Poesia-Pintura

CANTA, POETA, CANTA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Perfil de um Poeta”.
Original de minha autoria.
Março de 2024.
Jas_AutoR2022

“S/Título”. JAS. 03-2024

POEMA – “CANTA, POETA, CANTA”

“Ora al nuovo sole
si affidano i nuovi germogli”
Virgílio.
CANTA, POETA, CANTA
Até que a musa
Te ouça,
Nem que a palavra
Te doa
E a alma
Estremeça.

CANTA, POETA, CANTA
Que o teu poema
Tem dor
Que te baste,
Mas tem cor
Que alumia
E tem sabor
A cerejas,
Que as dá
A Primavera.

SE NO CANTAR
Tu quiseres
Atingir o infinito,
Agarra
No teu pincel,
Salta pra cima
Dum risco,
Dá-te asas
De azul
E voa
Nesse teu céu
Até que a musa
Te veja,
Te pinte
Numa cereja
E murmure
O teu nome
Quando se tinge
De cor.

CANTA, POETA, CANTA
Que o teu cantar
Te embala
Como água
Cristalina
Que corre
Lesta
No rio
Que nasce
Dentro de ti.

CANTA, POETA, CANTA
Que contigo
Cantarei
A alvorada
Do dia,
Se chorares,
Eu chorarei,
Por não sentir
Alegria,
Se sorrires,
Eu pintarei
As cores
Do teu sorriso
E para ti
Dançarei
Uma valsa
De Strauss
Às portas
Do Paraíso.

CANTA, POETA, CANTA
Para ti
E para o mundo
Que o teu cantar
Enobrece
Quem ouvir
A tua prece,
Quem sentir
O teu lamento
Que, de ser
Já tão profundo,
Não o leva
Nem o vento
Pois ele em ti
Entardece.

E SE O VENTO
O levar
Vai procurá-la
A ela,
Voa lento
Sobre a rua
E pousa
No parapeito
Da sua bela
Janela.

CANTA, POETA, CANTA,
Que um dia
Há-de ouvir,
Deixa que o
Tempo passe
E a razão
Se esclareça,
Confia, pois,
No porvir
Sem que teu estro
Esmoreça.

NÃO CHORES, POETA,
Não,
Neste teu
Entardecer,
Tens arte
Na tua alma,
Inspiração
A crescer
E mesmo que
Não te ouça
É um modo
De a ter.

Jas_AutoR2022Rec

 

Artigo

O FATÍDICO MÊS DE NOVEMBRO DE 2023

E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Por João de Almeida Santos

Novembro2024Sepia

O QUE SE PASSOU, em Portugal, no dia 7 de Novembro de 2023, e que se completou no dia 10 de Março, exige reflexão. Um processo marcante. À primeira vista parece estarmos perante um claro processo de lawfare, de uso da justiça para fins políticos (sobre o lawfare veja Santos, 2020). Uma pesada injunção do ministério público na política, ao mais alto nível – PGR versus Primeiro-Ministro. Processo que terá conduzido ao desfecho esperado (ou mesmo desejado): a construção de uma claríssima maioria de direita, expressa nas eleições. Um inopinado ajustamento à tendência que se está a verificar por essa Europa fora.  Os números são claros: cerca de 54% e 138 deputados, referentes aos partidos de direita com representação parlamentar. Um resultado que inverte os resultados das eleições de 2022: cerca de 53% e 133 deputados, referentes aos resultados da esquerda com representação parlamentar. Em dois anos foi esta a mudança. Uma rápida inversão de tendência que, curiosamente, coincidiu com a viragem pública de orientação política (crítica) do Presidente da República em relação ao governo do PS. Mera coincidência, ou não, é um facto comprovável. Inversão de tendência desencadeada por um curto parágrafo contido num comunicado da PGR, emitido enquanto a Procuradora-Geral (que o terá redigido) se encontrava reunida com o PR: “No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do Primeiro-Ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido [Lítio, em Montalegre e Boticas, Central de Hidrogéneo e “Data Center”, em Sines]. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente”. Nada menos. Passados quase cinco meses, e eleições legislativas, nada se sabe acerca da consistência desta vaga suspeita acerca do primeiro-ministro. Nem este foi, até hoje, sequer ouvido. O ministério público a provocar uma monumental derrocada política no país, mas a pôr-se a assobiar para o lado, como se nada tenha tido a ver com isso. Who cares?

1.

Ainda se há-de fazer a história deste processo: saber da sua consistência, quem foram os verdadeiros autores (ou mandantes) deste processo e qual o papel do Presidente da República, ele que, ainda por cima, nem sequer aceitou uma alternativa proposta pela maioria parlamentar, numa discutível substituição do princípio da maioria por uma hiperpersonalização política da figura do primeiro-ministro, com a correspondente subalternização da câmara dos representantes. Mas também conhecer a verdadeira razão da inopinada saída de cena de um PM que era portador de um mandato popular expresso numa maioria absoluta no Parlamento e sobre o qual caíram umas palavras mal-amanhadas no comunicado da PGR, emitido, note-se bem, quando ainda a PGR estava reunida com o PR. Seria estranhíssimo que a PGR não lhe tivesse dado conhecimento do facto e que este não se tivesse pronunciado sobre isso.  Se não houve mais, houve pelo menos negligência por parte do PR. Depois, não é difícil saber quem mais beneficiou com este processo, depois de conhecidos os resultados eleitorais, tendo em consideração a razão que levou a eleições (fumos de corrupção), mas também o pífio resultado da AD (coligação que, nominalmente, não ganhou as eleições, porque teve menos um deputado que o PS, 77, tendo em consideração que, na Madeira, a coligação era outra, pois não integrava o PPM, aparecendo separada no próprio boletim de voto apresentado aos eleitores) e sobretudo o ainda mais pífio resultado do PSD. Naturalmente, beneficiou o CHEGA. Na verdade, o PSD ficou, apesar de exibir igual número de deputados, atrás do PS em número de votos (pelo menos, em cerca de 34 500 votos, subtraídos os votos induzidos pelo CDS na AD e mesmo sem contabilizar os votos induzidos pelo PPM), que se manteve como o maior partido português. Mas, mesmo assim, uma mudança política profunda a exigir uma cuidada reflexão. E as próximas eleições europeias de Junho irão constituir um teste muito importante para verificar a solidez, ou não, da mudança iniciada a 10 de Março. Elas serão, ou não, a certificação política dos resultados das legislativas. O que terá significativas consequências no comportamento político dos partidos, sobretudo do CHEGA.

2.

Uma primeira conclusão a tirar é a quebra eleitoral dos dois partidos da alternância (PS e PSD) em termos de percentagem de votos, menos cerca de 11 pontos (57,80%), e de deputados, menos 36 (156) do que em 2022 (69% e 192 deputados), confirmando a tendência de progressiva fragmentação do sistema de partidos, agora fortemente acentuada pela enorme subida do CHEGA em percentagem, mais cerca de 11 pontos, e em deputados, mais 38, sempre em relação às eleições de 2022. Confirma-se, assim, a chegada a Portugal da tendência europeia de uma forte afirmação eleitoral da direita radical. Partido que beneficia do evidente desgaste do bloco central e da insatisfação de uma parte significativa dos eleitores. Situação que, de resto, já vinha sendo “anunciada” nas eleições autárquicas com o crescimento, por insatisfação relativamente aos partidos mainstream, dos movimentos autárquicos não-partidários, apesar de uma legislação que não os beneficia ou que até os castiga fortemente, a ponto de parecer realmente inconstitucional (veja-se Santos, 2017).

3.

Não é caso de aqui esmiuçar as razões deste enorme crescimento do CHEGA, independentemente da saturação do eleitorado em relação ao establishment e da tendência global de afirmação da direita radical na Europa, mas uma conclusão é segura: o discurso político dominante (dos partidos e dos media) há muito que vem colocando este partido no topo da agenda, elevando-o a uma espécie de inimigo externo perante o qual todos se deveriam associar para o combater, salvar a democracia e até o próprio país. Disto não há dúvidas, apesar de se tratar de um partido que não está declarado inconstitucional e de ter uma significativa representação parlamentar. Como não há dúvidas de que o seu líder soube aproveitar muito bem esta centralidade no discurso político, polarizando a atenção social e pondo-a ao serviço da sua notoriedade, essa, sim, extremamente importante para fins eleitorais. Há muito que esta técnica é usada e também há muito (pelo menos desde 1963, com Bernard Cohen, ou desde 1972, com McCombs e Shaw) que a teoria do “agenda-setting” explica como funciona. Berlusconi usou-a frequentemente sobretudo para conquistar o poder (e para se manter nele). Mas isto revela ainda um outro importante aspecto: a falta de ideias de todos aqueles que precisam de um inimigo “externo” (não de um adversário) para se mobilizarem, muito em particular à esquerda. Supostamente externo em relação à democracia, à constituição e quase mesmo até ao país. É o que revela essa obsessão discursiva sobre o CHEGA, quer do centro-esquerda e do centro-direita quer da esquerda radical. Ainda por cima, as proclamações da esquerda identitária dos novos direitos e de todos aqueles que, fascinados pela sereia do proclamado progressismo civilizacional, absorveram acriticamente o seu discurso, vieram alimentar, em contraponto, a direita radical, ao identificá-lo como discurso oficial do establishment político.  Isto é uma certeza, aqui e na Europa. E tem dado bons frutos eleitorais à direita radical.

