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Sobre joaodealmeidasantos1

Professor universitário, escritor, poeta, pintor. Publicou várias dezenas de livros, seus e em co-autoria, de filosofia, política, comunicação, romance, poesia, estética. Foi professor nas universidades de Coimbra, Roma "La Sapienza", Complutense de Madrid e Lusófona (Lisboa e Porto). Publica semanalmente, neste site, ensaios, artigos, poesia e pintura.

Poesia-Pintura

VOAR

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Pássaro de Fogo”
JAS 2025
Original de minha autoria
Agosto de 2025

“Pássaro de Fogo”. JAS 2025

POEMA – “VOAR”

EU CANTO
E pinto
O meu destino,
Sonhos velados,
A minha vida,
Sonhos marcados
Por tudo aquilo
Que imagino
Nas noites frias
Da despedida.

PERDI A CHAVE
Do meu futuro
Já só me resta
A partida, 
Por isso canto
E, como as aves,
Voo mais longe
E com mais cor
Porque no céu
Há mais azul
E nos meus sonhos
Já não há dor.

MAS HÁ SEGREDO
Não revelado
E se o dissesse
Não deveria,
Como poeta
E fingidor
Eu certamente
Até mentia.

E NÃO O DISSE,
Mas eu pequei
Com murmúrios
D’enamorado
Em poemas
Inocentes
Onde cantava
Esse meu fado
Com palavras
Luminescentes.

POR ISSO VOO
Sempre mais alto,
Trepo nas cores
Pra lá chegar,
O céu azul
Dá-me alento
Pra meus segredos
Nele guardar.

LEVO PALAVRAS
Comigo,
Procuro inspiração.
Levo cor,
O meu abrigo,
Levo a musa
E tudo o mais
E quando parto
Lá para cima
É sempre festa
Nesse meu cais.

LEVO-TE A TI
E desse jeito
Eu sou feliz
Lá bem no alto,
No azul do céu,
Onde respiro
Esse ar puro
E rarefeito,
Lá onde o mundo
É todo meu.

EU CANTO
E pinto
Pra exaltar
Esse teu rosto,
Iluminar
Em aguarela
Esse enleio
Do meu olhar
Pois se te vejo
Logo me vem
Esta vontade
De te pintar.

POR ISSO, CANTO
Por isso, voo,
Por isso subo
Lá para o alto
E dou-te asas
E o infinito,
Voar contigo
No céu azul
É um prazer...
............
E é bonito!

Artigo

A MAGIA DA REGULAÇÃO

E o Poder do Digital

João de Almeida Santos

“Algoritmo”. JAS, 2024. 90×69, pintura digital, papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Artglass AR70, em moldura de madeira.

O MEU AMIGO JOSÉ MAGALHÃES, a propósito de um Podcast sobre constitucionalismo digital e regulação, de uma conversa entre a Prof.ra Raquel Brízida Castro, Vice-presidente da ANACOM, e Sanjay Puri, Founder & President Regulating AI (Podcast: https://www.youtube.com/watch?v=Htq4TL-ws-g ), depois de, em comentário ao Podcast, ter desenvolvido algumas considerações muito pertinentes sobre esta matéria, desafiou-me, nessa mesma publicação, a dizer algo a propósito, tendo ele até partilhado o Podcast no meu Facebook. Contra aquilo que é habitual, decidi mantê-lo no FB, pelas razões aqui expostas. De resto, sobre esta matéria tive, ao longo do tempo, muitos diálogos privados com ele e até escrevii vários capítulos do meu livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, pág.s 19-68) sobre esta matéria – constitucionalismo digital, algoritmo, plataformas digitais -, numa lógica não meramente jurídica ou constitucional, mas bastante mais ampla, ou seja, sobre os efeitos da IA nos mecanismos internos da própria democracia, designadamente quando ela é aplicada  de forma muito consistente, intensa e generalizada pelas grandes plataformas que hoje dominam o universo digital. Como se sabe, trata-se de um universo muito amplo que atinge a esfera das decisões profissionais e operativas em vários campos (robótica, condução autónoma, marketing, redes sociais, etc.), das decisões públicas e da construção do consenso para o governo das sociedades quer seja em regime democrático quer seja em regime autoritário, para além da já longa (de muitas décadas) aplicação ao universo da construção de mecanismos físicos, ao universo da robótica industrial (sobre esta matéria veja-se o livro de Arlindo de Oliveira, A Inteligência Artificial Generativa, Lisboa, FFMS, 2025, pág.s 65-86, 87, 119-129). E é claro que este novo mundo digital, que evoluiu da robótica industrial para complexos e sofisticados modelos de linguagem (baseados no sistema chamado Generative Pretained Transformer – Oliveira, 2025: 72), vem interferir de forma generalizada na vida dos cidadãos e na esfera que regula a sua vida em sociedade. Que interfere, como se diz no Podcast, no exercício dos direitos fundamentais, que devem estar protegidos pelo poder público. A União Europeia já tem vindo a produzir importante legislação regulatória sobre esta matéria (regulamentos sobre a IA e o digital)) e em Portugal também já houve decisões sobre o controlo público do universo digital e o processo regulatório, tendo sido atribuída à ANACOM a responsabilidade de coordenar uma área que já integra numerosas entidades. Desconheço qual é o papel que, nesta matéria, tem a ERC, mas suspeito que esteja a leste do mundo digital, até atendendo à sua inoperância mesmo em matéria de plataformas tradicionais de comunicação (televisão, rádio, imprensa escrita). E, mesmo assim, esta matéria, tendo efeitos nacionais, parece-me ser mais de nível europeu do que de nível nacional, em particular vista a dimensão global do uso da inteligência artificial e das plataformas digitais. A União Europeia tem dimensão mais do que suficiente para ser interlocutora activa, em matéria legislativa e regulatória, dos centros mundiais de inteligência artificial e das grandes plataformas digitais.

I.

Um outro Amigo, profundo conhecedor do universo do direito e destas matérias que envolvem o digital e a União Europeia, dizia-me que a vontade reguladora da União lhe parecia, mais do que eficaz resolutora dos problemas emergentes, uma atitude crepuscular desfasada da dinâmica do real, sobretudo quando esta atinge níveis globais de alta eficiência, designadamente tecnológica, aplicada à esfera da comunicação (no caso das grandes plataformas digitais que gerem as redes sociais) e também à esfera da decisão sobre os processos sociais e políticos. Não duvido da necessidade de legislar e de regular a IA e a actividade global das grandes plataformas digitais cuja maioria mais que qualificada continua a ter a sua sede nos Estados Unidos. Mas não esqueço que poderosas autocracias como a Rússia (com o VKontakte dos irmãos Durov, por exemplo) e a China (com a Huawei e as suas poderosas plataformas digitais) se preocuparam mais em criar alternativas tecnológicas digitais às que têm sede nos USA em vez de desenvolverem um constitucionalismo digital que, de resto, em regimes autocráticos, nem tem grande sentido, sobretudo se se considerar as próprias limitações constitucionais das liberdades, dos direitos e das garantias da cidadania nestes regimes. Nestes, o importante é o controlo estatal sobre os fluxos de comunicação. Em 2017, num Ensaio na Revista “ResPublica” (17/2017, pág.s 51-78), sobre a Net na China (e em Itália) e o sistema de controlo da Net implementado pelos chineses relativamente ao acesso às plataformas digitais (“Mudança de Paradigma: A Emergência da Rede na Política. Os casos Italiano e Chinês”), tive ocasião de referir que o gigante asiático usou os serviços da empresa norte-americana Cisco Systems (o famoso Projecto Escudo Dourado) para se dotar de um supercomputador com essa finalidade de controlo (além, naturalmente de inúmeros dispositivos legais e serviços de vigilância digital de que já dispunha). Hoje, todavia, a China parece, no essencial, já não precisar dos americanos para esse fim. Fizeram eles próprios a revolução tecnológica de que precisavam a ponto de já competirem eficazmente com os próprios USA. E têm gigantescas plataformas digitais, como, por exemplo, a WeChat ou a Weibo, entre outras. Coisa – e este é o ponto – que a União Europeia não fez, preocupando-se mais com o chamado soft power e a sedução normativa, numa atitude, sim, mais crepuscular do que realista e eficaz. A UE não tem uma grande plataforma digital, não tem uma grande agência de rating, mas começa a ter uma grande máquina, comunitária e nacional, de constitucionalismo digital que opera sobre realidades globais cujo centro está completamente fora do espaço da União (sobretudo nos USA e na China). E em curso está agora essa decisão, através de regulamentos, imposta aos Estados-Membros e, consequentemente a Portugal. Daí este Podcast global com a Vice-Presidente da ANACOM, até porque os governos de António Costa (em Fevereiro de 2024) e de Luís Montenegro já deram alguns passos em frente neste sentido.

