Poesia-Pintura

NEVERMORE

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Sedução”, JAS 2024
Original de minha autoria
Setembro de 2024
JAS_Sedução2024

“Sedução”. JAS 2024

POEMA – “NEVERMORE”

SE NUNCA MAIS
Te encontrar,
Mas disso
Eu tenho a certeza,
Melhor te devo
Guardar
Para não deixar
Morrer
A poética leveza,
A que liberta
A alma
E ajuda
A resistir
Fazendo forte
A fraqueza
E suave
O existir.

FICA COMIGO
A tristeza,
Sobrevém
Melancolia?
Tristeza
Não me faz bem,
Não é boa
Companhia.

SE NUNCA MAIS
Te encontrar,
Vou ter saudades
De ti,
Mesmo assim,
Na tua ausência,
Sou aquele
Que te sorri.

SORRIR FAZ BEM
À alma,
Liberta,
Engana a dor,
O sorriso também
Resgata
Da “doença”
Do amor.

DOENÇA,
Diz o poeta?
Não,
Não é bem isso,
Talvez seja
Perdição,
Ficar, assim,
Submisso,
Numa certa
Solidão...

REGRESSA,
"Doce
Melancolia",
Enche a alma
Do poeta,
Dá-lhe versos,
Poesia,
Essa fala
Tão discreta,
Palavras
E melodia,
A sua força
Secreta!

SE ASSIM FOR,
Eu viverei
Na casa da poesia
Onde a tristeza
Em verso
É suave
E delicada,
É mais quente
Do que fria,
É doce,
Aveludada,
É saudade
Transformada
Em pura
Melancolia.

SOM11_2023REC

Artigo

A CRISE POLÍTICA EM FRANÇA

Por João de Almeida Santos

Politica2024Pub

“S/Título”. JAS. 08-2024

MERECE MUITA ATENÇÃO, sobretudo à esquerda, o que se está a passar, neste final de Agosto, em França. Uma crise grave, de que aqui já dei conta, há oito dias, mas que, como era previsível, acaba de se agravar. A novidade já esperada: Emmanuel Macron rejeitou a proposta da Nova Frente Popular (NFP) para nomear Lucie Castets primeira-ministra de França, com a seguinte argumentação:

“un gouvernement sur la base du seul programme et des seuls partis proposés par l’alliance regroupant le plus de députés, le Nouveau Front populaire, serait immédiatement censuré par l’ensemble des autres groupes représentés à l’Assemblée nationale. Un tel gouvernement disposerait donc immédiatement d’une majorité de plus de 350 députés contre lui, l’empêchant de fait d’agir. Compte tenu de l’expression des responsables politiques consultés, la stabilité institutionnelle de notre pays impose donc de ne pas retenir cette option” (do comunicado da Presidência da República Francesa; itálicos meus).

1.

O que está escrito neste comunicado já era conhecido. Macron queria e quer uma solução que possa sobreviver na Assembleia Nacional. O que não era o caso. Antes da decisão do presidente houvera uma ameaça e uma oferta de boa-vontade por parte do senhor Jean-Luc Mélenchon, líder de “La France Insoumise” (LFI): a ameaça, como vimos (veja, aqui, o meu artigo de 21.08.2024), era a de destituição do PR, por uma “Haute Cour”, se este não acatasse as suas ordens – e parece que a proposta de destituição vai mesmo ser apresentada; a boa-vontade –prescindir de ter ministros de LFI no governo, pretendendo assim demonstrar que o problema não resultava de haver ministros “insubmissos” no governo, mas sim do próprio programa da NFP. De resto, Macron teve oportunidade de interrogar e de ouvir a candidata longamente sobre o que pretenderia fazer no caso de ser nomeada. Uma nomeação que não carece de ratificação parlamentar (mas que pode ser sujeita a uma moção de censura).

2.

Lembro que os deputados desta coligação de partidos (LFI, PSF, Verdes e comunistas) que resultaram das eleições são 193 contra os 166 da coligação Ensemble. Estes deputados, excluídos os 32 obtidos pela Nova Frente Popular (NFP) e os dois obtidos pelo Ensemble, na primeira volta, devem a sua eleição, em grande parte, a uma política de desistência, negociada entre os dois blocos políticos, a favor dos candidatos que estivessem em melhores condições de derrotar o candidato do Rassemblement National (RN), na segunda volta. E assim foi. E é a esta situação que parece referir-se (no final) o comunicado da presidência:

“Les partis politiques de gouvernement ne doivent pas oublier les circonstances exceptionnelles d’élection de leurs députés au second tour des législatives. Ce vote les oblige”.

Ou seja, foi mais a circunstância de evitar o perigo de uma vitória da extrema-direita do que a adesão a um programa que determinou a eleição dos deputados dos dois blocos políticos. Aliás, nem é o programa eleitoral que é escolhido, mas sim os representantes (na democracia representativa não há “vínculo de mandato”), sendo o programa apenas uma das três variáveis essenciais que determinam a eleição do representante (valores/princípios/ideologia, programa/policies,  rosto, do candidato ou do líder, como agente fiduciário). Esta razão, a que se junta a certeza de que um governo da NFP viria a ser objecto de aprovação imediata de uma moção de censura na Assembleia, levou Macron a rejeitar a proposta. Na verdade, como disse, o que Macron pretende é uma solução que envolva várias sensibilidades políticas, eventualmente com um PM exterior aos blocos ou uma figura politicamente prestigiada, em condições garantir uma maioria parlamentar de apoio e, consequentemente, estabilidade governativa. Este tipo de solução é muito frequente, por exemplo, em Itália. É esse o papel do PR que a constituição prevê, garantir a estabilidade institucional, e não o de cumprir ordens impositivas do senhor Mélenchon sob pena de ser levado a uma (política) corte marcial. Lembro que as eleições legislativas foram marcadas na sequência dos resultados disruptivos das eleições europeias, ganhas pelo RN, com 31, 37% dos votos (mais do dobro do resultado do Ensemble, o segundo, com 14,60%, ou do PS, Lista de União à Esquerda, com 13,83%).

3.

A antecipação da NFP, impondo publicamente um candidato e ameaçando destituir o Presidente se não acatasse a imposição, só poderia ter como desfecho o que se viria, de facto, a verificar, sob pena, isso sim, de o PR não estar a cumprir as funções que a Constituição lhe atribui: “ Le Président de la République nomme le Premier ministre” (art. 8) e “Le Président de la République préside le conseil des ministres” (art. 9). Note-se que a Constituição não diz, como a portuguesa, “o Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais” (n.1, art. 187). E, ao contrário do PR português, o PR preside ao Conselho de Ministros. Duas diferenças essenciais, que dão um poder e uma responsabilidade ao PR francês que não existem no caso português. E não me parece que esta redacção da Constituição seja inocente ou que a regulação dos poderes presidenciais peque por defeito. Se assim é, isso tem um claro significado político acerca dos poderes e das responsabilidades do presidente. Ousaria até dizer que, se não fosse grave, a injunção do senhor Mélenchon é ridícula e megalómana. O processo de destituição exige uma sólida fundamentação (não resulta de uma pura projecção da vontade política de um qualquer sujeito político) e é complexo, envolvendo as duas câmaras e uma maioria qualificada de dois terços dos deputados e senadores.

