Artigo

A TEOLOGIA POLÍTICA DE LUÍS MONTENEGRO

Por João de Almeida Santos

Jas_2023_11_29

“S/Título”.JAS. 11-2023

TRÊS VEZES INVOCOU o nome de Deus (em vão) para esconjurar a ameaça do maléfico, travestido de radicalismo, de imaturidade e de geringonça. Cristãos-novos perante os verdadeiros cristãos, os que o são por convicção. Uma imagem enigmática nos tempos que estamos a viver, no Médio Oriente. E também o inesperado regresso do gonçalvismo sob forma de neogonçalvismo, primeiro, pela mão do radical António Costa e, agora, pela do ainda mais radical Pedro Nuno Santos, que já fora ajudante na obra. A infame traição ao PS de Mário Soares. Tudo comunistas e radicais dos quais o Divino haverá de proteger os portugueses. Já bastaram quatro anos de neogonçalvismo apostado em varrer para o lixo da história o magnífico património deixado por Passos Coelho, Paulo Portas e por si próprio! McCarthy não diria melhor.

1.

O líder do PSD, partido liberal (em economia) e personalista (em atitude), Luís Montenegro, tentou ultrapassar, com este seu neomaccartismo, André Ventura pela direita, ciente de que corre um enorme risco de ser ver eleitoralmente acossado pela direita radical (ele tem visto as sondagens, a última das quais dá ao CHEGA 16%), arriscando-se, caso ganhe as eleições, a não conseguir formar um governo sem o apoio do partido de André Ventura. Criou dois muros (à direita e à esquerda) e elevou o 10 de Março a uma exigência equivalente à de um novo 25 de Novembro, com o PSD a salvar a democracia dos empedernidos comunistas, bloquistas e socialistas – todos eles, afinal, farinha do mesmo saco, o saco gonçalvista. Os que também, e ainda por cima, irão fazer como o outro que, antes, exibia um sorrisinho de plástico para, depois de ter o poder na mão, mostrar o que efectivamente era: um “animal feroz”. Já não bastava a Pedro Nuno Santos ter encarnado na figura de Vasco Gonçalves como agora ainda lhe acrescem as garras do “animal feroz”.  Já uma vez se falara da chegada do diabo. Agora volta-se a falar do mafarrico, mas de um ser ainda mais feroz e infernal, numa conversa que cheira mesmo a mofo. E quanto maior for o mal maior terá de ser a cura. Mas, serenemo-nos, Luís Montenegro até é bastante alto (parece que tem 1 metro e 86 cms). E não sei se, também ele, foi ungido pelo Senhor.

2.

Depois, lá mais para o fim do dia, antes do encerramento do Congresso, e depois da unção (essa, sim) de dois dos santos padroeiros do PSD, Leite e Cavaco, chega o discurso de enamoramento eleitoral para os jovens, os idosos e pensionistas, os agregados que pagam IRS, os professores. Temos muito para redistribuir e até já fizemos as contas. Não vos dizemos quanto poupareis em IRS, a não ser aos jovens, mas ficai seguros de que até ao oitavo escalão os vossos bolsos serão (ainda assim) menos esvaziados pelo fisco. E vós, Professores, tereis o que não vos foi dado. E vós, pensionistas, acabareis lá mais para a frente a ter na pensão o mesmo que os do salário mínimo irão receber. Com carreira contributiva ou não, tereis uma pensão decente. Todos. Ou quase todos. Pensando melhor, só alguns, os que mais precisarem. Veremos caso a caso. Mas agiremos no signo de santo Abrunhosa – a quem agora pisco o olho – iremos “fazer o que ainda não foi feito”.

3.

Portanto, o que temos é, em primeiro lugar, um discurso neomaccartista, que prescindiu do facto de Portugal ter tido, sem convulsões sociais, durante quatro anos, um governo do PS (digo, do PS), apoiado no Parlamento pelo Bloco e pelo PCP, que procurou corrigir o virtuosismo neoliberal do governo de Passos Coelho e de Paulo Portas; de, em seguida, o PS ter ganho as eleições (2019) e de, pouco depois, em 2022, os eleitores até terem dado ao gonçalvista António Costa a maioria absoluta. Tudo excessos que só um novo 25 de Novembro, capitaneado pelo oficial-político Jaime Luís Neves de Montenegro, poderá corrigir definitivamente.

4.

O PS, com Pedro Nuno Santos, entrou definitivamente na era da revolução e só Deus poderá salvar os portugueses de o ter a chefiar um governo.  As eleições internas acabaram antes de começar, para Montenegro. Como quem diz:  elejam-no e verão o que vos espera! Mesmo assim, qualquer um dos três que as disputam é farinha do mesmo saco, ou seja, está irremediavelmente contaminado pelo neogonçalvismo que entrou prepotentemente nas casas dos portugueses e que urge esconjurar com um novo 25 de Novembro.

5.

Se isso for feito, a 10 de Março os portugueses serão objecto de fartas prebendas do Estado, numa vasta redistribuição de recursos financeiros aos jovens, aos idosos, aos reformados, aos professores e, como dizem os italianos, “chi più ne ha, più ne metta”. Vota em mim e eu recompenso-te financeiramente, nem que seja preciso voltar aos 130% de dívida pública (como no tempo das contas certas da dupla Passos&Portas).

6.

Confesso que o que aqui vejo é mais do mesmo, mas em excesso: neomaccartismo, que julgava ter sido enterrado no final dos anos 50, quando o seu artífice se finou; “justiça distributiva”, por um partido que se diz liberal em economia (disse-o Montenegro) e que, por isso, o que deveria propor era uma “justiça comutativa”. Mas, claro, em período eleitoral a regra de ouro é anunciar farta redistribuição, em homenagem ao Estado-Caritas e à hegemónica ideologia da caridade. É exibir uma atitude altamente personalista, a verdadeira identidade do PSD de Montenegro. Depois se verá, analisadas melhor as contas que os neogonçalvistas, os cristãos-novos das “contas certas”, nos deixaram.

7.

O discurso de Luís Montenegro confirma aquilo que vinha demonstrando ao longo da sua liderança: estar subordinado a um discurso pela negativa, exibindo aquilo a que chamo “política tablóide”, agora temperado por anúncios de “bodo aos pobres” para captação de votos em sectores sociais muito relevantes e numerosos. Vários anúncios: novo contrato social, ética pública, eficiência do Estado, recuo do Estado na economia, harmonia entre fronteiras abertas e fronteiras fechadas, gratuitidade e universalidade das prestações do Estado em relação às creches e ao pré-escolar. Sem dúvida, boas intenções. Mas o canto da sereia está lá na política redistributiva, para fins eleitorais… por um partido liberal em economia. A neblina na identidade política deste partido teima em persistir…

8.

O segundo discurso, no meu entendimento, poderá ser descodificado a partir de uma leitura atenta do primeiro: quem assim fala (no primeiro) não é credível (no segundo). Por uma simples razão: não há seriedade no discurso. E não há seriedade porque ao fazê-lo se esquece que Portugal foi governado entre 2015 e 2019 por um governo neogonçalvista sem que Deus se tenha dado ao trabalho de livrar os portugueses de tamanha calamidade. E a prova cabal da tolerância divina reside na atitude benevolente e até (muito) comprometida de um crente fervoroso que tinha o poder e o dever de o fazer, em nome do Divino, se fosse realmente o caso: o Presidente da República. Como se sabe, a cólera divina não se abateu sobre esse governo apóstata e, mais grave ainda, por duas vezes permitiu que o povo o mandasse governar o país. Uma das vezes até com maioria absoluta.  Amen. JAS@11-2023

Jas_2023_11_29-cópia

Poesia-Pintura

METAMORFOSE

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “A Solidão da Camélia”.
Original de minha autoria.
Novembro de 2023.
Jas_Camélia2023_4.jpgLuz

“A Solidão da Camélia”. JAS. 11-2023

POEMA – “METAMORFOSE”

CAMINHAVA
Docemente,
Irreal,
Sobre as cores
Que eu lhe dei...
Na minha alma
Era flor
Que eu sempre
Cultivei,
Alimento
Dos meus olhos,
Melodia
Dos poemas
Que para si
Cantarei.

CAMÉLIA
É o nome
Da flor
Que um dia
Encontrei
Em profunda
Solidão...
A alvura luminosa
Era tão densa
E brilhante
Que quase a tomei
Na palma
Da minha mão.

QUIS TRAZÊ-LA
Para o poema
E disse-me
Logo que sim,
Ficaria mais serena,
Estando perto
De mim.

FALEI COM ELA,
Dei-lhe palavras
E cor,
Pois solidão
É castigo,
E ela, brancura
Divina,
Não merecendo
Essa dor
Acolheu
O meu abrigo.

CAMINHÁMOS
Numa ponte
Prà outra margem
Da vida,
Foram passos
De liberdade,
Não foram
De despedida.

ESSA PONTE
De papel
Era um arco-íris
Saído do meu
Pincel
Que a devolvia
Ao jardim,
Onde a cor
É alimento,
É como favo
De mel,
De meus olhos
O sustento...
..............
Porque a arte
É assim.

VI NELA
Essa mulher
Dos meus sonhos,
Recriei-a
Com afeição,
Pintei-a
Em movimento,
Qui-la livre
No meu chão
De onde 
Se elevou
Quando eu
Lhe dei a mão,
Nesse preciso
Momento.

É ESTRANHO
O movimento
Que não a afasta
De mim,
Ela vive
Em quietude
Porque se oferece
Assim:
Transforma
A solidão
Em poética
Virtude.

A SOLIDÃO
Em flor
Pode ser 
Libertação
Se lhe dermos
Muita cor
Com a força da
Paixão.

