim
Ou a veja
Da janela,
O estro
Já regressou,
Rejubila
O poeta
Graças ao
Regresso
Dela
E ao que dela
Lhe sobrou.
IX.
ASSIM RETOMA
O canto
E a vontade
De cantar,
As musas
São sedutoras
E o poeta
Tenta ser
Mas quando
As musas
O deixam
Já não sabe
Que fazer,
Por isso vai
Ao jardim
À procura
De aromas
Em busca
D’inspiração
Porque sabe
Que os aromas
São das musas
A mais forte
 Sedução.

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Artigo

A REPÚBLICA E O REPTO DEMOCRÁTICO

As Legislativas em França

Por João de Almeida Santos

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“Surprise!”. JAS. 07-2024

MUITOS COMENTADORES (a quase totalidade, diga-se), vistos os resultados da primeira volta das legislativas, não só anteciparam imediatamente uma segura vitória do Rassemblement National (RN), sem tomar na devida consideração as características do sistema eleitoral francês, mas também criticaram fortemente Emmanuel Macron por ter convocado eleições. Mesmo depois de conhecidos os resultados, o Director de “Le Monde”, Jérôme Fenoglio, em Editorial, classificava a dissolução da Assembleia Nacional como “inconséquente”. Sem razão, no meu modesto entendimento. Duplo erro, o destes comentadores, como se viu e se tomarmos na devida consideração os resultados eleitorais finais. Depois daquela vitória do RN nas europeias (com 31, 37%), o PR não podia continuar como se nada tivesse acontecido. Ficou gravemente ferida a legitimidade política da maioria e seria necessário confrontar os eleitores franceses com a própria responsabilidade do voto nas europeias, pondo em cima da mesa a questão do rumo político a seguir. Mas, não, a visão de muitos comentadores reduz-se a uma mera visão da política como cálculo em função do poder exercido ou a exercer. Ou a legitimidade do poder como circunstância  puramente instrumental. Legitimidade que se está a revelar cada vez mais como legitimidade flutuante e que é necessário tomar na devida consideração para que não se entre em risco de anomia política e social. E a França sabe bem o que isso representa. As eleições não servem somente para designar representantes, elas servem também para lhes conferir legitimidade. Macron, embora tenha tido certamente em consideração a natureza do sistema eleitoral e o histórico do sistema eleitoral francês, e tendo em consideração os resultados das europeias, sentiu que chegara o momento de reconduzir a política institucional à vontade dos franceses, expressa em eleições. E ficou, de novo, claro que a direita radical crescera muito e que esse crescimento, que foi evidente nas europeias, iria condicionar de forma significativa a vida política francesa. Havia, pois, que perguntar aos franceses se confirmavam ou não o que se verificara nas recentes eleições. O sistema eleitoral francês, maioritário em duas voltas, é, neste sentido, muito interessante porque se a primeira volta permite um voto de convicção ou de manifestação de descontentamento, a segunda volta permite um voto de responsabilidade. E foi isso que aconteceu, apesar de o RN ter tido, de longe, o maior número de votos: mais de 10 milhões.

Macron não tem, pois de “s’incliner”, como quer Mélenchon, porque fez o que devia perante a efectiva alteração da relação de forças política e o consequente perigo de uma progressiva degradação política do país. Degradação induzida pela imagem de que o RN já representaria politicamente a maioria dos franceses. Houve, pois, uma “clarification” que confirmou, sim, a crescente força de RN (nas eleições de 2022 tivera 89 deputados), mas não ao ponto de ser politicamente maioritária no país, pese embora o alto número de votos conseguido.

I.

O RN de Marine Le Pen/Jordan Bardella ficou muito longe da ambicionada maioria absoluta na Assembleia Nacional, deixando de poder reivindicar a formação de um governo liderado por Jordan Bardella e ficando, de novo, periclitante a meta fundamental de Marine Le Pen: chegar ao Palácio do Eliseu. O RN aumentou consideravelmente a sua representação na Assembleia Nacional, mas nem sequer se confirmou como primeiro bloco político, tendo ficado em terceiro lugar, depois da Nova Frente Popular (NFP) e do ENSEMBLE, de Macron,  ou seja, longe dos valores que lhe permitiriam chegar ao Hotel Matignon. A verdade, todavia, é que RN confirmou, com resultados muito consistentes, a tendência que se tem vindo a verificar em toda a União Europeia: o reforço substancial da direita radical nos mais importantes países da União e a sua caminhada para o poder.  Essa tendência de algum modo acabou por se manifestar também no BREXIT, mas ficou com reduzida expressão nestas eleições. Reform UK, de Nigel Farage ficou-se pelos 5 deputados, apesar dos mais de 4 milhões de votos, equivalentes a 14,3%. Também aqui o sistema  – maioritário uninominal a uma volta: “first-past-the post” – penalizou a extrema-direita de Farage.