4.

É claro que o guião de tudo isto parece ter uma clara autoria: a do senhor Jean-Luc Mélenchon. As suas opções, no essencial, são determinadas por claro objectivo: as presidenciais de 2027. Mais uma vez. Poder ser ele a polarizar, numa segunda volta, o voto contra a extrema-direita, sem se aperceber, digo eu, que com as posições e os discursos que vai tendo o que conseguirá será precisamente a vitória de Marine Le Pen e a destruição da credibilidade da esquerda que diz defender. Ele e o senhor Olivier Faure (a fractura no seio do PSF já está a acontecer, precisamente sobre as relações a estabelecer com o presidente da República, na sequência da recusa de Macron em nomear PM a senhora Lucie Castets).

5.

Se reflectirmos um pouco nestas últimas posições do senhor Mélenchon, não seguido em tudo pelos partidos que integram o bloco político NFP (como, por exemplo, na destituição do Presidente), veremos que não fazia grande sentido apresentar publicamente, e nos termos em que foi feito, a candidata ao lugar de PM. Teria toda a legitimidade para a propor, mas no quadro de negociações, não públicas, com o PR, com o Ensemble e com os Republicanos. Fazer o que fez, no meu entendimento, significou não só não querer acordo, mas também induzir a negativa do PR. A constituição diz que o PR nomeia, sem explicitar, como disse, condições e, mais, diz também que preside ao conselho de ministros. A nomeação de um PM envolve-o, pois, directamente, pelo menos por estas duas razões. Abdicar deste poder, isso sim, seria não cumprir as suas funções, como previsto no art. 68: “manquement à ses devoirs manifestement incompatible avec l’exercice de son mandat“.

6.

O que noto aqui é uma série de incongruências que me levam a pensar que só fazem sentido pela negativa – não quererem governar nem quererem outras soluções. Pura oposição a Macron, sejam quais forem as consequências, incluindo a de aplanar o terreno (não assumindo responsabilidades, mas dando a parecer exactamente o contrário) para uma vitória da extrema-esquerda nas presidenciais de 2027, isto é, do senhor Jean-Luc Mélenchon. É estranho, mas é o que parece, a usarmos a lógica linear do bom senso. E é esta conclusão que me leva a Mélenchon e, já agora, ao senhor Olivier Faure… mas não a Raphael Glucksmann que, não sendo do PSF, foi o seu cabeça de lista nas europeias. Na verdade, o grande salto em frente do PSF nas europeias deve-se a Glucksmann (líder do movimento Place Publique). Este, nestas eleições, deixou a LFI ( que teve 9,89%) a cerca de 4 pontos de distância do PS, que obteve 13,83%. “É preciso acabar com a estética da radicalidade, que mais não é do que sectarismo”, diz Glucksmann. “Em 2027, será a social-democracia, e não um sucedâneo do macronismo ou um avatar do populismo de esquerda, que defrontará o lepenismo”, disse na entrevista que concedeu ao Figaro/AFP (20.08.2024). Foi Faure que o escolheu para cabeça de lista, mas hoje as relações entre eles parece não conhecerem os melhores dias.

A verdade é que Glucksmann e o seu movimento parece poderem ser uma lufada de ar fresco na debilitada social-democracia francesa. O populismo de esquerda, a avaliar pelo que está a acontecer nestes dias, não parece ser a melhor das companhias do PSF, que se arrisca, depois das europeias, a voltar a cair na insignificância.

7.

Mas em França também se joga o destino da União Europeia, uma responsabilidade que parece não ser a dos partidos que integram o NFP, em especial a do senhor Mélenchon, chefe de um “parti europhobe”, para usar as palavras do jornal Libération. Se descontarmos a vitória de Keir Starmer, a esquerda vive momentos de grande dificuldade um pouco por todo o lado. E não será com posicionamentos e discursos destes que a França ajudará o projecto europeu e, diga-se, a si própria. Bem pelo contrário, o risco que se corre é o de a mancha da extrema-direita alastrar de tal modo que se torne difícil contê-la. JAS@08-2024

Politica4Rec

Poesia-Pintura

MELANCOLIA

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Melancolia”, JAS 2022.
Original de minha autoria.
Agosto de 2024.

JAS_Melancolia2023_12

“Melancolia”. JAS, 2022. 80×88, em papel de algodão (310gr) e verniz Hahnemuehle. Artglass AR70 em mold. de madeira. 

POEMA – “MELANCOLIA”

EU PRECISO
De falar
Da melancolia
Que sinto,
Mas não sei
Bem o que seja...
.........
Talvez se
Em poesia
Vertida
Bem retratada
A veja.

TENTEI
Pintá-la
Num rosto
Para ver se
Conseguia
Ficou no rosto
Pintada
O melhor
Que eu sabia.

TER CERTEZAS
É coisa que eu
Não tenho
Nem a poesia
Mas dá,
Mas se sinto
Melancolia
Por algum motivo
Será.

NÃO É FÁCIL
Definir
Com rigor
A melancolia
Que sinto
E se a procurar
Num poema
Pode até parecer
Que minto...

BOM, FINJO,
Não minto,
Mas fingir
Pode bem ser,
Porque é
Melancolia
O que sinto
Se em perda
Eu viver.

TALVEZ
A melancolia
Seja perda,
Seja vazio
E tristeza,
Mas se a sofrermos
Em arte
Mais do que peso
É leveza.

O POETA
Tem razão,
Tristeza é
Doce
Melancolia
Se a sentirmos
Com palavras
Na pauta
Da poesia,
Quando a dor
De uma perda
Se torna leve
E constante
E a “sombra
Luminosa”
Do ausente
A nossa mais
“Fiel amante”.

JAS_Melancolia2023_12Rec

Artigo

NOTAS POLÍTICAS

DE UMA TARDE DE VERÃO

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 08-2024

ARTIGO – “NOTAS POLITICAS”

1.