4.

Um outro aspecto que parece ser seguro é o de que o discurso do PSD sobre o famoso cordão sanitário (o “não é não”, de Luís Montenegro) como estratégia para induzir voto útil na AD acabou por redundar num rotundo fracasso, vistos os resultados: esta coligação (juntamente com a do PSD/CDS, na Madeira) não conseguiu averbar mais do que uns míseros 2, 47% (correspondentes a cerca de 328 mil votos) em relação aos resultados do PSD em 2022, apesar de o número de votantes ter aumentado em mais de 900 mil. Isto demonstra que este discurso não deu frutos junto dos eleitores, que deram ao CHEGA cerca de um milhão e 170 mil votos (cerca de 19%, já nos dados oficiais).

5.

O que está a acontecer é o aprofundamento de uma clara fractura política entre o centro (à esquerda e à direita) e a direita radical em torno das políticas de imigração, da corrupção, do soberanismo e da ideologia identitária dos novos direitos. Mas também uma forte polarização do voto de protesto por esta, sobretudo jovem e mobilizado através das novas tecnologias, além, claro, da sinalização das graves insuficiências do sistema tal como vem sendo interpretado pelo establishment político clássico. E ainda devido à persistente endogamia dos partidos dominantes que têm tendido a reduzir-se cada vez mais a meras máquinas eleitorais que visam a conquista do poder de Estado para sobreviverem, se alimentarem e alimentarem as próprias clientelas, transformando-se em meras federações de interesses pessoais a funcionarem em fechamento corporativo. Em poucas palavras: simplesmente para partilharem os despojos da República. Encerrado o capítulo dos partidos-igreja, fortemente orgânicos e ideológicos, a crise começa a afectar seriamente os catch-all-parties, interclassistas e de reduzida tensão ideológica, na sua evolução para partidos meramente eleitorais. O que significa que se não mudarem de vida acabarão por dar lugar a uma direita radical realmente hegemónica.

6.

Um outro aspecto que merece ser evidenciado é o da mudança de natureza das eleições legislativas, que parece terem passado a ser eleições para o primeiro-ministro, subalternizando o princípio da maioria e a sua função no sistema como fundamento para a constituição do poder executivo. O Presidente da República, do alto da sua condição profissional de constitucionalista, já fundamentou e pôs em prática a nova doutrina, ao declarar, no discurso de posse de António Costa, em 2022, que, tendo essas eleições sido ganhas por ele (e não pelo PS, adoptando a balela corrente que postula que o líder vale sempre mais que o partido), esse facto daria inevitavelmente lugar a novas eleições no caso de ele deixar de desempenhar as funções de PM. Doutrina que, coerentemente e na sequência do acima referido comunicado, pôs em prática em novembro ao anunciar que dissolveria o Parlamento e que convocaria eleições (naturalmente não aceitando indigitar um novo primeiro-ministro indicado pela maioria parlamentar). E, prosseguindo na sua reforma constitucional, parece ter mesmo decidido, a crer no que diz a jornalista “confidente” Ângela Silva, do “Expresso (01.02.2024), só vir a indigitar o vencedor das eleições de Março e não o que pudesse representar uma estável maioria no parlamento. Parece, pois, que esta doutrina tende a estabilizar-se, faltando somente dar-lhe forma constitucional, exactamente como fez a senhora Giorgia Meloni ao aprovar por unanimidade, a 3 de Novembro de 2023, em Conselho de Ministros, um “disegno di legge costituzionale” no mesmo sentido, ou seja, a eleição do PM por sufrágio universal directo, o famoso “Premierato” (Santos, 2023). O que mais parece é que o mainstream na prática já adoptou este procedimento.

7.

Em conclusão, a verdade é que se verificou uma efectiva inversão na relação de forças entre a esquerda e a direita, a favor desta. Mas também é verdade que na votação do próximo orçamento de Estado, lá para Outubro ou Novembro, à AD (uma vez que é um governo da AD, essa estranha coligação onde um dos três elementos que a compõem é realmente inexistente – no continente e muito mais na Madeira, onde nem sequer integra a aliança – a não ser no nome; e o outro nem sequer já tinha prévia existência parlamentar, apesar de em 2022 ter obtido um total de 89.113 votos) não bastarão os oito deputados da Iniciativa Liberal para o aprovar, visto que a esquerda, dispondo, em conjunto, de mais quatro deputados, previsivelmente irá chumbá-lo. E, se assim for, o “não, é não” de Luís Montenegro terá de passar a ser “sim, é sim”, se quiser ver o orçamento de Estado aprovado. Situação que irá comprometer irremediavelmente a idoneidade da sua palavra, apresente ele os argumentos que apresentar (que não se coligou, que negoceia em sede parlamentar ou que não negociou com o CHEGA a formação do governo). A verdade é que o seu governo só resistirá desde que Luís Montenegro volte atrás com a sua palavra e aceite negociar com o CHEGA o seu apoio. Ou, então, possa dispor de um acordo com o PS, como acaba de se ver com a eleição do Presidente da Assembleia da República (PAR). Mas, em sede de orçamento, esse acordo parece ser improvável, como, aliás, já declarado pelos mais altos responsáveis do PS. Não tendo conseguido polarizar o voto útil, não tendo ganhado, enquanto partido, as eleições, mantendo um score eleitoral inferior em muitos pontos (menos 7 pontos e menos 18 deputados, o que é superior à quebra do PS, com menos de 5 pontos e 14 deputados) àquela que é a sua média em todas as dezasseis eleições legislativas anteriores, Montenegro terá de recuar para o tempo anterior ao “não, é não” e de negociar e aceitar os votos do CHEGA para sobreviver.  E a verdade é que, a poucos dias das eleições, o recuo começou, a propósito do acordo estabelecido para a eleição dos cargos institucionais na Assembleia da República. Mas a verdade é que, à prova dos factos, o processo de negociação com aquele partido para a eleição do PAR fracassou, ontem, provavelmente porque o PSD queria um acordo somente na secretaria, mas sem reconhecimento público. O ponto do CHEGA é claro: apoio, sim, mas com reconhecimento público. E este será o problema da legislatura, até porque este também é o problema do Montenegro do “não, é não”. Recuar na palavra dada. A questão é mesmo a da normalização, à direita, do “CHEGA”. Se a segregação deste partido pela direita moderada continuar e a esquerda se mantiver firme na anunciada linha de oposição, o governo de Montenegro não terá mesmo suporte parlamentar e poderá cair logo na votação parlamentar do primeiro orçamento. O impasse sobre o primeiro acto político pós-eleitoral, a eleição do PAR, acabou, afinal, por se resolver, com um acordo entre o PSD e o PS, que espelha a real configuração do Parlamento: apesar de o PS ser o maior partido, porque obteve nas eleições mais votos do que o PSD, ambos têm o mesmo número de deputados: nos dois primeiros anos a Presidência será do PSD e nos dois últimos será do PS. Este desenlace é legítimo e não representa uma mudança significativa na posição política do PS, apesar de ser muito difícil que o acordo se cumpra porque a legislatura provavelmente não chegará ao fim. Na verdade, o único ganhador deste acordo é o PSD. Mas ele representa uma evidência preocupante: toda a geometria política é hoje determinada pela presença do CHEGA no espectro político. Parece haver um único desígnio na política nacional: isolar este partido, ou seja, isolar a representação política de quase 1 milhão e duzentos mil eleitores. O que vem alargar ainda mais o seu espaço de intervenção como força de oposição: poderá dizer que é a verdadeira oposição a um regime de bloco central que continua a repartir entre si os despojos da República.

8.

O que o acordo representa, sim, é a continuação da política do “não, é não”- agora reforçada pela ausência de resposta ao pedido de reunião de André Ventura -, o que prefigura uma insanável ruptura à direita e a ausência de um efectivo suporte parlamentar do governo de Montenegro. Uma situação politicamente insustentável.  Mesmo assim, é necessário sublinhar dois aspectos acerca da intransigência de Luís Montenegro: não surtiu efeitos em termos de captação de voto útil e, para cumprir a palavra dada, ter de contar com a cumplicidade do PS. Aquela mesma que acaba de se revelar neste acordo. Depois de hoje, muitos serão os que dirão que, afinal, Pedro Nuno Santos se tem vindo a revelar um “tigre de papel”, a velha expressão usada pelos maoístas.

9.

E, note-se, ainda, que o papel do CHEGA como força de oposição acabará por se  intensificar se este partido vir confirmada ou aumentada nas europeias a sua força eleitoral, uma espécie de certificação formal dos resultados das legislativas. Este aspecto será porventura ainda mais relevante do que um resultado que dê o PS como partido vencedor e o confirme como o maior partido nacional, porque isso implicará uma intensificação das exigências do CHEGA para se dispor a aprovar o orçamento e a garantir a sobrevivência do governo, desde que toda a esquerda, como é expectável, não dê o seu aval ao orçamento de Estado. Mas se essa confirmação acontecer, ou tiver mesmo um reforço eleitoral em relação aos cerca de 19% de que já dispõe, André Ventura iniciará sem dúvida uma caminhada estratégica que visará vencer, a curto prazo, as próximas eleições legislativas. O que implicará manter uma prudente distância das políticas governativas, agora reforçada e legitimada pela recusa de diálogo e pelo acordo do bloco central, e uma postura pública altamente crítica e reivindicativa. Certamente André Ventura lembrar-se-á do que aconteceu em Itália em 2022, com o partido irmão Fratelli d’Italia (4,3%, em 2018, nas legislativas, 6.4%, em 2019, nas europeias, e 26%, em 2022, nas legislativas). Na verdade, o FdI manteve-se fora do leque de forças que sustentaram o governo Draghi, tendo em seguida ganhado as eleições e formado o actual governo presidido por Giorgia Meloni.