II.

A vontade reguladora da União tem um sabor a impotência. Como disse, autocracias que antes dependiam das grandes plataformas digitais desenvolveram-se tecnologicamente e passaram a gerir-se autonomamente, seja para o bem seja para o mal, seja para produzirem bens transaccionáveis e serviços seja para pilotar e controlar a circulação da informação. Por que razão a Europa não o faz, preocupando-se agora, pelo contrário, em se dotar, com procedimentos mais do que duvidosos, como exposto, na passada quinta-feira, no DN, por Alberto Costa  (DN, 07.08), de uma política de rearmamento, três anos depois, perante a aparente ameaça de uma potência que, afinal, anda há três anos a tentar derrotar a Ucrânia sem ainda o ter conseguido? Creio que uma das queixas de Donald Trump relativamente à União Europeia se refere também às multas aplicadas aos gigantes tecnológicos americanos. Imagine-se, por exemplo, que a Google (Alphabet Inc.) decidia interromper os seus serviços digitais à Europa ou que outras plataformas (por exemplo, o Facebook ou o Instagram) o faziam também. Bem sabemos que a União Europeia é um gigantesco mercado para estas plataformas, mas em linha de princípio sempre é possível imaginar uma interrupção para medir as suas gravosas consequências.  Seria o caos e talvez uma revolta generalizada. De qualquer modo, é evidente que a actual configuração política e institucional da União, para não falar das actuais lideranças, explica, em muito, o bloqueamento que se verifica em relação a esta matéria.

III.

Este é, quanto a mim, o principal problema. Maior do que o da inoperância da legislação e de regulação sobre serviços que actuam a uma escala maior do que ela, que têm sede fora dela e que dispõem de bases de dados gigantescas com dados oriundos da própria União. E nem sequer se pode dizer que isto é um sonho, uma utopia, porque países há que já o fizeram e com sucesso. E o mesmo vale para as agências de rating, dominando, as americanas, cerca de 93% do mercado europeu de rating e tendo elas, portanto, o poder de ditar o valor dos juros das dívidas públicas a cobrar pelos grandes grupos mundiais que financiam as dívidas públicas. Estes são exemplos do declínio da Europa e da perda de poder, com a contrapartida da fuga para um normativismo insuficiente e pouco eficaz. Não digo absolutamente que a regulação não seja necessária, mas seguramente não é suficiente. E até temo que venha a ter resultados pífios, mas seguramente suportados por máquinas imensas de burocratas a viverem disso. Se elas existirem para fazer um serviço igual ao da ERC, estamos conversados.

IV.

Num interessante livro sobre o constitucionalismo digital na Europa, Giovanni de Gregorio (Digital Constitutionalism in Europa, Cambridge, Cambridge University Press, 2022), fala da emergência de uma “functional sovereignty” que seria imputável à relação entre o cidadão/user e as grandes plataformas digitais, numa espécie de nova constituency  estabelecida por contrato privado entre estas e aquele, ao lado da clássica soberania fundada na relação entre o cidadão e o Estado. Seria uma espécie de terceira constituency, depois daquela que parece existir, mediante contrato privado, entre os financiadores das dívidas soberanas e os Estados nacionais, a ponto de determinarem verdadeiros programas de governo (veja-se os casos de Portugal, Grécia e Irlanda e o excelente livro de W. Streeck, Tempo Comprado – Coimbra, Actual, 2013). No caso das plataformas digitais verifica-se uma relação subliminar entre os utilizadores (que, no caso das redes sociais, já representam cerca de 63% da população mundial) e as plataformas, capaz de configurar um ambiente de construção de consenso que se traduz, depois, em conversão eleitoral e, consequentemente, em acesso ao poder de Estado por parte dos protagonistas cujos fluxos comunicacionais são pilotados eficazmente pelas grandes plataformas (já existe um marketing específico para trabalhar com estas realidades, o marketing 4.0, do senhor Kotler). Ao lado do espaço público mediatizado cresceu, pois, um enorme espaço privado onde ocorre a relação contratual entre o cidadão/user e as plataformas (cedências de direitos em troca de funcionalidades oferecidas), com consequências profundas não só no plano económico, mas também no plano político (o livro de Shoshana Zuboff sobre o Capitalismo da Vigilância fala abundantemente disso). Aqui crescem autênticos partidos-plataforma em condições de dominar o espaço público a partir de relações (contratuais) que são privadas, não públicas. Uma novidade que parece estar a crescer a uma intensidade imparável e capaz de mudar radicalmente o panorama político mundial com a desfiguração irreparável da própria democracia representativa. A “soberania funcional” viria, assim, a substituir a soberania clássica que se exprime na ideia de povo-nação.

V.

Visto este panorama, é claro que se torna necessário desenvolver um constitucionalismo digital, sendo, todavia, também evidente que ele não basta por ser evidente a assimetria entre o poder regulatório dos Estados nacionais ou mesmo da União e o poder efectivo das plataformas sediadas nos USA ou na China. Mas este é só um dos aspectos da soberania, porque, como vimos, há um outro que se exprime também como “soberania funcional”, ou seja, o da segunda constituency, a dos credores da dívida pública, a que se junta o poder efectivo das “big three”, das três agências de rating americanas.  Uma imponente “soberania funcional” em dois níveis que tende a abafar a clássica soberania do povo-nação ou do povo-União (se é que podemos usar esta expressão para designar a cidadania europeia). O problema é, pois, o da progressiva imposição de uma vasta “soberania funcional”, decorrente das duas constituencies (financeira e digital), àquela que, afinal, é a constituency originária que se exprime na relação pública entre a cidadania e o Estado, entre o contribuinte e o Estado, com o resultado de vermos a democracia esvair-se, mantendo-se como mero invólucro formal e simulacro apenas com funções de legitimação do poder.

VI.

Torna-se, pois , necessário reponder a este problema, certamente com mecanismos e normas de regulação, mas sobretudo com a criação urgente das suas próprias plataformas digitais e agências de rating  (para não referir sistemas de dívida pública ancorados no financiamento nacional, como acontece, por exemplo, em Itália e no Japão) de modo a que os cidadãos/users/contribuintes possam tranquilamente ver os fluxos comunicacionais e financeiros migrar para elas. Sempre coexistiria uma “soberania funcional” com a clássica soberania e outras constituencies com a constituency primária, mas elas ficariam mais directamente ao alcance de uma gestão política da própria União Europeia. Mas não creio que, com estas lideranças, a União enverede por este caminho. E, assim, veremos a direita radical progredir na sua caminhada para o poder. JAS@08-2025

Poesia-Pintura

ILUSÃO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Bola de Cristal”
Original de minha autoria
Agosto de 2025

“Bola de Cristal”. JAS 2025

POEMA – “ILUSÃO”

A MUSA
Nunca existiu,
Dizia
O poeta
Fingidor,
Era apenas
Artifício
Pra simular
O amor.

E O POEMA
Também não,
São palavras
Ritmadas
Pra criar
A ilusão
De vidas
Que são
Criadas
Com alguma
Inspiração.

NADA EXISTE
A não ser
Como desejo
Que não se torna
Real,
Só nuvens
Que o vento
Leva
E já não voltam
Ao céu
Onde o poeta
Navega
E desenha
Com palavras
Tudo aquilo
Que perdeu.

O VENTO
É seu amigo
Leva palavras
Consigo
Pra simular
A vontade
D’estar sempre
Ao pé dela
Evitando
O castigo
De só a ver
Da janela.

É TUDO
Piedosa
Ilusão
De quem nunca
Partiu
Do lugar
Que habitou
Onde o amor
Mais não era
Do que aquilo
Que sonhou.

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XIX)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

QUANDO O AMBIENTE INIBE A FRUIÇÃO POÉTICA

Quando o tempo físico é propício, sereno, plácido, agradável pode acontecer que a poética fruição sofra uma pequena conversão, digamos, ambiental. A sensação de bem-estar físico é tão boa, tão cheia, que o estímulo poético perde poder propulsivo. É coisa natural. E até acho que o pedido de socorro à musa não seja suficiente para atenuar essa placidez ambiental. Os sentidos às vezes funcionam como contraponto da poesia. Podem provocá-la, sim, mas ela, depois, ocorre em ausência, na penumbra, no silêncio, na sombra. A poesia tem algo de nocturno. A ecologia poética é outra coisa. Não coincide com a outra. Às vezes é mesmo antagónica. Não é por acaso que dizem que a poesia é filha da dor e da penumbra… Sol? Só se for interior.