Jas_Camélia2023_4.jpgLuz-cópia

Artigo

A TEOLOGIA POLÍTICA DE LUÍS MONTENEGRO

Por João de Almeida Santos

Jas_2023_11_29

“S/Título”.JAS. 11-2023

TRÊS VEZES INVOCOU o nome de Deus (em vão) para esconjurar a ameaça do maléfico, travestido de radicalismo, de imaturidade e de geringonça. Cristãos-novos perante os verdadeiros cristãos, os que o são por convicção. Uma imagem enigmática nos tempos que estamos a viver, no Médio Oriente. E também o inesperado regresso do gonçalvismo sob forma de neogonçalvismo, primeiro, pela mão do radical António Costa e, agora, pela do ainda mais radical Pedro Nuno Santos, que já fora ajudante na obra. A infame traição ao PS de Mário Soares. Tudo comunistas e radicais dos quais o Divino haverá de proteger os portugueses. Já bastaram quatro anos de neogonçalvismo apostado em varrer para o lixo da história o magnífico património deixado por Passos Coelho, Paulo Portas e por si próprio! McCarthy não diria melhor.

1.

O líder do PSD, partido liberal (em economia) e personalista (em atitude), Luís Montenegro, tentou ultrapassar, com este seu neomaccartismo, André Ventura pela direita, ciente de que corre um enorme risco de ser ver eleitoralmente acossado pela direita radical (ele tem visto as sondagens, a última das quais dá ao CHEGA 16%), arriscando-se, caso ganhe as eleições, a não conseguir formar um governo sem o apoio do partido de André Ventura. Criou dois muros (à direita e à esquerda) e elevou o 10 de Março a uma exigência equivalente à de um novo 25 de Novembro, com o PSD a salvar a democracia dos empedernidos comunistas, bloquistas e socialistas – todos eles, afinal, farinha do mesmo saco, o saco gonçalvista. Os que também, e ainda por cima, irão fazer como o outro que, antes, exibia um sorrisinho de plástico para, depois de ter o poder na mão, mostrar o que efectivamente era: um “animal feroz”. Já não bastava a Pedro Nuno Santos ter encarnado na figura de Vasco Gonçalves como agora ainda lhe acrescem as garras do “animal feroz”.  Já uma vez se falara da chegada do diabo. Agora volta-se a falar do mafarrico, mas de um ser ainda mais feroz e infernal, numa conversa que cheira mesmo a mofo. E quanto maior for o mal maior terá de ser a cura. Mas, serenemo-nos, Luís Montenegro até é bastante alto (parece que tem 1 metro e 86 cms). E não sei se, também ele, foi ungido pelo Senhor.

2.

Depois, lá mais para o fim do dia, antes do encerramento do Congresso, e depois da unção (essa, sim) de dois dos santos padroeiros do PSD, Leite e Cavaco, chega o discurso de enamoramento eleitoral para os jovens, os idosos e pensionistas, os agregados que pagam IRS, os professores. Temos muito para redistribuir e até já fizemos as contas. Não vos dizemos quanto poupareis em IRS, a não ser aos jovens, mas ficai seguros de que até ao oitavo escalão os vossos bolsos serão (ainda assim) menos esvaziados pelo fisco. E vós, Professores, tereis o que não vos foi dado. E vós, pensionistas, acabareis lá mais para a frente a ter na pensão o mesmo que os do salário mínimo irão receber. Com carreira contributiva ou não, tereis uma pensão decente. Todos. Ou quase todos. Pensando melhor, só alguns, os que mais precisarem. Veremos caso a caso. Mas agiremos no signo de santo Abrunhosa – a quem agora pisco o olho – iremos “fazer o que ainda não foi feito”.

3.

Portanto, o que temos é, em primeiro lugar, um discurso neomaccartista, que prescindiu do facto de Portugal ter tido, sem convulsões sociais, durante quatro anos, um governo do PS (digo, do PS), apoiado no Parlamento pelo Bloco e pelo PCP, que procurou corrigir o virtuosismo neoliberal do governo de Passos Coelho e de Paulo Portas; de, em seguida, o PS ter ganho as eleições (2019) e de, pouco depois, em 2022, os eleitores até terem dado ao gonçalvista António Costa a maioria absoluta. Tudo excessos que só um novo 25 de Novembro, capitaneado pelo oficial-político Jaime Luís Neves de Montenegro, poderá corrigir definitivamente.

4.

O PS, com Pedro Nuno Santos, entrou definitivamente na era da revolução e só Deus poderá salvar os portugueses de o ter a chefiar um governo.  As eleições internas acabaram antes de começar, para Montenegro. Como quem diz:  elejam-no e verão o que vos espera! Mesmo assim, qualquer um dos três que as disputam é farinha do mesmo saco, ou seja, está irremediavelmente contaminado pelo neogonçalvismo que entrou prepotentemente nas casas dos portugueses e que urge esconjurar com um novo 25 de Novembro.

5.

Se isso for feito, a 10 de Março os portugueses serão objecto de fartas prebendas do Estado, numa vasta redistribuição de recursos financeiros aos jovens, aos idosos, aos reformados, aos professores e, como dizem os italianos, “chi più ne ha, più ne metta”. Vota em mim e eu recompenso-te financeiramente, nem que seja preciso voltar aos 130% de dívida pública (como no tempo das contas certas da dupla Passos&Portas).

6.

Confesso que o que aqui vejo é mais do mesmo, mas em excesso: neomaccartismo, que julgava ter sido enterrado no final dos anos 50, quando o seu artífice se finou; “justiça distributiva”, por um partido que se diz liberal em economia (disse-o Montenegro) e que, por isso, o que deveria propor era uma “justiça comutativa”. Mas, claro, em período eleitoral a regra de ouro é anunciar farta redistribuição, em homenagem ao Estado-Caritas e à hegemónica ideologia da caridade. É exibir uma atitude altamente personalista, a verdadeira identidade do PSD de Montenegro. Depois se verá, analisadas melhor as contas que os neogonçalvistas, os cristãos-novos das “contas certas”, nos deixaram.

7.

O discurso de Luís Montenegro confirma aquilo que vinha demonstrando ao longo da sua liderança: estar subordinado a um discurso pela negativa, exibindo aquilo a que chamo “política tablóide”, agora temperado por anúncios de “bodo aos pobres” para captação de votos em sectores sociais muito relevantes e numerosos. Vários anúncios: novo contrato social, ética pública, eficiência do Estado, recuo do Estado na economia, harmonia entre fronteiras abertas e fronteiras fechadas, gratuitidade e universalidade das prestações do Estado em relação às creches e ao pré-escolar. Sem dúvida, boas intenções. Mas o canto da sereia está lá na política redistributiva, para fins eleitorais… por um partido liberal em economia. A neblina na identidade política deste partido teima em persistir…

8.

O segundo discurso, no meu entendimento, poderá ser descodificado a partir de uma leitura atenta do primeiro: quem assim fala (no primeiro) não é credível (no segundo). Por uma simples razão: não há seriedade no discurso. E não há seriedade porque ao fazê-lo se esquece que Portugal foi governado entre 2015 e 2019 por um governo neogonçalvista sem que Deus se tenha dado ao trabalho de livrar os portugueses de tamanha calamidade. E a prova cabal da tolerância divina reside na atitude benevolente e até (muito) comprometida de um crente fervoroso que tinha o poder e o dever de o fazer, em nome do Divino, se fosse realmente o caso: o Presidente da República. Como se sabe, a cólera divina não se abateu sobre esse governo apóstata e, mais grave ainda, por duas vezes permitiu que o povo o mandasse governar o país. Uma das vezes até com maioria absoluta.  Amen. JAS@11-2023

Jas_2023_11_29-cópia

PS – ENTRE O PASSADO E O FUTURO

Por João de Almeida Santos

Imagem1

“S/Título”. JAS. 11-2023

O PS FEZ EM ABRIL CINQUENTA ANOS, se não considerarmos como início da sua vida a iniciativa política de Antero de Quental, de Azedo Gneco e de José Fontana, entre outros, em 1875. Fixemo-nos, pois, em Abril de 1973, em Bad Muenstereifel, para concluirmos que ninguém poderá esquecer o papel que o PS teve na construção da democracia representativa que hoje temos e o rosto que o protagonizou: Mário Soares. Mais, os avanços significativos da nossa democracia tiveram sempre o PS como seu protagonista essencial. O seu espaço político foi e é um espaço virtuoso porque procura combinar de forma harmoniosa a liberdade e a igualdade, o papel fundamental do Estado e a  vitalidade da sociedade civil, o público e o privado, a convivência das forças mais conservadoras com as forças mais radicais, desde que se inscrevam nos valores constitucionais, ou seja, desde que pratiquem aquilo que um dia Habermas designou, falando da União Europeia, como “patriotismo constitucional” (1).  O passado deste partido é algo de que os portugueses se devem orgulhar. Os erros também aconteceram, mas o legado é altamente positivo, durante os cerca de 25 anos em que o PS governou este País.

E AGORA, PS?

E, hoje? Respondo, nesta inesperada crise que derrubou o governo e uma maioria absoluta do PS, com considerações sobre o estado da arte, mas também numa lógica prospectiva, olhando mais para o futuro do que para o passado, sendo, todavia, certo que é necessário corrigir o que nele persiste de errado ou insuficiente. De resto, é disso mesmo que se trata no processo de escolha do secretário-geral que irá suceder a António Costa.

Se o diagnóstico é sobre o passado, o bom e o mau, o objectivo, todavia, é a resposta aos desafios que temos pela frente e a mudança para melhor, como forma de honrar esse passado de prestígio. O balanço deve ser sobre o partido, mas também sobre a sociedade portuguesa, onde ele teve uma impactante intervenção, sobretudo durante os anos em que governou.