10.

Os partidos à esquerda do PS, a não ser o Livre, ou mantiveram o reduzido número de deputados que tinham ou os perderam, como o PCP, hoje reduzido a quatro deputados. Mas não deixa de ser curioso que um partido que não tem corpo orgânico, nem territorial, nem autárquico, nem sindical ou associativo, como o Livre, tenha obtido o mesmo número de deputados que um partido com um forte corpo orgânico, territorial, autárquico, sindical e associativo, como o PCP, o que dá bem ideia do que é a política hoje e da importância que nela tem a presença na agenda mediática e digital e, em geral, na agenda pública. Não custa admitir que muitos dos votos que circulavam entre o PS, o Bloco e o próprio PCP tenham sido interceptados pelo discurso de Rui Tavares e pela polarização da atenção social que conseguiu a seu favor. Como não custa admitir que também o resultado do CHEGA seja em grande parte devido à fortíssima polarização da atenção social sobre esse partido, mobilizada em boa parte pela esquerda e pelos media.

11.

A diferença de representação entre a direita e a esquerda é muito significativa: 138 contra 92 deputados. Mas, no meu entendimento, a questão é mais profunda do que as razões aparentes desta diferença. Ou seja, o que parece já estar em causa é uma questão de hegemonia, num sentido mais amplo do que o seu aspecto estritamente político (diria, no sentido gramsciano), e de sintonia com o sentimento generalizado que se está a sedimentar na sociedade civil, seja ele mais radical seja ele mais moderado, mas que, a cinquenta anos do 25 de Abril, representa uma multifacetada descolagem da mundividência de uma esquerda que teima em não se renovar doutrinariamente e em termos de uma nova cartografia cognitiva, em não metabolizar as profundas mudanças que estão a transformar a sociedade civil e em não reconhecer a nova identidade da cidadania, causada designadamente pelas transformações induzidas pelas novas tecnologias e pela globalização, preferindo manter os velhos clichés de esquerda, agora aggiornati pelas causas civilizacionais mobilizadas pela esquerda identitária dos novos direitos, fortemente crítica da matriz liberal da nossa civilização, essa mesma que deu origem ao próprio sistema representativo. E não é coisa só do nosso país, porque o que aqui vemos está a acontecer em toda a Europa. Até ao partido que foi sempre uma grande referência para o PS, o SPD (numa sondagem YouGov, de Janeiro, com 15% – e o mesmo valor para as europeias, em sondagem IPSOS –  perante os 24% do AfD – 18% nas europeias, na mesma sondagem IPSOS, de Fevereiro), para não falar de outros partidos que quase desapareceram ou estão em estado comatoso. A acção pela acção não leva a lado algum. Agir, sim, mas antes disso é necessário interpretar para conhecer e, então, sim, agir. Mas agir de forma não transformista, ou seja, não mudar (só) alguma coisa para que tudo fique na mesma. Numa palavra: metabolizar a mudança que está a ocorrer na sociedade civil de forma muito, mas mesmo muito, intensa. O que provavelmente implicará uma mudança de paradigma. JAS@27.03.2024

REFERÊNCIAS

SANTOS, J. A. e PEREIRA, F. (2017). “Movimentos Autárquicos Não-Partidários: o Caso da Guarda e o  Movimento A Guarda Primeiro”. In ResPublica/17, pp. 103-125.

SANTOS, J. A. (2020)- “LAWFARE. O Direito como Arma”. In https://joaodealmeidasantos.com/2020/11/24/artigo-23/(acesso: 25.03.2024)

SANTOS, J. A. (2023). “ O Modelo de Democracia da Direita Radical. O Caso Italiano: ‘Il Premierato’ ”. In https://wordpress.com/post/joaodealmeidasantos.com/14060 (acesso: 25.03.2024). Novembro2024Sepia

Poesia-Pintura

UM SONHO NO POEMA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Sonho”.
Original de minha autoria.
Março de 2024.
Sonho2024

“Sonho”. JAS. 03-2024

POEMA – “UM SONHO NO POEMA”

HOJE SONHEI-TE
A noite toda.
Tenho a certeza.
Sonhei,
Não dormi
E foi só
Pra te sonhar
Que eu logo
Adormeci.

E FOI ASSIM
Que te encontrei,
Fora do tempo
E nesse lugar
Onde nunca
Imaginei
Que te podia
Encontrar.

FALASTE-ME
De coisas íntimas,
Em onírica confissão,
Daquelas que
Me fazem
Estremecer
Quando  
Te sonho
Para te ver
E te escrevo
Ou te desenho
Para te ter...
..........
Em piedosa
Ilusão.

COISAS TUAS,
As que guardas
Nessa íntima
Prisão
Pra que desejos
Não se soltem
E te levem
A infausta
Perdição.

MAS FALASTE-ME
Com o corpo
Colado
Ao meu desejo
De ti
E eu senti
O teu calor
E um aroma
Fatal
Que me sabia
A perfume
De amor...
..........
Já em fase
Terminal.

MAS CONTINUEI
A sonhar-te,
De manhã,
Todo o dia,
Até agora que,
No poema,
Já é noite
Bem tardia...
.......
Do dia
De amanhã.

E ACORDEI
(No sonho)
E continuei
A sonhar-te
De tão intenso
E longo
O sonho ser,
A sentir-te
Para nunca mais
Te perder
Até renasceres
Em mim,
No sonho
E fora dele,
Quando se torna
Poema
Pra melhor
Te reviver...
......
Assim.

SIM, “SONHEI
Ter sonhado...”,
Disse o poeta
À musa.
"Ter sonhado, 
O quê?”
Perguntou-lhe ela.
“Que havia sonhado
Estar com você.”
“Estar?”,
Respondeu-lhe a musa,
Sorrindo.
“Ter estado,
Que é tempo passado.”
“Mas o sonho
Não tem tempo,
Manel,
Porque é tempo
Recriado”,
Disse-lhe a musa
Que, no sonho,
Esteve sempre
A seu lado.

Sonho2024Rec

Artigo

FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO (VIII)

SOBRE A POESIA

Por João de Almeida Santos

JardimAnimado

“Jardim Animado”. JAS 2022 

O JARDINEIRO

O poeta é jardineiro de palavras coloridas e perfumadas que nascem a rodos lá no jardim da sua vida. E quando o jasmim está no auge e o seu perfume o inunda, o poeta fica um pouco embriagado e diz aquilo que sente e não sente, aquilo que pensa e não pensa e até o que não deve. Ou deve? O que não sente e não pensa… presume. Poeticamente falando, entenda-se. Ele nunca usa máscara (somente a de poeta, o que não é pouco) e, por isso, corre sempre o risco de ser atropelado pelas palavras que usa. In jasmino veritas. Pois é. É o risco que corre por andar sempre em busca do perfume perdido ou nunca encontrado, às vezes embriagado pelo perfume acre e intenso do jasmim. Acontece até porque ele cria e produz perfumes. Aromas (não ossos) do ofício, dir-se-ia. Depois deita-os ao vento que passa para que perfumem aqueles que o vento atinge com o sopro poético. Sobretudo a musa. Estamos no domínio aromático da levitação, que torna a vida mais suportável, retirando-lhe peso. E a poesia é mesmo levitação. O aeroporto é o jardim, o combustível são os aromas e as asas do voo são pétalas multicolores das flores do jardim. O jardineiro é o piloto que voa sempre em busca de novas paragens onde derramar os seus perfumes. Vida de poeta comprometido com a beleza, mas também com a musa que um dia o visitou e o continua a inspirar, mesmo quando não (a)parece, e com os fantasmas que sobraram para se alimentarem dos beijos que o poeta lhe envia (à musa) em forma de poema. Há vida no jardim da poesia e há poesia na vida do jardim. Ah, mas o poeta fala sempre em linguagem cifrada. É assim que se defende, mas é também assim que pode voar com as palavras que deita ao vento que passa. O poeta é jardineiro.

SENSIBILIDADE

“O poeta anda por aí…”. Sim, anda por aí a ouvir e a sentir a vida, olhando para ela por fora e por dentro, a partir do seu património afectivo, daquele que teima em subsistir de forma sensível na sua memória. Sim, o poeta olha o mundo com as lentes da sua sensibilidade, daquela que ia registando de forma impressiva os andamentos da (sua) vida. E procura elevar essa sua experiência, como redenção, mas também como dádiva, a esse terreno tão sofisticado da arte – o do culto da beleza. E ele também gosta de ser interpelado sobre a sua matéria poética. Sobretudo quando se fala do mistério que envolve, como neblina, a musa. Nem os olhos dela, quais faróis, ajudam a decifrar, a ver com nitidez o terreno movediço em que o poeta se espraia. Esses faróis, pelo contrário, ainda pioram as coisas porque acendem ainda mais a neblina, a tornam mais cintilante, chegando mesmo a encandear o poeta. Tanta luz, cega. E adensa ainda mais o mistério. Por isso, é verdade que a poesia não consegue penetrar totalmente o mistério, nas suas vãs tentativas de aproximação. Então, melancólico também ele, lamenta-se do estado afectivo do mundo e ensaia cânticos libertadores dessa vida sempre em neblina e em aparente perda. Mas, confesso, que outra vida será a dele que não seja essa? Se tudo fosse nítido e fosse ganho, nesse intervalo entre a sua sensibilidade e o mundo, provavelmente não haveria poesia. Mas é claro que a neblina permanente cansa e as palavras, que são os olhos do poeta (é com elas que ele vê), ficam exaustas e com vontade de migrar para outras paragens. Mas nunca migram porque elas existem para isso, são as pontes com que o poeta atravessa o rio revolto, agitado, da vida.

