OS NOVOS “SPIN DOCTORS”
E o Populismo Digital
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 06-2023
“PERO QUE LOS HAY, HAY”, é o que apetece dizer quando assistimos às grandes viragens eleitorais, muitas vezes inesperadas, na política democrática. Artífices do consenso digital – é a eles que me refiro. Os que tendo meios e recursos financeiros à sua disposição conseguem atrair os eleitores a um discurso político. São os spin doctors. Famosos ficaram, na era dos media tradicionais, entre outros, Karl Rove (George W. Bush), Alastair Campbell (Tony Blair), Roger Ailes (Nixon, George Bush, Jacques Chirac). A velha guarda. Mas, na era da Internet, temos outros spin doctors, já famosos,: Steve Bannon (Brexit/Trump), Gianroberto Casaleggio (MoVimento5Stelle), Arthur Finkelstein (Viktor Orbán), Luca Morisi (Matteo Salvini/Lega), Milo Yannopoulos (Bannon/Trump), Dominic Cummings (Brexit). A diferença entre uns, a velha guarda, e outros, os novos, poderia ser traduzida de forma simples: os primeiros funcionam com uma lógica centrípeta e niveladora e os segundos com uma lógica centrífuga e relacional. Uns são os magos do broadcasting; os outros são os magos da rede. E estes são, como diz, Giuliano da Empoli, os “Engenheiros do Caos”. Uma expressão que sublinha o triunfo dos físicos sobre os cientistas sociais e os politólogos, esses treinadores de bancada (estou a pensar em Portugal) que cada vez mais sabem menos daquilo que é suposto saberem. Esta é a tese de Giuliano da Empoli.
1.
O livro de Empoli, Os Engenheiros do Caos (Lisboa, Gradiva, 2023), é interessante e procura entrar a fundo neste universo dos novos spin doctors, precisamente para saber como funciona a nova direita populista, a do populismo digital, que um outro italiano, Mauro Barberis, analisa também num também interessante livro: Populismo Digitale. Come Internet sta uccidendo la democrazia (Milano, Chiarelettere, 2020). Conjugando o que se diz nos dois livros até se pode perceber como é que a rede pode destruir a democracia, precisamente através do populismo digital da direita radical, da direita iliberal. Um, Empoli, explica, talvez melhor do que o outro, Barberis, o que este último insinua: a tese da evanescência digital da democracia representativa. É navegando com competência na raiva e no ressentimento difusos que os populistas digitais conseguem unir extremos para chegar eleitoralmente ao poder. E, chegando lá, não só não devolvem o poder ao povo como começam a minar aquilo que Barberis designa como instituições contra-maioritárias: a presidência da república, o poder judicial e os mass media. Para lá chegarem, ao poder, fazem o contrário do que faziam os antigos spin doctors, ou seja, não procuram as massas indiferenciadas, o mínimo denominador comum, para chegar à maioria, isto é, ao poder. Aqueles, os novos spin doctors, o que produzem, segundo Barberis, é um curto-circuito entre instituições e media (2020: 38, 164; e passim). Empoli mostra a novidade: eles introduzem, por vias muito diferentes, e com poder disruptivo, o anónimo individual entre as instituições e os media, provocando um curto-circuito. Eles dirigem-se àquele que não sabe o que o vizinho pensa acerca do mesmo assunto; àquele que, com um smarphone na mão, se liga directamente ao mundo, sem mediações; àquele que recebe informação, mas que também a envia – tudo em ambiente silencioso, subliminar, subterrâneo.
2.
Digamo-lo com Barberis:
“A mobilização de massas típica dos regimes totalitários teria sido impossível sem a rádio; a política actual seria impensável sem a televisão. Mas a política populista faz-se com os smartphones, dando a todos a ilusão de poderem influir na política. Outros chamam-na desintermediação. Eu chamo-o curto-circuito entre instituições e media” (2020: 38).