A primeira observação que me parece dever avançar é a que resulta do reconhecimento das profundas mudanças que estão a acontecer nas sociedades contemporâneas e, consequentemente, da pergunta que se impõe: está o PS a mover-se tendo realmente em conta estas mudanças? Temo que a minha resposta não possa ser inteiramente positiva se olharmos para o passado mais recente. Não me parece que o PS tenha estado a responder com criatividade, eficácia e empenho prospectivo aos desafios que estão aí à nossa frente. E se não o fez ou fizer, enquanto partido, dificilmente o poderá fazer enquanto governo, por razões que são fáceis de compreender. Enquanto partido, sofre, em geral, as dificuldades que todos os partidos socialistas e sociais-democratas estão a sentir e que já se estão a traduzir em resultados eleitorais (refiro-me a resultados eleitorais e às recentes sondagens disponíveis) pouco entusiasmantes, na Espanha, na França, na Alemanha, na Itália ou na Grécia. Sofre as dificuldades que os partidos do chamado establishment – os da alternância democrática, os do centro-esquerda, mas também os do centro centro-direita – estão a sofrer e que se estão a traduzir na progressiva fragmentação dos sistemas de partidos. Esta fragmentação já está em curso também em Portugal e de forma acelerada pelo que nos dizem as mais recentes sondagens, a ponto de os dois partidos da alternância, PS e PSD, já só exibirem cerca de 50% do eleitorado, em conjunto. Veremos nas próximas eleições. Ou seja, o próprio PS está a sofrer os efeitos da progressiva redução da política à sua dimensão de puro “management”, à identificação de governo com governança (“governance”),  a uma prática política sem alma e à perda de uma vocação hegemónica que possa conduzi-lo à formação de um bloco histórico (Gramsci), envolvendo as forças sociais com maior capacidade de propulsão histórica, capaz de conduzir o país para um futuro sólido, em vez de promover cada vez mais um discurso de comiseração e caritativo ao mesmo tempo que mantém taxas de sobrecarga fiscal sobre a classe média absolutamente incomportáveis. Ou seja, o PS tem vindo a praticar uma política de movimento por inércia, fundada num pragmatismo táctico que não prenuncia tempos de esperança, como devia ser sua vocação enquanto partido de esquerda. Também o PS sofre de “algebrose”, o discurso obsessivo dos grandes números, a obsessão pelas contas certas e uma visão puramente contabilística da político económico-financeira.

Internamente, o PS mantém uma estrutura orgânica pouco dinâmica ou mesmo inadequada aos tempos que vivemos: totalmente dependente do Estado; paralisado nas suas estruturas orgânicas (por exemplo, no Gabinete de Estudos, na Fundação “Res Publica”, no – lamentavelmente desaparecido – “Acção Socialista”, nas revistas de pensamento político); presença diminuta e apagada no universo sindical e, em geral, nas organizações da sociedade civil (veja-se o que tem acontecido na área do socorro de emergência, nos bombeiros), designadamente nos novos movimentos por causas, na comunicação social, nas universidades;  alheamento em relação ao papel das grandes plataformas digitais e ao seu papel na mobilização da cidadania (lembro que um dos pontos fortes da fracassada liderança do Labour de Jeremy Corbyn, foi a plataforma “Momentum”); posição incerta sobre o futuro da União Europeia (a opção seria ou pela constitucionalização da União ou pela lógica simplesmente intergovernamental ou funcionalista).  O PS parece ter estado a mover-se exclusivamente concebendo a política como pura comunicação instrumental para o consenso, em linha com a sua visão de puro pragmatismo governamental e com a sua dependência do aparelho de Estado, incapaz de metabolizar as profundas mudanças que estão a acontecer no plano da sociedade civil, designadamente graças à rede, à inteligência artificial e à globalização, sobretudo a globalização financeira, migratória e das grandes plataformas digitais.

A POLÍTICA DEMOCRÁTICA 
E A QUESTÃO DAS FONTES DO PODER

Num ensaio que aqui publiquei, “A Política na Era do Algoritmo” (2), falava de três “constituencies” que hoje estão na origem constitutiva do poder, mesmo no plano do Estado-Nação: a do cidadão contribuinte (a original), a dos credores financeiros internacionais que financiam, através do mercado financeiro internacional, as dívidas soberanas e a das grandes plataformas digitais que contratualizam informalmente com a cidadania a prestação de serviços e acesso à informação e à produção de conteúdos, numa dimensão que é profunda, individualizada e simplesmente gigantesca, com fortes efeitos sobre o comportamento político da cidadania, como se sabe. Esta composição das fontes do poder e da soberania deverá ser objecto de cuidada ponderação pelas forças de governo e pela União Europeia de forma a evitar a erosão definitiva da “constituency” originária, a única sujeita a “accountability” pela cidadania, e, com isso, evitar a destruição da própria democracia representativa. O recente episódio dos Certificados de Aforro dá-nos uma ideia muito precisa da desvalorização da centralidade do cidadão contribuinte na política financeira do Estado a favor do capital financeiro, nacional e internacional (3).

A não assunção crítica destes factores implicará um esvaziamento da política democrática e da deliberação pública, grave sobretudo ao nível de partidos que têm o particular dever, enquanto se reivindicam de esquerda, de garantir a promoção da política democrática e representativa, ou seja, de garantir que a soberania do cidadão contribuinte não é definitivamente confiscada por poderes não sujeitos a “accountability” política. Bem pelo contrário, é seu dever promoverem a evolução para uma democracia deliberativa, a única que, mantendo a representação, pode resolver o problema da cisão entre representantes e representados (4).

A INFILTRAÇÃO IDEOLÓGICA 
E A IDENTIDADE DO PS

Acresce a tudo isto que a este desvio para um excessivo pragmatismo (eleitoral) de governo, sem alma nem clareza ideológica, sem uma cartografia cognitiva exigente ou sem o suporte de uma grande narrativa ou de uma utopia mobilizadora (5), que até pode ser a de uma democracia deliberativa (Camponês, Ferreira e Rodrígues-Díaz, 2020) que confira mais poder ao cidadão no interior do sistema representativo, se veio a juntar a importação de perigosos produtos ideologicamente tóxicos, assumidos como se neles pudesse acontecer a redenção ideológica de um partido que deixou de cuidar das questões doutrinárias e da sua própria identidade político-ideal. Refiro-me à ideologia woke, ao politicamente correcto, à conversa enjoativa da linguagem inclusiva e neutra, ao radicalismo da ideologia de género, que vê a relação homem-mulher como uma mera relação de poder, e ao revisionismo histórico (6). A forma como estas ideologias têm vindo a evoluir, designadamente galgando os espaços partidários dos partidos do establishment e os espaços institucionais, assumindo cada vez mais dimensão normativa nas instituições nacionais e internacionais e impondo-se na opinião pública e na sociedade através de estereótipos com força de coacção moral, em muito tem contribuído para alimentar a ideologia iliberal da direita radical que as identifica, embora errada e instrumentalmente, com a própria mundividência liberal, sua inimiga jurada, desde os tempos do romantismo do século XIX. A intrusão daquelas ideologias – que de liberais, afinal, nada têm, sendo, pelo contrário, suas adversárias – na mundividência dos partidos socialistas e sociais-democratas, que, pelo contrário, radicam e se filiam no iluminismo, é facilitada por uma ideologia de tipo orgânico que, por um lado, rejeita o próprio património liberal (que está na matriz da nossa própria civilização – veja-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789) e, por outro, se afastou da tradição marxista, sem se  preocupar em encontrar uma consistente mundividência alternativa em linha com os novos tempos. Eu próprio tentei uma redefinição da doutrina em Política e Democracia na Era Digital (7), desenvolvendo e actualizando, neste livro, a que já apresentara na Universidade de Verão do PS, em Santarém, em 2015. Os trabalhistas ingleses tentaram esse aggiornamento nos anos cinquenta, com Hugh Gaitskell, mas somente em 1985, com Neil Kinnock, e, depois, com John Smith e Tony Blair, viria a ser desenvolvido na forma de New Labour ou de Terceira Via, tão execrada pelos sociais-democratas tradicionais e, mais tarde, até pelo próprio Labour de Jeremy Corbyn, com os “magníficos” resultados que se conhece (e que aqui critiquei várias vezes, durante o período da sua liderança). O recomeço do Labour a partir de 1997 (data em que, após a consolidação interna do New Labour, Blair iniciou a sua caminhada governativa), assumido explicitamente pela liderança de Keir Starmer, está a projectar o Labour de tal modo que poderá vir a ser vencedor absoluto nas próximas eleições (com mais de 20 pontos acima dos conservadores, em recente sondagem de Outubro). Por sua vez, o SPD fez, em 1959, esta operação de libertação da tradição marxista e de regresso ao iluminismo no famoso Congresso de Bad Godesberg. Um e o outro, na sequência destas mudanças, viriam a conquistar o poder e a exercê-lo durante bastante tempo. Na verdade, tratou-se do abandono da sua identidade como partidos-igreja para assumirem mais a forma de catch-all-parties, na sequência do crescimento da “middle class” e da necessidade de lhe corresponder politicamente.  O PS de Abril manteve, todavia, na sua Declaração de Princípios de 1974, uma posição, certamente por força da conjuntura que então se vivia, muito alinhada com as teses e os princípios marxistas (“sociedade sem classes” e colectivização dos meios de produção e de distribuição), só mais tarde evoluindo paulatinamente para posições mais moderadas, mas sem grandes rupturas de fundo, designadamente em dois aspectos essenciais: na manutenção da sua rejeição do património liberal clássico (e apesar de, como disse, o iluminismo ser a filosofia em que necessariamente se inscreve), que sempre considerou como sendo de direita (apesar de existir um filão chamado socialismo liberal, que vai de Stuart Mill a Hobhouse, Hobson, Capitini e Calogero, Rosselli, Dewey, Bobbio e o Partito d’Azione italiano) (8), e na assunção orgânica do predomínio da ideia de comunidade sobre a ideia de sociedade, um velho resquício sobrevivente do marxismo, e não tanto da teoria de Toennies ou de Max Weber. Uma coisa é certa: não se deve confundir o património liberal clássico com a sua reinterpretação pelos partidos liberais, que sempre se colocaram à direita, por razões que são historicamente explicáveis.

