“FRAGMENTOS – PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA”
de João de Almeida Santos (S. João do Estoril, ACA Edições, 2025, 228 páginas)
APRESENTAÇÃO
Centro Cultural de Cascais 19.09.2025
Por Salvato Teles de Menezes*
FRAGMENTOS é um livro dividido em 15 secções, a que o autor chama capítulos, com títulos tão sugestivos quanto díspares, como “O Pleno e o Vazio”, “A Saudade, o Poeta e a Musa”, “Amar”, “Paisagens”, “O Loureiro e a Poesia” e “Templo e Melancolia”, entre outros, contendo cada uma um incerto número de poemas, de 9 a 24, se a minha álgebra ainda funciona, versando temas que acomodam divagações sobre objectos animados e inanimados, situações, conceitos, paisagens, sensações, sentimentos, pulsões, a que entendeu chamar sábia e gregamente “fragmentos”. Não me debruçarei sobre estes aspectos mais textuais, mas não deixarei de dar algumas notas sobre o que o autor chama “processo sinestésico” e a que eu, numa manifestação de ousadia, acrescentarei a noção de Écfrase. E não entrarei em terrenos demasiado textuais por duas razões: a primeira tem que ver com o facto, melhor, os factos de eu acreditar que os consumidores de literatura, em sentido estrito, não são ignaros e também, seguindo o pensamento de Duchamps, se ao artista, ao criador, é exigido tanto esforço e aplicação para construir a sua obra, também ao leitor ou fruidor de qualquer obra de arte deve caber algum trabalho de interpretação e de identificação dos traços técnico-formais que a caracterizam; a segunda, porque não só o livro, que mostra vontade de ser teoria, mas também o prefácio e a réplica aos comentários dos internautas que com o autor dialogam, instam o apresentador a teorizar, sob pena de ficar aquém dessa provocação ou de deixar a ideia de que já se esqueceu dos tempos em que ensinou Teoria da Literatura na sua alma mater. Riscos que o apresentador não quer correr. E permita-se-me uma citação: “Da leitura deste livro resultará um conhecimento mais preciso daquilo que se designa por póetica, neste caso, da minha poética, ou seja, dos elementos estruturais e constantes que integram o núcleo de todos os poemas”: eis uma declaração de JdAS em que, para mim, ressoa aquela bela definição de Novalis:
“Die Poesie ist das echt absolut Reelle. Das ist der Kern meine Philosophie. Je poetischer, je wahrer”,
que, curiosamente, pode ser encontrada num seu livro intitulado Fragmente. Ora, como não quero deixar de tentar responder da melhor maneira que sei e posso a essa convocação, aqui se apresentam algumas considerações que, ainda que possam parecer estar apenas obliquamente relacionadas com o livro, tem tudo, ou pelo menos muito, a ver com ele.
I.
Mas, antes disso, ainda quero dizer deux ou trois choses que je sais sobre as tais Sinestesia e Écfrase, começando por defini-las. A Sinestesia é, então, a fusão de diferentes domínios sensoriais num mesmo enunciado, criando uma percepção híbrida (visão + tacto, audição + paladar etc.), sendo, portanto, uma figura ligada à intensidade da experiência estética, com forte presença na poesia e na prosa lírica, que é o caso vertente.
Por sua vez, a Écfrase, segundo a tradição clássica (de Homero a Filóstrato, passando pela retórica antiga), é a descrição verbal de uma obra visual (um quadro, uma escultura, uma tapeçaria). Dois dos seus mais brilhantes teóricos contemporâneos, James Heffernan e W. J. T. Mitchell, definem-na assim: o primeiro, como a verbalização de uma “representação visual”, e o segundo, que lhe amplia o conceito, como um lugar de intermedialidade, onde palavra e imagem se confrontam, competem e dialogam.