POLISSEMIA

A arte, tendo uma componente formal, extravasa sempre a forma e liberta sentido em várias direcções, que compete a quem frui captar. A arte não é denotativa porque exprime sobretudo uma visão subjectiva filtrada pela sensibilidade do artista, a que acresce ainda um ulterior e livre exercício formal e técnico, apenas determinado pelas categorias da arte (incluída a música). O resultado traduz-se sempre numa riquíssima e sofisticada polissemia.

APARIÇÕES

Os territórios da arte são territórios de evocação e de invocação. Uma flor ou um arbusto podem suscitar viagens interiores organizadas e ordenadas em palavras, sim, mas também reordenadas em riscos e cores. A memória pode ser o caminho por onde transita a fantasia do poeta em busca do impossível, sim, mas através de um veículo capaz de fazer milagres e de reverter o tempo perdido. De chegar ao impossível. As palavras têm asas, mas também podem servir de cinzel para esculpir desejos irrealizados e recuperar perdas de um passado sofrido. É esse o milagre da poesia. Aparições. Depois, insatisfeito com a intangibilidade das palavras, ainda que sensíveis na sonoridade que o poema lhes confere, lança-se, transmutando-se em pintor, na ousada tarefa de lhes dar forma e cor, propondo-as como matéria plástica a um olhar esteticamente comprometido. No fim, o poeta sente-se levitar, subtraindo peso, muito peso, à sua existência e acrescentando-lhe cor. Viajar é isso, mas viajar com a fantasia em duplo registo é muito mais.

 “ONDAS REVOLTAS”

O poema “Ondas Revoltas” ( link: https://joaodealmeidasantos.com/2024/01/20/poesia-pintura-191/ ) é todo ele uma dialéctica entre o cadenciado, mas tumultuoso, movimento das ondas e a paz que o mar suscita a quem o observa, o sente por dentro e ouve o seu marulhar ou a quem, neste caso, o canta. Serena emoção, poder-se-ia dizer. Melodia silenciosa. Nestas ondas é possível vagar… com o olhar e com a alma. O poeta sofre o potente embate delas, sim, mas depois levita sobre elas. Poética levitação. Com alguns poços de ar, mas sempre levitação. Tudo nessa pequena praia da meia-lua, na sua forma semi-circular, o lugar onde nasce sempre um poema. Uma praia inspiradora que é recorrente nos exercícios do poeta. Razões haverá para isso. Depois, a Milva e a sua canção “Thálassa”. Outro mar, o da Grécia, o mesmo sentimento e a mesma emoção. E o regresso a um tempo que sempre o inspirou. Esse mar que nos leva para paragens impossíveis e perigosas. O mar onde as sereias nos seduzem e levam a que nos amarremos ao mastro do poético navio para impedir que sigamos o seu melodioso, encantatório e perigoso canto. Mastro poético e sereias inalcançáveis (é sempre esse o destino do poeta). Então fica-se a vagar por ali, na praia da meia-lua. Poeticamente, entenda-se. “Esculpir as emoções do poeta”, alguém me dizia referindo-se a este poema. Assim acontece com as ondas que batem nos rochedos. Ou com o vento nas dunas. E surgem formas inesperadas desenhadas na pedra ou na areia. Estilizadas, como se houvesse uma mão invisível (que não há) a desenhar a pedra ou a areia. A força das ondas ou do vento a produzir efeitos estéticos, de beleza, tal como as emoções sobre as palavras, na poesia. As emoções são vento sobre palavras, com esse poder mágico de as esculpir. Também aqui não há uma mão invisível. Simplesmente acontece. Acontece em dias tumultuosos ou quando nos encontramos na rua, no meio da multidão, e somos repentinamente fascinados por “une passante” que rapidamente se esgueira, engolida pela multidão. Depois, a escuridão, diria o Baudelaire. Mas há sempre uma praia da meia-lua como ponto de reencontro… poético.

CHÃO

O poeta-pintor desenhou, com palavras e com cores, este chão e, lá no alto da montanha, a luz (o quadro “Luz na Montanha”), com o céu como fronteira a acariciar o seu cume (link: https://joaodealmeidasantos.com/2024/02/03/poesia-pintura-193/). E com este horizonte ao alcance do olhar quem poderia permanecer alheio ao canto e à dança? Só o canto e a dança nos permitem voar até à linha do horizonte. “Ballon” – o poder de levitar induzido pelo canto. Os braços são as asas, sopradas pela alma em epifania. E quando o céu é límpido e de um azul profundo o poeta sente-se mais intensamente interpelado ou mesmo magnetizado e atraído. Com vertigens. E nem lembro a neve e a cintilante neblina que, quando cai, nos envolve e nos põe em imanência total. Não. Falo da luz cintilante que ilumina com perfeição a linha do horizonte e desenha uma fronteira que só pode ser percorrida pela arte. A fronteira da beleza, a que só a arte pode aceder. Aqui, neste chão primordial, as raízes prendem e libertam, um oxímoro que densifica e enriquece a vida nas suas múltiplas contradições. Húmus. Território com profundidade temporal que atrai e liberta do circunstancial. A dialéctica profunda do tempo. Sim, uma força telúrica a que não se pode resistir, a não ser pela arte, mas uma forma de resistência cúmplice, animada e alada pelo princípio da sedução. Resistir a este chão é manter-se em tensão com ele, vivificando-o e mantendo essa profundidade temporal que nos humaniza. E por isso se configura também um princípio de esperança ancorado nas raízes.

Luzna MontanhaREC

“Luz na Montanha”. JAS 2021. Detalhe

“A JANELA”

Sim, este poema e este quadro (ambos com o mesmo nome, “A Janela” – link: https://joaodealmeidasantos.com/2024/02/11/poesia-pintura-194/) até poderiam equivaler à garrettiana janela e à garrettiana Joaninha, como dizia um Amigo a propósito deste poema. E também um Carlos cuja silhueta se esfumaria para além dos vidros daquela janela. Como esfumou, ao que parece. Mas quem sabe se o poeta não se disfarçou, se “outrou”, como dizia este Amigo, e bem, em mulher para melhor, de forma mais sensível e delicada, exprimir os seus sentimentos? Não ouso perguntar-lhe. Responder-me-ia com a estrofe do Pessoa, com a Autopsicografia. A silhueta pode até personificar o mundo e o tempo que se nos escapa por entre os frágeis dedos da nossa alma e até do nosso coração. E a janela, vista de dentro, é bem outra coisa (que uma visão a partir de fora), é projecção, sim, até à linha do horizonte. Os vidros reflectem o mundo de fora, mas com o olhar consegue-se transcender e superar as imagens transparentes da vida que se projectam nos vidros da janela. O olhar é, também ele, por isso, tábua de salvação. Mas para isso precisamos de uma janela, mais do que de uma porta, porque esta nos leva à rua (às suas limitações, que são as da vida real) enquanto a janela nos projecta no horizonte, onde nos idealizamos e voamos sobre o mundo, como Sininho, com suas asas, em direcção a uma ilha encantada, a Never Land. É por isso que o seu (dela, do sujeito poético) mundo é mais o da janela que o da rua. Como o do poeta. É mesmo. Também a Joaninha, afinal, sempre esteve à janela, por detrás de cortinados transparentes. E o Carlos nunca conseguiu sair da rua. Havia um muro invisível (na vida) apesar da janela (na fantasia). Mas concordo: “Não é possível tapar e esconder a Janela da Vida”. Sim, sim, porque os poetas não deixam… Cada vida tem a sua janela. E cada janela tem a sua vida. E quando a vida é a de um poeta, a janela acende-se e ilumina a rua, quaisquer que sejam os transeuntes. E pode-se voar para o infinito, darmo-nos asas e ir além daquilo aquilo que a vida nos dá ou nos deu. Se a janela simboliza a liberdade, a rua simboliza a contingência e as amarras da vida. Na janela se dá corpo a desejos que a rua não contempla nem permite. O poeta gosta da janela porque ela representa a liberdade. Todos temos uma janela e o importante é abri-la e dar asas à solidão. Voar. A porta dá para a rua, a janela para o mundo. Dois modos diferentes de entrar no mundo. O dela é o da janela. O dele é o da rua. Juntos entram no mundo pela porta e pela janela. E encontram-no com o olhar e com a fantasia. Como o poeta. Que é mais da janela do que da rua:

“O MEU MUNDO
É a janela,
O da rua
É o teu,
É dela que
Eu te revejo,
Na rua
Já não sou eu.”
Janela2024

“A Janela”. JAS 2022 

PAISAGENS

Não digo, como ele (o Bernardo Soares), que, na minha poesia, não tem importância o que confesso (como sujeito poético) ou, então, que faço férias das sensações. Falo em nome do poeta. Autorizado, claro. Mas tento fazer paisagens daquilo que sinto. Isso, sim. Paisagens interiores que partilho com os que me acompanham na viagem. E a febre diminui. Mas que há febre, lá isso há. E há musas, claro. Poucas, mas há. E fantasmas. Mas com eles convivo bem. Fazem parte da paisagem e estão sempre à espera dos beijos escritos que mando às musas… para os beberem, pelo caminho. Alimentam-se deles. E eu sei disso. Por isso é que tenho de estar sempre a enviar beijos escritos, para ver se algum chega ao destino. E como não sei se chega, tenho de estar sempre a enviar. Como Sísifo. É como chegar à montanha, regressar e logo ter de voltar a subir… com palavras às costas. A montanha é o Parnaso, neste caso. E eu tenho (nós temos) um Parnaso que tem outro nome e tem cerca de dois mil metros. Subi-lo não é, pois, coisa fácil. Ah, sim, o Bernardo era mais desprendido do que eu.