Começo por referir um conjunto de artigos que li em “Le Monde” (14.08.2024) acerca do senhor Elon Musk  (foi manchete : “Elon Musk, acteur politique de la droite extrême”) e a sua entrada fulgurante em política, ao lado e em plena sintonia com Trump, promovendo as três grandes bandeiras do populismo de direita e do plutopopulismo de tipo trumpiano: contra a imigração, contra o wokismo e contra os media tradicionais. O Twitter, agora X, como espaço de combate de Musk à escala planetária (e, em particular, nos USA). Sabemos o que aconteceu com o Facebook e a Cambridge Analytica, em 2016, sob a gestão do ideólogo radical-populista Steve Bannon. E, agora, às políticas de guerra em curso, junta-se-lhes o senhor Musk a accionar politicamente a sua plataforma digital para dar combate ao já difícil e delicado funcionamento das democracias. E, ao que parece, fá-lo em nome da liberdade – “eu sou um absolutista da liberdade de expressão”, terá afirmado em 2022. E toca de dar, de novo, espaço no X aos ideólogos de extrema-direita que tinham sido erradicados do Twitter antes da sua gestão, a começar pelo próprio plutopopulista Trump. Imaginemos agora que o senhor Zuckerberg faça o mesmo. E que o patrão da Google também. A normal dialéctica do consenso que é activada nas campanhas eleitorais seria totalmente desvirtuada, sabendo-se que a comunicação, no essencial, passa hoje pela internet e pelas redes sociais. E a expansão destas redes é planetária.

Sempre se discutiu acerca da neutralidade da tecnologia (sendo os seus efeitos dependentes do tipo de uso que dela fosse feito), mas hoje, com lideranças tecnológicas na esfera da comunicação a declararem activa e militantemente a sua filiação e a desencadearem combates políticos e ideológicos a coisa muda de figura. É aqui que os Estados nacionais e as instituições internacionais devem intervir estabelecendo linhas vermelhas que estes poderes supranacionais, sobretudo estes, não podem ultrapassar. Porque, em boa verdade, estamos perante uma terceira “constituency”, depois da financeira e da (original) do cidadão contribuinte. E enquanto a financeira determina programas de governo (veja-se o caso de Portugal e da troika), esta entra directamente na delicada área da construção do consenso (veja-se o caso da eleição de Trump e do BREXIT, em 2016). Com Musk, a coisa até não parece ser difícil de gerir pois o homem quando lhe tocam nos negócios parece acomodar-se de imediato, como já aconteceu com vários países. Mas que é caso para se reflectir com seriedade sobre o assunto, lá isso é.

2.

Começou na segunda-feira e termina na quinta, com o discurso de Kamala Harris,  a Convenção do Partido Democrata, em Chicago, já na era pós-Biden, com Kamala Harris a liderar o processo eleitoral, nas mais recentes sondagens, com mais 3 ou 4 pontos do que Trump, “o esquisito”, agora em sérias dificuldades, depois da atmosfera de vitória que se instalou depois do debate com Biden. Há uma característica na sua presença no espaço público muito interessante e que contrasta com a atitude de Trump, não só “o esquisito”, mas também o zangado – a alegria que ela transmite, ancorada na figura de uma mulher bonita, decidida e que respira optimismo. Não sei se os quatro combates (alimentação, saúde, habitação e crianças) que anunciou no recente discurso programático convencerão os americanos, mas o que parece é que a personagem está a seduzi-los. Sabe-se que é na formação do colégio eleitoral que está o segredo da vitória, não bastando, pois, ter mais votos (a senhora Clinton teve mais cerca de 3 milhões de votos do que Trump e não ganhou a Presidência), mas o que se anuncia é que, mesmo nos swing states (Michigan, Pennsylvania, Winsconsin, North Carolina,  Georgia, Arizona, Nevada, os referidos pelo W. Post), Kamala Harris está a crescer eleitoralmente de forma muito expressiva (“Harris has gained ground in most if not all those swing states since Biden left race”, W. Post, 18.08.24, p. 12). Talvez seja desta que os USA possam vir a ter, pela primeira vez, uma mulher na Presidência. Para os difíceis equilíbrios internacionais em que vivemos a sua eleição seria menos problemática do que a de Trump, além de democraticamente muito mais salutar. Mas muita água ainda correrá sob as pontes.

3.

Em França, no processo de formação do novo governo, estamos a assistir a algo que, para mim, é incompreensível. A Nova Frente Popular (NFP), o bloco político vencedor, a reivindicar a liderança do governo e a propor publicamente um nome para PM, em vez de negociar com o Ensemble, para que, à semelhança do que aconteceu na segunda volta das eleições, das negociações resultasse, sim, um nome aceite pelas partes. Por uma razão: a maioria dos deputados de ambos os blocos foi eleita porque o parceiro de acordo retirou o seu candidato para que o que estava em melhores condições de vencer pudesse derrotar o candidato do Rassemblement Nacional (RN). Foi, como se sabe, vistos os resultados da primeira volta, a dialéctica que mandou para a terceira posição o RN, apesar de este ter obtido mais de três milhões de votos sobre o vencedor. Cada bloco político, NFP e Ensemble, deve a eleição da maior parte dos seus deputados a esses acordos de desistência. Mandaria, pois a lógica, que fosse essa dialéctica a determinar quem seria o novo chefe do governo e não exclusivamente o resultado obtido e o programa apresentado pelo bloco vencedor aos eleitores. Mas não. E por isso parece estar dificultado o processo de formação do governo e, talvez, a eleição de um candidato presidencial não radical de direita, em 2027. Se a emergência democrática valeu para a eleição dos deputados deveria valer também para a indigitação do PM e para acordos a estabelecer tendo em vista a eleição presidencial de 2027.

Já tinha escrito esta nota quando, ontem, li, no jornal “Público”, a notícia da ameaça do inefável Mélenchon (e outras luminárias, o par Bompard&Panot e a senhora Trouvé) de que, baseando-se no artigo 68.º da Constituição, promoveria a destituição do Presidente (“la proposition lunaire faite par LFI”, lê-se no Editorial de hoje do Libération) se não acatasse as suas instruções e não nomeasse a senhora Castets PM. Melhor é impossível: o senhor Mélenchon nomeia o PM e destitui o PR. Afinal, ele é o monarca absoluto de França e ninguém sabia. A senhora Castets (e as outras forças políticas do NFP) evidentemente não aprovou a declaração do senhor Mélenchon (veja-se a entrevista que deu ao Libération de hoje, 21.08), que ficou a falar sozinho, com os seus correligionários.

4.