Significa isto que a relação entre os dois conceitos é fecunda e pode ser pensada em três frentes:
a) Dimensão sensorial expandida
A Écfrase, em princípio, parte do visual (uma pintura, uma cena vista), mas muitos textos ecfrásticos recorrem à Sinestesia para ultrapassar a pura visão, conferindo espessura táctil, sonora, olfactiva, gustativa às imagens descritas, podendo isto ser exemplificado com uma pintura descrita não apenas pelo que mostra, mas também pelo “silêncio metálico” que sugere ou pelo “perfume ácido” das cores.
b) Intensificação da presença
Heffernan e Mitchell observam que a Écfrase tende a criar uma “ilusão de presença”, sendo a Sinestesia um dos modos de reforçar essa presença: quanto mais sentidos são convocados, mais a imagem verbal ganha corpo e densidade.
c) Transposição inter-semiótica
Se a Écfrase é já uma transposição de um meio (imagem) para outro (palavra), ou vice-versa (a chamada “écfrase invertida”), a Sinestesia pode ser vista como um paralelo interno: uma transposição entre diferentes registos sensoriais. Assim, a Sinestesia funciona como recurso estilístico que intensifica a operação ecfrástica, tornando a descrição mais vívida e multissensorial.
Em resumo: a Écfrase e a Sinestesia encontram-se na tentativa de transcender os limites da linguagem verbal, aproximando-a da experiência sensorial plena. A Écfrase faz a ponte entre artes (imagem ↔ palavra), enquanto a Sinestesia faz a ponte entre sentidos (visão ↔ tacto, audição, etc.). Ambas operam, portanto, como estratégias de “tradução” e de intensificação do real no texto literário. Aplique-se isto, por exemplo, a: “Este poema e o respectivo quadro (ambos com o mesmo nome ‘A Janela’) até poderiam equivaler à garrettiana janela e à garrettiana Joaninha, como dizia um Amigo, a propósito. E também a um Carlos…” (“A Janela”, p. 123, poema 111); ou a: “Na verdade, a sinestesia é um enlace entre duas artes…” (“Enlace”, p. 131, poema 117).
Este excurso, ou não, feito, passemos então, à teoria, para, como é sugerido pelo autor de Fragmentos, seguir a fórmula de E. A. Poe.
II.
Como a palavra poesia significa etimologicamente criação, não é incorrecto apelidar toda a produção literária de poética. Assim o faz o nosso mestre Alfonso Reyes, o teorizador cujas concepções críticas servem de base ao que vamos enunciar, por certo sem o brilho da sua perspicácia intelectual e da sua prosa elegante e clara. Reyes divide a criação literária pura (poesia) em três funções: drama, romance e lírica. Cada uma destas funções subdivide-se, ainda segundo o mestre mexicano, em géneros, isto é, diferentes tipos de drama, romance ou lírica[1].
Mas a palavra poesia tem ainda outro significado: a maneira da forma literária oposta à prosa. Em geral, pensamos que a prosa é um modo literário relativamente arrítmico e mais apropriado à expressão de ideias, enquanto a chamada poesia é uma forma mais regularmente rítmica e mais adequada à expressão de emoções. Deste modo, à medida que a prosa se torna mais rítmica e se carrega de emoção, consideramo-la mais poética. Sem a presença de um certo «peso» do ritmo, não há efectivamente prosa artística. Entretanto, como a palavra poesia é usada noutro sentido, o de obra em verso, é importante esclarecer que, se bem que o verso seja a maneira “habitual” de certos géneros poéticos, não constitui um elemento essencial. Pode haver dissertações em verso que não são poesia, como é o caso de certos tratados didácticos do século XVIII (Ler “Concerto”, pp. 42-43, poema 20).
Agora, quando a predominância da literatura escrita ainda é quase total, reconhecemos que o metro, a rima e mesmo o ritmo regular não são aspectos essenciais no que à poesia respeita. O ritmo tout court é, no entanto, absolutamente essencial. A poesia é rica em emoção e, por isso, é necessariamente rítmica, como acontece com todas as outras artes do movimento que se desenvolvem no tempo. A poesia é persuasiva, não argumentativa, apela mais à imaginação que ao raciocínio lógico: é por isso que emprega símbolos que são quadros ou imagens e não puras abstracções. O seu recurso principal é a intensidade da expressão verbal: é uma luta com o logos, que alguns teorizadores e escritores comparam à luta de Jacob com o Anjo no célebre passo bíblico (Génesis, 32:25-33 e Oseias 12: 3-7). E aqui estamos, aliás, a ecoar várias intervenções teórico-poéticas de JdAS sobre a sua prática, intervenções, aliás, persistentes e pertinentes.