PERDÃO

O poema é perdão cantado. E pedido. E a pintura é exaltação. A beleza cromática anima o discurso estético do poema. Uma coisa é certa: o tempo leva-nos rio acima ou rio abaixo, levados (também) pelo desejo de a encontrar, a beleza. Na fonte ou na foz, que é aí que mais ela se dá. Pelo caminho, rio acima ou rio abaixo, ela, a beleza viva, vai inocentemente pecando. E ficam cicatrizes. As do embate com a vida. É assim. Mas há sempre quem procure a beleza na sua pureza original (na fonte) ou na sua densidade existencial, já profundamente marcada (na foz), para a recriar ou simplesmente a fruir. E o tempo tem esse poder de esculpir as vidas ou de as deixar toscas, à deriva, no rio que corre sempre sem parar. Mas é verdade, as palavras são barcos em que sempre podemos embarcar para melhor navegarmos neste rio tumultuoso da vida. Rio acima ou rio abaixo. Quem decide é o tempo, sim… mas também o desejo. A ponto de, aliado com as palavras, os riscos e as cores, quase se poder, imprudentemente, desafiar o tempo ou o destino e ir rio abaixo ou rio acima à procura da beleza perdida ou nunca encontrada. É este o risco que os artistas e os amantes da arte sempre correm. Porque o tempo e o destino são poderosos e podem provocar naufrágios existenciais e, pior, artísticos. Mas vale bem a pena navegar se pudermos aportar à foz da sedução, que atraia a sensibilidade e a ponha a levitar, com palavras ou com riscos e cores. Então valerá a pena. Seduzidos e felizes. Mas nunca é certa e segura esta viagem, porque há rápidos e escolhos contra os quais podemos embater. Mas o risco faz parte da vida… e da poesia. JAS@03-2024

Jas28Luzna Montanha2021Rec

“Luz na Montanha”. JAS 2021. Detalhe

Poesia-Pintura

TALVEZ

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “O Arbusto Encantado”.
Original de minha autoria.
Março de 2024.
Exp.LouCOR

“O Arbusto Encantado”. JAS. 03-2024

POEMA – “TALVEZ”

TALVEZ SEJA
Dos meus olhos,
Talvez seja,
Ou, então, seja
Dos teus,
Talvez seja
Porque sonho
Ou seja benção
de Deus.

TALVEZ SEJA
Do aroma
De flor
Do meu jardim,
Não sei bem
O que será,
O que sei
(Ah, isso sei)
É que há muito
É assim.

TALVEZ SEJA
Da água
Do nosso rio
Quando o navego
Por dentro
Ou da beleza
do Vale
Na montanha
Onde nasci,
Talvez seja
Do destino,
Desse dia
Em que te vi.

TALVEZ SEJA
Porque vivo
Em frente
De um loureiro,
Lá em baixo,
No jardim,
Ele que fala
E seduz
Quando olha
Para mim...
................
Mas, se não for,
Não importa
Porque à noite
Te pressinto
No perfume
Do jasmim.

TALVEZ SEJA
De o perfume
Inebriar
Como o teu
E, se for,
Vou-te sonhar
Nesse jardim
Que é meu,
Festa
De aromas
E cor
A celebrar
O encontro...
.............
Simplesmente
Por amor,
Uma dádiva
Do céu.

Exp.LouCORRec

Artigo

“RICOMINCIO DA TRE”

As Eleições e o PS

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 03-2024

ESTE É O TÍTULO de um filme (de 1981) com o saudoso actor e realizador italiano Massimo Troisi e, à parte a trama do filme (ele não quer recomeçar a vida a partir do zero e por isso recomeça-a a partir de três, que até pode ser com a Marta e com o filho que está para nascer e ao qual darão o nome de Ciro), serve bem de pretexto para caracterizar o recomeço da política portuguesa depois das eleições de domingo, no ano em que Abril faz meio século. De facto, este filme fez-me lembrar o que aconteceu no domingo: a democracia portuguesa não recomeça do zero, não, nem a partir de dois, mas, ao que parece, recomeça a partir de três. Sim, surgiu, como já se previa, um terceiro protagonista, de seu nome, não Ciro, mas CHEGA. Não digo que, como no filme (onde, todavia, haja incerteza sobre a paternidade de Gaetano), seja filho directo dos dois personagens que já existiam (PS e PSD), mas ele resulta da vida que os dois protagonistas anteriores foram levando ao longo dos anos. O terceiro resulta do desagrado pela não resolução dos problemas que afligem os portugueses e que estão há muito diagnosticados. Mas também é verdade que a tendência que este novo protagonista representa há muito que se vem afirmando na Europa, acabando por chegar a Portugal. De forma muito consistente, eleitoralmente. E isso significa que estamos perante algo que é mais profundo do que parece. Seja ele, o terceiro, filho de quem quer que seja, a verdade é que a política portuguesa parece agora recomeçar precisamente a partir de três.

1.

A situação é algo disruptiva vistos os resultados das eleições: o aprofundamento da fragmentação do sistema de partidos e o início do fim da clássica alternância em regime de bipartidarismo; a provável falta de uma maioria relativa da AD com a Iniciativa Liberal perante uma maioria relativa da esquerda, não considerando o CHEGA; a necessidade do voto favorável deste partido para que o primeiro orçamento seja aprovado; a recusa manifestada pelo PSD de qualquer acordo com este partido, não rejeitando, provavelmente, o que este partido vier a decidir autonomamente, se for o de deixar passar o orçamento; e, finalmente, uma maioria absoluta muito significativa de toda a direita, a moderada e a radical – tudo isto (e independentemente da real composição do parlamento, onde o PS pode vir a ter o maior grupo parlamentar) pode levar a novas eleições muito em breve, se a direita moderada mantiver o proclamado cordão sanitário sobre o Chega e este, com a dimensão que adquiriu, não aceitar esta condição de segregação e agir em conformidade, por respeito a mais de um milhão de eleitores que lhe confiaram o voto. Uma coisa é certa: a maioria é de direita e a esquerda tem de se reinventar e de mudar de rumo. Em particular, o PS, partido sempre decisivo numa alternativa de esquerda, apesar de exibir um respeitável resultado eleitoral, embora tenha caído cerca de treze pontos percentuais em relação às eleições de 2022 e cinco e meio em relação à média das dezasseis eleições disputadas em democracia.

2.

Pedro Nuno Santos foi, na noite eleitoral, peremptório e claríssimo ao afirmar a linha do partido relativamente ao governo que aí vem, mas também foi muito claro ao dizer que iria mudar o partido e que uma época (a de António Costa) acabara de ser encerrada definitivamente. E disse-o de forma muito contundente, logo a seguir ao insólito e quase surreal episódio da conferência de imprensa de António Costa em plena noite eleitoral, no Altis. A sua saída intempestiva do Altis, antes de o Secretário-Geral do seu partido fazer a declaração da noite, é isso mesmo que indicia. O PS recomeça, assim, o seu caminho de coração limpo e com uma nova liderança livre de tutelas do passado, pronta a mudar profundamente o partido e a enfrentar uma direita que já é consistentemente maioritária no país. E este é um sinal muito claro deixado por PNS na noite eleitoral. Um bom sinal.

3.

Sendo certo que o PS soube mobilizar-se durante esta campanha, também é verdade que, enquanto partido, exibe insuficiências graves há muito. E eu creio que a principal insuficiência é comportar-se como uma enorme federação de interesses pessoais que se sobrepõe a uma exigente, sólida e mobilizadora coesão ideal assente em valores comunitários e a uma clara cartografia cognitiva que proponham, ambas, quer uma clara identidade política filiada no melhor que o socialismo democrático e a social-democracia têm vindo a exibir ao longo da história quer uma visão que, filiando-se nessa tradição, saiba definir com clareza as fronteiras da acção do Estado, a sua relação com uma cidadania cuja identidade tem vindo a mudar profundamente sobretudo devido à metabolização ou internalização das novas tecnologias no processo cognitivo, comunicacional e comportamental, o lugar da liberdade, da esfera privada, da sociedade civil e do indivíduo singular no seu desenho global de sociedade e, finalmente, um modelo de Estado social renovado que conjugue racionalmente as devidas prestações sociais do Estado com uma efectiva eficácia no serviço prestado à cidadania.

4.