II.

Mas para que não fiquem dúvidas sobre o que se passou em França na primeira volta das legislativas, vejamos alguns dados.

  1. França – Legislativas 2024, convocadas pelo Presidente Macron depois dos resultados das recentes e surpreendentes (ma non troppo) europeias de 2024 e de uma expressiva vitória da direita radical (RN).
  2. Eleitores: 49, 3 milhões.
  3. Sistema eleitoral: uninominal maioritário em duas voltas: são eleitos na primeira volta os candidatos que obtiverem maioria absoluta, indo à segunda volta os que tiverem obtido pelo menos 12,5%, disputando-se a competição entre 1) os dois mais votados; 2) os três que superaram a fasquia dos 12,5% (“triangulares”); 3) os quatro que também obtiveram este resultado (“quadrangulares”). 1) 190; 2) 306; 3) 5.
  4. São 577 os círculos eleitorais e, portanto, 577 os deputados, fixando-se, pois, a maioria absoluta em 289 mandatos.
  5. Votaram cerca de 33 milhões de eleitores (66,71%). Abstiveram-se cerca de 16 milhões de eleitores (33,29%).
  6. Foram eleitos directamente, na primeira volta, 76 deputados (em 577).
  7. O Rassemblement National, aliado à facção dos Republicanos de Eric Ciotti, obteve 33,35%, com cerca de 10,7 votos milhões de votos, tendo, na primeira volta, eleito 39 deputados.
  8. O NFP, esquerda unida em frente popular, obteve 28,28%, com mais de 9 milhões de votos, tendo, na primeira volta, eleito 32 deputados.
  9. O partido do Presidente, Ensemble, obteve cerca de 21,8%, com 6,9 milhões de votos, tendo, na primeira volta, eleito dois deputados.
  10. Os Republicanos (que não se aliaram com RN) obtiveram 7,25% cerca de 2, 3 milhões tendo, na primeira volta, eleito 1 deputado.
III.

Pelo que se vê, tudo ficou por decidir, dependendo os resultados das alianças que, na segunda volta, fossem efectuadas em cada um dos 577 círculos eleitorais. E as desistências que viessem a verificar-se, com o objectivo de barrar o caminho ao RN, seriam decisivas. Estas desistências dos candidatos que não estivessem em condições de ganhar foram feitas em função de uma variável central: a da direita radical. Assistimos, assim,  na segunda volta, a uma redução das 306 “triangulaires” para 89. Em nome da democracia e dos valores da República, mais do que em função de um concreto programa político. Ou seja, na segunda volta a polarização intensificou-se como resultado da dupla vitória da direita radical (nas europeias e na primeira volta), um avanço enorme em relação a todas as anteriores eleições. O centro do debate foi, pois, a direita radical, o que pode ser considerado como a sua terceira vitória: a polarização integral da atenção social e política sobre si. É certo que esta polarização, apesar de lhe ter confiado um maior número de votos, se virou contra ela (Bardella consideraria as desistências à esquerda como resultado de uma aliança da desonra), mas também é certo que a ajudou a crescer eleitoralmente de forma muito significativa. “A maré sobe” e a “nossa vitória só ficou diferida” no tempo, dizem.  RN é, de facto agora o maior partido francês (com 126 deputados), seguido do “Renaissance”, de Macron (com 102), de “La France Insoumise” (com 74), do PS (com 59), de “Les Républicans” (com 45), de “MoDem” (com 33), de “Les Verts” (com 28), de “Horizons” (com 25) e, finalmente, do PCF, com 9. Este o quadro partidário que resultou destas eleições. Tudo isto, em matéria de mandatos, apesar de o RN ter obtido na segunda volta mais de três milhões de votos e mais de 11 pontos percentuais sobre o NFP e sobre ENSEMBLE (mais de 10 milhões de votos contra cerca de 7 milhões de cada uma das duas outras formações).

IV.