O poeta transforma em nova e positiva latitude o que poderia parecer limitação, não lhe podendo ser indiferente o elemento técnico-formal, uma vez que lhe não é permitido confiar demasiado na poesia como «estado da alma» e deve insistir na ideia de que a poesia é sempre uma árdua vitória sobre a palavra. É neste segundo aspecto que reside o valor essencial da sua arte; o primeiro é apenas (?) emoção prévia. Veja-se o ponto “Poética” da citada réplica aos amigos internautas: na poesia, “natureza variável / das palavras, / nada se perde / ou cria, / tudo se transforma” [2], nada portanto pode ser deixado ao arbítrio do acaso.
A emoção poética só é poeticamente (textualmente) expressa por meio de uma forma verbal que é aquilo que legitimamente se deve apelidar de retórica. Ora, estes métodos e hábitos da expressão verbal estão sujeitos à evolução do gosto [3].Quando um sistema de expressões se esgota no decurso do tempo (a worn out mould, como dizem alguns teóricos norte-americanos) e não porque careça em si mesmo de qualidade, podemos dizer que essa forma deixou de nos emocionar, porque é tão nova para nós como o foi para os homens da época em que surgiu, mas não é aceitável denegar o seu valor real já fixado no tempo e na verdade poética. Leia-se o ponto “Estremecimento” ainda do referido texto.
É indiscutível que existe na poesia uma comunicação de mistério, definindo-se os grandes artistas por serem capazes de captar a sua etérea essência. No tempo actual tenta-se realizar a expressão do mistério poético procurando escapar aos rigores lógicos, enquanto em tempos idos, os românticos, por exemplo, tentaram encerrá-lo na carga emocional que deram às palavras (foi essa a sua grande inovação) e os que chamamos clássicos perseguiam esse escopo de outros modos. Seja qual for o tipo de poesia praticado, os poetas esforçam-se por alcançar essa capacidade de expressão do mistério. Lembremo-nos de que se hoje nos cansa o rigor lógico e o excesso sentimental, estes elementos tinham para quem os introduziu na poesia «um calor substantivo de mistério» (Leia-se “O Milagre do Impossível”, p. 197, poema 190).
E é óbvio que o poeta contemporâneo nos comunica coisas idênticas às que foram comunicadas pelos poetas seus antecessores, residindo a diferença na utilização de determinados processos técnico-formais (Leia-se “Revelação”, p. 155, poema 139).
E se há poesia difícil é porque o poeta assim o quer, poesia a que se poderia chamar hermética, que, aliás, existiu em muitas épocas, se não em todas: há, hoje em dia, como sempre houve, poesia caótica ou incoerente por debilidade ou defeito do poeta, mas há outra que resiste aos nossos esforços interpretativos justamente por ser pertinentemente actual (Herberto Hélder). Seja como for, grande parte da poesia contemporânea parece difícil porque poucos leitores lêem poesia enquanto tal, por quererem entendê-la sem lhe dedicarem a atenção que ela exige. São mentalmente preguiçosos, e o poeta contemporâneo necessita da colaboração intelectual do leitor, porque a sua poesia sugere, recusa-se a declarar: os procedimentos literários de que se serve são indirectos. JdAS é também um poeta que exige a total atenção do leitor para ser integralmente apreciado.
III.
O leitor actual necessita de ter uma preparação superior ao do passado para abordar a poesia deste tempo, porque essa prática poética releva de uma longa e vasta tradição literária, filosófica e cultural: a poesia contemporânea é mais pura no sentido de que destaca mais e melhor os procedimentos característicos da arte poética: o símbolo e não a atracção, a sugestão e não a declaração explícita, a metáfora e não a linguagem linear, directa (Leia-se “Epílogo”, p. 211).
Toda a experiência é potencialmente poética e o poeta dá ao leitor a liberdade de reagir a essa matéria de acordo com os diversos modos que estão ao seu dispor. Ao oferecer-nos a possibilidade de sentir e conhecer um mundo cada vez mais complexo e variado em todas as suas manifestações, a poesia contemporânea acaba por se tornar difícil e impor àquele que lê o exercício de todas as suas capacidades intelectuais e não exclusivamente a sua sensibilidade, seja lá o que isso for. Qualquer um dos poemas do livro serve para exemplificar isto, mas “Prosa poética”, p. 201, poema 196, é suficiente.