Este partido não pode continuar a ser construído nem como albergue de quem só o concebe e usa com espaço de oportunidade pessoal para uma vida melhor nem como um território colonizado pela liderança. Ele deve reconstruir-se numa sã dialéctica entre um robusto movimento bottom-up ancorado na sociedade cilvil e um movimento top-down, ancorado numa estrutura organizacional robusta e eficiente, mas onde a autonomia de cada um destes dois níveis seja efectivamente respeitada, em particular sem a colonização do território partidário pela liderança, em particular quando o líder é ao mesmo tempo primeiro-ministro e dissemina as suas escolhas pessoais por todo o território partidário nacional. Por outro lado, entre cada um destes dois níveis, o PS deve organizar-se de forma diferente de como se tem vindo a organizar. Por exemplo, ao nível da Fundação Res Publica, do Gabinete de Estudos ou do Jornal do Partido. Este último foi pura e simplesmente desmantelado (sem que os militantes se tenham sequer apercebido disso), transformando-o numa mera secção informativa do site do partido (felizmente, parece que vai agora ser reconstituído, sob a direcção de Porfírio Silva); da existência da Fundação não há notícia, com um director que anda lá por Bruxelas há anos sem cuidar de a gerir com eficiência ou mesmo de simplesmente a gerir, numa inexplicável tendência à acumulação de funções sempre pelos mesmos, como se um partido desta dimensão não tivesse outros quadros capazes de o fazer; o Gabinete de Estudos é um arremedo de organização que se limita a publicar números de macro-economia sem qualquer leitura. Ou seja, nada disto é para levar a sério como não são para levar a sério tantos personagens que andam por lá há décadas a tratar da vidinha nada dando de si ao interesse público a não ser nas performances que exibem quando se trata de serem novamente eleitos ou nomeados. A endogamia é grande e é um mal que, como se viu nestas eleições, se paga caro. Por outro lado, ainda, a captura do partido por pequenos grupos instalados em certas instituições (universitárias, como, por exemplo, o ISCTE) não parece ser muito favorável a uma sua maior expansão e permeabilidade na sociedade civil e no país. De resto, a presença difusa do PS nos organismos da sociedade civil é altamente deficitária num partido que exibe uma centralidade decisiva para a democracia portuguesa. Jeremy Corbyn deveu a sua força no Labour não só aos sindicatos, mas também, ou sobretudo, à plataforma digital Momentum que integrava nas suas fileiras sobretudo a juventude. A coesão ideológica do partido parece estar confinada às cartilhas do politicamente correcto, da ideologia de género, do pensamento identitário ou mesmo de um vago wokismo, em vez de se centrar nos valores clássicos da social-democracia devidamente aggiornati e numa nova cartografia cognitiva que instrua criticamente os que nele se filiam e revêem. O “sentimento de pertença” está hoje muito enfraquecido e o que se torna necessário reforçar é uma cartografia cognitiva capaz de instruir os militantes e os simpatizantes do partido para, em liberdade, lutarem e promoverem aquilo em que acreditam e que conhecem de forma reflexiva e analítica. Sabemos que a direita radical se alimenta não só do filão antiliberal (o mesmo em que se filia essa esquerda dos novos direitos), mas sobretudo naquelas ideologias, além, claro, dos filões da corrupção, da imigração e soberanismo. Alimentá-la, dando-lhe pretextos para se alimentar de ideologias identitárias pouco compatíveis com a própria tradição do socialismo democrático ou da social-democracia é não só errado como também desviante em relação à própria tradição em que se inscreve o partido.

5.

O PS obteve um resultado eleitoral cerca de 5,5 pontos abaixo da média geral que mantém desde 1976 (34% e 92 deputados), menos do que o PSD, com cerca de 6 pontos abaixo da sua média geral (35,5% e 96 deputados), o que representa, apesar de tudo, um resultado consistente tendo em conta a tendência para a fragmentação do sistema de partidos que se está a verificar um pouco por todo o lado (a soma de ambos os partidos baixou de cerca de 70 para 58 pontos percentuais). Pedro Nuno Santos já manifestou uma clara decisão de promover uma profunda mudança no partido. Há muito a revisitar na história do socialismo democrático e a aprender com as suas vitórias e as suas derrotas, mas sobretudo com o modo como estes partidos se relacionaram com a história, as respostas que souberam dar. A identidade da cidadania tem vindo a mudar de forma substancial e torna-se necessário identificar essas mudanças. Vivemos uma época de uma certa anomia internacional e de um mundo muito interdependente, para o bem e para o mal. Verifica-se um revivalismo da direita radical assente cada vez mais no soberanismo, na ideologia antimigratória e no populismo iliberal. Mas verifica-se também, simetricamente, uma crise do centro-esquerda e do centro direita, incapazes de ler o processo de profunda e rápida mudança que está a acontecer, permitindo que os extremos do sistema cresçam desmesuradamente. A narrativa ideológica clássica da esquerda perdeu força mobilizadora e tende cada vez mais a ser substituída pela ideologia agressiva e iliberal dos novos direitos, suscitando uma forte rejeição da sociedade civil. Os partidos clássicos da alternância governativa têm vindo a viver no essencial dos recursos e da ocupação do Estado, descurando a ligação à sociedade civil (a não ser nos períodos eleitorais), reproduzindo-se através de uma endogamia que se tornou crónica e descurando também a sua própria organização interna, a sua eficiência, a sua capacidade de interpretar autonomamente a sociedade civil e a sua própria identidade ideológica, acabando por se tornarem meras máquinas eleitorais ao serviço do poder interno e, até nisso, recorrendo regularmente a outsourcing, em detrimento do desenvolvimento de capacidades próprias e de uma militância motivada por valores e não por interesses pessoais.  A imagem tornou-se o alfa e o omega desta política em detrimento dos valores e dos programas.  Tudo isto explica a crise e é sobre isto que é necessário agir. Mas por isso mesmo não é possível agir com os mesmos de sempre e com as mesmas formas de sempre. A mudança também deve ocorrer nas pessoas e não só nos métodos e nas ideias.

6.

O dia 10 de Março foi o dia em que definitivamente a nova liderança do PS se consolidou. A intempestiva saída de Costa do Altis e o discurso do Secretário Geral do PS têm este valor simbólico. Pois deverá ser a partir do dia seguinte que o novo ciclo deve começar. Até porque a vida não pára e a urgência política é cada vez maior. Mas a acção não deve ser interpretada como mero movimento: ela deve começar nas ideias e na sua concretização. Nunca a acção pela acção levou a bons resultados. Em tempos houve uma polémica acerca da 11.ª Tese sobre Feurbach: interpretar o mundo, sim, mas também transformá-lo. Este mas não era adversativo (sondern), mas sim complementar (aber). Interpretá-lo para o transformar. Mas interpretá-lo, sim. É esta a sugestão que aqui deixo a Pedro Nuno Santos, que apoiei e em que votei para líder do PS. JAS@03-2024

PS2jpgRec

Poesia-Pintura

SILÊNCIO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “O Som do Silêncio”, 
JAS 2023,72x82, em papel de algodão 
(100%-310gr) e verniz Hahnemuehle; 
Artglass AR70, em moldura de madeira. 
Poema e Pintura em exposição no Museu
 da Guarda até 07.04. Março de 2024.
Jas. OSomDoSilêncio2021

“O Som do Silêncio”. JAS 2023, 72×82, em papel de algodão (100%-310gr) e verniz Hahnemuehle; Artglass AR70, em moldura de madeira.

POEMA – “SILÊNCIO”

OUÇO A VOZ
Do silêncio
Que me cerca,
Adentro-me
Na multidão
E ele cresce
Por dentro,
Na alma
Me cresce
E, quase, quase,
Como grito
Sufocado...
....................
Me ensurdece.

AH, É DEMAIS,
Este silêncio,
Esta voz inaudível
Caustica-me
A pele macia
Da memória
Dos afectos,
Uma moinha
Na alma,
Silvo
De vento
Cortante
Nas janelas
Destroçadas
Da emoção.

E EU FUJO
Para o ermo,
Lá em cima,
Na montanha,
À procura
Da solidão de
Eremita
Em busca
Da melodia
Do nome
Silenciado,
Aquele que nunca
Ousaste
Pronunciar,
Palavra em degredo,
Nome castigado
Que só o poema
Pode resgatar.

LÁ NO ALTO
(É sempre assim),
Ouço uma harpa
Dedilhada
Por ti,
Notas musicais
Que me fazem
Estremecer
E vejo riscos
Coloridos
Esvoaçando
No teu azul
De Lisboa
Em direcção
Ao infinito...

VEJO-TE SAIR
Da neblina
Cintilante
Do rio
Que te veste
A alma
E sacio-me de
Palavras
Soltas,
Em turbilhão,
Até que a inspiração
Chegue
E as componha
Num poema
De redenção
Que te cante
E que te conte
Às nuvens
E ao vento
Que passa...

NOMEIO-TE
E sussurro
Uma pequena
Palavra
Que nunca ousei
Pronunciar,
Mas que ouviste
Ressoar-te
Na alma
Mil vezes,
Em mil poemas
Sufocados. 

O SILÊNCIO
É a tua fala
(Bem sei),
Mas eu não sairei
Deste poema
E do ermo reparador
Até que me ouças
E soletres
Finalmente
Esse nome
Com as cores
Da tua fantasia,
As cores vivas
Da emoção.

FICO PRISIONEIRO
De um poema
Em construção
Até ao resgate
Desse nome
Perdido
E silenciado
Na ilha remota
Da tua memória,
Âncora firme
Da minha própria
Salvação.