AGGIORNAMENTO

Na verdade, o PS, ocupado regularmente nas tarefas da governação durante cerca de 25 anos nos 49 da nossa democracia (em rigor, mais 47 do que 49), nunca chegou a efectuar um verdadeiro aggiornamento de fundo da sua doutrina no sentido de um esclarecimento ideológico equivalente ao que o Labour ou o SPD fizeram, sobretudo nestes dois aspectos que referi, o da compatibilidade da tradição liberal com a sua própria tradição e identidade (o que tem implicações muito relevantes sobre o modo como são vistos os direitos individuais) e o da remoção desse resquício comunitário (com o equivalente sentimento de pertença, que neste partido ainda é quase exclusivo), que persiste. Falta clareza sobre os limites da intervenção do Estado e sobre uma estratégia para uma maior eficácia da Administração Pública (que não seja a da máquina fiscal); sobre o papel dos partidos políticos na sociedade; sobre a dinâmica da relação entre o princípio da liberdade e o princípio da igualdade (não se sabendo, hoje, bem qual destes dois princípios tem a primazia, embora o discurso acentue cada vez mais o da igualdade, quando o PS de Mário Soares acentuava o valor da liberdade); sobre a chamada classe “gardée” ou a referência social dominante no discurso do PS; sobre a questão do peso fiscal sobre a cidadania (que está ligada à questão do papel e funções do Estado, que, sendo Estado Social, não é seguramente um “Estado-Caritas”, amigo caritativo dos “pobrezinhos”) (9); sobre a questão da hegemonia ético-política e cultural (que não se reduz a hegemonia política); sobre a relação proactiva com os movimentos sociais por causas; sobre uma estratégia para a projecção no futuro do país e da própria União, entre tantas outras coisas. Mas também sobre a política de justiça, que tem ficado colonizada (ou paralisada) por uma indiferença política centrada na célebre fórmula “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça”, como se a justiça fosse coutada de uma corporação blindada relativamente a qualquer tentativa de ordenação ou reordenação por parte da representação política, directa expressão da soberania popular. O que a actual crise parece sublinhar é que a separação dos poderes só vale efectivamente para um dos poderes, precisamente o poder judicial.

O PS VISTO MAIS DE PERTO

A recente tentativa feita por um centro de investigação do ISCTE, encomendada pelo PS, sobre o partido e o poder local não veio alterar no essencial as coisas, nem, de resto, parece ter tido grande sucesso ou sequer divulgação interna como documento fundamental. Por outro lado, a tentativa de criar uma (bela, de resto) revista semestral de pensamento político, Portugal Socialista – Revista Política, bilingue (português-inglês), na altura dirigida pelo actual presidente da Câmara de Ferreira do Alentejo, Luís Pita Ameixa, parece ter ficado pelo caminho, creio que pelo seu número dois. A própria Revista Finisterra (que era propriedade da Fundação José Fontana e que agora é propriedade da Fundação Res Publica), que há muito parece estar um pouco abandonada, mas agora dirigida por Fernando Pereira Marques, em dez anos limitou-se a publicar onze números, acabando por ter somente uma periodicidade anual e não desempenhando, designadamente com iniciativas de mobilização, uma função orgânica e propulsora para a revitalização do universo intelectual e doutrinário em que se inscreve o PS. O Acção Socialista, que tive a honra de dirigir durante três anos e de informatizar, e que, há anos, é dirigido pela deputada Edite Estrela, pouco ou nada contribuiu, nesses anos, para promover o aggiornamento doutrinário do PS, limitando-se a ser um repositório de artigos de pura política interna e de propaganda, sem ambições doutrinárias e ideológicas, até pura e simplesmente desaparecer, ao ser convertido em mero espaço noticioso do site do PS, embora com a designação de Acção Socialista Digital. Na verdade, Edite Estrela, ao tornar o Acção Socialista um “jornal” diário ou uma Newsletter semanal, o que fez foi acabar mesmo com ele. Se já era pouco, agora é mesmo nada. O PS deixou de ter um jornal próprio. Restam o nome e a Directora. Dois nomes, somente, porque a coisa já não existe. E julgo mesmo que do fim do “AS” a generalidade dos militantes ainda nem se apercebeu. A própria Fundação Res Publica, dirigida por Pedro Silva Pereira, que absorveu a Fundação José Fontana e a Fundação Antero de Quental, pouco ou nada tem feito, estando certamente o seu presidente mais ocupado com o Parlamento Europeu, de que é Vice-Presidente, do que com a gestão e a programação da Fundação. Mas ainda houve tempo para criar, entretanto, em Abril de 2021, uma Revista, Res Publica – Revista de Ensaios Políticos, dirigida por si, que publicou, até ao momento, três números. A Fundação Res Publica tem, pois, neste momento, duas Revistas de pensamento político (Finisterra e Res Publica), ambas, na realidade, de periodicidade anual.  Uma abundância redundante que, na prática, se converte em nula função orgânica, quando a revitalização ideológica e doutrinária é aquilo de que o PS mais precisa.  Em tempos, e é um mero exemplo, a Fundação Antero de Quental, dirigida por Jorge Lacão, foi um importante centro de estudos e de actividade dirigidos ao poder local. Mas, hoje, o que me parece realmente é que o PS, nesta área, anda ao sabor das idiossincracias ou dos humores pessoais de certos seus dirigentes, numa vaga que não se entende.

AFINAL, O QUE É A POLÍTICA?

Tudo isto, que não é pouco, porque se trata de instrumentos preciosos para o robustecimento cultural, ideológico e doutrinário do PS e para a promoção da literacia política dos seus militantes, deveria ser objecto de uma profunda reflexão por aqueles que agora disputam a liderança do pós-António Costa, preparando um futuro que não seja simplesmente o de fazer cálculos tácticos e eleitorais para a conquista do poder político institucional e para a ocupação do aparelho de Estado, deixando como mero adereço o trabalho no campo estritamente político, ideológico, doutrinário e cultural. Viu-se ao que conduz uma política displicente do ponto de vista doutrinário, ético-político e cultural e até programática – ver desbaratado um capital político adquirido com a obtenção de uma maioria absoluta. Isso é o que se tem verificado, estando o PS transformado num mero partido-veículo (para conduzir ao Estado) e tornando residual a sua relação com a sociedade civil, a não ser numa lógica exclusivamente eleitoral e de redução da política à sua dimensão puramente táctica e instrumental. O que acontece é que a política é algo mais vasto e mais denso do que a mera competição eleitoral e, seguramente, também é muito mais do que uma mera “arte  do  equilíbrio”, como a definiu Fernando Medina, até porque é ela que deve ser a base sobre a qual devem ser construídos os projectos políticos, as próprias competições eleitorais e as soluções de governo. Mas essa função só pode ser desempenhada por um partido que seja já um pequeno universo onde se desenvolve uma vida autónoma e plural capaz de vir a alimentar as forças necessárias para a conquista da hegemonia ético-política e cultural, para a construção de um sólido bloco histórico e para a formação de governos competentes, densos e movidos exclusivamente pela ética pública. Sim, pela ética pública. A política não é, de facto, uma arte para equilibristas talentosos, mas muito mais. Ou para “temperadinhos” que a transformem em arte de sobrevivência. E não é desvitalizando e tornando anémico o partido que depois se pode esperar sucesso na relação com a sociedade civil, nas políticas a desenvolver e nos agentes que têm por missão executá-las e promovê-las.

QUE DOUTRINA PARA O FUTURO 
DA UNIÃO EUROPEIA?

O mesmo vale para a política internacional e, sobretudo, para a política europeia, onde não se vê preocupação em posicionar o PS sobre as grandes questões que se põem à União Europeia no plano da sua evolução institucional como entidade política e como protagonista à escala mundial, vendo-se, isso sim, designadamente no Facebook, uns ou umas eurodeputadas a fazerem alegremente turismo pelo mundo fora. Nem se vê também preocupação da Foundation for European Progressive Studies, sediada em Bruxelas e dirigida por uma portuguesa, Maria João Rodrigues, produzir doutrina de fundo sobre o futuro da Europa para responder com novas ideias e propostas à crise por que estão a passar os partidos socialistas ou sociais-democratas da União Europeia, o que  contribuiria para que o PS viesse a ter uma posição mais clara e sólida (que não tem) sobre o futuro da União. O que é grave, conhecendo nós a matriz europeísta do próprio partido, para a qual muito contribuiu o seu fundador Mário Soares.

Estamos, pois, numa situação que mereceria, agora que o PS tem meio século e disputa a liderança com jovens quadros com alguma experiência política no terreno, uma atenção particular, fazendo um aggiornamento  profundo que toque em todos estes aspectos e superando essa ideia que começa a singrar na opinião pública de que este partido já mais não é do que uma enorme federação de interesses pessoais em busca de colo na gigantesca máquina do Estado e uma boa plataforma para descolar em direcção a Bruxelas e a Estrasburgo. Mas não é essa a vocação do PS, nem o seu passado é compatível com essa condição.

O FUTURO DO PS É TAMBÉM O FUTURO 
DA DEMOCRACIA EM PORTUGAL

Por ocasião do aniversário dos seus cinquenta anos o PS foi chamado a escolher um novo secretário-geral na sequência da queda de um governo que dispunha de uma maioria absoluta na Assembleia da República. Uma vida curta e cheia de peripécias pouco abonatórias para o partido. A última deu origem a uma ruptura que levará a uma mudança interna profunda. O meu desejo, qualquer que seja o novo secretário-geral, é a de que o PS saiba sair desta situação algo pantanosa em que se encontra para que o seu passado seja honrado com um futuro que seja também digno também de boa memória. Fico a aguardar as moções de estratégia dos candidatos para conhecer as linhas de orientação de cada um quer sobre o partido quer sobre o País. JAS@11-2023

NOTAS

(1) Habermas, J. “Cittadinanza e Identità Nazionale”, In Micromega, 5/91, 123-146.

(2) “A Política na Era do Algoritmo”: https://joaodealmeidasantos.com/2023/04/11/ensaio-29/

(3) Veja o meu artigo “Confissões de um Aforrador”: .https://wordpress.com/post/joaodealmeidasantos.com/13068).

(4) Veja o meu texto sobre a Democracia Deliberativa em Camponês, Ferreira e Rodríguez-Díaz,  Estudos do Agendamento, Covilhã, Labcom, 2020, pp. 137-167:  https://labcomca.ubi.pt/estudos-do-agendamento-teoria-desenvolvimentos-e-desafios-50-anos-depois/

(5). Recentemente, em artigo em “El País”, o presidente de Más País, e um dos fundadores de Podemos, Iñigo Errejón, falava da necessidade de regressar a uma “política que volte a ser ingénua e utópica”, 14.04.23, pág. 11.