Recapitulando: uma das razões principais da deficiente apreciação da poesia reside no hábito de o leitor procurar no poema as verdades poéticas que lhe são familiares, aquilo a que o acostumou a poesia de épocas anteriores, sobretudo a romântica, mais directa na sua encenação textual.
Sabemos que o tema, isto é, a ideia ou motivo básico de um poema, pode ser o mesmo em épocas diferentes e que, contudo, a atitude do poeta pode variar consideravelmente. Ora, o modo de apresentar o tema varia de um poema para outro, segundo as combinações de símbolos, imagens, ritmos e sons que o poeta utilize, sendo que, ao apresentar um tema, o poeta nunca se limita a enunciá-lo. Se assim fosse, muitos poetas poderiam ficar reduzidos aos primeiros versos das suas composições.
Um poema é, afinal, a dramatização de um tema. Qualquer poema — mesmo os mais breves cantos líricos ou os mais longos poemas descritivos ou estes que compõem Fragmentos — traz implicita uma organização dramática. Esta é uma característica que convém ter presente quando se lê poesia: o seu aspecto dramático.
Quando dizemos que em poesia há sempre um tema básico, não queremos com–isso inspirar no leitor o equívoco de que deve procurar em qualquer poema uma moralidade que aplicará ou não à sua vida. Há poemas em que realmente existe essa moral prática e muitos deles são excelentes exercícios poéticos. Ninguém pode negar o valor moral de muitas máximas contidas em poemas, mas isso não chegaria para fazer deles obras de mérito literário. Uma ideia em si não basta para criar um poema. O facto de ela lá estar também não basta, como é evidente, para o destruir. Por isso, se o leitor não estiver de acordo com a ideia que um dado poema exprime, errará se acreditar que o poema é desprezível. Pode ser um bom poema, a expressão acabada e perfeita de ideias que diferem das do leitor. É muito provável que poucos de nós concordem com as ideias que alguns poetas exprimem, mas isso não significa que o resultado poético não seja artisticamente capaz: protestantes e ateus convictos lêem e admiram a Divina Comédia de Dante; católicos fervorosos e agnósticos podem ler e admirar Paradise Lost de Milton, sem alterar por isso as suas fidelidades ideológico-religiosas; idealistas e conservadores podem apreciar a poética materialista de Maiakóvskii. A poesia não deve ser julgada apenas do ponto de vista do tema, que pode estar em conflito directo com as nossas crenças pessoais. Também quem não concorde com a mundividência expressa nos textos de JdAS pode tirar gozo estético da leitura deles.
Outros leitores adoptam a perspectiva de que a poesia não deve encerrar ideias ou verdades, mas expressar a pura emoção, como se isso fosse possível. Um crítico também pode adoptar esta visão e dizer que um poema é a expressão de um momento de pura realização do ser, que só tenta dar ao leitor a impressão de uma sensação ou de um momento vivido. Examinemos melhor esta afirmação: será que um poema exprime a pura emoção, digamos, da tristeza, com a mesma intensidade que, por exemplo, um grito? Ou será que o leitor, quando lê um poema que exprime tristeza, sente tanto essa emoção como sentiria um pesar pessoal? A resposta só pode ser negativa. No que respeita à mera intensidade emocional, o poema não pode ser igualado à experiência directa: é a reacção do artista a uma experiência, seja de que tipo for, e, portanto, é uma interpretação, que por sua vez provocará no leitor uma reacção análoga, mas que não será necessariamente a mesma.