Jas. OSomDoSilêncio2021Rec

Artigo

AS RAZÕES DO MEU VOTO

Considerações sobre as Eleições 
Legislativas de 2024

Por João de Almeida Santos

Democracia2024_03_06

“S/Título”. JAS. 03-2024

ESTAMOS A VIVER um tempo em que ocorrerão sucessivas eleições – legislativas, europeias (e, provavelmente, regionais na Madeira) e, em 2025, autárquicas, a que se seguirão, em 2026, logo em Janeiro, as presidenciais – e o que se constata é que, cada vez mais, elas vão perdendo o carácter orgânico e territorial que antes tinham e que, também cada vez mais, elas ocorrem sobretudo no espaço audiovisual, no televisivo e no das redes sociais, colocando no centro do processo eleitoral sobretudo a linguagem dos rostos que o interpretam.

1.

O processo vai-se, assim, afunilando para um hiperpersonalismo político que, de algum modo, altera a matriz do sistema representativo em que ele assenta. Em Itália, como já aqui tive ocasião de referir, a actual coligação de governo aprovou um “desenho de lei constitucional”, conhecido como “premierato”, onde todo o processo se concentra na eleição de um todo-poderoso primeiro-ministro, a ponto de o próprio boletim de voto onde consta o nome do candidato a PM integrar também as candidaturas ao Parlamento, produzindo um efeito de arrastamento, com um perverso efeito político: o processo remeter para uma só figura, a de um líder (supostamente) carismático. De qualquer modo, com ou sem “lei constitucional”, na prática o que se está a verificar também em Portugal é a redução das legislativas a uma eleição do primeiro-ministro. Ganha, pois, mais sentido a forma como os italianos chamam às eleições legislativas: “elezioni politiche”. O mandato parlamentar fica, assim, muito diminuído politicamente agora não só na génese, ou seja, na propositura (sobretudo dos cabeças de lista) decidida pela liderança, mas também na própria legitimidade derivada do voto, agora imputável, no essencial, ao carisma do candidato a PM. Será, em todo o caso, um voto por arrastamento polarizado pela figura do líder. O processo não está formalmente estatuído, entre nós, mas, na substância, está assumido e a funcionar plenamente.

2.

Depois, o factor programa, uma peça importante do processo eleitoral. Note-se que é comum a tendência para elaborar e publicar extensos programas que, em boa verdade, não são susceptíveis de leitura pelos eleitores, dada a sua dimensão – se somarmos as páginas dos programas dos três maiores partidos do sistema de partidos português, o do PS, o do PSD e o do Chega, a soma será de 504 páginas. Imaginemos agora a quantas páginas não corresponderá a soma total de todos os programas dos partidos em competição. Um absurdo. Alguém terá paciência para ler estas “listas telefónicas” onde os partidos, todos eles, despejam tudo o que lhes dá na real gana, sem se preocuparem em ir ao essencial, em diagnosticar as causas dos três ou quatro problemas centrais com que o país se debate e em propor respostas credíveis e eficazes? Não será mesmo falta de respeito pelos eleitores? Acresce que estes programas nem sequer são vinculativos, pois estamos perante mandatos não-imperativos, ou seja, mandatos livres de qualquer vinculativo “caderno de encargos”. Por isso, poucas páginas seriam mais que suficientes. Trata-se de uma eleição pessoal, não da eleição de um programa, embora, como se compreende, haja uma espécie de compromisso moral em cumprir o que se prometeu em campanha. O programa que realmente vincula é o programa que se apresenta ao Parlamento, em fase já de instalação de um novo governo. Mesmo assim, ele é um dos três elementos fundamentais que influenciam e determinam a escolha dos eleitores: a figura do líder (sobretudo), o espaço político e de valores em que se insere e o respectivo programa  Mas, assim sendo, ou seja, faltando eficaz informação analítica sobre os programas, o que resta ao eleitor é seguir o que acontece no espaço do audiovisual.

3.

Torna-se, pois, decisiva a arena principal onde ocorre o essencial da disputa eleitoral, ou seja, o espaço televisivo, esse com que se iniciou, nos anos cinquenta, nos Estados Unidos, a personalização da política. Um espaço mais apropriado a frases de eficaz efeito retórico e à performance corporal, verbal e comportamental do candidato (veja-se o clássico debate de 1960 entre Kennedy e Nixon e os seus resultados) do que a discursos analiticamente estruturados. Como procurei demonstrar no meu livro Homo Zappiens (Lisboa, Parsifal, 2019, 2.ª edição) se a televisão é emocionalmente forte e cognitivamente fraca os seus mais eficazes efeitos são sobretudo de natureza emocional e menos de natureza racional e analítica. Também nas redes sociais, a nova arena onde também ocorre a competição eleitoral, o código comunicacional utilizado é dominantemente de natureza emocional e abundantemente instrumental. De facto, também aqui se inscreve a tendência para a hiperpersonalização da política. Um rosto como “agente fiduciário” global da cidadania e o princípio de que uma imagem vale mais do que mil palavras.

4.

Estes factores, a inacessibilidade prática (por excesso) e a insuficiência explicativa dos programas eleitorais, a inorganicidade crescente da política, a sua hipersonalização e a natureza da arena onde se processa a competição política, apontam para um processo decisional centrado sobretudo, ou quase exclusivamente, nas lideranças, e mais propriamente naquelas que estão em condições de vir a ter sucesso na candidatura ao cargo de primeiro-ministro. Mesmo que não se esteja num regime de “premierato” formal. A decisão político-eleitoral centrar-se-á, pois, na figura dos candidatos, no rosto, na retórica e na performance audiovisual, na personalidade, na sua história pessoal, além, naturalmente, da sua pertença a um concreto espaço ético-político que mobiliza o chamado “sentimento de pertença”, que, todavia, tem vindo a perder pregnância desde o fim das chamadas grandes narrativas políticas e ideológicas e da entrada em cena da televisão na competição política.

5.

Eu considero que esta evolução – que é um facto incontornável – não ajuda à consolidação do modelo clássico de democracia representativa pois não convoca a razão e a informação para instruírem a decisão político-eleitoral, para uma avaliação analítica e responsável das propostas das formações políticas em competição, ficando os eleitores mais sujeitos à eficácia retórica do discurso político e à linguagem de um rosto do que à substância programática. E, por isso, sou cada vez mais defensor de uma orientação no sentido da construção de uma democracia de tipo deliberativo, onde é privilegiado, reconhecido e assumido o aprofundamento e o alargamento do debate público através de instrumentos que invertam esta situação, convocando a razão analítica e os respectivos meios de informação para a vida política, em campanha e fora dela (na hoje assumida permanent campaigning). Neste aspecto, compreendo muito bem a posição de Habermas – no seu mais recente livro sobre “Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa”, de 2022 (Milano, Raffaelle Cortina Editore, 2023) – sobre a política deliberativa, ao considerar essencial para o bom funcionamento da democracia a promoção de uma robusta dialéctica discursiva racional na esfera pública política a cargo dos clássicos meios de comunicação e dos seus agentes orgânicos e profissionais (garantes de uma informação profissionalizada e certificada) perante o receio de uma hiperfragmentação e diluição da esfera pública política a cargo dos “social media”, eles também propícios à eficácia retórica e instrumental (e às famosas fake news), desprovidos de uma qualquer forma de regulação e promotores de uma diluição da fronteira entre a esfera pública e a esfera privada. Como diz Habermas: o uso exclusivo dos “social media” poderia mudar a “percepção da esfera pública” (…) “de modo a fazer desaparecer a distinção entre ‘público’ e ‘privado’ e, portanto, o sentido inclusivo da esfera pública” (2023: 64). Alem disso, estes últimos aprofundariam o negativo que já está a acontecer com essa espécie de política tablóide promovida pelo audiovisual, em particular pela televisão. O racionalismo crítico que ele defende, com a sua teoria discursiva da democracia, não é, pois, compatível com esta tendência crescente para o tabloidismo político e para hiperpersonalização, nascidos com a televisão e aprofundados agora pelas redes sociais.

6.

Sim, é verdade, mas os media e a rede podem ser utilizados de forma racional, analítica e argumentativa na esfera pública política sobretudo através dos meios de comunicação escritos e da rede nos seus inúmeros espaços de informação analítica – um espaço público deliberativo enormemente alargado onde o indivíduo se pode protagonizar sem ter de pedir licença a gatekeepers, aos antigos detentores do monopólio do acesso a este espaço. Uma combinação, pois, dos meios de comunicação, media e rede, que favorece a informação, o debate, a argumentação numa lógica onde a razão pode ser dominante e a emoção subalterna. É essa a política deliberativa e é também essa a democracia deliberativa, aquela que não se vislumbra nesta caminhada a largos passos para a hiperpersonalização da política e do poder. E, todavia, é isso que está a acontecer e, pasme-se!, quem melhor compreende e sabe utilizar esta evolução é a direita radical, precisamente aquela que a quer constitucionalizar (e sobre a qual já aqui escrevi).

7.