Vale a pena sublinhar esta ideia de curto-circuito, não exactamente como o autor o descreve (ou seja, como transferência do discurso institucional para as redes sociais, por exemplo, para o twitter), mas no sentido em que, de facto, os smartphones o provocam, precisamente como desintermediação: em relação aos media, porque o principal veículo de informação deixa de ser os media e passa a ser o smartphone, acabando com o seu monopólio de intermediação; em relação às instituições porque a possibilidade de se publicar, difundir e até deliberar directamente (como se verificava, até 2021, no M5S, através da Plataforma Rousseau) confere aparência de intervenção na realidade e de efectiva participação no poder. Ora acontece que: 1) a informação que circula na rede não é, à partida, informação certificada, dependendo integralmente da capacidade selectiva do utilizador e de distanciação subjectiva das constantes propostas dos algoritmos; 2) a difusão da própria produção é sempre limitada (até pelos critérios da própria rede social utilizada e pelo valor intrínseco do produto) se não dispuser de sofisticados instrumentos de intervenção na rede e de uso das TIC; 3) a deliberação numa plataforma digital até ser (se for) transformada em decisão sofre várias mediações. Tomemos o caso do M5S e da Plataforma Rousseau (que deixou o M5S, em 2021): a instrução seguia para o grupo parlamentar, que a devia obrigatoriamente operacionalizar e submeter ao Parlamento, a instância final de decisão. Também aqui a deliberação sofria várias mediações, isto para não referir o próprio processo de selecção das propostas de deliberação que chegavam, pela mesma via, aos users militantes.
3.
Na verdade, a rede só funciona em reprodução alargada e em progressiva expansão se for utilizada de forma sofisticada por empresas especializadas, com especialistas e avultados recursos, como tem vindo a acontecer. E é um vasto espaço intermédio onde o que acontece é a deliberação, não a decisão, que continua sujeita aos detentores formais do poder. Mas a verdade é que o curto-circuito entre instituições e media realmente acontece porque emerge um meio de intervenção directa que se substitui à intermediação quer no plano comunicacional (imprensa, rádio, televisão) quer no plano institucional, dando directo (mas não total, como vimos) poder aos users sobre as instituições (tal era a relação entre a Plataforma Rousseau e os Grupos Parlamentares do M5S, na Câmara dos Deputados e no Senado). Na verdade, o processo de desintermediação funciona, de facto, como um curto-circuito, embora não produza um apagão total, uma vez que as plataformas tradicionais e as instituições continuam a funcionar.
4.
Os populistas digitais vão, através do algoritmo, dos big data e do marketing 4.0, às consciências individuais, navegando precisamente na diferença, referida aos indivíduos singulares, neste caso, os users, que já se confundem com a maioria da população mundial. Não funcionam, pois, com a lógica do broadcasting. O Castells já tinha, em 2007, em Communication, Power and Counter-Power in the Network Society, caracterizando muito bem esta mecânica, conceptualizando-a: mass-self communication. Comunicação individual de massas. Política quântica, dirá Empoli, por oposição a política newtoniana. Claríssima a distinção. Empoli faz uma injunção interessante no mundo quântico para concluir simplesmente que o segredo reside não nos elementos individuais (enquanto entes independentes regulados pela lógica racional da relação causa-efeito), mas nas interacções, lá onde o observador, com o próprio acto da observação, as modifica. O algoritmo “observa” e age alterando as interacções. É aqui que reside o segredo e é aqui que começa a superioridade dos físicos em relação aos cientistas sociais e aos politólogos. E é neste mundo que se movimentam os populistas digitais, a um ponto tal que leva Barberis a dizer que “a tese deste livro é que, sem internet e smartphones, a onda populista no Ocidente, e onde a web não seja controlada pelos governos, não seria explicável” (2020: 156).
5.