Outro conceito que pode confundir o leitor é aquele que afirma que a poesia «é a expressão bela de uma verdade elevada». Isto não passa de poesia como parte da didáctica. Nos livros infantis são por vezes utilizados poemas cuja finalidade é transmitir em forma rítmica certos preceitos ou conhecimentos e, de um ponto de vista didáctico, esse procedimento é legítimo, mas não poderá ser essa a atitude adequada à abordagem de um poema como obra de arte; porque a linguagem da poesia não se cria separada da ideia – forma e conteúdo são inseparáveis na obra artística (dentro dos limites estabelecidos por Hjelmslev). Se examinarmos exemplos de poesia genuína, descobriremos que não é assim, que a poesia pode usar, com grande arte, objectos, situações, ideias, símiles e imagens que não são conaturalmente poéticos, se por poético se entende o que é «bonito» ou «agradável». O efeito de um poema depende do modo como os seus elentos constitutivos são operados pelo poeta.
IV.
Há poemas dos finais do período romântico que se caracterizam por uma selecção muito requintada de vocábulos, pela elegância da forma, e que exprimem uma determidada ideia, normalmente muito delicada, com grande finura. Contudo, muitos deles não conseguem criar no leitor a poderosa impressão de outros poemas que não empregam uma única palavra ou imagem que seja em si mesma bela. Veja-se, por exemplo, o caso de alguns poemas de Federico Garcia Lorca, José Gomes Ferreira ou João de Almeida Santos. Digamos que em certos poemas se nota uma discrepância fundamental entre forma e ideia, que os seus autores se deixam dominar por uma tendência preciosista, ofuscando a ideia sob o manto aveludado de um esplendor desnecessário.
No segundo tipo de poema pode não haver palavras preciosas, pode não haver imagens que sejam intrinsecamente belas. Muitas vezes é o oposto que acontece: grande número de vocábulos e imagens, que podem chegar a ser chocantes, precipitam-se sobre o nosso espírito e adquirem um valor inusitado. A força desses poemas, o seu alto valor poético, reside na perfeita unidade que o poeta soube construir entre expressão e ideia.
Um poema, portanto, não pode ser apenas considerado uma sequência de objectos e ideais poéticos em si mesmos, por mais beleza individual que possam possuir. Também não é apenas um grupo de elementos em combinação mecânica — metro, rima, linguagem figurada, etc. —, reunidos como os tijolos de uma parede. É a relação entre estes ou aqueles elementos do poema que importa, e essa relação tem um carácter íntimo e fundamental: um poema constitui um todo orgânico. Quando consideramos os elementos de um poema — ritmo, imagens, vocabulário, métrica — de nada servirá analisá-los separadamente, devendo ser avaliados em relação com a intenção global e a forma de organização (a composição) do poema no seu todo (Leia-se “O Milagre da Poesia”, p. 121, poema 108).
V.
As qualidades que distinguem o modo de tratar poeticamente um assunto, se comparadas com a maneira de o fazer em prosa, são essencialmente duas: concentração e intensidade; e este aspecto é importante para perceber por que se entende que os textos de Fragmentos são, como atrás se referiu, prosa lírica. É que a forma da poesia apresenta uma organização mais complexa do que a da prosa, requerendo um processo de selecção mais rigoroso, com a sugestão a predominar como meio de expressão. Com isto não queremos dizer que este tipo de organização esteja fatalmente fora do âmbito da prosa, mas que é predominante em poesia.
Veja-se este belo exemplo de prosa poética (ou poesia em prosa), que poderá ser colocado ao lado dos que preenchem Fragmentos, sem desprimor para nenhum dos autores:
Poiso a mão vagarosa no capô dos carros como se afagasse a crina dum cavalo. Vêm mortos de sede. Julgo que se perderam no deserto e o seu destino é apenas terem pressa. Neste emprego, ouço o ruído da engrenagem, o suave movimento do mundo a acelerar-se pouco a pouco. Quem sou eu, no entanto, que balança tenho para pesar sem erro a minha vida e os sonhos de quem passa?
(Carlos de Oliveira, “Posto de Gasolina”)
O ritmo, já o dissemos, não é exclusivo da poesia: a diferença entre poesia e prosa quanto ao ritmo é unicamente de grau. Mas esta diferença de grau é central. A poesia tende a empregar o ritmo com regularidade, se bem que haja inúmeros matizes que vão da prosa rítmica ao ritmo regular do verso. A versificação é uma ordenação sistemática do ritmo, daí que o verso seja uma maneira da forma primordialmente utilizada pela poesia.