O BEIJO

Pois penitencio-me por não ter incluído o “Beijo” de João de Deus nos textos que serviram de leitmotiv ao meu poema “O Beijo”, que sempre publico no dia seis de Julho. Mas ele, o João de Deus, era ambicioso e mais afortunado. Não lhe bastava um. Logo pedia outro e outro… Três, a conta que (João de) Deus fez. E invocava as três Graças e as três Virtudes. E as Folhas Santas (que o lírio fecham). Tudo para ter mais um beijo. Ao que o beijo obriga! Mas este poeta só o deu com o olhar. O primeiro. E, ao que parece, por aí se ficou… até decidir que os daria escritos, mesmo que os fantasmas os bebessem. E aí começou a odisseia dos beijos em forma de verso. Mesmo sabendo que ficariam pelo caminho, bebidos pelos fantasmas. Acabou como Sísifo: ter de recomeçar a subida ao Monte até que lhe chegasse (mas nunca chegaria) o sinal de que, ao menos, um beijo chegou ao destino. Ele pensa que um dia o beijo (escrito) há-de chegar. Mas a verdade é que andam por lá os fantasmas para impedir que ele saiba se algum beijo chegou, se algum não foi bebido por eles. E a musa também não ajuda porque a sua linguagem é a do silêncio. Os fantasmas são amigos das musas porque são eles que obrigam os poetas a beijar sem parar por força da incerteza em que vivem. O princípio da incerteza é a alma da poesia. Há ali uma cumplicidade que faz da fraqueza (ignorância acerca do destino dos beijos) força (a permanente subida ao Monte). E, às vezes, as palavras – que parecem leves como plumas – pesam como pedregulhos maciços. A dor é congénita. E a incerteza é constante. São elas que fazem caminhar o poeta. Mas, pelos vistos, o João de Deus até conseguiu convencer a musa. E, em vez de um, até terá conseguido três. Incrível. O problema é que nunca lhe haveriam de bastar só três… E, por isso, teve de continuar. Mas há uma saída: que o vento que os leva os devolva como notícia sob forma de eco do silêncio da musa. Ao poeta basta-lhe isso… para logo recomeçar.

ACONTECER

Quando não aconteceu, mas o desejo existiu, as saudades são maiores. Então pode acontecer a poesia, o olhar comprometido com a memória ou mesmo com o próprio testemunho físico desse passado. Algo que não se completou, mas que se pode ir completando através de outras formas. A poesia é a melhor forma de o fazer. Mas para isso ela tem de nos acontecer. O poema “O Beijo” é um acontecimento, num dado dia e numa circunstância especial. Acontece uma vez por ano. Envolto num certo mistério. Próprio da poesia. E da natureza dos beijos escritos. O mistério só pode ser cabalmente compreendido pelos iniciados. E tudo se torna mais denso quando coberto pelo silêncio, dando origem a algo de tipo oracular. Eu sinto isso assim.

A MUSA DO LEITOR

Eu tenho a certeza de que o leitor também tem a sua musa e que, no poema, de algum modo a reconhece. Alguma sua faceta. Não coincidem os referentes (o do poeta e o do leitor), certamente, mas coincidem os sentimentos, as emoções, as memórias, as intensidades (eu gosto mais da palavra “intensities”)… Tudo enriquecido pela pauta poética que embala esse turbilhão de emoções que a poesia faz renascer em palavras. Sim, a poesia é música para a nossa alma.

TEMPO REVERSÍVEL

O tempo da poesia é um tempo reversível – tanto é presente como passado ou futuro. É um tempo sem tempo. Os gregos tinham aquele tempo que se chama “aoristo”, um tempo sem tempo. O Bergson falava de durée – um continuum, o que já não é que se projecta no que é ou no que será. Tempo subjectivo, diferente do tempo cronológico ou espacializado. O tempo da poesia é um tempo criativo e pode distender-se entre o passado e o futuro, sem contradição. Ele resolve o enigma do tempo. Tudo ao alcance da vontade poética que dá asas ao desejo. Sim, é um tempo diferente. Mais livre. Reversível e ao alcance do desejo. O poeta move-se nele livremente, embora o impulso tenha origem numa pulsão maior do que a sua própria vontade. Condenado a ser livre, poder-se-ia dizer. Assim se redime. E se liberta, construindo o seu futuro com palavras. Reconstruindo-se. O tempo da poesia é um tempo em tensão orientado para o futuro.

TEMPO-SOMBRA

O tempo persegue-nos porque nos segue como a nossa sombra. Mas na sombra não nos conseguimos ver, observar, identificar, porque é apenas um perfil tosco. A sombra está sempre lá. A identificação só é possível através do espelho, porque ele regista o tempo que passa por nós. O espelho é mais do que a sombra, é o reflexo do tempo que passa. O tempo é sombra e é reflexo especular. É daí que resulta o poder do espelho de Athena. Apercebo-me do fluxo temporal sobre mim através do espelho. Mas é uma visão indirecta. Não petrifica. Se te observares no espelho também o tempo te observará, mas sem te petrificar. Viver o presente? Talvez não seja possível porque cada instante vivido já é passado. O presente é uma ficção. Melhor: é uma tensão entre o futuro e o passado. O presente verdadeiramente corresponde ao desejo. É por isso que ele é o tempo da poesia. E só ela permite a reversibilidade do tempo. E assim dá poder ao presente porque permite a sua livre projecção quer para o passado quer para o futuro. Poesia é liberdade.

TEMPO-AORISTO

No tempo poético não manda Chronos, o Deus do tempo espacializado. Há um tempo próprio dos poetas: o kairós. O tempo oportuno. É esse o tempo dos poetas. Que é também o tempo dos deuses. No tempo dos poetas convergem todos os tempos: passado, presente e futuro. E até o aoristo, esse tempo sem tempo dos gregos. É nele, neste tempo sem tempo, que os poetas se movem. Porque é um tempo de liberdade, um tempo reversível. É essa a ampulheta que mede o tempo dos poetas.

AS SAUDADES DOEM

Compreendo: as saudades podem doer. É melhor voar com o tempo e para o futuro, montados em palavras ao sabor do vento que nos sopra na alma. A ilustração do poema “Tempo” tem as duas faces de Janus, a que olha o passado (para trás) e a que olha para o futuro (para a frente). O passado dói menos se o contarmos com os olhos postos no futuro. Tinha razão a Karen Blixen.

POESIA E SAUDADE

É curioso, a saudade pode, de facto, ser induzida pela poesia, pela fantasia, elevando-a a canto sofrido, mas esteticamente fruído, a doce melancolia. A memória revisitada com dor e prazer – essa mistura explosiva de onde pode sair a obra de arte. Ou as obras de arte quando a poesia e a pintura cooperam na construção de beleza. Reviver em arte é projectar o passado no futuro através da forma que dá corpo aos frutos da fantasia. Memória, tempo e fantasia. O poeta é, sim, fingidor, mas a ficção reside essencialmente na forma e no estatuto da linguagem poética, onde acontece a transfiguração do referente, quando e se ele existir. A musa inspira o poeta, sim. Não há poesia sem musas nem fantasmas. Ambos povoam a imaginação do poeta e até lhe servem de aconchego existencial e espiritual. Ele quer sempre chegar à fala com a musa, mas sabe que os fantasmas estão sempre ali, à esquina e à espera dos beijos escritos que ele lança ao vento. Pois é. Um desafio enorme, esse, o de chegar à musa. Mas tem de ser porque sem ela ele definha. Um sem-abrigo que está sempre a tentar construir a casa onde se possa encontrar com ela. Essa casa é o poema. Uma tarefa de Sísifo.

RESSONÂNCIA

O poeta está situado temporalmente no “instante oportuno”, no kairós. De certo modo, a poesia é favorável a um temp(l)o de iniciados, pois trata-se de uma linguagem cifrada. Assim: tempo que acontece num templo: Temp(l)o. Vitrais, silêncio, penumbra, o eco do silêncio, o sagrado. Mas é uma linguagem universal. E vale pela sua “ressonância” na alma de quem a lê. E é altamente performativa.

O PODER DA POESIA

“A poesia pode tudo”, dizia-me um habitual leitor da minha poesia. E pode tanto mais quanto mais bela for, quanto mais musical e sensitiva for.