Tudo parece ser muito claro: trata-se de uma mudança de paradigma que tem vindo a ser compreendida e usada com mais competência pela direita radical, pelos populistas digitais, do que pela camomila centrista do centro-direita e do centro-esquerda, que ainda continua a mover-se no interior da “democracia do público”, ou seja, no interior do paradigma anterior. Estes dois livros explicam exaustivamente e de forma muito clara o que está a acontecer. Mas uma questão permanece um pouco confusa: podem os partidos reformistas (de direita e de esquerda) agir no interior do mesmo universo em que intervém o populismo digital? Agir nesse mundo onde a categoria dominante é a do negativo, a da cólera, do ressentimento, do insulto, da mentira, das fake news, do racismo, da anti-imigração? Mas, afinal, não funcionam as próprias televisões cada vez mais, numa tabloidização progressiva, com esta categoria do negativo (good news, no news), na procura desesperada de audiências? Empoli dedica muitas páginas ao longo do livro (2023: 160, 184-85; e passim) a mostrar o poder de atracção do negativo (o mesmo poder que, afinal, anima o tabloidismo mediático e político) e tudo parece conduzir-nos a considerar que, neste aspecto, os populistas estão em vantagem relativamente às forças moderadas. Este é o terreno que lhes é afim.
6.
É claro também que as televisões continuam a ter um grande peso na opinião pública, ao mesmo tempo que a “democracia do público”, ou “da opinião”, se mantém viva (tal como na física o paradigma newtoniano se mantém válido, mesmo após a revolução quântica), mas o seu funcionamento é completamente diferente do funcionamento da rede e das redes sociais. Elas, televisão e rede, convivem numa mesma pessoa e até num mesmo espaço digital. Mas os que vêem televisão são os mesmos que usam o smartphone? Só em parte, porque, por exemplo, os jovens estão cada vez mais na rede e menos na televisão. Mas a verdade é que elas não funcionam do mesmo modo. Qual é a mais usada? E a mais eficiente? E qual tem mais poder sobre o respectivo utilizador? Talvez as características da rede e da sua dinâmica, sobretudo a do feedback do algoritmo e do marketing 4.0, a tornem mais eficiente e poderosa. Mas também é verdade que há uma lei que um dia, em 1890, um genial sociólogo francês, Gabriel Tarde, formulou: a lei da imitação (Tarde, G., Les Lois de l’Imitation, Paris, Kimé, 1993). A imitação era para Tarde o princípio constitutivo das comunidades humanas, o “acto social elementar”, “a alma elementar da vida social” – a sociedade como uma comunidade nivelada de indivíduos que “se imitam entre eles”. E o modelo era o do “one-to-many”, para usar a fórmula de Castells. Movimento centrípeto e nivelamento geral mediante imitação, com uma importante função desempenhada pelos estereótipos (diria mais tarde, nos anos vinte, Walter Lippmann). Este é o modelo que corresponde ao mundo do marketing clássico, à comunicação por grandes targets, à lógica do mínimo denominador comum. Aqui o broadcasting revela-se fundamental enquanto tende a universalizar estereótipos que depois são imitados e reproduzidos, de acordo com esta lei social, a lei da imitação. Neste sentido, a mass communication é sempre mais eficaz, produzindo melhores resultados no processo de reprodução alargada da imitação. Sem dúvida. Mas a verdade é que, mesmo assim, há um outro e imenso mundo subterrâneo, individualizado, pessoal, que hoje é acessível em massa e directamente graças às novas tecnologias da comunicação, à rede, às TIC, às redes sociais – mass-self communication. Um plano de maior proximidade ao sujeito individual que se confunde com o poder de livre e proactiva autodeterminação e, por isso, mais eficaz. Sim, é verdade, os dois planos mantêm-se. E não é por acaso que mesmo os que se concentram na rede não deixam de investir também no broadcasting, no one-to-many, na verticalização e hierarquização da comunicação. Barack Obama representou, até então, 2008, a maior e mais competente campanha presidencial centrada na rede (ajudado, entre outros, pelo co-fundador do Facebook, Chris Hughes e por Joe Rospars, o estratega de Howard Dean), mas não descurou também este plano de comunicação. Num só spot televisivo de meia hora, passado na CBS, FOX e NBC, investiu cerca de 5 milhões de dólares (sobre a campanha de Obama, veja Castells, M., Comunicación y Poder, Madrid, Alianza, 2009, pp. 473-530). Mas isto passou-se há quinze anos. Entretanto, emergiu com o vigor que conhecemos a política quântica, e não só nos Estados Unidos.