Sobre as ideias fundamentais que o RN tem vindo na avançar constata-se que alinham com o que em geral a direita radical vem defendendo e propondo: controlo radical da imigração (a linha estratégica dominante de RN, como, de resto, de toda a direita radical), o reforço da componente nacional no processo europeu (a “préférence nationale” ou a mais suave “priorité nationale”, que “reste le coeur idéologique de son project”, como se lê no manifesto anti-RN, assinado por mil historiadores – Le Monde, 03.07, pág, 25), a abolição do “jus soli” como base para a aquisição da nacionalidade francesa, a limitação do acesso a funções do Estado aos possuidores de dupla nacionalidade e, em geral, como disse, a  ideologia da direita radical, ou seja, “un populisme autoritaire, où les contre-pouvoirs sont affaiblis, les oppositions muselées, et la liberté de la presse restreinte” (sobre a doutrina veja-se o meu livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo, S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, versão digital, pp. 79-118). Acresce ainda que à doutrina se juntam as afinidades electivas com o senhor Viktor Orbán e com o senhor Putin. Apesar de programaticamente o RN afirmar que “nous ne sommes pas un parti d’idéologie, mais un parti d’action”, nisto sendo parecido com Fratelli d’Italia, e inspirando-se na famosa tradição da direita francesa, a “Action Française”, de Charles Maurras (politique du fait e não politique des idées), transcrevo um curto extracto de uma entrevista do guru da direita radical Alain de Benoist, que inspira também Aleksandr Dugin, o filósofo putiniano de serviço, e que sintetiza a filosofia da direita radical: “Nous vivons aujourd’hui des formes nouvelles de tribalisation et d’ ‘archipélisation’ (Jérôme Fourquet). La cause essentielle en est que les formes organiques de vie communautaire ont été systématiquement détruites par la modernité. La société prime désormais sur la communauté, et cette société est une société d’individus. Pour les libéraux, toute analyse de la vie sociale relève de l’individualisme sociologique. L’idéologie des droits de l’homme, qui est la religion civile de notre temps, professe pareillement que les pouvoirs publics doivent faire droit à toutes les revendications individuelles, ce qui aboutit nécessairement à la guerre de tous contre tous” (http://breizh-info.com/, de 19.06.2024; itálicos meus). O adversário é, pois, o liberalismo, o iluminismo e as cartas universais de direitos, de resto, na linha do velho romantismo do século XIX. Mas Benoist, na entrevista, acrescenta ainda duas ideias que na sua opinião exprimem a orientação estratégica do RN: “l’effondrement du centre” e “absorber ses concurrents”. A derrocada do centro e a absorção dos seus concorrentes. Mais claro do que isto não poderia haver. A filosofia de fundo que inspira a direita radical e o RN é a que deste modo é formulada por Alain de Benoist.

V.

A vitória estrondosa do Labour no Reino Unido, com mais de 46 milhões de eleitores e mais de 28 milhões de votantes, correspondentes a pouco mais de 60%, é muito mais expressiva do que a vitória da esquerda unida em França, mas, mesmo assim, é significativo que em dois grandes países europeus a esquerda tenha ganho as eleições, num caso, ao centro-direita (conservadores) e, no outro, à direita radical, que, como disse, já tinha ganho as europeias e a primeira volta das legislativas. Apesar de o Reino Unido já não fazer parte da União Europeia, os resultados têm uma importância estratégica também para a União, já que, combinados com os resultados verificados em França, podem vir a induzir uma dinâmica de recuperação do centro-esquerda, hoje em evidente crise. Trata-se de sinais muito relevantes. Disso não há dúvida, qualquer que seja a leitura e o distanciamento crítico relativamente ao estado “clínico” ou crítico do centro-esquerda. Em França, é preciso notar a lenta, mas já significativa, recuperação do partido socialista de Olivier Faure, ao obter, com Raphael Glucksmann (filho do filósofo André Glucksmann, autor do famoso e belíssimo livro Le Discours de la Guerre, 1967) um razoável resultado nas europeias, 13,83%, e, agora, nas legislativas, com 59 deputados, menos 15 do que os que La France Insoumise conseguiu.

VI.

Em relação ao Reino Unido, parece-me que este resultado do Labour talvez tenha a ver, mais do à primeira vista pode parecer, com as consequências do BREXIT e com a responsabilidade que os conservadores tiveram nessa decisão, sem desconsiderar, todavia, as peripécias do governo de Boris Johnson, designadamente na gestão da pandemia, e a própria transição, com o brevíssimo e impreparado governo neoliberal de Liz Truss, para Rishi Sunak. Alguém que teve altas responsabilidades no partido conservador, Ruth Elizabeth Davidson,  Baronesa Davidson of Lundin Links, dizia que os conservadores irritaram os pensionistas, os que têm hipotecas, os jovens, os que queriam permanecer na União Europeia e os próprios “brexiters”, por se ter verificado o contrário daquela que fora a promessa fundamental no referendo: a contenção drástica da imigração (The Times, 05.07.2024). Na verdade, os dados são muito significativos – a imigração parece mesmo ter aumentado muito, sobretudo a que vem de países não europeus. E também é verdade que quase todos os índices económicos do Reino Unido ficaram fortemente negativos, após 14 anos de governo Tory. De qualquer modo, parece ter havido nestas eleições uma orientação central: a de tirar os conservadores do poder. De referir ainda a importância que teve neste processo a mudança de líder e de orientação política do Labour, relativamente ao insustentável radicalismo do Labour de Jeremy Corbyn (entretanto eleito, nestas eleições, como independente). De certo modo, Karmer regressou à política moderada da terceira via e também essa orientação ajudou ao resultado.