(6) Veja a minha crítica a estas ideologias em “Manifesto – A Lavandaria Semiótica e ouras coisas do mesmo jaez”: https://joaodealmeidasantos.com/2023/04/04/manifesto/ e em “O Desafio Woke”, de 18 de Outubro de  2023: https://wordpress.com/post/joaodealmeidasantos.com/13906

(7) Lisboa, Parsifal, 2020, pp. 15-47 e 133-153.

(8) Veja o meu livro Paradoxos da Democracia, Lisboa, Fenda, 1998, pp. 65-68.

(9) Veja o meu artigo sobre “O Estado-Caritas”: https://joaodealmeidasantos.com/2023/03/21/artigo-96/)

Imagem1-cópia

Poesia-Pintura

SILÊNCIO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “O Som do Silêncio”.
Original de minha autoria.
Novembro de 2023.
SOM11_2023

“O Som do Silêncio”. JAS. 11-2023

POEMA – “SILÊNCIO”

OUÇO A VOZ
Do silêncio
Que me cerca,
Adentro-me
Na multidão
E ele cresce
Por dentro,
Na alma
Me cresce
E, quase, quase,
Como grito
Sufocado...
..............
Me ensurdece.

AH, É DEMAIS,
Este silêncio,
Esta voz inaudível
Caustica-me
A pele macia 
Da memória
Dos afectos,
Uma moinha
Na alma,
Silvo
De vento
Cortante
Nas janelas
Destroçadas
Da emoção.

E EU FUJO
Para o ermo,
Lá em cima,
Na montanha,
À procura
Da solidão de
Eremita
Em busca
Da melodia
Do nome
Silenciado,
Aquele que nunca
Ousaste
Pronunciar,
Palavra em degredo,
Nome castigado
Que só o poema
Pode resgatar.

LÁ NO ALTO
(É sempre assim),
Ouço uma harpa
Dedilhada
Por ti,
Notas musicais
Que me fazem
Estremecer
E vejo riscos
Coloridos
Esvoaçando
No teu azul
De Lisboa
Em direcção
Ao infinito...

VEJO-TE SAIR
Da neblina
Cintilante
Do rio
Que te veste
A alma
E sacio-me de
Palavras
Soltas,
Em turbilhão,
Até que a inspiração
Chegue
E as componha
Num poema
De redenção
Que te cante
E que te conte
Às nuvens
E ao vento
Que passa...

NOMEIO-TE
E sussurro
Uma pequena
Palavra
Que nunca ousei
Pronunciar,
Mas que ouviste
Ressoar-te
Na alma
Mil vezes,
Em mil poemas
Sufocados.

O SILÊNCIO
É a tua fala
(Bem sei),
Mas eu não sairei
Deste poema
E do ermo reparador
Até que me ouças
E soletres
Finalmente
Esse nome
Com as cores
Da tua fantasia,
As cores vivas
Da emoção.

FICO PRISIONEIRO
De um poema
Em construção
Até ao resgate
Desse nome
Perdido
E silenciado
Na ilha remota
Da tua memória,
Âncora firme
Da minha própria
Salvação.

O SomDoSilêncio2023

Notícia

ONTEM

Capa_A Dor e o Sublime

Pintura da capa: “Perfil de Mulher”. 94X114, em papel de algodão Hahnemuehle. JAS, 2022. Colecção Particular.

OCORREU, ontem, 17 de Novembro de 2023, o lançamento do meu livro “A Dor e o Sublime. Ensaios sobre a Arte” (S. João do Estoril, ACA Edições, 2023) na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, na Guarda. Sala cheia. Presidiu à Mesa o Senhor Presidente da Câmara Municipal da Guarda, Sérgio Costa, a quem agradeço publicamente a presença e as palavras que me dirigiu. Apresentou o Dr. António José Dias de Almeida. Uma magnífica apresentação, que subscrevo integralmente. Os amigos que nos honraram com a sua presença puderam, assim, ter uma ideia muito completa do conteúdo do livro. Também quero aqui dar nota pública da minha gratidão pela sua belíssima apresentação do livro. Ao Ricardo de Almeida Santos, Director das ACA Edições, o meu obrigado pelo convite que me fez para inaugurar a Editora, pela sua presença na Mesa e pelas palavras que proferiu. Aos presentes, todos amigos de longa data, o meu obrigado por nos terem acompanhado neste belíssima sessão. Esta edição do livro está, desde ontem, esgotada. Está já em estudo, pelo Editor, a hipótese de uma segunda edição. Duas imagens da sessão.

PHOTO-2023-11-18-10-29-35

Momento da minha intervenção no encerramento da sessão. Na mesa, o Presidente da Câmara, Sérgio Costa, o Dr. António José Dias de Almeida, Ricardo de Almeida Santos e eu próprio.

PHOTO-2023-11-18-10-29-14

Uma imagem da sala onde ocorreu a apresentação.

Artigo

O PS E A CRISE POLÍTICA

Por João de Almeida Santos

2023Reflexoes11_2

“S/Título”. JAS. 11-2023

ESTA INESPERADA CRISE POLÍTICA, que dará lugar a novas eleições e a uma nova liderança no partido que tinha maioria absoluta no Parlamento, o PS,  já levou a algumas interpretações que introduzem novos factores disruptivos na crise. Nem falo da troca de nomes na transcrição das escutas ou da decisão do juiz de instrução relativamente à fragilidade dos indícios. Mas, falo da identificação da crise como lawfare, onde o direito substitui, “com vantagem”, as velhas “botas cardadas” para mudança de regime ou de governo. A sequência de acontecimentos com sede no Palácio de Belém pode mesmo levar a esta interpretação. Ou seja, que o comunicado da PGR tenha tido a “chancela” da Presidência. Tenho poucas dúvidas de que não tenha sido assim. Lawfare à portuguesa? Esta interpretação é muito abrangente porque inclui não só o poder judicial como os mandantes, que podem ser internos ou externos a este poder, internos ou externos ao próprio poder político ou ao poder económico. De resto, sobre este assunto já há uma vasta bibliografia que descreve minuciosamente o processo de aliança entre o poder judicial e o poder mediático para a desconstrução política do poder legítimo, aquele que resulta do mandato popular. Esta aliança foi analisada, por exemplo, por Alain Minc na obra L’ivresse démocratique (Paris, Gallimard, 1995) e em Au nom de la Loi (Paris, Gallimard, 1998). O caso de Lula da Silva é de todos nós conhecido – Lawfare. Eu próprio já aqui escrevi sobre este assunto: “Lawfare. O Direito como Arma”, em 24.12.2020 (https://joaodealmeidasantos.com/2020/11/).

1.

Com a imensidão de instrumentos de comunicação hoje disponíveis é difícil que algo possa escapar ao olhar do público e, por isso, a democracia só poderá sobreviver se respeitar rigorosamente as exigências da ética pública e mantiver um rigoroso funcionamento de controlo interno através do sistema de checks and balances. E cabe ao poder político, enquanto portador do mandato popular, garantir a efectiva separação de poderes, criando mecanismos que impeçam eficazmente a injunção ilegítima do poder político sobre o poder judicial ou a injunção ilegítima do poder judicial sobre o poder político. A separação dos poderes deve funcionar em ambos os sentidos. E não num só sentido, como parece estar a acontecer. O poder financeiro que hoje se concentra no Estado é suficiente para que este esteja permanentemente a ser condicionado pelos poderes fortes da economia e das finanças, à custa da permeabilidade dos agentes políticos à força do dinheiro, levando naturalmente a que seja inevitável e devida a intervenção do poder judicial. Mas também é evidente que cada vez mais se vai verificando uma intromissão excessiva do poder judiciário na política (conhecida com judicialização da política), rompendo a geometria da separação de poderes e promovendo até a paralisia da acção política. Esta intromissão vem sendo feita em aliança com o poder mediático, atropelando até a própria lei. O exemplo mais clamoroso é o do “segredo de justiça”. Por outro lado, algumas figuras penais são de tal ordem vagas que permitem injunções altamente problemáticas junto do poder político. Estou a pensar concretamente no crime de tráfico de influência (art. 335.º do Código Penal).

2.

A verdade é que a crise está aí e, posto isto, o que interessa é olhar para o futuro, para o que aí vem. E o que aí vem é um novo parlamento, um novo governo e novos protagonistas no centro do sistema. Uma coisa é certa: haverá uma recomposição, mais ou menos profunda, da geometria política, provavelmente com a densificação da fragmentação do sistema de partidos. Pode até vir a verificar-se que os dois principais partidos (os partidos da alternância) deixem de ter, em conjunto, mais de 50% do eleitorado (é para aí, para o limiar de 50%, que apontam as mais recentes sondagens, quando nas anteriores eleições a soma foi de 69%). O que representaria uma mudança substancial no sistema de partidos. Pode também acontecer em Portugal o que já está a acontecer noutros países, com a direita radical a crescer de forma muito significativa. Basta lembrar o que está a acontecer na Alemanha: nas sondagens disponíveis, o AfD já ultrapassou o SPD e é o segundo partido (uma das sondagens, a do Instituto Forsa, de Setembro, dá-lhe mais quatro pontos do que o SPD: 21% contra 17% do SPD e 27% da CDU/CSU, tendência que já se vem verificando há algum tempo). Na Itália, é a direita radical que governa, tendo acabado de aprovar um “desenho de lei constitucional” que eleva o poder executivo a pilar central de todo o sistema democrático (veja o meu último artigo aqui: https://joaodealmeidasantos.com/2023/11/08/artigo-128/) e que poderá vir a fazer doutrina para toda a direita radical. Dois países muito importantes na União Europeia. Entre nós, o PSD parece, com esta liderança, não descolar, cada vez mais assediado politicamente pelo CHEGA, que, a crer-se nas mais recentes sondagens, já representará 16% ou 17% do eleitorado. Verifica-se um enorme défice de propostas programáticas e, quando as apresenta, mais parece que são inspiradas, ainda que em versão alternativa, nas do PS. Quase se poderia dizer que se trata do mesmo, mas com nuances diferentes. Depois, há o problema das mãos atadas de Luís Montenegro relativamente ao CHEGA, sendo quase certo que o PSD não poderá chegar ao governo do país sem o apoio deste partido. Mas prevejo que esta posição acabe por mudar. Passos Coelho aludiu (muito indirectamente) a este facto, sublinhando que “o CHEGA não é um partido antidemocrático” e que “tem toda a legitimidade de existir”. As sondagens mais recentes apontam, de facto, para um enorme crescimento eleitoral deste partido. A verdade é que quanto mais proscrito for pelos defensores do politicamente correcto mais ele cresce. É um facto, não uma opinião.