POESIA E REVELAÇÃO

O pintor e, sobretudo, o poeta nunca devem revelar (se houver) os referentes ou informações que possam induzir interpretações das obras, sobretudo porque, no essencial, não são decisivos para o efeito estético que se pretende propor. A obra deve falar por si, como se não existisse uma qualquer exterioridade que a tivesse suscitado ou a que se possa referir. E, neste caso (o da ilustração do poema “Saudade”), a “Musa” até está associada intimamente ao poema que ilustra em registo sinestésico. Um perfil de mulher (“Musa”). Não é poético procurar o referente da pintura ou do poema.

A INVENÇÃO DO AMOR

No poema “Saudade”, a rua proibida a que o poeta se refere, pelo que sei, não era a mesma da do Daniel Filipe, a do poema “A Invenção do Amor”. Mas era uma rua interdita pelas circunstâncias da vida. É claro que o amor é perigoso, rompe barreiras, não obedece aos cânones racionais nem à autoridade e vai por ali adiante sem cuidar de se proteger. É por isso que ele está irmanado com a poesia. Na liberdade e na beleza. Ambos vão por ali adiante sem cuidarem de se resguardar. O amor poético é vida, é a vida escrita em liberdade plena. A invenção poética é uma invenção do amor. Não há ditadura ou obstáculo que o possa parar ou oprimir. Se isso acontecer ele reactiva-se em intensidade. É este o sentido do poema de Daniel Filipe. JAS@08-2025

Poesia-Pintura

QUEM ÉS TU?

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Corpo”
Original de minha autoria,
baseado em foto em contraluz,
de autor anónimo
 (Colecção privada)
Agosto de 2025

“Corpo”. JAS 2025

POEMA – “QUEM ÉS TU?”

HÁ POESIA
No teu corpo
(Dizia o poeta),
Delicada
Geometria,
Contraponto
Expressivo
De uma quente
Melodia.

HÁ MÚSICA,
Pauta
Da beleza física
Que levita
Entre cores,
Aromas
E sons,
Em surdina,
Construindo
Enigmas
Que só o
Poeta
Pode decifrar,
Como quem
Te ilumina.

TENS A ALMA
Inscrita
No corpo,
Como eu
A tenho
Nas palavras
Com que construo
Os poemas
No discurso da
Beleza
Em que me vou
Enredando
Como em teia
Que me prende
E me liberta...
...........
Com leveza.

VEJO-TE
Num bailado
A solo,
Dançando
A despedida
E canto-te
Num poema
Ao ritmo do
Corpo
E da alma
Com que te
Vais retratando
Nas telas
Pintadas
Da vida.

E PEÇO-TE
Que não pares
Esse teu
Silencioso
Bailado
Até que eu
Te desenhe
Em palavras
Pra que nelas
Te revejas
Como num espelho
Encantado.

MAS, AFINAL,
Quem és tu?
(Perguntou
O poeta)
Tu, que tantos
Rostos tens
E me falas
Com o silêncio;
Tu, que danças
Em movimentos
Que apenas
Acontecem
Na alma
De um poeta;
Tu, cuja melodia
É a do vento
Que me responde
Com o eco
Dos poemas,
Vindo não sei
De onde?

NÃO SEI MESMO
Quem és...
Talvez a musa
Inventada
E constante
Que me aquece
A alma
Quando o calor
Das palavras
Desaparece
E ameaça
Tornar-se
 Gelo puro
E cortante.

QUEM ÉS TU,
Afinal?
Uma só com
Muitos rostos
Ou todos
Os rostos
Num só
Que se esfuma
Cada vez mais
Na bruma espessa
Do tempo,
Sem piedade
Nem dó?

Artigo

PENSAR O FUTURO

O PS e o Conselho Estratégico

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

1.

No dia 24 de Julho fui surpreendido por um artigo da jornalista São José Almeida, no “Público”, que dava conta da criação pelo PS de um Conselho Estratégico (CE) composto por 75 personalidades (mas ontem, no momento da instalação, já eram 94) e definido como “órgão consultivo e propositivo” que tem como missão “criar pensamento político estratégico”, “contribuir para o planeamento estratégico da acção política do partido com horizonte temporal até 2050”, dotando o PS “de uma capacidade prospectiva e multidisciplinar capaz de antecipar tendências, propor soluções e dialogar com os sectores mais dinâmicos da sociedade”, em suma, “um espaço de ideias. Um laboratório de futuro. Um ponto de encontro entre a política e o conhecimento”. Pronto, agora é que é, disse para mim. Do Conselho nascerá a luz. Até aqui foi só escuridão? Claro que não. Mas será esta a solução? Tenho fundadas dúvidas.

2.

Infelizmente, não conheço o documento e também não foi publicado até hoje pela newsletter do PS a que dão o nome que antes era o do jornal do partido, “Acção Socialista”, agora reduzido a uma pobre secção do site do partido. Mas, sobre este assunto, pude ler, no dia seguinte, na newsletter, um pequeno artigo que resumia o assunto, abordado brevemente na entrevista televisiva que o secretário-geral, José Luís Carneiro, deu à SIC Notícias nesse mesmo dia 24 de Julho. Entretanto, silêncio sepulcral, só interrompido, primeiro, pelo “Expresso”, em artigo de última página, e, depois, pelo “Público” de ontem (29.07), da autoria de Ana Sá Lopes, a dar conta de mais uns nomes que iriam integrar o Conselho.  A crer no que a jornalista São José Almeida diz no primeiro artigo do “Público”, tratar-se-á certamente de uma iniciativa que irá resolver o que até aqui não foi resolvido pelos actuais órgãos do partido. Um verdadeiro e numeroso Conselho de Sábios escolhido para, qual deus ex machina, pôr ordem no palco onde aparentemente reina, ou reinava, a desordem. Coisa própria de uma tragédia grega.

3.

Sendo militante do PS, no activo, fui informado, não pelo partido, não pelos seus canais de comunicação, mas pelo jornal “Público”, de uma importante decisão do secretário-geral acerca da orgânica do partido de que faço parte. Independentemente de se tratar de uma decisão de legalidade estatutária muito duvidosa, talvez seja uma decisão um pouco estranha, até porque parece indiciar que se quer reformar o partido começando pelo telhado ou, pior ainda, por justapor um novo órgão aos três que já existem. Um imenso e heteróclido chapéu reformador que ditará os caminhos do nosso futuro colectivo. Mas, vistos os nomes que o integram, o que mais apetece dizer é “Não, obrigado!”. Mesmo assim, julgo que mais importante do que isso, e apesar de a iniciativa dizer muito acerca do funcionamento interno do partido e dos  seus critérios de escolha, é o significado da criação de mais um órgão, nos termos em que isso foi feito e nas funções que lhe estão atribuídas. A instalação ocorreu ontem, na sede nacional do PS, tendo sido divulgado o nome do coordenador do CE, Augusto Santos Silva, e uma “foto de família”. Santos Silva é um dos mais longevos dirigentes do PS, com cerca de 26 anos ininterruptos de altas funções no governo, no partido e na AR, sendo legítimo perguntar se, com um curriculum destes, é a personalidade mais adequada para presidir a um órgão que pretende promover a mudança e a renovação. Sinceramente, eu não estou convencido disso, tal como, aliás, e olhando para a foto de família, não me parece ser realístico falar de renovação com tantas figuras que já só representam passado, muitas vezes de valia discutível.

4.

Vou directo ao assunto. E começo por verificar que, com este novo órgão, o PS passa a ter mais de 500 membros nos órgãos nacionais do partido: Comissão Nacional, Comissão Política Nacional, Secretariado e, agora, Conselho Estratégico. O conjunto dos anteriores órgãos representava mais de 400 pessoas, das quais, em diferentes posições, dependia a definição, a aprovação e a execução da orientação política global do PS. Órgãos que, agora, e aparentemente, passam a ser meros legitimadores e executores de orientações que, pelos vistos, terão origem neste estranho órgão. As questões que poderemos pôr são, entre tantas outras, as seguintes: Não eram suficientes os três órgãos nacionais para formular, desenvolver e executar a acção política do PS? Este novo órgão, nos termos em que parece ter sido gizado, não vem confiscar competências aos legítimos órgãos já existentes? Os órgãos já existentes não tinham no seu interior personalidades dotadas de capacidade intelectual e política para levar o partido rumo a um futuro sólido? A reorganização do partido não acaba, assim, por se afunilar num órgão de legitimidade estatutariamente duvidosa? Um novo órgão com 75 (94 ou até mais) pessoas será a estrutura adequada para uma renovação estrutural do partido? Que é feito do Gabinete de Estudos do PS? Seguiu este, tal como as Fundações do partido, o mesmo destino que teve o jornal “Acção Socialista” (de que fui director executivo durante vários anos, tendo sido eu que o informatizei) e que agora vejo reduzido a pobre folha de informação digital que nem sequer está em condições de informar acerca deste novo órgão, delegando a informação a um jornal que não é do partido? Não só o órgão é estranho como mais estranha ainda é a sua génese e a falta de informação interna acerca dele e das razões que levaram à sua formação. 