VII.

Mas vejamos, finalmente, o que aconteceu em França, agora, na segunda volta. Votaram cerca de 67% dos eleitores, dando a vitória à Nova Frente Popular, com 182 mandatos, e atribuindo 168 mandatos ao bloco político do Presidente, ENSEMBLE, 143 ao Rassemblement National e 45 aos Republicanos. Nenhum destes partidos ou blocos políticos obteve a maioria absoluta e agora o Presidente deverá  desenvolver negociações para a formação de um novo governo que tenha condições de durabilidade até às próximas presidenciais, em 2027. Mas uma coisa é certa: o voto da primeira volta, aquilo que eu designo por voto de convicção e/ou de descontentamento deve fazer reflectir sobre as razões da desafeição de tantos franceses em relação ao establishment. Ainda que os franceses tenham votado na segunda volta de acordo com a “ética da responsabilidade”, o sistema político não se alimenta exclusivamente dos valores republicanos. O voto de convicção e/ou de descontentamento foi muito claro e isso merece a maior das atenções. O sistema político deve poder funcionar com programas políticos concretos que mereçam o reconhecimento da cidadania. E isso passa antes de mais por uma nova visão do centro-esquerda (e do centro-direita) acerca da sociedade, ao contrário do que tem vindo a acontecer e que tem dado origem ao crescimento dos movimentos do populismo autoritário. O que não pode acontecer é um deslize para o radicalismo de que o senhor Mélenchon deu provas logo no discurso do dia da vitória. Porque é precisamente esse radicalismo e essa auto-suficiência ideológica que alimentam o avanço da direita radical. Nem assepsia de valores políticos em nome da governança, da tecnogestão da sociedade ou da macroeconomia nem radicalismo ideológico ou populismo de esquerda. RN já veio dar sinais de que também no seu discurso algo tem de mudar, uma indicação vinda do círculo restrito de Marine le Pen (Bruno Bilde), apesar do volume impressionante dos votos que conseguiu quer na primeira quer na segunda volta. E, todavia, uma outra conclusão é também certa. Com estes resultados, no Reino Unido e na França, o senhor Putin e o senhor Orbán não se podem dar por satisfeitos. Esta também foi uma derrota deles. Sim, é verdade, mas a construção de uma política apelativa e justa é muito mais difícil do que a união perante um ameaçador ”inimigo externo” dos valores da República. Raphael Glucksmann, o eurodeputado que liderou, com resultados muito interessantes, o bloco socialista às europeias (“Réveiller l’Europe”, com 13 mandatos, igualando o bloco de Macron e superando LFI, que teve 9 mandatos), já veio sugerir uma “mudança de cultura política” ao mesmo tempo que o líder do PS, Olivier Faure, dizia que “ce vote doit ouvrir une refondation”. São intenções, mas indicam vontade de mudar, depois de um longo período de insignificância política. De qualquer modo, o que aconteceu em França é ao mesmo tempo animador e preocupante. Animador, porque, em situação-limite, os valores da democracia e da República acabaram por se impor fruto da assunção clara de uma “ética da responsabilidade”, preocupante porque numa segunda volta em que os votantes foram 28,87 milhões, o partido de Marine le Pen (e os amigos republicanos do senhor Éric Ciotti) obteve mais de 10 milhões de votos. Só a natureza do sistema eleitoral e a determinação republicana e democrática dos franceses puderam evitar o que muitos já temiam, a chegada a Matignon do senhor Bardella e, mais tarde, a chegada de Marine le Pen ao Palácio do Eliseu. O que representaria um sério golpe para a França democrática e para a União Europeia. Já acontecera nos Estados Unidos algo parecido (embora em sentido contrário), devido, também aqui, ao sistema de eleição do Presidente – Hillary Clinton perdeu as eleições para Donald Trump, apesar de ter obtido quase mais três milhões de votos. Que tudo isto sirva de lição para os que se encontram obrigados a encontrar uma política de projecto para a França, capaz de evitar que este, afinal, tenha sido um acontecimento que somente manteve diferida no tempo uma inevitável vitória da direita radical. JAS@07-2024

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