Na Venezuela está estabelecida definitivamente uma ditadura: a de Nicolas Maduro e das Forças Armadas. O ónus da prova da vitória de Maduro cabe ao poder estabelecido, ao Estado venezuelano, e não à oposição. Ora a prova da vitória não foi apresentada, tendo, todavia, uma consistente prova em sentido contrário sido apresentada pela oposição. A que acrescem investigações de várias entidades internacionais credíveis, como, por exemplo, o Washington Post, entre outras, que dão a vitória a Edmundo González por cerca de 66% dos votos expressos. Isto seria o suficiente para não reconhecer a vitória de Maduro, que só se mantém no poder porque é apoiado pelas forças armadas. Aliás, o que mais parece é que Maduro seja simplesmente a máscara de um poder detido realmente pelos inúmeros generais do regime. Dois mil, ao que parece (“La Razón”, “La Vanguardia”, referindo uma informação do almirante Craig Faller, Chefe do Comando Sul dos USA). Portanto, o regime de Maduro só cairá em dois casos: ou os generais consideram que a farsa já foi longe demais e que é necessário mudar de aparência (mudar alguma coisa – por exemplo, Maduro – para que tudo fique na mesma, seguindo a lição do transformismo) ou, então, os oficiais intermédios tomam conta da situação, independentemente de qual seja a vontade dos inúmeros generais de serviço. Algo parecido ao que, por obra dos capitães de Abril, aconteceu em Portugal, com a famosa “brigada do reumático”.

5.

Em Espanha agudiza-se a crise provocada por denúncias do VOX e de organizações derivadas, por exemplo de “Manos Limpias”, contra a mulher do PM Pedro Sánchez. Quem tem seguido o processo verifica, sem margem para qualquer dúvida, que o juiz Peinado anda em roda livre ao serviço de uma estratégia política (de direita e, sobretudo, de extrema-direita) contra o PSOE e contra Sánchez. E o PP do senhor Feijóo está a alinhar com esta estratégia, reforçando-a, sem reservas. Agora é a número dois do PP, Cuca Gamarra, que anuncia uma nova ofensiva no mesmo sentido contra Sánchez. Estamos também aqui a assistir ao que vem sendo designado como “lawfare”. Só que agora é já também o PSOE a declarar que se isto não pára passará também ele a promover investigações sobre a família de Feijóo, na Galiza, e sobre o companheiro da senhora Ayuso. Uma escalada do “lawfare”, o uso da justiça, qual nova “arma branca”, para fins políticos. Quem perde é a democracia espanhola e quem ganha é o VOX. Depois admiram-se que a extrema-direita esteja a ganhar terreno eleitoral nas democracias da União Europeia. Não me parece que a liderança do senhor Feijóo esteja a demonstrar grande sentido de responsabilidade democrática. Sabemos que a questão da Catalunha tem pesado muito no agravamento da situação, mas sabemos também como o independentismo foi alimentado pelo PP de Mariano Rajoy ao enviar para o Tribunal Constitucional o Estatuto da Catalunha, que tinha sido aprovado pelas Cortes, sabendo que seria reprovado. Por mais criticável que seja a posição de Sánchez para sobreviver enquanto PM, a verdade é que o PSOE, que defende a unidade de Espanha, não só ganhou as eleições na Catalunha como conseguiu pôr um socialista, Salvador Illa, como Presidente da Generalitat, enfraquecendo politicamente o Junts e o seu fugitivo líder. Ou seja, a acção política de Sánchez resultou muito positivamente. Avançou na resolução política do problema da Catalunha sem o reduzir a um processo de natureza puramente penal, a ser resolvido com a força.

6.

Fiquei estupefacto com o anúncio de Luís Montenegro de que, em Outubro, vai dar um “bónus” de 100, 150 ou 200 euros (não repetível, até prova em contrário) aos pensionistas que auferem uma pensão até um pouco mais de 1500 euros. Estupefacto porquê? Já aqui tenho criticado a ideia de um “Estado-Caritas”, a propósito de outros “bónus” atribuídos aos “pobrezinhos”, porque o Estado Social é outra coisa, ou seja, assenta na ideia de direitos sociais de cidadania. Não de favores feitos por quem está no poder. Pois este “bónus” não passa de uma esmola do governo aos cidadãos que auferem aquele tipo de pensão. Uma esmola sem qualquer justificação. Quando o governo de António Costa atribuiu a meia pensão houve, pelo menos, uma justificação: o aumento das pensões para o ano seguinte não iria obedecer ao que a lei previa, portanto, haveria que compensar os pensionistas. Tantas foram as críticas, e justas, que esta decisão, a de não cumprir a lei, acabaria por não se verificar. Entretanto, a meia pensão ficou atribuída, pois já tinha sido processada. Agora nem sequer isto se verifica, pois não se conhece justificação que tenha sido avançada, a não ser a da solidariedade com os que têm pensões mais baixas. Algo verdadeiramente iníquo e indigno, que devia ser recusado pela generalidade dos cidadãos, em nome da decência e da dignidade. A solidariedade do Estado deve acontecer, sim, por um lado, com um Estado Social que funcione eficazmente, e, por outro, com a equidade fiscal e o fim do esbulho que é aplicado aos que pagam impostos directos (IRS), isto é, a cerca de metade dos agregados fiscais. Aqui nem deveria ser aplicada a crítica de eleitoralismo (ainda que seja também isso), mas sim uma crítica mais forte: a da indignidade de o Estado andar a distribuir esmolas aos “pobrezinhos. O cidadão que deixa de ser cidadão titular de direitos para passar a ser “pedinte” à porta de um Estado rico e gordo… mas (precariamente) solidário. Da pior maneira. Os aprendizes de feiticeiro (de turno) reinventam-se no admirável mundo do deslumbramento.

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Poesia-Pintura

CIAO, MAMMA, TI MANDO UN BACIO

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Mamma”
Original de minha autoria
18 de Agosto de 2024

Mãe2024_05

“Mamma”. JAS. 08-2024

POEMA - "CIAO, MAMMA, TI MANDO UN BACIO"
EU GOSTO
De viajar
Em palavras,
Gosto mesmo
De palavrar
E há números
Que são palavras
Que eu gosto
De cantar.

NÃO FALO
Do número três
Ou do sete,
Que são,
Para vidas
imperfeitas,
Sempre perfeitos
Demais,
Falo de vidas
Contadas
Com palavras
Desenhadas
De que os números
São sinais.

EU TENHO NÚMEROS
Tão cheios
De palavras
Com sentido
Que são vida
 Em movimento,
Sinais de tempo
Vivido,
Já levado
Pelo vento...

HÁ NÚMEROS
Que são palavras
E outros que
São flores,
Há números
Que são
Como beijos
E outros
Pintados a cores
Que evocam
Um passado
De que fomos
Escultores.

E HÁ O NÚMERO
De hoje
Que traz consigo
Um nome,
 Um poema
Que me fala,
Um abraço
Que me aquece,
Um regalo que
Me embala,
Uma imagem
De ternura
Que me sorri
E me cura
Das asperezas
Da vida,
Âncora bela
E segura.

É O NÚMERO
Que traz consigo
O nome
Que me conta
E me sustém,
Nome
Que guardo
Sempre comigo...
.......
O nome
De minha Mãe.