5.

Confesso que a criação deste órgão me parece totalmente inadequada, não só porque indicia, de forma imprópria, irrelevância e inutilidade dos restantes órgãos, dando ideia de que estes só existem para fazer número e nada mais, mas também porque uma estrutura deste tipo não é, de certeza, funcional, ágil e coerente para levar por diante um processo sólido de renovação do partido em todas as suas frentes. Basta olhar para os nomes que o integram. O tempo o dirá, mas a mim parece que esta é uma iniciativa que visa simplesmente dar ideia de que o partido está em condições de convocar a sua experiência passada (com risco de habituação – “assuefazione” é a palavra italiana – e de produção nula de efeitos) e de se abrir à sociedade civil, nada mais sendo do que mera retórica comunicacional e agregação corporativa (por justaposição) de personalidades em torno do actual secretário-geral. Uma orientação que parece ser apenas de natureza instrumental, mas que poderá vir a revelar-se como contraproducente, até mesmo em relação ao secretário-geral. Alguns dos nomes que o integram soam a “entrismo”, a célebre técnica de pendor trotskista que visava a conquista do poder. Não sei, mas a composição deste órgão parece-me mais uma “ammucchiata”, como dizem os italianos, do que uma estrutura capaz de conceber uma reforma coerente e credível. Pelo contrário, olhando para a composição (e para o número), parece tratar-se de mais de uma lógica de natureza orgânica e corporativa do que da lógica própria da renovação e da inovação.

6.

Na verdade, do que o PS mais precisa é de uma reorganização interna eficaz e representativa, logo a começar pelo método de selecção da sua classe dirigente e dos seus candidatos a funções institucionais de origem electiva aos níveis local, regional e nacional. Tanto no plano interno como no plano externo. Para isso, seria necessário dotar o partido de mecanismos eficazes em condições de promover internamente a emergência de novos protagonistas, revitalizando a dialéctica interna, e de tudo fazer para travar a tendência galopante das candidaturas únicas (e também a saída para candidaturas independentes), que, pelo que sei, está a proliferar, evitando uma progressiva endogamia que só pode levar ao desastre. Trata-se de promover a democracia interna através de mecanismos que contrastem eficazmente o controlo orgânico do partido por grupos organizados que têm como único fim “tratar da vidinha” através da política, a caminho de uma imensa federação de interesses pessoais corporativamente organizados. Mas também deverá ser promovido um trabalho intelectual intenso orientado para o futuro, visando a compreensão das novas dinâmicas da sociedade civil e das novas configurações da cidadania, que há muito está a mudar de identidade, em grande parte devido às novas tecnologias e à intensificação da mobilidade. Do que não precisa é de uma câmara corporativa que mais pareça um palco de vaidades e de sobrevivência de personagens que pouco têm a acrescentar ao que fizeram no passado, quando esse passado teve alguma coisa digna de ser relembrada.

7.

O modo como esta iniciativa nasceu diz muito sobre a sua consistência. O partido não foi informado, ouvido e mobilizado para que dessa mobilização resultasse algo consistente. Bem pelo contrário, a iniciativa foi ocultada ao partido, tendo sido desvelada através de informação externa e insuficiente. O partido foi confrontado com a decisão de lhe ser imposto mais um órgão que apenas resultou de um exercício de vontade individual, neste caso, do seu secretário-geral (ou de quem por ele o gizou e organizou). O que parece indiciar, que me perdoe José Luís Carneiro, uma gestão pouco cuidada do processo de renovação do partido. Uma decisão que inverte o processo de mobilização dos militantes para uma reorganização interna absolutamente necessária, correndo mesmo o risco de a iniciativa gerar indignação, afastamento ou mesmo revolta dos militantes, que se sentirão cada vez mais como mera massa de manobra. Na verdade, a primeira iniciativa no processo de renovação do partido deveria  consistir na promoção de um rigoroso diagnóstico sobre a saúde da democracia interna do partido. Mas não. O processo inicia-se com uma agregação, por justaposição, de um novo órgão de 75 personalidades (ou mais), algumas das quais talvez pouco possam contribuir para a mudança necessária. Estou convencido de que, com esta iniciativa, estamos muito longe da lógica que motivou os “Estados Gerais” de António Guterres e que haveria de mobilizar fortemente o partido e amplos sectores da sociedade civil, levando o PS ao governo do país, depois de dez anos na oposição.

8.

O que está em causa é a própria ideia de mudança, quando, para a promover, se recorre, no essencial, ao mesmo passado que contribuiu para o actual estado de facto e a outras escolhas com base em critérios cuja lógica se desconhece, ao contrário do processo que, bem ou mal, levou à formação dos actuais órgãos nacionais do partido. Não se trata de coisa de somenos acrescentar um órgão de 75 ou mais (94, no momento) membros aos órgãos já existentes. E, por isso, a “emenda” parece ser pior do que o “soneto”, pois o resultado é a desqualificação dos órgãos existentes sem que se alcance uma eficaz compensação alternativa. Bem pelo contrário. Nem sequer parece equivaler a transformismo, mudando algo para que tudo fique na mesma. Não, não se muda. Acrescenta-se e justapõe-se um órgão constituído por cooptação, sem informação, sem critérios de selecção conhecidos nem razões que o justifiquem, provocando, isso sim, uma forte desqualificação dos órgãos nacionais já existentes. Aumenta-se o número com muito do que foi legado do passado, ou seja, do mesmo que nos levou até aqui, isto é, à crise do partido.

9.

Não creio que esta situação seja irremediável, sobretudo se for mais retórica comunicacional do que algo substantivo. E por isso julgo ser útil que se diga tudo o que haja para dizer sobre o que esta iniciativa representa. E até se poderia perguntar por que razão, um dia depois da tomada de posse do Conselho Estratégico, eu faço, aqui, esta crítica tão frontal ao partido de que sou militante. E eu reponderia que, em primeiro lugar, o faço aqui, abertamente, porque também tive conhecimento da iniciativa somente através da imprensa nacional e não através dos circuitos informativos do partido; em segundo lugar, porque sou militante de base e não integro nenhum órgão do partido; em terceiro lugar, porque este tem sido o espaço onde sistematicamente venho comentando, sempre com intenção propositiva, as posições do PS; em quarto lugar, porque pretendo dar o meu contributo, dizendo o que penso sem condicionamentos de oportunidade, para melhorar o processo de renovação do partido. De resto, et pour cause, ainda durante este ano publicarei um livro sobre o PS e os desafios do futuro, orientado precisamente no sentido da renovação ideal, programática e orgânica do partido, além da necessária visão mais global sobre as grandes questões da nossa sociedade com as quais o PS, como partido de governo, deve confrontar a sua própria estratégia. Será um contributo que, dispensando uma qualquer integração orgânica ou corporativa, representará uma resposta aos desafios que justificaram a criação deste enorme CE. E, além disso, representará também a sequência, agora em termos nacionais, do meu mais recente contributo sobre a política do futuro, plasmado no recente livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, pág.s 262). Interessem ou não estes livros aos actuais responsáveis do PS, a verdade é que são contributos que procuram responder, com profissionalismo, aos desafios que se põem à política actual, sobretudo na óptica da social-democracia.

10.

Não me parece, portanto, que a criação de um Conselho Estratégico deste tipo e nos moldes em que foi feita, para além da duvidosa legalidade estatutária em que incorre, possa dar um sinal positivo do processo que urge iniciar com vista a dotar o PS de uma  forte democracia interna e de uma robustez ideal, programática e orgânica em condições de o voltar a colocar no lugar que, por razões históricas e pela excelência do espaço político que ocupa na geometria partidária, merece e que, além do mais, é decisiva para a própria saúde democrática do nosso sistema político. JAS@07-2025

Poesia-Pintura

QUEM ÉS TU?

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Corpo”
Original de minha autoria,
baseado em foto em contraluz,
de autor anónimo
 (Colecção privada)
Agosto de 2025

“Corpo”. JAS 2025

POEMA – “QUEM ÉS TU?”

HÁ POESIA
No teu corpo
(Dizia o poeta),
Delicada
Geometria,
Contraponto
Expressivo
De uma quente
Melodia.