A propósito do verso livre convém referir que a frequência de uma versificação sistemática como forma da poesia em geral pode fazer com que se tenda a confundir versificação com poesia, levando a esquecer que o verso não é senão um dos instrumentos que o poeta tem à sua disposição para transmitir uma mensagem. Ninguém pensará que várias palavras sem relação ou sentido possam ser consideradas poesia só porque apresentam uma forma versificada. Para que haja poesia é necessário que as palavras se relacionem entre si de modo a construir um sentido poético, se bem que às vezes não pareça lógico. A poesia é justamente o resultado da interrelação de diversos elementos e não é inerente a nenhum deles isoladamente, sendo a forma da disposição desses vários factores de acordo com uma finalidade artística (Leia-se “Voar sobre o silêncio”, p. 116, poema 104).
Outro modo de utilizar o efeito expressivo dos sons é a rima, ou igualdade das letras finais da palavra, a partir da última vogal acentuada, mas a rima pode existir dentro do verso ou linha: a aliteração pode ser considerada uma manifestação de rima interna. A finalidade da rima é, portanto, de ordem estrutural, além de que possui a qualidade de ser agradável, repetitiva e musical, mas todos os recursos da versificação, por mais fundamentais que sejam, não deixam de também ser limitações. Os poetas que trabalharam em períodos nos quais esses procedimentos foram considerados regras que era “obrigatório” respeitar viram-se muitas vezes forçados a alterar as palavras para que pudessem caber num metro determinado ou a empregar vocábulos que diminuíam o rigor da expressão. A tanto obrigava a necessidade de terminar uma rima. Não foi por acaso que Verlaine se revoltou contra a rima — «ce bijou d’un sou» (essa jóia de pacotilha), que não é o caso, diga-se, deste belo e rimado poema “ILUSÃO”:
A MUSA Nunca existiu, Dizia O poeta Fingidor, Era apenas Artifício Pra simular O amor. E O POEMA Também não, São palavras Ritmadas Pra criar A ilusão De vidas Que são Criadas Com alguma Inspiração. NADA EXISTE A não ser Como desejo Que não se torna Real, Só nuvens Que o vento Leva E já não voltam Ao céu Onde o poeta Navega E desenha Com palavras Tudo aquilo Que perdeu. O VENTO É seu amigo Leva palavras Consigo Pra simular A vontade D’estar sempre Ao pé dela Evitando O castigo De só a ver Da janela. É TUDO Piedosa Ilusão De quem nunca Partiu Do lugar Que habitou Onde o amor Mais não era Do que aquilo Que sonhou.
(João de Almeida Santos, “Ilusão”. Link para o poema: https://joaodealmeidasantos.com/2025/08/09/poesia-pintura-275/
VI.
Por outro lado, a poesia contemporânea também desenvolveu no mais alto grau a função do símbolo e da imagem e o uso da linguagem figurada.
A representação, em poesia, de uma experiência dos sentidos chama-se imagem. O poeta transmite as suas experiências por meio de comparações e daquilo a que chamamos linguagem figurada, cujas formas mais habituais são o símile e a metáfora, sendo que o símile, como todos sabemos, emprega os termos comparados e o comparativo (a sua face fresca como uma rosa) e a metáfora suprime o termo comparativo, identificando os termos comparados directamente um com o outro (a rosa da sua face). É claro que a metáfora sugere muitas interpretações que não cabem no símile, mas o que importa sublinhar é que a imagem não é um ornamento da poesia: é uma forma de comunicação, como já afirmámos. Os modos de funcionamento da imagem são demasiado numerosos e complexos para serem apresentados aqui, mas convém sublinhar que nunca a devemos encarar como uma simples ilustração (Leia-se “O Eco do Silêncio”, pp. 110-111, poema 94).
Um processo que está relacionado com o espaço metafórico é o da criação e uso do símbolo em poesia. O símbolo é uma espécie de metáfora em que se omite um dos termos. Se um poeta nos diz que uma mulher é «a rosa do Abril das almas», construiu uma metáfora, mas quando escreve sobre um poema «nunca a toques; assim é a rosa», sugerindo com esta palavra a qualidade do poema, então converteu a rosa num símbolo. Os poetas chegam, aliás, a ser identificados pelos seus símbolos característicos, pois cada um costuma criar alguns muito pessoais: quem não recorda a lua de Garcia Lorca, o cisne de Rubén Dario, a cal de Carlos de Oliveira, o loureiro de João de Almeida Santos? A relação do símbolo com o seu significado não é de carácter lógico — «é demasiado subtil para o intelecto», disse Yeats —, mas tem poder e intensidade ilimitados.