3.

Quanto ao PS, depois dos permanentes desaires a que esteve sujeito o seu governo durante esta sua curta vida de cerca de dezanove meses, está agora perante o desafio de escolher uma nova liderança e, espera-se, uma nova reconfiguração política e programática. Há muitas coisas no PS que, como se vê, não estão bem e, por isso, é necessário mudar. E mudar profundamente. A área política onde o PS se inscreve está, como se sabe, em grave crise um pouco por todo o lado e é necessário e urgente proceder a uma mudança interna e a uma viragem programática que saia do círculo vicioso da “política caritas” ou do “Estado-Caritas”. Máximo de impostos para uma política esmoler. Neste e noutros importantes dossiers o próximo líder tem de ser muito claro e convincente para os que professam a social-democracia ou o socialismo democrático de forma convicta. Por exemplo, uma atenção à vida interna do PS, pois o que parece é que o partido se encontra em estado comatoso, funcionando mais como uma enorme federação de interesses pessoais do que como uma formação portadora de uma robusta ética pública e de um projecto ideal, ético-político, transformador e de futuro – a sua verdadeira matriz. Entre tantos dossiers de enorme importância, o da política fiscal é um deles, não sendo aceitável que mais pareça uma voraz política contabilística do que uma política inscrita na justiça e na moderação fiscal, numa visão integrada que compatibilize direitos e liberdade do cidadão contribuinte com uma visão eficiente, mas não caritativa ou esmoler, do Estado social. Na verdade, o conjunto dos impostos directos e indirectos (mais taxas e multas) representa um violento saque fiscal aos cidadãos. Acresce que só pouco mais de metade dos agregados fiscais pagam IRS. Os mesmos que apostavam nos anteriores certificados de aforro e que o Ministro Medina castigou, em nome do bem estar dos bancos (veja o meu artigo sobre este assunto em “Confissões de um Aforrador” – https://joaodealmeidasantos.com/2023/06/06/artigo-105/ ).  Mas até mesmo no plano da União Europeia o PS deveria promover uma visão clara acerca do sistema institucional e político – o que também não se verifica. Se me perguntarem se o PS defende uma visão funcionalista ou uma visão constitucionalista da integração política europeia, confesso que não saberei responder. São muitas as frentes que requerem clarificação por parte dos candidatos à liderança, não bastando limitar-se a falar de continuidade, de contas certas e de Estado social.  Mas também não me parece razoável que em eleições internas não se diga uma palavra sobre o partido que se quer liderar, sabendo-se que este vive graves dificuldades e problemas que se torna necessário resolver. Nas actuais circunstâncias, é fácil dizer que o que importa é o combate das legislativas, que se avizinha, tendo a próxima liderança pouco tempo para se preparar. O PS teve uma maioria absoluta e o resultado foi este. Nunca é o momento certo para resolver o que há a resolver. A verdade é que toda a legislatura revelou gravíssimos problemas internos que se repercutiram na governação. Em boa verdade, os problemas só se resolvem na raiz, a montante e não com fugas para a frente. Se não se resolverem agora, não se resolverão no futuro. Vivemos tempos de fronteira e o futuro líder terá responsabilidades acrescidas.

4.

O que digo não é de agora, pois há muito que venho reflectindo e publicando sobre estas questões. E faço-o não só pela minha própria posição política pessoal, mas também porque considero que o espaço político ocupado pelo PS é, em si, um espaço político virtuoso. E também porque reconheço as graves dificuldades por que está a passar a área política em que o PS se inscreve, designadamente nos países da União Europeia, ao mesmo tempo que vemos a direita radical crescer a olhos vistos. É por isso que o próximo líder do PS  terá grandes responsabilidades, não só no imediato, mas também para que no futuro não aconteça o que tem vindo a acontecer a muitos partidos socialistas e sociais-democratas. Julgo não ser necessário enumerá-los.

5.

Pedro Nuno Santos parte com uma clara vantagem. Que é até independente da sua radicação no aparelho partidário – é aguerrido, lutador e livre. Não se deve esquecer que provavelmente foi o único dos dirigentes em funções no actual PS que sempre falou (e com sentido de responsabilidade) sem pedir autorização ao líder. E isso é uma marca de liberdade, de personalidade e de fortes convicções. Mas não estou tão certo de que o seu desenho doutrinário e de enquadramento político esteja totalmente alinhado com as exigências de mudança que se estão a impor cada vez mais à medida que o tempo passa. Não me passou despercebida a ausência de qualquer referência programática relativa ao próprio partido no seu discurso de candidatura. E também estarei atento ao séquito que o acompanhará. O que já vi não me impressiona por aí além. Acontece que sem essa mudança não será possível travar o processo, visível à vista desarmada, de retracção do espaço político em que o PS se inscreve. Mas tenhamos esperança que a mudança venha realmente a acontecer. Jas@11-2023

2023Reflexoes11-cópia

Poesia-Pintura

ALMA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Melancolia”.
Original de minha autoria.
Novembro de 2023.
Melancolia2023

“Melancolia”. JAS. 11-2023

POEMA - "ALMA"
FRIA
É a montanha
Onde nasci
Para o destino
Granítico
Da minha vida.

O CALOR
Habita
Outras paisagens
Mais a sul,
Onde nasce
A poesia
Para aquecer
Com flocos
De palavras
A minha alma
Granítica
E vadia...

MELANCOLIA,
Sim, melancolia...
........
É longo
E frio
O caminho
Dos que amam
No deserto,
Como gelo
Na noite,
O claro de lua
Iluminando
A alma nua
Em desespero,
Tendo areia
E vento
Como tempero.

MAS É QUENTE
A memória
Porque não mente
E é cortante,
Faz brotar
Sangue
Que escorre
Das artérias
Que irrigam
A alma.

ALMA FERIDA
Que o altar
Das celebrações
Não acolhe
Nessa distância
Desmedida
De uma fuga
Inesperada
E depois
Insistentemente
Ressentida
No eco
De um silêncio
Repetido.

OH, COMO É DURO
Vê-lo perdido,
Esse rosto
Melancólico,
No meio da floresta
Desordenada
De cores,
Esbracejando,
No seu irresistível
Ímpeto,
Em girândolas
Ou estilhaços
De fantasia
Em perigo
De cromática
Autofagia,
Em busca do
Tempo perdido!

VOA, VOA
A águia
Com seus riscos,
Mas o poeta
Adentra-se
Nas palavras,
Procurando,
Voar
Com outras asas
Que encontre
Em si,
Sem saber bem
Para onde
Viajar,
Perdido o infinito
Que lhe roubaram
Dessas mãos
Tão generosas
De traços,
De cores
Ou de rostos...

AMARGAS SÃO
As recordações
Como o gelo
Quente
Que não mente
E não derrete
Ao sol,
No poente,
Quando o verso
Declina
No horizonte marinho
Ali a seu lado
Porque à vida
E ao poema
Sempre
Reconduzem
As imagens,
Mesmo sem cor.

PROPÍCIA
Desperta
A manhã,
Sem ti,
Meu amor...

Melancolia2023Rec

Artigo

O MODELO DE DEMOCRACIA DA DIREITA RADICAL

O Caso Italiano: "Il Premierato"

Por João de Almeida Santos

Meloni7

“S/Título”. JAS. 11-2023

PUBLIQUEI AQUI vários artigos sobre a direita radical e populista (veja, por exemplo, o artigo “A Democracia Iliberal”, publicado aqui em Dezembro de 2022), onde procurava evidenciar o modelo de democracia que ela defende: no essencial, trata-se de um decisionismo centrado no reforço político do poder executivo e no enfraquecimento e limitação dos outros poderes: do poder judicial, do poder legislativo, do poder moderador (PR) e do próprio poder mediático. Estamos, pois, perante um processo deslizante tendente a reforçar progressivamente os poderes dos líderes/chefes de governo. Exemplo: Viktor Orbán (Hungria). O pano de fundo doutrinário é constituído essencialmente pela doutrina do soberanismo e pelo anti-liberalismo. Tudo sem grande clarificação formal ou constitucional, sobretudo em relação à clássica geometria institucional da democracia representativa. Mas, na passada Sexta-Feira, dia três de Novembro, em Itália, foi aprovado pelo Conselho de Ministros (que integra os partidos Fratelli d’Italia, Lega e Forza Italia e é chefiado por Giorgia Meloni, líder do FdI*), por unanimidade, um “desenho de lei constitucional – já conhecido como ddl do “Premierato” – que vai no mesmo sentido, mas que torna tudo constitucionalmente mais claro. Vejamos.


A – O Presidente do Conselho de Ministros (PCM) passa a ser directamente eleito por sufrágio universal directo e, coisa que não é de somenos, através de um único boletim de voto quer para o PCM quer para as duas Câmaras (“Le votazioni per l’elezione del Presidente del Consiglio e delle Camere avvengono tramite un’unica scheda elettorale”). De sublinhar esta integração das listas para a Câmara e para o Senado na do líder candidato ao cargo de chefe do governo. É fácil compreender que se pretende hiperpersonalizar a eleição. O presidencialismo de que falava Giorgia Meloni é, afinal, o presidencialismo do PCM.

B – O Presidente da República (PR) continua a ser eleito por um colégio eleitoral e vê as suas competências totalmente pré-determinadas, retirando-lhe margem de manobra no processo de formação ou de crise do governo e de dissolução do parlamento: a) o governo apresenta-se no Parlamento para obtenção da confiança e, se não a obtiver, o PR volta a indigitar o vencedor das eleições; não a obtendo, de novo, o PR obrigatoriamente dissolve o parlamento e convoca eleições; b) em caso de demissão do PCM, o PR poderá indigitar um parlamentar eleito na lista do chefe do executivo eleito, que, todavia, terá de manter o programa que foi inicialmente aprovado pelo Parlamento (“per attuare le dichiarazioni relative all’indirizzo politico e agli impegni programmatici su cui il Governo del Presidente eletto ha ottenuto la fiducia” ); c) voltando a não haver confiança parlamentar, ou em caso de demissão ou renúncia, o PR deverá dissolver o parlamento e convocar eleições.