HÁ MÚSICA,
Pauta
Da beleza física
Que levita
Entre cores,
Aromas
E sons,
Em surdina,
Construindo
Enigmas
Que só o
Poeta
Pode decifrar,
Como quem
Te ilumina.

TENS A ALMA
Inscrita
No corpo,
Como eu
A tenho
Nas palavras
Com que construo
Os poemas
No discurso da
Beleza
Em que me vou
Enredando
Como em teia
Que me prende
E me liberta...
...........
Com leveza.

VEJO-TE
Num bailado
A solo,
Dançando
A despedida
E canto-te
Num poema
Ao ritmo do
Corpo
E da alma
Com que te
Vais retratando
Nas telas
Pintadas
Da vida.

E PEÇO-TE
Que não pares
Esse teu
Silencioso
Bailado
Até que eu
Te desenhe
Em palavras
Pra que nelas
Te revejas
Como num espelho
Encantado.

MAS, AFINAL,
Quem és tu?
(Perguntou
O poeta)
Tu, que tantos
Rostos tens
E me falas
Com o silêncio;
Tu, que danças
Em movimentos
Que apenas
Acontecem
Na alma
De um poeta;
Tu, cuja melodia
É a do vento
Que me responde
Com o eco
Dos poemas,
Vindo não sei
De onde?

NÃO SEI MESMO
Quem és...
Talvez a musa
Inventada
E constante
Que me aquece
A alma
Quando o calor
Das palavras
Desaparece
E ameaça
Tornar-se
 Gelo puro
E cortante.

QUEM ÉS TU,
Afinal?
Uma só com
Muitos rostos
Ou todos
Os rostos
Num só
Que se esfuma
Cada vez mais
Na bruma espessa
Do tempo,
Sem piedade
Nem dó?

SAUDADE

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Musa”
JAS 2025
Original de minha autoria
Julho de 2025

“Musa”. JAS 2025

POEMA – “SAUDADE”

QUANDO TE SONHAVA
(Com palavras)
Encontrava-te
Sempre
Num acaso
Marcado
Pelo destino,
Olhava-te
E segurava
As tuas mãos
Nos riscos
Com que ias
Desenhando
Os teus rostos,
A traço sempre
Muito fino.

OLHAVA-TE
Nos olhos,
Em silêncio,
Timidamente,
Com esse brilho
Interior
Que nunca se vê,
Mas se pressente.

AH, COMO GOSTO
(Sempre gostei)
Desse teu rosto,
Linha de arte
Saída de ti,
 Desse olhar 
Cúmplice
Que me inebria
E me sorri.

DIZIA-TE
Palavras
(As do momento)
Sobre o sol
Que brilhava
Ou sobre a chuva
Que tardava,
Sobre as nuvens
Cinzentas
Que pintavam
O azul brilhante
Do céu
Ou sobre o vento
Que me soprava
Na alma
E me fazia sentir
Como quem
Contigo renasceu.

E SENTIA-TE
Sempre
Como quando
Te vi
Pela primeira vez,
Sem saber
Que fugiria contigo
Da rua proibida
Para este abrigo
Dos poemas
Onde agora,
Clandestino,
Sempre te revejo
Como em espelho
Mágico
E cristalino.

QUANDO TE PERDIA,
Chegava, rápida,
A saudade
Que já espreitava
Na esquina
Discreta
Desse teu olhar
De permanente
Despedida...

E POR ISSO
Te procurava
Na arte,
Nas palavras,
Nas curvas
Escritas da vida
Que estão 
Mais cheias
De poesia
Do que aquilo
Que nunca iria
Acontecer
A não ser
Como pura
Fantasia.

Artigo

TRÊS NOTAS CRÍTICAS

SOBRE A ACTUALIDADE POLÍTICA

 João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

OS CIÚMES DO PS

LI ALGURES que o PS estaria com “ciúmes” ou mesmo “amuado” pela aproximação do PSD (a AD é uma ficção eleitoral para dar emprego à dupla Melo&Núncio e para enganar o freguês eleitoral) ao CHEGA. Curiosa formulação sobre as relações entre dois partidos políticos. Coisa de afectos, é o que parece quererem sugerir. Namoro (em crise) de regime entre parceiros com interesses comuns. E, todavia, esta leitura estapafúrdia tem alguma razão de ser, pois encontra fundamento na insistência com que o PS tem vindo a reivindicar a centralidade histórica do diálogo privilegiado entre as duas tradicionais forças da alternância (governativa). O que até há uns tempos atrás fazia algum sentido, pois eram as duas forças centrais do sistema, governando em alternância, hoje já não faz. Hoje, que entrou em cena um novo protagonista central, esta lógica deixou de fazer sentido, até porque o novo protagonista pode mesmo vir aceder à chefia do governo, como, de resto, já foi reconhecido pelo actual primeiro-ministro, o mesmo que dizia “não, é não”: “acho que esses (PS e CHEGA) são os mais importantes porque obviamente são aqueles que se afiguram no contexto político-partidário como as alternativas futuras de governo”. Sobretudo a partir do momento (18.05.2025) em que o CHEGA passou a ser a segunda força parlamentar, com 60 deputados. Antes, com o famoso “não, é não do mesmo Montenegro, essa lógica ainda parecia manter-se de pé. Agora, deixou de fazer sentido. Antes, o PS colocava-se na posição de evitar que o PSD caísse afectuosamente nos braços do CHEGA, criando um muro protector de defesa da democracia ameaçada. Agora, já se viu que não é isso que os portugueses consideram central porque, caso contrário, não dariam a força eleitoral que deram àquele partido da direita radical. Na verdade, não é o PSD que está a “normalizar” o CHEGA. Foi o voto dos portugueses que o “normalizou”, ao torná-lo a maior força política da oposição parlamentar. Coisa, de resto, muito pouco surpreendente se atendermos ao que se está a passar na própria União Europeia.

A mim, sempre pareceu que o PS nunca se deveria ter colocado nessa posição de salvador da pátria, de colo da democracia, de vizinho privilegiado ou de compadre do PSD, até porque ela acabaria por condicionar fortemente a sua própria autonomia política. A sua, perdidas as eleições, deveria ser, isso sim, a posição de partido central da oposição (até pela sua força autárquica), cabendo à direita, com maioria parlamentar, entender-se. Isto antes, mas também depois, das recentes eleições. Escrevi-o aqui várias vezes e reafirmo-o agora que a situação parece ter evoluído nesse sentido – estão a entender-se e isso é natural, porque ambos ocupam aquele espaço que o próprio PS identifica como de direita, mas também porque o CHEGA tem uma dimensão parlamentar que o PSD não pode negligenciar. Poder-se-ia dizer que estava escrito nas estrelas, embora essa geometria política já estivesse a ser usada silenciosamente por Montenegro, sabedor de que Ventura nunca viabilizaria um governo do PS. Por isso, o PS deve, sim, finalmente, preocupar-se em fazer uma oposição construtiva, mas crítica, enquanto consistente partido da oposição. E tanto mais quanto a agenda política do CHEGA for sendo absorvida pelo partido que governa. O PS poderia dizer: “têm maioria no parlamento, então entendam-se; nós cá estaremos para combater aquilo que considerarmos errado, injusto e pouco democrático”. E sobretudo cá estamos para construir uma alternativa sólida que possa merecer a confiança dos portugueses, sem nos deixarmos cair na ratoeira do politicamente correcto e do wokismo, que tanto têm alimentado politicamente a direita radical. Anunciámos uma profunda reflexão sobre a nossa própria identidade política e iremos promovê-la, sem, entretanto, deixarmos de cumprir rigorosamente o nosso dever de importante força política de oposição.