Mãe2024_05Rec

Artigo

A DOR E O SUBLIME

Ensaios sobre a Arte

De  João de Almeida Santos

CapaD&S


A PARTIR DE HOJE, 14.08.2024, por decisão da Editora, e porque a versão on paper se encontra esgotada, ficará em ACESSO LIVRE, aqui e no site da Associação Cultural Azarujinha-ACA, a versão digital deste livro. O acesso, na secção Ensaios (Ensaio 42):

https://joaodealmeidasantos.com/wp-content/uploads/2024/08/a-dor-e-o-sublime_online07-2023final.pdf

João de Almeida Santos
A DOR E O SUBLIME
Ensaios sobre a Arte
(S. João do Estoril,
ACA Edições, 2023, 232 pág.s)
1.

Este livro reúne ensaios sobre a arte, escritos sobretudo com o objectivo de confrontar a minha própria experiência estética, enquanto produtor de arte (romance, poesia, pintura), com o que grandes nomes da arte e da estética, mas sobretudo poetas, produziram ou escreveram. Verificar se neles se encontram as clivagens essenciais com que me confronto na minha experiência. Dominam, pois, como se compreende, as reflexões sobre a poesia, que, afinal, constituem o núcleo essencial deste livro. Escolhi, pois, os meus interlocutores pela sua dupla condição de poetas e pensadores ou críticos (como Eliot, Poe ou Baudelaire, por exemplo), levando muito a sério essa afirmação do Edgar Allan Poe, em “Carta a B”, que sugere que as melhores críticas de poesia são as que são feitas precisamente por poetas:

“Tem-se dito que uma boa crítica a um poema pode ser escrita por alguém que não seja ele próprio poeta. Sinto que isto é falso, de acordo com a sua e a minha ideia de poesia – quanto menos poético for o crítico, menos justa será a crítica e vice-versa (Poe, 2016: 5; Poe, 1903)”.

Estas palavras valem o que valem, que não é pouco, ditas por quem as diz, mas são sugestivas e correspondem, no essencial, ao que eu próprio sinto e penso. Ou seja, tratando-se de uma arte muito especial, normalmente activada por intensas exigências interiores, talvez mesmo por imperativos existenciais, em virtude de um forte sentimento de dor, por melancolia, por perda ou por intensa nostalgia, ela solicita, na tentativa de compreensão e interpretação, algo que se assemelha a empatia, ao que os alemães designam por Einfühlung ou, então, no seu significado grego original, a pathein ou páthos, palavras que significam sentir/sentimento, doer/dor, comover/comoção. Só quem experimentou o estado de comoção (poética) está em condições de compreender em profundidade a poesia, ou seja, os poetas, por mais que eles procurem traduzir em linguagem universal o que, de certo modo, é inefável, a sua própria experiência interior. Eles convertem, como diz Bernardo Soares, os seus “sentimentos num sentimento humano típico” (Pessoa, 2015: 230) para que possam ser compreendidos, suscitando partilha estética. O inefável pode ser poeticamente convertido através desta operação, mas, mesmo assim, são os poetas aqueles que melhor podem aceder, nem que seja por processo analógico, ao que o poeta sente na sua experiência interior. Eles experimentam a Einfühlung em profundidade e por isso podem aceder a essa experiência originária, seminal. Uma experiência de delicado e incompleto acesso, portanto. Não basta, todavia, aos que procuram aceder ao discurso poético que experimentem eles próprios comoção ou dor. É preciso estar em condições de as metabolizar poeticamente. É esta a condição do ser-poeta. Porque “dizer-se é sobreviver”, como dizia o Bernardo Soares no Livro do Desassossego (2015: 55). Mas esta é também, em parte, a condição dos amantes de poesia. Sim, dos amantes, para retomar a célebre frase de García Lorca: “la poesía no quiere adeptos, quiere amantes”. Ser “adepto” não garante, pois, autêntico acesso à experiência poética. É preciso amá-la e sofrê-la. Senti-la por dentro, transportando-se para o interior das estrofes, experimentar o sentido e sentir a vibração da toada que se desenrola verso após verso. Esta é a sua diferença, talvez mesmo uma diferença ontológica, a que a coloca num patamar muito especial entre as artes e a distingue da mera experiência do sentir. Há um “quid” na experiência poética que não se compadece com uma aproximação meramente ornamental e exclusivamente física. A poesia não tem exterior, evolui de dentro para dentro sem concessões ao artifício ou à pura fisicidade.  Para o poeta, mas também para o amante de poesia.

2.

Só no caso de Hermann Hesse me ative exclusivamente à sua poesia, embora tivesse sempre presente no meu espírito a famosa viagem existencial de Siddharta. Na verdade, a exigência radical do discurso poético levou-me a revisitar poetas de topo mundial, sim, mas aqueles que foram também, ao mesmo tempo, críticos literários de igual e relevantíssima dimensão. Basta pensar em Eliot ou em Baudelaire para se compreender o que pretendo significar. De certo modo, a minha própria experiência serviu-me de suporte e de guia no diálogo interessado, ou mesmo interesseiro, com os grandes poetas. Esta atitude não é, pois, uma atitude de natureza metodológica ou simplesmente teórica. Ela também corresponde àquilo que eu próprio, na minha prática, encontro como génese da arte – um imperativo, uma exigência existencial que leva o artista a criar. Não um “amusement”, um sofisticado jogo de palavras ou um exercício académico, mas uma necessidade incontornável, como a de respirar. Seguramente não um exibicionismo linguístico que cobre pobreza semântica. Poesia sem alma. Arte sem alma. Não, porque “dizer-se é sobreviver”, repito, com o Bernardo Soares. Por isso, talvez surja mesmo como uma solução para a própria vida, um acto sublime de sobrevivência. O Giovanni Verga escreveu um romance “Una Peccatrice”, onde um dos personagens se cura da paixão avassaladora pela arte, mas morre-lhe a arte quando sacia fisicamente a paixão, pondo-lhe fim. A impossibilidade alimenta-lhe o estro, mas quando o sucesso na arte torna o impossível possível até à consumação final, também aí o estro morre. A arte precisa sempre de ocorrer em intervalo.

3.