Sabe-se que desde sempre a poesia dá expressão ao mito. A poesia dramática, por exemplo, limitou-se (?) durante muito tempo a ser representação do mito em forma de acção directa; a poesia épica, por seu lado, representou-o em forma de narração, e mesmo a poesia lírica, mais pessoal na sua expressão, lhe emprestou voz musical. Se bem que agora essas três funções da poesia abordem temas muito diferentes e afastados dos antigos mitos, não podem todavia desenraizar-se deles e frequentemente fazem com que eles revivam em novas interpretações (como, por exemplo, o mito de Narciso e o de Orfeu) ou baseiem neles novas construções míticas (Leia-se “Sísifo”, p. 94, poema 77).
VII.
Para (quase) terminar, queremos tocar num ponto que nos parece de particular interesse. A poesia, como sabemos, tem um valor sonoro: não é feita apenas para ser lida, também existe para ser ouvida. O leitor que não seja capaz de ouvir a poesia não poderá apreciá-la devidamente. Quando lê, deve reproduzir mentalmente os sons e a entoação sem os quais não pode apreciar o poema na sua inteireza. Será conveniente, pelo menos nas primeiras vezes, ler os poemas em voz alta até aprender a ouvi-los mentalmente. O poeta dirige-se sempre ao leitor na expectativa de que este o «ouça com os olhos».
Veja-se, por exemplo, a musicalidade deste soneto:
Vocábulos de sílica, aspereza Chuva nas dunas, tojos, animais Caçados entre névoas matinais, A beleza que têm se é beleza. O trabalho da plaina portuguesa, As ondas de madeira artesanais Deixando o seu fulgor nos areais, A solidão coalhada sobre a mesa. As sílabas de cedro, de papel, A espuma vegetal, o selo de água, Caindo-me das mãos desde o início. O abat-jour, o seu luar fiel, Insinuando sem amor nem mágoa A noite que cercou o meu ofício.
(Carlos de Oliveira, “Soneto Fiel”)
Ou deste poema, que é diferente e igualmente intenso:
EU CANTO E pinto O meu destino, Sonhos velados, A minha vida, Sonhos marcados Por tudo aquilo Que imagino Nas noites frias Da despedida. PERDI A CHAVE Do meu futuro Já só me resta A partida, Por isso canto E, como as aves, Voo mais longe E com mais cor Porque no céu Há mais azul E nos meus sonhos Já não há dor. MAS HÁ SEGREDO Não revelado E se o dissesse Não deveria, Como poeta E fingidor Eu certamente Até mentia. E NÃO O DISSE, Mas eu pequei Com murmúrios D’enamorado Em poemas Inocentes Onde cantava Esse meu fado Com palavras Luminescentes. POR ISSO VOO Sempre mais alto, Trepo nas cores Pra lá chegar, O céu azul Dá-me alento Pra meus segredos Nele guardar. LEVO PALAVRAS Comigo, Procuro inspiração. Levo cor, O meu abrigo, Levo a musa E tudo o mais E quando parto Lá para cima É sempre festa Nesse meu cais. LEVO-TE A TI E desse jeito Eu sou feliz Lá bem no alto, No azul do céu, Onde respiro Esse ar puro E rarefeito, Lá onde o mundo É todo meu. EU CANTO E pinto Pra exaltar Esse teu rosto, Iluminar Em aguarela Esse enleio Do meu olhar Pois se te vejo Logo me vem Esta vontade De te pintar. POR ISSO, CANTO Por isso, voo, Por isso subo Lá para o alto E dou-te asas E o infinito, Voar contigo No céu azul É um prazer... ................ E é bonito!
João de Almeida Santos, “Voar”. Link para o poema: https://joaodealmeidasantos.com/2025/08/16/poesia-pintura-276/
VIII.