7.
Hoje, de facto, com o populismo digital, já não estamos, em termos de relação com o eleitor, somente perante um movimento nivelador a partir de cima, one-to-many, broadcasting, dirigido a massas indiferenciadas, mas também, ou sobretudo, perante a possibilidade de uma gigantesca agregação de elementos isolados (users) que vivem na própria bolha e dela não saem, mas que são altamente acessíveis, sensíveis e previsíveis pelas novas tecnologias. A Google foi a grande pioneira nesta operação da previsão comportamental. E a esta função, a da previsibilidade dos comportamentos, são associados por Shoshana Zuboff, em “A Era do Capitalismo da Vigilância” (Lisboa, Relógio d’Água, 2020), conceitos como “produtos preditivos” ou “mercados de futuros comportamentais”: “a dinâmica competitiva destes novos mercados”, diz ela, “incentiva os capitalistas da vigilância a adquirirem fontes progressivamente mais previsíveis de excedente comportamental: as nossas vozes, as nossas personalidades e emoções” (2020: 22; 116). E como? “A inteligência automática processa o excedente comportamental e transforma-o em produtos preditivos dedicados a prever o que sentiremos, pensaremos e faremos, agora, em breve, mais tarde” (2020: 116; veja tb. 215). Um trabalho desenvolvido por cientistas e pela inteligência artificial sobre a nossa vida na rede com vista ao desenho do nosso próprio perfil. Perfil que serve a publicidade e que pode também servir a política, o mercado eleitoral, como se compreende e como se tem vindo a verificar (veja-se, por exemplo, o caso da Cambridge Analytica).
8.
Empoli refere Foucault para dizer que “a multidão, a massa compacta, foi abolida em prol de uma reunião de indivíduos separados, cada um dos quais pode ser seguido nos mínimos detalhes” (2023: 153). Seguido pelo algoritmo em função do perfil desenhado a partir da sua vida on line. Um mundo subterrâneo que fica armazenado nas grandes plataformas que vendem “produtos preditivos” às grandes empresas ou às forças políticas. Algo totalmente diferente do velho mundo das sondagens ou dos estudos de opinião. É assim que funciona a chamada política quântica: “na política quântica, a versão do mundo que cada um de nós vê é literalmente invisível aos olhos dos outros”, “a realidade objectiva não existe”, pois “cada observador determina a própria realidade” (Empoli, 2023: 170-171), haja ou não esse “Grande Outro” que nos pilote, nos guie, nos “confirme”, nos condicione, e ao qual se refere criticamente a Zuboff, tendo como referência o “Capitalismo da Vigilância” (Zuboff, 2020: 551-585). E é mesmo nesta relação directa do user com o mundo através da tecnologia digital, no interior da qual se processam novas relações de poder e onde o populismo digital explora politicamente o isolamento e as pulsões negativas dos indivíduos, accionando narrativas ao serviço da conquista do poder formal, que deixa de fazer sentido a própria ideia de intermediação e, por isso, entra também em crise a ideia de representação, verificando-se, então, esse curto-circuito disruptivo entre instituições e media (no sentido que referi), quando é subalternizada essa dupla face do poder (instituições, de um lado, e media, do outro):
“Na era do narcisismo de massas, a democracia representativa corre o risco de se encontrar mais ou menos na mesma situação que os gatos pretos” (que ninguém quer). “Com efeito, o seu princípio fundamental, a intermediação, contrasta de maneira radical com o espírito dos tempos e com as novas tecnologias que tornam possível a desintermediação em todos os domínios” (Empoli, 2023: 163).
9.