Se assim for, o despertar poético é como a descoberta que se foi tocado pela graça, sem predestinação, mas como dom recebido na sequência de um acontecimento que devastou a alma do poeta e o pôs em estremecimento e em levitação, através da palavra e da sua melodia. Privação sofrida, levitação desejada, disse o Italo Calvino nas suas Lezioni Americane. Tristeza, melancolia, perda ou privação, algo que o toca muito profundamente e o leva a criar, para se salvar, para se redimir. Uma dádiva de sofrimento concedida pelos deuses. Com uma prova de fogo: não se deixar abater nem dominar pela dor, mas assumi-la, transfigurá-la e metabolizá-la poeticamente para se elevar ao sublime. Mas, cuidado, diria o Bernardo Soares, não tocar na realidade sequer com a ponta dos dedos, porque pode acontecer o que aconteceu ao Pietro Brusio de Verga. A felicidade mundana parece não constar dos anais da poesia, poderia mesmo dizer, com um pouco da necessária radicalidade. Uma salvação que é mais transfiguração do que fuga, ou seja, uma sofisticada metabolização que incorpora sentimentos já transfigurados – uma feliz melancolia, por exemplo.

4.

A maior parte dos capítulos é dedicada à poesia, estando a pintura, a música ou a dança em segundo plano. Também aqui não foi uma escolha puramente intelectual, mas um imperativo que decorreu da minha própria experiência de oito anos consecutivos de intensa produção poética. E não só, mas também pela importância que reconheço nela, na poesia, relativamente ao conjunto das artes. No livro dou conta desta posição e explico as razões da centralidade que lhe atribuo, em particular na sua relação com a música. Essa sua posição intermédia entre a dimensão conceptual e o sentimento, equivalente à que o sentimento ocupa na relação entre a dimensão fisiológica e corpórea do ser humano e a sua consciência, muito bem esclarecida por António Damásio no livro Sentir & Saber. A Caminho da Consciência (Damásio, 2020). O poder performativo da poesia e, por isso redentor, substitutivo, salvífico, resulta desta sua posição como ponto de contacto, como ponte entre o sentimento e a consciência, construída por uma materialidade sonora que acentua e reforça a sua dimensão sensível, sensorial. Uma arte que, todavia, não se eleva em fuga para o território irreal da pureza conceptual, para a pura esfera ideal ou para a crença, a fé incondicionada, mas que permanece no terreno do sentimento, da emoção, da melancolia, da nostalgia, da perda, da ausência sofrida, do amor, do desespero, submetidos a um processo de transfiguração e de metabolização para os elevar ao território do sublime. “Cristallisation”, dizia Stendhal, em “ De l’Amour”, a propósito do amor, no mesmo sentido. Sublimação, elevação ao sublime. A poesia permanece no terreno do sensível, do sensorial, ajudada pela sonoridade rimática, pelo poder envolvente da música que a integra como sua componente interna. É a sonoridade poética que atinge de forma imediata a sensibilidade do próprio poeta ou de quem frui um poema. A poesia funciona como se se tratasse de uma ponte de ligação entre as palavras, com a sua carga semântica e a sua sonoridade melódica, a sensibilidade e o real. O primeiro visado pelo poema é sempre o próprio poeta. Se assim não fosse a redenção poética nunca aconteceria.

5.

Encontrará no livro inúmeras páginas sobre grandes vultos da literatura mundial, como T.S. Eliot, Emil Cioran, Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Hermann Hesse, Fernando Pessoa, Pierre Jean Jouve, Italo Calvino. Mas encontrará também reflexões mais amplas sobre a arte ou sobre a cultura, por exemplo, sobre Friedrich Nietzsche (sobretudo sobre “A Origem da Tragédia” ou “Ecce Homo”) ou sobre Theodor Adorno e o seu escrito sobre as indústrias culturais, incluído na Dialéctica do Iluminismo, mas também sobre Pina Bausch e o Tanztheater, com um enquadramento global e histórico sobre a dança, desde os seus primórdios.

6.

Trata-se de um livro sobre a arte guiado por uma posição de fundo que encontrará confirmada nos diálogos com os autores-referência escolhidos. E essa posição de fundo assume a arte como dimensão ontológica, não como mero exercício profissional, como técnica de “amusement”, como virtuosismo cultural ou como especialidade académica. É nesta posição que julgo encontrar a diferença fundamental entre a grande arte, a grande literatura, a grande poesia e as produções que mais não visam do que o consumo imediato em posição de  “distracção”, como diria Adorno, referindo-se às indústrias culturais. Não, do que aqui se trata é de arte entendida como imperativo existencial, como procura do humano lá nas profundezas da alma com os sofisticados instrumentos de que ela dispõe e, no essencial, com as categorias que o Italo Calvino propõe para o milénio que já começou. A poesia marca uma espécie de diferença ontológica relativamente à experiência do sentir, ao sentimento.

7.

Este livro também desenvolve e prolonga a reflexão que propus na Introdução ao meu livro de poesia (Sobre a Obra de Arte”), bem como as respostas aos meus leitores digitais (”Reflexões em torno dos Poemas”), ambas nele incluídas (Poesia, Lisboa, Buy The Book, 2021, pp. 13-39 e 351-420). A Dor e o Sublime é como que a outra face, em prosa, das minhas concretas propostas de poesia, de pintura e de romance (em Via dei Portoghesi, Lisboa, Parsifal, 2019). Um livro que poderá, pois, ser melhor compreendido por quem visitar o que há anos venho propondo publicamente, em joaodealmeidasantos.com, seja poesia ou pintura, ou mesmo no referido romance, como resultado da minha própria, sofrida e levitada, relação estética com a vida. Seguir-se-á, já neste mês de Agosto, um outro livro exclusivamente dedicado à poesia: FRAGMENTOS – Para um discurso sobre a Poesia, um conjunto de 200 fragmentos que constituem uma reelaboração das minhas respostas aos comentários que os meus leitores vão fazendo regularmente aos poemas que publico todos os domingos no meu site (joaodealmeidasantos.com).

NOTA

QUERO aqui deixar um agradecimento à ACA Edições pela honra que me deu em ser eu a iniciar a sua actividade editorial com este livro. Outros já se seguiram, como Política e Ideologia na Era do Algoritmo, 2024, e agora, neste mês de Agosto, como disse, FRAGMENTOS – Para um Discurso sobre a Poesia, 2024.

REFERÊNCIAS
CALVINO, I. (1988). Lezioni Americane. 
Milano: Garzanti.

DAMÁSIO, A. (2018). Sentir & Saber. 
Lisboa: Círculo de Leitores.

PESSOA, F. (2015). Livro do Desassossego. 
Porto: Assírio&Alvim.

POE, E. A. (2016). Poética. 
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

SANTOS, J. A. (2021). Poesia. 
Lisboa: Buy The Book.

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Poesia-Pintura

O ECO DO SILÊNCIO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “O Eco do Silêncio”,
 JAS 2023 (71x82, em papel de algodão,
310gr, e verniz Hahnemuehle; Artglass 
AR70 em moldura de madeira).
Original de minha autoria. 
Agosto de 2024.

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“O Eco do Silêncio”. JAS 2023 – 71×82, em papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle; Artglass AR70 em moldura de madeira.