Pois bem, se é isto que está a acontecer realmente, a hiperpersonalização da política, então, por um lado, na concreta decisão político-eleitoral há que ter a maior atenção e o maior cuidado ao votar num ou noutro candidato, sabendo-se que, depois, isso se traduzirá em hiperpersonalização do poder, sempre acompanhado tendencialmente de um uso pouco respeitador da separação de poderes e da sua autonomia, pelo uso discricionário do poder e pelo atropelamento da ética pública inscrita no sistema democrático representativo. Os casos em que isso já acontece (ou aconteceu, como no caso da Polónia do senhor Kaczinsky) são sobejamente conhecidos. E não sendo possível alterar de imediato as condições de exercício da cidadania no plano eleitoral através de uma inversão de rumo e da promoção efectiva de uma política deliberativa, então há que reforçar a vigilância sobre as lideranças que se propõem governar, na sequência de eleições políticas. Lembro que esta hiperpersonalização do poder levou, em Portugal (e de forma argumentada por parte do PR), à queda de um governo suportado por uma maioria absoluta e à dissolução do Parlamento, tendo bastado para tal que fosse desencadeado – ao que parece insipiente, pouco explicado e nebuloso – um inquérito judiciário no Supremo Tribunal de Justiça (ao que parece sem que o próprio presidente deste tribunal tenha sido previamente informado) ao ainda primeiro-ministro.

8.

É neste panorama que, entre outras razões, se inscreve a minha decisão de votar no PS nas próximas eleições de 10 de Março e, naturalmente, de sufragar a candidatura de Pedro Nuno Santos a próximo primeiro-ministro, sem, naturalmente, abdicar de continuar a lutar, com os meios (escritos) de que disponho, por uma democracia deliberativa que abra caminho a uma inversão de tendência, a uma melhor performance política da cidadania (e das organizações que a representam, incluídas as plataformas digitais) e a uma política deliberativa centrada na distanciação crítica (Entfremdungseffekt, diria o Brecht) dos cidadãos em relação ao espectáculo da política e à política de espectáculo e ancorada, pois, em mais sólida formação e informação política, em maior e mais robusta e articulada legitimidade política, numa mais intensa e harmoniosa sociabilidade orgânica e territorial e na criação de condições para que seja possível promover escolhas racionais no processo de decisão política. E não só. Também para que o próprio processo decisional seja mais transparente e mais qualificado, pelo aprofundamento e alargamento da deliberação pública – tudo no quadro da democracia representativa. De resto, só assim os partidos políticos poderão superar a crise de representação que continua a instalar-se nas sociedade desenvolvidas e que está a ser muito bem aproveitada pela direita radical.

9.

Neste sentido, e porque é este o processo de escolha eleitoral que temos, a decisão a tomar deve ser em grande parte guiada pelas características dos candidatos a líder, particularmente daqueles que estão em condições de ascender ao cargo de primeiro-ministro. E a mim, exactamente ao contrário do que dizem o professor Cavaco Silva e o conhecido trânsfuga do Goldman Sachs, o senhor Barroso, parece-me que o líder do PS demonstra maior autenticidade e convicção e maior capacidade de enfrentar o risco e de romper com essa política do movimento por inércia e transformista que parece ter tomado conta da política dos partidos de centro-esquerda e de centro-direita, levando, como se sabe, à fragmentação dos sistemas de partidos. Foi por isso que votei nele para líder do PS e defendi a sua candidatura. Pelo contrário, Luís Montenegro continua a ser um intérprete, nem sequer muito qualificado, desta política e por isso não votarei nele, até porque o meu espaço de intervenção política é, sim, o de uma social-democracia renovada e a caminho de uma democracia deliberativa. Na verdade, tenho a convicção de que, com Pedro Nuno Santos, a evolução para esta democracia é mais viável, para não falar dos valores sociais e da sociabilidade solidária que ele defende, de resto, com muito maior autenticidade e convicção do que as que o candidato da AD exibe na defesa das suas opções. Tudo isto também independentemente dos concretos programas em que se inscreve a própria acção política e que naturalmente também deverão estar em avaliação, embora aqui, pelo que já disse, não se vislumbre grande clareza na determinação do “princípio activo” (a causa causans) que poderia dar solução aos principais problemas com que o país se confronta.

10.

Não desvalorizo as prestações dos outros partidos, à esquerda e à direita, mas será nestes dois partidos que o rumo da nossa política se decidirá.

Democracia2024_03Rec

Poesia-Pintura

MARÇO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “A Neve e a Primavera”.
JAS 2022, 68x93, em papel de algodão 
(100% - 310gr) e verniz Hahnemuehle.
Artglass AR70, em moldura de madeira.
Poema e Pintura em exposição no Museu
da Guarda até 7 de Abril. Março de 2024.
Jas13ANeveEaPrimavera2022

“A Neve e a Primavera”, JAS 2022, 68×93, em papel de algodão (100% – 310gr) e verniz Hahnemuehle. Artglass AR70, em moldura de madeira.

“POEMA – “MARÇO”

GOSTO DE MARÇO,
Entre a neve
E a primavera,
Entre o branco
E as flores,
A chegada
De Perséfone,
O mistério
Que me atrai
Nessa fronteira
Do tempo
Que ainda não
Passou.

GOSTO
Do Botticelli
Dos rostos
E dos corpos
Das três
Graças,
Feminis,
Volúpia de
Transparências,
Sensuais,
Primaveris.

GOSTO DO BRANCO
Da magnólia,
Dos seus farrapos,
E do branco frio
Da montanha,
Gosto
Dessa cor que
Que brilha
Nos meus olhos
E que sempre
Me acompanha.

GOSTO DE MARÇO
(Porque gosto),
Entrei nele
Contigo,
No signo do
Desencontro
Que se repete
Neste silêncio
Fatal,
Marcado
Contraponto
Desse tempo
Do meu canto,
Um “triste
Destino”
Que quase
Parece irreal.

PARA TI COLHIA,
Em Março,
Flores luminosas
E a inspiração
Crescia
Em estrofes
Desenhadas
Com a força
Da magia,
Fingindo sentir
O que dizer
Não podia,
Fosse só
Por duas horas
Ou fosse
Por todo um dia.

NO SIGNO
Do desencontro
Marcado como selo
Lá vou eu
Mais uma vez
Por aí,
Nem sei porquê,
Ou por falta de ti,
De braço dado
Com Botticelli,
Lá em cima,
Na Galleria,
Oráculo de arte
E templo
Da fantasia.

SINTO-TE PERTO,
Ah, eu sinto,
Depuro
A tua imagem
Em bissetriz
De mil rostos
Até se tornar
Ideia
De corpo ausente,
Dialéctica
Animada
De opostos.

DEPOIS REINVENTO-A
A cada instante,
Abraço-a
Com alma
De amante,
Pinto com
Palavras
O seu perfil
Ideal
E fixo-a
De novo
Neste meu
Jardim
De jogral.

AO ACORDAR,
No amanhecer
De cada poema
Verei que continuas
Em mim,
De olhos fechados
(Lembras-te?),
Como se fosses
Sonho do que
Nunca aconteceu
Naqueles dias
Passados.

ANDAREI
Por aí
(Os astros 
O dirão),
Vagando
E pousando
O olhar
No pólen
Da beleza
Sensível
À procura
De seiva fresca
Para desenhar
Poemas
E dar vida
Ao impossível.

LÁ NO ALTO
Te encontrarei,
Imitação
Dos dias
Da criação,
A construir 
Infinito,
Onde, num adeus
Já sem fronteiras
Nem cais 
De partida,
Hás-de desenhar
Com a alma
As mil silhuetas
Ainda inacabadas...
..............
Ou talvez não!


MEU DEUS,
Como gosto de ti,
Em Março,
O mês da floração,
Quando a magia
Renasce
Para renovar
A vida
Com a força da
Paixão.

Jas13ANeveEaPrimavera2022REC

Notícia

UM RECITAL NA EXPOSIÇÃO “LUZ NO VALE”

NOTÍCIA

Por João de Almeida Santos

Recital

JOSÉ PEDRO MESQUITA – Guitarrista Clássico. Ontem, 01.03.24, no Museu da Guarda

ONTEM foi dia de visita à minha Exposição “LUZ NO VALE”, no Museu da Guarda. Já no fim da visita fui agradavelmente surpreendido pela informação de que, às 18:00, ocorreria, ali mesmo, na sala maior, onde estão mais de vinte das 51 obras expostas, um RECITAL: “Os Caminhos da Guitarra”, pelo guitarrista clássico José Pedro Mesquita. Fiquei para assistir ao recital, maravilhado por poder participar neste encontro de artes – música/guitarra clássica, pintura, poesia. Para quem atribui à música uma incontornável função no próprio processo de criação poética, vê-la chegar à Exposição pelas mãos de um talentoso guitarrista clássico, como que a tornar audível essa música que, silenciosa, já lá está, levada em silêncio por outras artes, é uma experiência extraordinária. Tratou-se de interpretações de Bach, de Mario Castelnuovo-Tedesco e de Giulio Regondi. Interpretações executadas com grande brilho profissional perante os cerca de quarenta convidados presentes. E eu, completamente fascinado, não resisti, já no fim do recital, a me apresentar e a pedir para fazer uma foto com o artista, precisamente entre o texto de parede, onde explico a Sinestesia, e a pintura “O Desejo”, a que foi escolhida para a divulgação e para o Catálogo da Exposição. Os meus parabéns ao José Pedro Mesquita, ao Conservatório de Música de S. José e ao Museu da Guarda. E que esta belíssima experiência de encontro de artes se possa repetir com frequência. E, já agora, também o meu obrigado.

Recital2

O pintor e o músico entre o texto de parede “Sinestesia” e o Quadro “O Desejo”, no Museu da Guarda