E termino, retribuindo uma vez mais a provocação a que me referi no início, com uma citação de Alfonso Reyes, extraída de El deslinde, que JdAS entenderá cabalmente: “Si Aristóteles nos entusiasma en su defensa de los poetas, no nos entusiasma menos Platón en su heroica lucha – por desgracia algo confusa en sus libros – por emancipar la poesia de los fraudes sentimentales, llevándola a la zona austera y difícil, neumática en cierto modo, en que ella reivindique su jerarquia.” Muito obrigado pela vossa atenção.
Cascais, 19 de setembro de 2025
NOTAS
1) O género literário define-se habitualmente como um conjunto de regras e restrições que regem a produção de um texto. Cf. Costanzo di Girolamo, Para uma crítica da teoria literária (Lisboa, Livros Horizonte, 1985), que tive o gosto de traduzir. As obras de Reyes consultadas são El deslinde, Cuestiones de estética e La experiencia literaria (Ciudad de Mexico, Fondo de Cultura Económica, 1944, 1955 e 1962).
2) Carlos Oliveira, “Lavoisier”, Sobre o lado esquerdo (Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1968).
3) Galvano della Volpe, Critica del Gusto (Milano, Feltrinelli, 1966).
* NOTA BIOGRÁFICA SOBRE SALVATO TELES DE MENEZES
Licenciado em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1973, instituição de que se torna professor assistente no Departamento de Estudos Anglísticos (1974), ocupando-se das cadeiras de Literatura Inglesa, Literatura Norte-Americana e Teoria da Literatura. É Vogal do Conselho Directivo entre 1978 e 1988. Lecciona Literatura Portuguesa e Brasileira e Teoria da Tradução em Boston (NE University), doutorando-se em English Studies, com uma dissertação sobre o romance histórico norte-americano (1993).
Director Editorial de Livros Horizonte (1977-1980), membro da Comissão Executiva do I Congresso de Escritores de Língua Portuguesa (1998), co-fundador e Director de Programação do Festival Internacional de Cinema de Troia (1984-1991), Vice-Presidente e Presidente do Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual (1993-1995), representando Portugal no Programa Eurimages. Membro do Conselho de Opinião da Radiotelevisão Portuguesa (2002-2007). Membro do Consejo Asesor da Fundación Duques de Soria (2019), passando a integrar o Patronato em 2023.
Administrador-Delegado da Fundação D. Luís I (1996), tornando-se também Presidente do Conselho Directivo a partir de 2013. Director Municipal de Cultura (2022-) da Câmara Municipal de Cascais.
Fez ainda parte do Júri do Grande Prémio do Romance e da Novela (1996), do Grande Prémio de Conto (Camilo Castelo Branco) (1999), do Grande Prémio do Romance (2017, 2019 e 2023) e do Grande Prémio de Literatura Biográfica Miguel Torga (2025) da Associação Portuguesa de Escritores, e, no plano cinematográfico, foi membro do Júri Internacional do Festival de Cinema de Istambul (1987), do Festival de Cinema Jove de Valência (1986 e 1988), do Festival de Cinema Latino de Chicago (1992).
Autor de vários ensaios sobre literatura e cinema, bem como de dois livros de poesia, é reconhecido o seu labor no campo da tradução, tendo vertido para português obras de J. L. Borges, C. José Cela, M. Vargas Llosa, Fernando del Paso, A. Muñoz Molina, Elmer Mendoza, Mário Benedetti, J. D. Salinger, Chester Himes, Javier Marías, Javier Tomeo, William Shakespeare, Peter Wollen, Woody Allen, Ralph Ellison, Thomas Pynchon, R. B. Parker, Vladimir Nabokov, John Dos Passos, William Burroughs, Raymond Chandler, Peter Bogdanovich, Nancy Rubin, James Anderson, Laurence Dermott, Manuel Puig, Guillermo Cabrera Infante, D. Foster Wallace (em colaboração), Saul Bellow, Melvin Kelley, Julian Barnes, Paul Schrader, Hari Kunzru, Richard Zenith (em colaboração), Tan Twan Eng e Gerald Murnane.






