C – Passa a haver para o vencedor das eleições um prémio de maioria que lhe atribuirá 55% dos mandatos em ambas as câmaras (sendo necessário atingir uma percentagem mínima ou então uma segunda volta entre os dois candidatos mais votados).


É este, no essencial, o conteúdo do “desenho de lei constitucional” (também acabam os senadores vitalícios de nomeação presidencial, mantendo-se apenas os ex-PR) que deverá ser agora submetido ao Parlamento para discussão e votação, sendo necessário, para a sua aprovação, uma maioria qualificada de dois terços. Não sendo obtida esta maioria qualificada proceder-se-á a um referendo de confirmação, como já anunciado por Giorgia Meloni. É necessário sublinhar alguns aspectos muito importantes:

1. A legitimidade política do PCM sai fortemente reforçada, embora as suas competências se mantenham inalteradas.

2. Estando rigorosamente previstas e definidas, as competências do PR ficam, na prática, congeladas, limitando-se este a ser um mero notário, sem qualquer de liberdade de acção.

3. A legitimidade política do PCM, do ponto de vista da sua génese, passa a ser superior à do PR.

4. Com prémio de maioria e com soluções obrigatórias para as crises internas de governo, que se deverão circunscrever ao interior da maioria e ao programa de governo aprovado no início da legislatura, a maioria fica, ipso facto, blindada.

5. Todo este processo vem limitar não só os poderes do PR, mas também alterar a natureza do sistema representativo, que assenta no princípio do mandato não imperativo e na consequente possibilidade de livre composição de maiorias parlamentares para suporte de um governo. Com efeito, como vimos, a génese do governo já não resulta da composição parlamentar pois passa a ser determinada pela eleição directa do chefe do governo. Sendo, de facto, a maioria o corpo parlamentar (poder-se-ia até dizer o “corpo orgânico”) do chefe de governo eleito (o boletim de voto único leva-me a concluir isto), ainda por cima reforçada como maioria absoluta pelo prémio de maioria, todo o processo se centra na figura do líder e chefe do governo, subalternizando a função do PR, que deixa de ser poder moderador para passar a ser um mero notário dos actos do executivo. Mas também o mandato parlamentar resulta diminuído, ficando, neste aspecto, somente com a competência de aprovar ou rejeitar o executivo e o seu primeiro programa, deixando de lhe estar confiada, sequer em tese, a possibilidade de livre formação de uma maioria para uma solução governativa alternativa ou de promover a alteração do programa de governo. É que, em tese, cada mandato parlamentar é totalmente livre, devendo, portanto, poder exprimir-se livremente para gerar uma maioria de governo. Mas assim não é. O governo não sai da maioria parlamentar, mas sim directamente do voto para o líder do executivo. Trata-se, de algum modo, de uma solução plebiscitária e de um hiperpersonalismo político, onde a figura do líder determina todo o processo, a montante, mas também a jusante. A blindagem na formação do governo, sempre interna à maioria obtida pelo líder e candidato à chefia do governo, é prova disso. Do que se trata é, de facto, de um presidencialismo do primeiro-ministro.

6. O que aqui temos é uma desvalorização do poder representativo, como instância fundamental de intermediação, do mandato não imperativo e do poder moderador, com o consequente agigantamento do poder do executivo e da sua liderança. Deste modo, este “desenho de lei constitucional” vem dar corpo e forma à solução que até aqui vinha sendo imposta na prática, passo a passo, pela direita radical no poder. Presidencialismo do primeiro-ministro, esvaziamento do poder político do PR, mas também subtracção de um poder do parlamento: o da livre composição parlamentar para uma solução governativa ou da promoção de uma alteração do programa de governo, que fica inalterável. A solução resulta directamente do voto e não requer a expressão explícita da vontade do parlamento, mas tão-só a sua não oposição. Mas mesmo em caso de oposição nunca haverá lugar a uma qualquer alternativa política e programática – nem o presidente tem poderes para isso nem o parlamento a pode gerar pois ela dará automaticamente lugar a novas eleições. É neste sentido que falo em blindagem.

7. Giorgia Meloni foi clara a este respeito: não haverá mais lugar a práticas transformistas, a jogos de poder, a “ribaltoni”, a governos de técnicos ou a maiorias “arco-íris”. Em 75 anos a Itália teve 68 governos. E nos últimos 20 anos 12 PCM. A proposta aponta no sentido de retirar poder às instâncias de intermediação. Tudo em nome da estabilidade e da duração dos governos, mas, no fundo, tudo assente na doutrina de um decisionismo tendencialmente adverso à matriz liberal da democracia representativa.

8. Dir-se-á que o presidencialismo é equivalente a esta solução. Não é. Aqui o presidencialismo é do chefe do governo, daquele que tem o poder executivo nas mãos e apoiado por uma maioria absoluta, sendo o PR mero notário das decisões de outrem por imposição constitucional, e estando o processo de gestão do mandato obrigatoriamente confinado às fronteiras internas dessa maioria, sem possibilidade de alternativa exterior, por eventual acção do PR. Assim não sendo, a única saída é a de novas eleições. É claro que o poder de desencadear eleições fica nas mãos da maioria, já que o segundo indigitado, caso exista, em situação de crise pode renunciar, provocando-as automaticamente. Ou seja, este terá nas suas mãos o poder de dissolução do parlamento e de provocar eleições. Mas acresce que, ao contrário do presidencialismo, as câmaras são aqui eleitas em boletim de voto único, onde consta a figura do candidato a chefe do governo como polarizadora do voto. Uma amálgama que não se verifica nos regimes presidencialistas, onde as câmaras são eleitas autonomamente, precisamente para condicionar o poder presidencial, garantindo uma legitimidade própria. Pelo contrário, aqui poderá ser sempre invocado o argumento de que foi a liderança que, por efeito de arrastamento, “puxou” pelo voto nas câmaras.

9. Duas eleições numa só: PCM e parlamentares eleitos na sua lista. Um só processo, dois resultados. O boletim único encabeçado pelo candidato a PCM alude a um só corpo cuja cabeça é representada pelo líder. Neste desenho, é evidente que o parlamento é desvalorizado, surgindo como uma espécie de função orgânica do líder, e o PR também, pois não só tem uma legitimidade inferior como todas a suas competências ficam minuciosamente pré-determinadas.

10. O “desenho de lei constitucional de Giorgia Meloni é coerente com a doutrina que a inspira e intervém sobre a constituição nos limites do sistema representativo, fazendo lembrar a arquitectura da nossa democracia local, onde todos os poderes estão concentrados no Presidente da Câmara e onde a Assembleia Municipal exibe poderes diminutos, pois, no essencial (na minha interpretação), pode somente aprovar ou rejeitar as iniciativas do executivo que obrigatoriamente tenham de lhe ser submetidas.

11. A ser aprovada, por maioria qualificada ou por referendo, esta “mãe de todas as reformas” (Meloni) a direita passa a ter um modelo constitucional coerente com aquela que tem vindo a ser a sua prática, digamos, informal.


  • Sobre Giorgia Meloni e o partido Fratelli d’Italia veja o meu artigo “Os Herdeiros de Mussolini. A Terceira Geração”, publicado aqui a 12 de Julho de 2023. JAS@11-2023

Meloni7-cópia

Poesia-Pintura

O POETA E A DOR

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Janus”
Original de minha autoria.
Novembro de 2023.
JAS11_2023Poesia-cópia

“Janus”. JAS. 11-2023

POEMA  - "O POETA E A DOR"
O POETA É UM REFÉM
Em permanente
Toada,
Ferve-lhe o sangue
Na alma,
Dor profunda,
Delicada,
Sempre igual,
Sempre diferente,
Ele vai fingindo
Que a sente...
............
Em palavras
Desenhada.

É INTENSA 
A toada
E é forte
O que sente
Ou é uma dor
Simulada?
O poeta
Nunca mente
Pois sua fala
É cifrada.

É DOR
Que ele finge
Poeticamente
Sentir
Para melhor
A dizer,
Para melhor
Seduzir
Ou é real evasão
Do que nele
Está cavado
Como autêntica
Prisão
Ou o preço 
De um pecado?

É REAL
Ou aparente?
É profunda
Essa dor
Que ele diz
Que sempre
Sente,
Muitas vezes
Por amor?

É SENTIR
De cada dia
Ou é ferida
Congelada?
De tudo
O que ele diz
O que sente
É quase nada?

NÃO, ELE SENTE
Em cada dia
Uma ferida
Sublimada
Em forma
De poesia
Que se torna
Cicatriz
Que nunca fica
Curada.
Fica-lhe a marca
No corpo
E na alma
Desenhada.

É ESTE O SEU DESTINO,
Fingir que sente
O que sente
Em fala
Que é cifrada,
É por isso
Que ele canta
Pra sentir
Que no seu canto
É a alma
Libertada.

JAS11_2023Poesia-cópia 2

Artigo

NOTÍCIA SOBRE DOIS LIVROS 
DA AUTORIA DE 
JOÃO DE ALMEIDA SANTOS
A DOR E O SUBLIME. 
Ensaios sobre a Arte 
(S. João do Estoril, ACA Edições, 
2023, 232 pág.s)

POLÍTICA E IDEOLOGIA 
NA ERA DO ALGORITMO 
(S. João de Estoril, ACA Edições, 
2023, 254 pág.s)
1.

O PRIMEIRO LIVRO será lançado no próximo dia 17 DE NOVEMBRO DE 2023, às 18:00, na BIBLIOTECA MUNICIPAL EDUARDO LOURENÇO, na GUARDA. Apresenta o livro o DR. ANTÓNIO JOSÉ DIAS DE ALMEIDA

2.

O SEGUNDO é um novo livro, que dentro de dias será lançado em formato E-BOOK pela ACA Edições, por ocasião do PRIMEIRO ANIVERSÁRIO da Associação Cultural Azarujinha (24.10.2022/24.10.2023).

3.