O populismo digital encontra, pois, aqui o seu terreno de culto: os cidadãos julgam participar directamente na gestão do poder, eliminando a intermediação, a representação, sem se darem conta de que estão a viver num território que pode ser muito mal frequentado, não só como território de exploração comercial, através de extracção de “excedente comportamental” para fins publicitários, mas (o que é mais grave) também como meio puramente instrumental ao serviço da conquista do poder político. Não é, pois, de estranhar que, tal como a democracia representativa está a pagar o preço desta tendência (fala-se frequentemente de democracia pós-representativa, quando ela nem sequer atingiu a maturidade, a democracia deliberativa), também o sistema de partidos esteja a sofrer o correspondente desgaste, a ponto de, referindo-se a um livro de Peter Mair, Jan-Werner Mueller, em What is Populism?, de 2016 (Milano, Egea, 2023, 2.ª Edição), vir dizer que algo “está a desaparecer mesmo perante os nossos olhos: a democracia de partidos” (2023: 117). Ou seja, a que está ancorada na ideia de representação, de intermediação e de mass communication. A experiência do MoVimento5Stelle era nisso que assentava (hoje, com Giuseppe Conte, já é menos), ao transformar os deputados em meros agentes orgânicos do povo da rede, dos users militantes e da Plataforma Rousseau, gerida pela empresa privada de Gianroberto Casaleggio, um dos dois fundadores do M5S (o outro é Beppe Grillo). Na verdade, tratava-se de mera aparência pois o verdadeiro poder estava na empresa Casaleggio Associati e no uso controlado da sua base de dados (arduamente negociada quando Davide Casaleggio deixou o M5S). O populismo, seja ele digital ou não, é tão-só uma aparência de democracia directa, visto que o povo, sendo fonte de legitimidade, na verdade não governa. Como, aliás, acontece na democracia representativa. Só que aqui existe uma aparência de revogabilidade e de organicidade do mandato, enquanto na democracia representativa de matriz liberal o mandato não é orgânico e é irrevogável. O povo confere o mandato, mas deixa de o poder revogar. No populismo digital a revogabilidade está sempre presente (como ilusão, ou melhor, como referência ideal e como valor) e pode ser reivindicada (ainda que não prevista constitucionalmente) pela máquina de poder populista (como antes acontecia nas democracias populares, embora nestas com inscrição constitucional, e a cargo dos partidos únicos, não do povo). Na verdade, com o populismo digital esta aparente contradição é resolvida pela declaração política do carácter orgânico dos mandatos.
10.
Na verdade, no populismo digital também a vontade eleitoral é manipulada, não como acontecia na sociedade de massas, mas sim através da maquinaria digital. E, para regressar à Zuboff, através dos “produtos preditivos”, dos “futuros comportamentais”. Foi por isso que Christopher Wyle pôde proclamar a sua culpa “em directo perante o mundo inteiro”, confessando: “eu fiz eleger Trump com os meus algoritmos” (Empoli, 2023: 140). E é também por isso que Empoli pode dizer que “para os engenheiros do caos o populismo nasce da união da cólera” (da indignação, do medo, do preconceito) “com o algoritmo” (2023: 85). Ora aqui está uma resposta à questão que acima coloquei. É nestas águas que navega e triunfa o populismo digital. Na fusão produtiva e reprodutiva entre ressentimento e algoritmo. Mas a política que está ao serviço da cidadania não funciona com o motor do ódio, da cólera, do ressentimento. Se o fizer resvalará para fora da democracia, que é um lugar onde imperam (constitucionalmente) os valores e os direitos universais e onde o mandato é não-imperativo. Navegando nestas águas, o populismo digital comporta-se como se a sua fosse a lógica da relação amigo-inimigo e não a da relação entre adversários, no interior de um quadro com regras bem definidas, pelo menos desde Montesquieu. Dizem que o ambiente em que ocorre o populismo digital só pode ser o ambiente democrático, ainda que com desvios graves em relação às variáveis que integram o sistema. E é verdade que os populistas até acabaram por aceitar a representação política, preferindo concentrar-se no soberanismo, na rejeição tendencial da imigração e no combate ao politicamente correcto, à mundividência woke e à ideologia de género, ao mesmo tempo que se opõem à mundividência liberal e vão subvertendo os tradicionais mecanismos de controlo e de limitação do poder. Mas a verdade é que, mais subterraneamente, é neste território dos valores negativos, ou melhor, das pulsões negativas, que ele se move, usando sem limites o poder do algoritmo, o marketing 4.0 e a tecnologia preditiva do comportamento (eleitoral). Que o diga Steve Bannon.