POEMA – “O ECO DO SILÊNCIO”

AS PALAVRAS
São as asas
Do silêncio,
Dizia o poeta,
E bem,
Elas voam
Mas só voltam
Se seu eco
Voltar também.

O SILÊNCIO
Só tem eco
Se o poeta
Lho der
E o eco
Será sempre
Como um beijo
De mulher.

VÃO AS PALAVRAS,
Vem o eco
E o silêncio
Tem sentido,
Com palavras
Pinta seu rosto
Em perfil
Bem definido.

ASSIM É A FANTASIA
De poeta
Encantado,
A musa
Fica em silêncio
E ele
Em palavras
Enlaçado.

SÓ AS PALAVRAS
Resgatam
Da profunda
Melancolia,
Elas vão
E logo voltam
Como eco
Dessa pauta
Que se chama
Poesia.

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Artigo

FRAGMENTOS

PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA
(S. João do Estoril, ACA Edições, 2024; 217 pág.s)

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EPÍLOGO

TERMINO O ÚLTIMO CAPÍTULO (XV) deste livro com um curto fragmento sobre O Tempo Poético. Tempo diferente do tempo cronológico, o tempo espacializado,  aquele que assumimos quando, como diz Henri Begson, “nous nous servons de l’espace pour mesurer e symboliser le temps”.  Tempo diferente porque não subordinado à clássica métrica, à divisão convencional do tempo, à sua medição através do relógio. E, por isso, sou tentado a subscrever os versos de W. H. Auden sobre o tempo: “And all our intuitions mock / The formal logic of the clock” (The Collected Poetry of W. H. Auden, 1945). Tempo subjectivo, pois.

1.

Há uma palavra francesa que se aplica a este tempo com propriedade: “durée”. Interessa-me, pois, como a define Bergson, no seu ensaio Durée et Simultanéité, de 1922, no III capítulo sobre “La Nature du Temps”:

la durée est essentiellement une continuation de ce qui n’est plus dans ce qui est” ou “c’est une mémoire intérieure au changement lui-même, mémoire qui prolonge l’avant dans l’après” (Paris, Félix Alcan, 2018).

Tempo vivido como fluxo. Continuação do que já não é no que é, através da memória, que acciona a mudança, a transição. A “durée” é esta transição.  Que melhor definição do que esta para o tempo poético? O tempo subjectivo é o tempo da arte e, sobretudo, o tempo da poesia. Neste livro, Fragmentos, e na minha poesia é permanente esta dinâmica da “durée” bergsoniana em acção. É como que a matriz originária da minha poesia. Do tempo da poesia. Que encontra no instante criativo a sua máxima expressão. Poesia é “durée”. E esta é o tempo da arte.

2.

Os gregos tinham a palavra chronos para designar o tempo quantitativo e extensivo. Mas tinham também a palavra kairós para designar um tempo diferente: tempo como o momento oportuno, referido, por exemplo, por Aristóteles na “Ética a Nicómaco”, falando do bem (de agathón, no texto grego “tagathòn”), das múltiplas formas como é dito, sendo uma delas o kairós (1096a, 26-27 e 32). Este tempo, designado pela palavra kairós, é o que mais se aproxima do tempo bergsoniano. O kairós. como “instante eterno”:

surge do encontro entre o passado e o futuro (…), o tempo da recordação por excelência, mas também o tempo onde há espaço para o novo”, tempo qualitativo (Joke Hermsen, Melancolia em Tempos de Perturbação, Lisboa, Quetzal, 2022, pág.s 76-77).

Mas havia ainda, no grego, outra palavra: (tò) eksaíphnês, apreensão instantânea do tempo, ou mesmo raio instantâneo e fulminante do tempo. Tempo subjectivo. O tempo da criação. A riqueza da língua e da cultura gregas a ajudar-nos nesta tentativa de aproximação entre tempo e arte. O tempo devolvido à subjectividade do artista, o passado que, accionado pela memória, se prolonga no futuro, na intuição criativa, no instante luminoso que funde passado e futuro no sublime. Ékstasis. O milagre da poesia. O poder de voo do veículo poético na “durée”, no tempo vivido, no tempo da consciência.

3.

Ao longo dos duzentos fragmentos fui viajando com a palavra tempo, sempre neste sentido, que é o que realmente acontece na poesia. Quando o poeta diz que a poesia lhe acontece é a este tempo que se está a referir. E não só na poesia. Em geral, na arte. Ela, a poesia, de facto, permite reverter o tempo, fazendo do passado futuro e do futuro passado na convergência de um tempo de intervalo – o do instante criativo. O que acontece no interior de uma dinâmica que tem no seu centro o instante, a intuição, o ponto de contacto entre o temporal e o intemporal, entre o individual e o universal, entre o contingente e o eterno. A poesia é, assim, uma arte de intersecção. E o seu tempo também o é. O desenvolvimento é tão-só a sua componente racional, apolínea. Mas a arte é filha do páthos.

4.

Trata-se de uma dinâmica que ganha sentido numa arte onde a palavra é a expressão máxima da liberdade, o veículo, a asa do tempo, a ponto de ter a pretensão de ela própria se transformar em acção efectiva, estímulo da sensibilidade, motor do sentimento e ponto de contacto entre o contingente e o eterno, entre o finito e o infinito, entre o eu e o outro, como muito bem diz Joke Hermsen, referindo a poetisa polaca Szymborska. Só mesmo por isso o poeta Pablo Neruda poderia ter dito que “la palabra es un ala del silencio”. Se as asas servem para voar, também servem para transportar o silêncio. E o veículo poético, tendo, também ele, as palavras como asas, poderá transportar o silêncio. E é por isso que a palavra poética, no seu mistério, no seu dizer velado, pode transportar o indizível, o inefável. A poesia é um ponto de intersecção entre o silêncio e o murmúrio, o sussurro. E é por isso que a verdade em poesia só pode ser alêtheia, desvelamento, como se o silêncio, através da palavra, como seu eco, e nada mais, se fosse levemente revelando. Processo a que só os “iniciados” podem, nos rituais, aceder, mas sem nunca esgotar o mistério. O murmúrio poético é o eco do silêncio. É assim que o silêncio é comunicado através da poesia: como eco.

5.

A poesia é como que a expressão de uma dialéctica entre o tempo remoto da memória, com o seu referente temporal e circunstancial, e o tempo do desejo, animado pela vontade. Desejo naturalmente referido a esse tempo remoto. E quando ela é esteticamente conseguida até pode representar a “vitória” do desejo sobre o facto, do sonho sobre a realidade, do futuro sobre o passado. E, então, o poeta tem direito aos merecidos louros da “vitória”. Em Delfos, sob os auspícios de Apolo.

6.