Partilho hoje, aqui, a CAPA, a FICHA TÉCNICA, o ÍNDICE e a INTRODUÇÃO do segundo livro, Política e Ideologia na Era do Algoritmo.

4.

Esta obra ficará DISPONÍVEL EM VERSÃO DIGITAL DENTRO DE DIAS, podendo desde já ser ENCOMENDADA através do E-MAIL acazarujinha@gmail.com. O CUSTO do e-book será de 2,99€, valor que será descontado em futura aquisição da obra on paper.

capa_v1

A Capa do Livro. JAS. 11-2023

ficha tecnica e indice_v1

ÍNDICE

INTRODUÇÃO

I.A POLÍTICA NA ERA DO ALGORITMO
A Política na Era do Algoritmo
Apocalipse Now?
Algoritmocracia
Os Novos Spin Doctors
e o Populismo Digital
A Política Tablóide
e a Crise da Democracia

II. A DIREITA RADICAL
A Democracia Iliberal
A Direita Radical  
A Direita Radical em Itália

III. A POLÍTICA DELIBERATIVA
A Democracia Deliberativa
Globalização, Capitalismo e Democracia

IV. POLÍTICA E IDEOLOGIA - 
A LAVANDARIA SEMIÓTICA
Lavandaria Semiótica
WOKE
Os Novos Progressistas
Ideologia de Género
e Luta de Classes
Os Revisionistas e seus Amigos

V. CONCLUSÃO

VI. BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO

ESTE LIVRO procura recentrar o discurso sobre a política, sobre a sua real configuração, resultante das mudanças estruturais profundas que se estão a verificar na nova sociedade algorítmica. Deste modo, centra-se em questões que, de algum modo, já escapam a um discurso exclusivamente desenvolvido com os instrumentos conceptuais da teoria política clássica. Muda a realidade, devem adequar-se as categorias. Procura, pois, avançar um pouco no discurso da teoria política, tomando naturalmente boa nota de reflexões que já estão a ser desenvolvidas em linha com a mudança. O seu objecto é, pois, a política e as ideologias contemporâneas, aquelas que estão em curso nesta terceira década do século XXI.


O livro tem duas partes. A primeira é uma viagem pelas relações entre a política e as novas tecnologias, os desenvolvimentos que delas decorrem necessariamente, designadamente nos processos que visam a conquista do consenso e que afectam directamente a legitimidade do poder. Concentra-se também nos movimentos da direita radical e populistas: caracterização, novas formas de aproximação à democracia, doutrina, técnicas de captação do consenso e determinação dos seus principais adversários. Destaque para o caso italiano, o partido Fratelli d’Italia, que neste momento governa este país, sendo o seu maior partido. Mas faz também uma dupla incursão: por um lado, naquela que é a nova configuração da política na era digital e da globalização; por outro, no processo evolutivo da democracia para a forma que melhor corresponde à evolução da sociedade civil. Evolução que se exprime numa nova identidade da cidadania e nas suas relações com o poder, no crescimento, transformação e abertura do novo espaço intermédio, como novo espaço público deliberativo, desenvolvendo, consequentemente, uma análise da evolução necessária da democracia representativa para a chamada democracia deliberativa, aquela forma que garante a preservação dos mecanismos essenciais da democracia representativa, mas que, ao mesmo tempo, procura resolver a chamada crise da representação, melhorando e qualificando os processos de formação da decisão política, a sua transparência e a sua legitimidade.


A segunda parte consiste numa desmontagem daquela a que podemos chamar a esquerda identitária dos novos direitos, em todas as suas frentes fundamentais, considerando a implantação que tem vindo a conhecer quer no interior dos partidos do centro-esquerda e do centro-direita quer nas próprias instituições nacionais e internacionais, muitas vezes já sob a forma de lei e de moralidade social tendencialmente hegemónica. Toda ela é dedicada a uma analítica de desconstrução destas frentes de expressão da esquerda identitária dos novos direitos, tendo sobretudo em consideração dois aspectos. O primeiro é a sua clara oposição à visão liberal clássica, que é a matriz da nossa civilização e na qual assenta a própria ideia de democracia representativa, ou melhor, o sistema representativo e o Estado de direito que lhe está associado. O segundo decorre do facto de esta mundividência multissectorial constituir nos dias de hoje a principal linha de combate da direita radical e populista, que, de resto, procura identificá-la instrumentalmente, e erradamente, com todo o sistema, com o establishment, designadamente com a própria mundividência em que este se inscreve. Numa palavra, com a visão liberal clássica da sociedade. Não é, contudo, totalmente nova esta doutrina política, pois ela retoma aquela que era a visão romântica e crítica do iluminismo e do liberalismo. Crítica que, à esquerda, também encontra uma vasta e inteligente argumentação na obra de Marx, sobretudo na Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito Público e em Sobre a Questão Hebraica, ambas de 1843. Estas duas linhas de fractura da política contemporânea, populismo e esquerda identitária dos novos direitos, têm-se revelado talvez como as principais clivagens políticas que nos desafiam e que de algum modo têm subalternizado ideologicamente os partidos do establishment, ou da alternância, enquanto intérpretes falhados da longa crise da representação e da própria democracia. Partidos incapazes de se renovarem doutrinariamente, alinhados numa visão simplesmente utilitária e instrumental da política e do poder. Reduzidos à pura tecnogestão dos processos sociais, deixaram a política pura e dura nas mãos daquelas duas tendências. A linguagem cada vez mais asséptica daquelas forças políticas interpreta cada vez menos as expectativas da cidadania, ao mesmo tempo que afunila a política no discurso da macroeconomia, muitas vezes torturando os números de acordo com os seus interesses eleitorais e subtraindo-se às questões socialmente mais delicadas com discursos retoricamente mais caritativos do que estruturais (veja-se o que a este respeito diz Judt, 2015: 353). O discurso sobre o Estado Social é um claro exemplo disso. Exagerando um pouco: peso financeiro e fiscal máximo para eficiência mínima. Estou a pensar em Portugal.


São estes os aspectos essenciais sobre os quais se centra este livro, que é, ao mesmo tempo, uma reflexão analítica e reconstrutiva sobre a política contemporânea, mas também um manifesto contra essa perigosíssima tendência com pretensões hegemónicas que tem servido de pasto abundante e rico à direita radical, a qual, através dela, tem conseguido desferir golpes certeiros sobre o sistema, sobre a própria democracia representativa, a coberto dos excessos e absurdos desta tendência, o wokismo, que agrega as ideologias do politicamente correcto, do identitarismo, da ideologia de género e do revisionismo histórico, que acabam por ser identificadas como ideologias do próprio establishment. Uma identificação que tem como fundamento o facto de o sistema estar a ser infiltrado em excesso por estas ideologias nos próprios partidos, mas também nas instituições. O perigo é duplo: por um lado, tornar-se hegemónico e legítimo o policiamento do pensamento e da linguagem; por outro, dar vasto campo de combate e de afirmação à direita radical, na sua luta contra a evolução da democracia representativa para a sua verdadeira fase reconstrutiva, a democracia deliberativa, a única que, apresentando-se nos antípodas da solução populista, está em linha com o processo evolutivo da democracia representativa (veja-se o capítulo, de minha autoria, “A Política, o Digital e a Democracia Deliberativa” do livro Estudos do Agendamento (Camponez, Ferreira e Rodríguez-Díaz, 2020: 137- 167).


Os clássicos partidos da alternância não têm estado em condições de se confrontar seriamente com estas tendências, por um lado, devido à drástica quebra de tensão ideológica que acompanhou a sua evolução de partidos-igreja para catch-all-parties e à redução da política a governance, a management, a pura tecnogestão dos processos sociais, revestida por técnicas de marketing com vista à conquista instrumental do consenso. Também é dedicada, na primeira parte, uma especial atenção às profundas transformações que os processos de conquista do consenso têm vindo a conhecer, fruto da revolução tecnológica e dos progressos da inteligência artificial, o que não é de somenos, visto que a conquista do consenso é decisiva para a conquista e a legitimidade do poder. Em 1993-1994, a experiência de Silvio Berlusconi, com a construção do seu partido pessoal Forza Italia, já tinha mostrado à exaustão a afinidade entre os processos de conquista das audiências televisivas e de conquista do consenso e a eficácia da aplicação das mesmas técnicas a ambos os processos. Agora, com a inteligência artificial e as grandes plataformas digitais, tudo isto se aperfeiçoa em termos de controlo individual de massas com níveis de eficácia verdadeiramente assustadores. O libro de Shoshana Zuboff sobre o “capitalismo da vigilância” dá-nos abundante conta disso. E os casos da vitória de Donald Trump, em 2016, e do Brexit, também em 2016, são exemplos suficientemente elucidativos desta evolução, tendo-se, entretanto, avançado muito em matéria de controlo comportamental por parte das grandes plataformas, por exemplo, da Google, sendo certo que nada nos diz que estes avanços só sejam aplicados generalizadamente na esfera comercial e não na esfera política, provocando, neste caso, uma fortíssima ruptura na validade dos processos eleitorais e na legitimidade que sempre deles decorreu para efeitos de governação. O livro também dedica uma parte a este assunto.


O que se espera é que as formações políticas com especiais responsabilidades na preservação daquele que é até hoje o melhor e mais justo sistema de autogoverno dos povos, a democracia representativa, metabolizem as profundas mudanças que estão a acontecer e criem mecanismos de segurança e de fiabilidade dos processos democráticos, impedindo duradouramente quaisquer desvios para formas autoritárias e ilegítimas de governo dos povos. Mas para isso é necessário que tomem consciência das profundas transformações que estão a acontecer e ajam de consequência. O que este livro procura propor é isto mesmo, ou seja, uma viagem pela mudança como contributo do autor para a defesa e a promoção dos valores e dos mecanismos que tornam a democracia representativa o melhor e mais justo dos regimes políticos até hoje conhecidos. Os capítulos sobre a democracia deliberativa e sobre a globalização visam precisamente, e numa óptica construtiva, dar conta da necessária evolução que urge promover para solucionar a crise da representação, mas também para pôr no devido lugar os extremos, à direita e à esquerda, impedindo que tomem conta da democracia para subverterem os seus próprios fundamentos. JAS@11-2023