11.
Não há dúvida de que estamos perante uma mudança de paradigma. Ao lado (e por dentro) dos media cresceram a rede e as redes sociais, tal como cresceu um vasto saber científico e tecnológico de aperfeiçoamento da inteligência artificial. É verdade: no smartphone concentra-se um poder excepcional do utilizador, pessoal, individual, multifunções. Um computador de bolso hoje absolutamente vulgarizado. Calculando muito por baixo, é possível dizer que, no mundo, em cada duas pessoas uma tem um smartphone. E o nível de comunicação individualizada pode ser verificado, por exemplo, quando alguém faz anos. Não exagerarei se disser que no dia do meu recente aniversário tive cerca de trezentas comunicações pessoais via Net sem contar com as que foram feitas no Facebook, mais de duzentas (nas diversas secções). É um mero exemplo aplicado a um simples cidadão. Imaginemos, então, grandes empresas a trabalhar com big data. Isso já aconteceu: no Reino Unido, nos USA, no Brasil, em Itália, por exemplo. São mensagens pessoalizadas, só conhecidas pelos próprios e organizadas em função dos perfis dos users, do identikit desenhado com base no uso diário da rede e trabalhadas pelos homens do marketing 4.0 para serem devolvidas individualmente através do algoritmo.
12.
Tudo isto é trabalhado pelos novos spin doctors digitais, como antes o foi pelos da era da mass communication, pelos ideólogos e pelos maîtres-à-penser. Já referi os seus nomes e os protagonistas políticos para quem trabalham com resultados que todos conhecemos e que estão descritos no livro de Giuliano da Empoli ou no de Mauro Barberis. Trata-se, todavia, de uma realidade que não tem sido devidamente analisada e tomada em consideração pelos partidos tradicionais. Por exemplo, a experiência de Berlusconi, ainda no paradigma anterior, é já muito elucidativa a este respeito: ele transpôs com sucesso para a política a lógica e os instrumentos que os seus canais televisivos usavam para atrair audiências. Os novos spin doctors do populismo digital pisam terreno afim, embora num modelo completamente diferente do modelo tradicional da mass-communication. O Giuliano da Empoli chama-lhe política quântica, diferente da política newtoniana – um paradigma que não anula o antigo, que continua válido se usadas as suas categorias, mas que tem um sistema operativo completamente diferente. E, todavia, os valores (não as categorias operativas) com que trabalha (no plano da sua comunicação política) são equivalentes àqueles com que trabalham as plataformas de comunicação clássicas (imprensa, rádio e televisão) – os valores negativos em todo e qualquer género de comunicação ou informação. Também há uma expressão para designar esta afinidade: política tablóide (claramente aplicável ao berlusconismo). Os modelos coexistem tal como coexistem os dois tipos de spin doctors, os mediáticos e os digitais. Mas que estamos perante uma mudança de paradigma semelhante à que aconteceu com a física determinista relativamente à física quântica parece não haver dúvidas. E, por isso, há que retirar daqui as devidas ilações. Talvez um estudo atento da campanha de Barack Obama de 2008 possa dar pistas interessantes para responder com sucesso aos spin doctors que estão a pilotar os populismos digitais um pouco por todo o lado. O Manuel Castells dá pistas interessantes sobre o assunto no livro Comunicación y Poder, que acima referi. JAS@06-2023