A fantasia poética tem um tempo próprio, o da intuição, o do instante oportuno que regista as “intensities” e lhes dá forma pela palavra. Ela trabalha no interior do fluxo kairótico, da “durée”. Daí a poesia ser uma arte tendencialmente minimalista. Na sua cumplicidade com o silêncio (a palavra poética é uma sua asa) e o movimento (que nunca quer parar). A pretensão de dizer tudo (como o silêncio) com quase nada (a palavra poética). Onde numa palavra cabe o mundo. Num instante, a eternidade e o seu discurso, o do silêncio. O seu é um tempo incondicionado, ainda que possua raízes temporais no passado. A poesia resulta de intensities registadas instantaneamente, sem mediação cognitiva. Como o amor. Um registo puro de sensibilidade. E é um tempo incondicionado porque se exprime como absoluto no instante, que não é passado nem futuro porque acontece num intervalo, numa fronteira, numa terra de ninguém. Que só o poeta pode habitar. Porque toca a eternidade sem sair da sua incontornável contingência. A poesia agarra o tempo (o passado) no instante criativo e fixa-o em palavras numa pauta poética para ulterior execução… em surdina. Ou em silêncio. De si para si. Em diálogo com a alma. Sinfonia para almas sensíveis.

7.

Quando a “maquinaria” poética entra em acção, por razões que a razão pode mesmo desconhecer, exactamente como o amor, as palavras são como que submetidas a um processo de livre associação, sem filtros, espontâneo, natural. Como se se tratasse de uma sessão de psicanálise procurando libertar o inconsciente de forças obscuras que oprimem a sensibilidade à flor da pele. Só depois a “maquinaria” intervém com todo o seu arsenal, como se se tratasse de compor uma sinfonia, dando expressão formal a essas pulsões e libertando o poeta. Pauta poética em busca da forma e do sentido aparentemente perdido, mas activo, nos confins do tempo e da consciência. A recriação como acto de sobrevivência e de projecção do tempo no tempo da arte, a “durée”. É no instante oportuno que se dá a recriação, a transição entre o passado e o futuro sob forma de fluxo no grande substracto ( hypokeímenon) que é a memória, locus do tempo vivido. Não são as musas filhas de Mnemosyne?

8.

Evidentemente que a poesia tem de possuir gravitas, densidade existencial, porque é um estado de alma ou mesmo um grito de alma. Um denso e cifrado “desabafo” espiritual. E é claro que o espírito intervém, mas ao serviço da alma. O filósofo diria que resulta de um pacto entre Diónysos e Apóllôn, pois uma coisa é a alma, outra é o espírito. Na primeira, manifesta-se exuberantemente a sensibilidade e a sensualidade; no segundo, o intelecto e a razão. Na poesia coexistem ambos, mas primacial é a alma, onde acontece a inscrição originária da sensibilidade e da sensualidade. Quando se fala de virtuosismo poético o que se está a dizer é que lhe falta, a essa poesia, chão, húmus, dor, sentimento, páthos. É puro tecnicismo desvitalizado e existencialmente neutro. A poesia assim não sobrevive, a não ser como simulacro. O excesso de espírito na poesia equivale a defeito de alma, é verdade, mas também o excesso de alma pode não resultar em poesia, em arte, em beleza.

9.

O Nietzsche reconhecia na tragédia grega a harmonia perfeita entre o “espírito dionisíaco” e o “espírito apolíneo”, a perfeição na arte. O sentimento e a razão. Dois movimentos que acontecem em tempos diferentes (um, na génese, o outro, na forma), mas que devem funcionar em harmonia, sem que um exceda o outro. Melhor: lá onde um incorpora o outro na mesma medida, reciprocamente. E, depois, a música interna da poesia ajuda a este equilíbrio porque como pauta (espírito) ela actua directamente sobre a sensibilidade (alma). Sentido com poder sensorial. E é esta a razão que me leva a considerar a musicalidade de um poema absolutamente indispensável, assuma ela a forma de rima externa ou explícita ou a de rima interna. É a toada melódica que, como fluxo estético-expressivo, confere força performativa à poesia, já que, glosando o Pierre Jean Jouve de Apologie du Poète (Cognac, Le temps qu’il fait, 1982, pág. 52), é sobretudo ela que permite que a poesia toque a alma daquele a quem é dirigida.

10.

Trata-se, pois, de um território muito delicado, mas também muito complexo, onde convergem várias dinâmicas em andamentos diferentes, tudo em perfeita harmonia para um eficaz efeito sobre a fruição esteticamente comprometida, ou seja, para uma partilha integral da beleza proposta à sensibilidade de quem por ela se sente atraída. Foi esta complexidade, esta delicadeza e esta diversidade que procurei mostrar nestes duzentos fragmentos. JAS@08-2024

Livros meus publicados por ACA Edições:

* A Dor e o Sublime. 
Ensaios sobre a Arte (2023)
* Política e Ideologia 
na Era do Algoritmo (2024)
* Fragmentos. 
Para um Discurso sobre a Poesia (2024)

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Poesia-Pintura

DIÁLOGO IMPERFEITO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “La Cortigiana”, JAS 
2023 - 71x88, papel de algodão e 
 verniz Hahnemuehle, Artglass AR70
em moldura de madeira.
Original de minha autoria.
Agosto de 2024.

La Cortigiana2023

“La Cortigiana”. Jas, 2023 (71×88, em papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Arglass AR70 em moldura de madeira). Agosto de 2024.

POEMA – “DIÁLOGO IMPERFEITO”

PERGUNTA
O poeta
À musa:
Não acreditas
Em mim,
Pois não?
Tanto de mim
Neste excesso
De palavras
Para viajar
No tempo
Ao sabor
Da fantasia
E de uma doce
Ilusão...

PARECE
Um jogo,
Não é?
Mas é vida,
É sentida
E pensada,
É em palavras
Tecida
E em palavras
Consumada.

 NO FIM,
É o verbo...
.........
E quando
Te falo assim,
Com palavras
Arrumadas
Num diálogo
Imperfeito,
Volto
A passar
Por ti,
A olhar-te
Sem te ver,
Por fora,
Mas por dentro,
Na exactidão
Cristalina
Do momento.

OLHAR
Da alma,
Digo eu,
Sem ter
A certeza
Que verei
Com nitidez
A tua,
Que o tempo
Há muito
Embaciou...

DE NOVO
Te verei
Como nas
Despedidas
Ao entardecer,
Que foram
Tantas
E tão sentidas,
A doer...

PERCURSO
De vida
Inesperado
Nas margens
Do destino
Pelos deuses
Inexoravelmente
Traçado.

POR ISSO,
A tua
Será sempre
A imagem
Oracular,
Ritual,
Que sai
Da neblina
Onírica
Dos meus versos
De jogral.

MulherLeo2024Luz