OS DEVERES DE UM PRESIDENTE
DO PARLAMENTO

O que se tem passado no Parlamento é a todos os títulos verdadeiramente incompreensível, com os presidentes em exercício a desempenharem muito mal as suas funções. Limito-me a dois casos exemplares: o do uso parlamentar da palavra “vergonha” e da palavra “fanfarrão”. A primeira, verberada, com o ar circunspecto e pesado de um vigilante da linguagem parlamentar, o então PAR Ferro Rodrigues; a segunda, verberada pelo actual PAR, Aguiar-Branco (com hífen). Duas injunções sem qualquer sentido, mas ambas bem elucidativas das presidências de Ferro Rodrigues, de Santos Silva e de Aguiar-Branco. Uma fanfarronice de que todos eles se deviam envergonhar. Não fosse suficiente o estatuto e as funções de um presidente da AR para moderarem o seu comportamento, bastaria pensar que existe, em relação aos deputados, um mecanismo chamado “imunidade parlamentar” para travar a pretensão de os PARs fazerem injunções verbais desse teor. Mas, mesmo assim, se este aspecto ainda não fosse suficiente, bastaria pensar que os parlamentos foram inventados não só para integrar institucionalmente as diferentes sensibilidades políticas existentes no país e para fazerem as leis que regulam a vida da cidadania, mas também para, através da representação institucional, constituírem uma espécie de sociedade em miniatura capaz de absorver institucionalmente as disrupções sociais que, de outro modo, tenderiam a manifestar-se com radicalidade e violência nas ruas. O parlamento também funciona como uma espécie de almofada que atenua os embates sociais, transformando-os em debates cívicos, argumentados e retóricos que se substituem à violência do confronto físico. Tudo isto obriga a que a liberdade parlamentar seja muito ampla, chegando, e por isso mesmo, a ser configurada como imunidade parlamentar, símbolo máximo da liberdade parlamentar. Claro, dada a importância da instituição parlamentar, os representantes deveriam sempre estar ao nível até porque estão em funções de representação (não-imperativa) da cidadania, sendo-lhes exigível não só moderação, mas também respeito pelo próprio mandato. Ou seja, devem ser exemplares no exercício das funções e das próprias prerrogativas. O que não pode acontecer é estarem condicionados no exercício das suas funções pelos novos vigilantes da linguagem politicamente correcta. Até porque essa vigilância é limitadora da liberdade oratória dos deputados e pode ser ela própria geradora de revolta. Uma das razões que me fazem hoje preferir um sistema eleitoral de círculos uninominais é precisamente porque este sistema é mais exigente relativamente à qualidade da representação parlamentar, não só porque os candidatos devem submeter directamente a própria candidatura aos eleitores, mas também porque põe fim à total discricionariedade das escolhas por parte da classe dirigente (as candidaturas são propostas em envelopes fechados com a sigla do partido). Este tipo de sistema eleitoral valoriza o rosto dos que se apresentam como candidatos e responsabiliza-os mais directamente perante os próprios eleitores. Não sendo a varinha mágica do regime, ele pode ajudar a melhorar a qualidade do sistema parlamentar.

O ESTADO-CARITAS
E AS ELEIÇÕES AUTÁRQUICAS

Outra questão é a da já famosa “esmola de Estado” aos pensionistas, inaugurada, é preciso dizê-lo com clareza, por António Costa (em Outubro de 2022, se não erro), mas agora com a agravante de acontecer em cima de uma importante campanha eleitoral autárquica. O PR dispõe de um instrumento para travar esta indignidade (Decreto-Lei 86-A/2025, de 18.07), através do veto.  Mas não o usou. E considero que ele deveria ter usado o seu poder, ainda que fosse para dizer que a haver “esmola” ela teria que ficar para depois das eleições, em nome da decência democrática. Mas não só o PR deveria ter intervindo. O PS dispõe de um instrumento muito importante: o pedido de apreciação parlamentar do Decreto-Lei, onde até poderia propor uma alteração para o futuro no sentido de estes valores ficarem incorporados a título permanente no montante das pensões. De qualquer modo, aí se veria a posição de cada partido sobre algo que, em boa verdade, nem deveria merecer sequer discussão, nos termos em que isso foi feito. Este suplemento extraordinário, em setembro, antes das eleições autárquicas, não deveria pura e simplesmente existir. Mas o que fazem os partidos? Assobiam para o lado, temerosos de virem a ser acusados de impedir a esmola aos pobrezinhos, de não serem humanistas nem solidários. Montenegro foi “esperto”: se o dou, agradecem; se não for possível, a culpa foi dos outros. Só que se trata de uma questão de princípio: dar “esmolas” antes do voto é duplamente condenável. Para quem as dá,  mas também para quem as recebe, sobretudo nestas circunstâncias.

Não me parece, pois, que a cidadania esteja a ser respeitada. O Estado social não se pode confundir com um Estado-Caritas, com um Estado caritativo que, quando tem  (e se tem) uns cobres a mais, umas folgas, os distribui circunstancialmente pelos pobrezinhos para atenuar dificuldades de momento. Folgas que, verdadeiramente, não há, pois o Estado português paga anualmente em juros da dívida cerca de 7 mil milhões de euros, sendo hoje a dívida pública, em termos absolutos, de cerca de 284 mil milhões de euros. São mais 104 mil milhões do que quando José Sócrates deixou o governo em junho de 2011 (180 mil milhões, em dezembro de 2010).

Esta política de esmolas representa, pura e simplesmente, falta de respeito pelos cidadãos, é engano ou é mesmo engodo. Seja quem for o protagonista que a pratica, de esquerda ou de direita. O que sei é que este tipo de medidas está a generalizar-se cada vez mais (no ano passado assim foi também) e não tem provocado um sobressalto cívico que mereça a devida atenção dos responsáveis políticos pelo poder formal, em todas as instâncias. Tudo começa a saber a truques para enganar o eleitor e o país. E isso também vale para a história da diminuição da retenção na fonte, provocando a ilusão de um crescimento dos salários. A medida em si até faz algum sentido pois o cidadão dispõe durante mais tempo dos seus próprios recursos. Certamente. Mas o que deve ficar claro é que não se trata de aumento salarial nem de redução fiscal, mas tão-só de adiamento da cobrança fiscal. Que, por sinal, até é excessivamente alta. JAS@07-2025

Poesia-Pintura

POEMA EM CONSTRUÇÃO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Trilhos”
Original de minha autoria
Julho de 2025

“Trilhos”. JAS 2025

POEMA – “POEMA EM CONSTRUÇÃO”

MEMÓRIA
Quente
Acordada
Por estímulo
Vagante
Na vida
Desordenada
De um tímido
Amante.

UMA LUZ,
Um som,
Uma aragem
Interior,
Um sobressalto,
Saudade,
Um sonho,
Um encontro
Inesperado
Numa rua
Da cidade.

O CRESCIMENTO
Interior
Na alma
De um poeta,
Uma pulsão
Que resiste
A ser secreta,
Um vai-e-vem
Que não pára
E se expõe
Como sagrado
Em ara.

CAPTÁ-LA
Com palavras
Em movimento,
É missão
Pô-la ao vento,
É música
Em surdina,
É ritmo,
É melodia,
Notas musicais
Mil vezes
Solfejadas
Em busca
De harmonia.

RISCOS E CORES
Desenhados
Com fios
De letras soltas,
Soltar a alma
Ao vento
Em terras
De utopia
Como ondas
Vivas,
Revoltas,
E cheiro
A maresia.

A COMPOSIÇÃO,
O trautear
De palavras
Aquecidas
Pela emoção,
Memória viva
Em busca
De catarse
Das cadeias
Da paixão.

OPERÁRIO
Em construção
É o que é
O poeta
E também
A sua vida,
Entre a penúria
Do real
E a sua
Compensação,
A riqueza infinita
Da beleza
Construída
Como sua
Salvação.

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XVIII)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

PINTAR POEMAS

Bem sei que é mais difícil escrever poemas com riscos e cores do que pintar quadros com letras, com sinais. Mas também é possível. Mesmo assim, eu optei pela sinestesia, fazendo cooperar para um mesmo fim (tema) a poesia e a pintura. O Cesário Verde bem dizia “pinto quadros por letras, por sinais”. E pintava. E eu, como é natural, também tento fazê-lo, mas como tenho o recurso da pintura (digital) decidi avançar também com esta cooperação sinestésica entre a poesia e a pintura. Pode-se assim visualizar mais facilmente o que vai na cabeça do poeta-pintor. E o poema sai reforçado na sua tripla dimensão: semântica, musical e plástica. Uma espécie de projecção cromática do sentido que ajuda a iluminar o poema. Sentido, ritmo e melodia, luz e cor. A luz reforça o poder sensitivo da poesia, tal como acontece quando um poema é cantado. Música, luz e cor que se acrescentam à semântica das palavras.

CESÁRIO VERDE

É verdade, o grande Cesário pintava quadros por letras, por sinais:

“Pinto quadros por letras, 
por sinais, /
Tão luminosos como os do Levante,
Nas horas em que a calma 
é mais queimante,/
Na quadra em que o verão 
aperta mais”

E eu procuro sempre a sinestesia, mas também a procuro, como ele, dentro do poema.  Apenas com palavras. Não só com a pintura, com as cores e os riscos, mas também com os sons, com a música interna do poema. Os versos curtos e, frequentemente, de uma só palavra ajudam a escrever melhor a pauta poética. Sim, um poema é para ser solfejado. As palavras como notas musicais. Não concebo mesmo a poesia sem essa componente fundamental da música, do ritmo e da melodia. O poema não deve ser somente um quadro com sentido e cor, também deve ser uma pauta musical. Até porque acho que é esta sua dimensão que lhe permite atingir melhor a sensibilidade e que lhe confere maior performatividade. E, sim, cada palavra conta mesmo muito e é necessário procurá-la sempre com muito cuidado e rigor, na sua tripla função semântica, plástica e sonora. Tudo no interior de um poema, independentemente da sinestesia, que é uma operação diferente. Às vezes, são dias à procura daquela palavra exacta. Exacta tanto por razões de semântica como por razões de cor e de sonoridade. Dói um pouco, tanta procura, mas o poeta nasceu para conviver com a dor… e para a converter em “doce melancolia” e em arte. Para a cantar.

“AGUARELA DE PALAVRAS”

No poema “Aguarela de Palavras”, poeta e pintor confundem-se. Mas talvez seja mesmo mais fácil pintar com palavras do que poetar com cores. Cooperando, em exercício sinestésico, tudo fica mais fácil, mesmo que o discurso seja delicado e difícil. O objectivo é sempre o de chegar à janela de onde ele julga que a musa o observa na sua caminhada poética. Todos os meios ajudam. A pergunta: aguarela de palavras ou palavras para uma aguarela? Aguarela onde seja visível o perfil da musa? Talvez. Na pintura “O Voo da Magnólia” (não da branca, mas da outra, a cor-de-rosa) a musa parece estar confundida com um botão de magnólia em voo. As musas frequentemente disfarçam-se de flores e de aromas, aparentemente prontas para serem colhidas ou inaladas para dentro de um poema. Libações sempre necessárias ao acto da criação. Daí a importância da sinestesia, podendo a cor de uma pintura ser inalada poeticamente. Depois, as musas retiram-se, deixando o poeta a braços com as palavras, que já só é o único modo de convivência com elas. Como se as palavras fossem rastos deixados pelas musas, sinais da sua passagem por ali e, quem sabe, endereços das suas moradas. Imaginem, pois, o pobre poeta a tentar constantemente mapear, com palavras, o caminho que pode levar até ela. Vida difícil. Vive num mundo de espelhos e de simulacros que tornam impossível um diálogo frontal. Se é que a musa existe e não é uma sua ilusão gerada por vivências intensas do passado. De qualquer modo, a musa só pode ser visualizada através do espelho de Athena, oferecido pela deusa ao poeta. Mas, paradoxalmente, é esta espécie de neblina existencial, este brilho reflectido no céu interior do poeta que torna a sua vida sedutora. As palavras são faróis que o ajudam a viajar na neblina existencial em que vive. Mas também precisa de um espelho retrovisor para impedir que choque directamente com o passado. Para ele, o espelho é muito importante porque lhe permite uma visão indirecta e evita o choque e a petrificação. Mesmo indo directamente à memória, o perigo é real. É sempre preferível usar o espelho. Não por acaso o poeta invoca frequentemente a deusa Athena.

SEGREDOS MAL GUARDADOS

Segredos decifrados num poema, mas que só podem ser entendidos se forem sentidos com a alma. Senti-los é a primeira etapa para a compreensão e a partilha. Nunca plenas, porque o poema é sempre maior do que a sensibilidade individual que o recebe e filtra interiormente. É maior até do que o poeta que o criou. O poeta vive em sobressalto criativo? Vive, sim, e é isso que o leva a poetar. Mistérios? Sim, são mistérios, mas também são segredos mal guardados. Ou não tivesse ele de os contar. O que lhe vale é a natureza do púlpito poético: ninguém sabe se o que diz é realidade ou ficção. Mesmo que pareça realidade ou que alguém diga que sabe bem ao que ele se refere. A verdade é que nem ele próprio sabe com exactidão porque a fronteira entre o poético e o real é um pouco indeterminada – está entre o eu e o mundo. É o tal intervalo de que falava o Pessoa. Ou melhor: isso nunca é totalmente claro para ele e é por isso que a poesia conserva sempre uma dimensão iniciática. Oracular. Há sempre no ar algum mistério que é necessário decifrar. Mas não importa o processo, porque o que importa é o resultado final. O desejo e as dores da criação ficam lá com ele, a moer. Não importam. O que importa é a decantação poética. Decantar poeticamente o real, para o poder consumir puro, e com sofreguidão, ou mesmo comê-lo, como queria a Natália Correia:

“Sou uma impudência a mesa posta 
 de um verso onde o possa escrever. 
 Ó subalimentados do sonho!  
A poesia é para comer”.

E é isso que importa verdadeiramente.

ABRIGO

Talvez a poesia seja mais do que simples refúgio, pois a poesia permite aceder a um plano superior que não está inscrito no registo da sobrevivência, da banal fuga, da normal gestão do quotidiano. Talvez seja refúgio dourado. Melhor, “abrigo quente”. Sim, abrigo aquecido pelas palavras desenhadas sobre pauta e pintadas com as cores da vida que o olhar do poeta vai registando. Porto de abrigo das tempestades impetuosas da vida. É uma outra dimensão. Livre. Porta por onde entra a fantasia. O poeta é um sonhador, insatisfeito que anda com a pequenez da vida quotidiana. E, então, vive o sentimento de forma muito intensa, o que funciona como compensação pela pequenez da rotina, como diz o William Hazlitt.

CLAREIRAS

Eu considero que há clareiras na vida, como nas florestas. Elas impedem que os incêndios existenciais alastrem e destruam as árvores da vida. E há silêncio e até se ouve o bulício das folhas batidas pelo vento que nos sopra na alma. É por ali que andam os poetas. No coração da floresta. Chegaram lá depois de viverem na cidade, na metrópole, de caminharem no meio da multidão anónima, sendo arrastados e engolidos pelo anonimato. Perdidos na floresta da vida. Eles levam, por isso, uma memória cheia de episódios que só já nas clareiras da floresta conseguirão interpretar e compreender. Na solidão. Saem de si para a floresta para depois regressarem mais sábios… nas clareiras da vida. O Bernardo Soares falava mesmo de renúncia. Outros falam de retiro eremítico. Eu acho que o retiro do poeta é para o universo silencioso e solitário da memória, estimulado por recorrentes visitas à cidade, como não podia deixar de ser. A memória é a floresta. Ponto e contraponto. Um jogo entre o espaço e o tempo – entre a cidade e a memória. E o poeta, finalmente, situa-se entre uma e a outra. Num intervalo. Talvez as clareiras sejam esse intervalo silencioso que deixa falar a memória quando ele regressa da cidade.

“DORME ENQUANTO VELO”

Uma Amiga lembrou um passo do “Livro do Desassossego” que remete para o poema “Dorme enquanto velo”, escrito por Pessoa em 1912 e publicado em 1924. O passo é este: “ ‘Quero-te só para sonho’, dizem à mulher amada, em versos que lhe não enviam, os que não ousam dizer-lhe nada. Este ‘quero-te só para sonho’ é um verso de um velho poema meu. Registo a memória com um sorriso, e nem o sorriso comento” (Livro do Desassossego, Porto, Assírio&Alvim, 2015, p. 121). O velho poema é belo e reza assim:

“Dorme enquanto velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.
A tua carne calma
É frio em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.
Dorme, dorme, dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento 
E eu sonho sem sentir.”

O real como matéria-prima somente para sonhar, para poetar, para palavrar? Sem sentir? Não acredito. Para ele, só servia para isso? Só a Ofélia poderia responder com propriedade. Quanto a mim, o poeta não a quer só para sonho, quere-a também para a amar. Mas ele é um fingidor. Ama, mas finge que não. Ama em palavras, sim, já que não pode amar-lhe o corpo. Mas ama. A verdade é que o Bernardo Soares não gostava de tocar o real sequer com as pontas dos dedos. Mas o Pessoa de vez em quando atirava-se mesmo à Ofélia. Nem que fosse num vão de escada. Para o Bernardo Soares, ter o corpo não representa a verdadeira posse. Só a arte a pode conseguir, porque com ela se possui a alma. Era assim para o Pessoa, mas era assim também para a Yourcenar. Eles tinham bem consciência da circularidade do prazer corporal. Uma espécie de redundância sem pontos de fuga para o infinito. Algo que, pelo contrário, é próprio da arte. O sonho é só encantamento que acontece sem sentimento? Eu creio que todo o sonho que é denso resulta de pulsões e libações. De um movimento anímico intenso. Só depois se torna mais espiritual do que anímico. Mas não sei se será assim. A resposta só pode ser dada em verso. JAS@07-2025