Poema de João de Almeida Santos Ilustração: “Azevinho com Bagas” JAS 2025 Original de minha autoria Novembro de 2025
POEMA – “O AZEVINHO”
NÃO SEI PORQUÊ, Talvez seja O destino, As bagas Lá apareceram No azevinho Que vi, Um arbusto Pequenino Que pôs fim Ao que sofri.
ERA MESMO UM Azevinho, Com as bagas Vermelhinhas, Daquelas Que sempre quis, Eram bagas Como as minhas, Que me faziam Feliz.
FUI AO MERCADO (Nem sei bem Por que razão) E logo vi Um azevinho Com bagas Tão vermelhinhas Que nem quis Acreditar... ............ Estava mesmo À minha espera Para comigo O levar?
COMPREI-O À vendedora E li-lhe o poema Das bagas, Das outras Que eu cantei, Quis mostrar-lhe O meu encanto, Falar-lhe Daquele tempo Em que por ele Esperei.
LEVEI-O LOGO Para o meu amado Jardim Era isso Que ele esperava, Ser cuidado Só por mim...
E PLANTEI-O Onde ele irá Crescer, Ao lado Do azevinho Que bagas Nunca quis ter, Ficando sempre Sozinho E não sei Se a sofrer.
E ASSIM FELIZ Fiquei Encontrei as minhas Bagas, As que sempre Procurei.
Um livro de António de Castro Guerra (Lisboa, Rosa de Porcelana, 2025, 145 pág.s)
Por João de Almeida Santos
HÁ DIAS, tive ocasião de apresentar, em Manteigas, em Valhelhas e na Guarda, o mais recente livro de António de Castro Guerra, “O Meu Paraíso”. Mas, depois do que escrevera no Prefácio deste belo livro, o que poderia dizer de novo, no momento da sua apresentação pública? Sabendo que sobre o livro também iria falar Filinto Elísio, Editor e ilustre poeta cabo-verdiano, lembrei-me de um seu poema, do livro Li Cores & Ad Vinhos, que, a título de epígrafe, vinha mesmo a propósito. “Monte Birianda”, era o título do poema, onde o poeta dizia:
“Estive e nunca estive neste lugar. Há qualquer coisa de topo do mundo (...). Este lugar tem música. Cada pedra guarda acordes inaudíveis”
(Lisboa, Letras Várias, 2009, pág. 73)
“Estive e nunca estive neste lugar”, onde “cada pedra guarda acordes inaudíveis” – aparentes contradições que só a poesia sabe “manejar” para aprofundar e evidenciar o sentido do que se diz. E isto só se pode dizer quando a relação é profunda, como neste caso. Nunca se está completamente num lugar quando há algo maior do que nós, talvez inaudível ou invisível, que nos escapa… mas que, ao mesmo tempo, nos interpela. Essa parte, “nunca estive”, dita em poesia, de certo modo pode significar: “mas hei-de um dia lá chegar, lá estar”. Afinal, trata-se do “topo do mundo”… Como alcançá-lo, o topo do mundo, com os meios humanos e tão modestos de que dispomos? Como fazer essa escalada tão difícil? Lá no alto até pode faltar o oxigénio, ser difícil respirar. Esta sensação de estar e não estar aumenta quando se deseja profundamente esse lugar. E a errância existencial, que nos leva para longe, provoca, ainda por cima, um acrescido sentimento de perda, de ausência, de silêncio, de saudade e de melancolia, mesmo daquilo que nunca se teve ou daquilo onde nunca se esteve. Saudades do que nunca aconteceu, dizia o Bernardo Soares no Livro do Desassossego: “Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram” (Porto, Assírio & Alvim, 2015, p. 111). Saudades de um desejo não cumprido ou saudades de um lugar onde nunca se esteve. E é aqui que soa a desafio. Ou mesmo a imperativo. Como alcançar o topo do mundo, que, afinal, é o topo do meu mundo? Será que consigo através da palavra, do romance, da poesia? Da arte? Na verdade, o inacessível (“nunca estive”) só pode ser atingido assim. É para isso que a arte existe, para atingir o inacessível. Podem crer. É isso que parece querer insinuar-se nestas persistentes viagens em palavras que António de Castro Guerra tem vindo a fazer para chegar ao topo do seu mundo: nasci lá, sim, mas ainda não lhe vi o topo, que talvez também esteja lá bem no alto da minha fantasia. E é por isso que tento lá chegar… com palavras. Até porque sei que já não posso agarrar o meu passado com as mãos, agarrar o meu Paraíso, recuperar o tempo que já se foi. Mas sei que o posso reviver e até acariciar com as palavras e com a minha fantasia. Trazê-lo, assim, até mim. E sei, ah, isso eu sei, que “para saber o que é o meu paraíso é preciso muito mais do que o ver: o mais importante é vivê-lo e senti-lo” (2025: 58). E aqui estou eu agora a revivê-lo do único modo possível, pelas palavras, sendo ele, como já é, em grande parte, passado. Também os poetas vão lá à fita da memória, fazem uma espécie de montagem cinematográfica e reconstroem o passado. Depois é vê-lo em moviola. Como um filme ali ao alcance das nossas mãos. E os seus livros são como a moviola: permitem observar de perto e ao pormenor o seu Paraíso. O topo (de outro modo) inacessível do seu mundo. Podemos parar a fita do tempo, arrancar, voltar atrás ou dar um salto para o futuro. Quando se faz a dobragem de um filme é (ou era, já não sei) assim que se trabalha – na moviola. E estes livros são como que a “dobragem”, a tradução do tempo vivido em bom português.
1.
Este lugar, que não é Monte Birianda, ou Monte Brianda, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, mas a Serra da Estrela, mais concretamente, Valhelhas e os seus vales e serranias, é para Castro Guerra o seu paraíso, talvez, sim, o topo do seu mundo (como tantas vezes é assumido nos seus livros), o lugar onde um rio foi e fez a sua liberdade, “lugar mágico” onde nasceu e cresceu “a olhar (lá) para o alto da Serra”. Para o topo do (seu) mundo.
2.
Palavras suas. Ditas no seu livro “Quase Memórias de um Lugar e de outras Andanças”, de 2020, publicado pela mesma Editora, Rosa de Porcelana. Mais de 400 páginas de memórias, ou, como ele diz, “quase memórias”. Talvez porque o livro seja – e é – mais do que uma colectânea de memórias. Talvez seja mesmo um lugar de vida. Vida em palavras, que a avivam ainda mais. “Quase memórias”, não por defeito, mas por excesso. Lugar onde sempre se regressa das terras “da promissão” (palavras suas). Que foram e são muitas, mas especialmente terras de África e, sobretudo, da América. Isto é coisa séria, muito séria. Quem conta de forma tão detalhada, delicada e sentida, ao pormenor, a vida e as vidas da sua terra, a começar pelas da sua própria família, neste livro de “Quase Memórias”, só pode ser suspeito de manter com ela um cordão umbilical nunca radicalmente cortado, uma relação de tipo maternal ou amorosa com esta terra, o seu Paraíso. É evidente a sua paixão por estas terras ou não teria escrito sobre elas mais de novecentas páginas. Mas não foi preciso ler este livro de “quase memórias” para compreender o que o levou a escrever o “O Meu Paraíso”.
3.
Conheço o António de Castro Guerra e sei bem do seu fascínio e da sua paixão por esta terra que o viu nascer e crescer. Se não soubesse, ficaria a sabê-lo (ao pormenor) pela leitura dos seus livros. O amor por esta terra, pelos três vales que nela confluem, pelo rio que por ali passa e a banha generosamente e pelos vastos e impressionantes montes que a circundam. Muitos de lá talvez nem se dêem conta desta beleza por nunca terem sentido de forma substantiva a diferença, por nunca a terem visto e sentido a partir de fora, o que não é o seu caso, porque tantas vezes a sentiu lá de longe, sobretudo de África, por onde andou nos anos setenta, como nos conta em “Quase Memórias”. Os que não saíram querem sair para serem livres, os que saíram querem regressar para recuperar a sua identidade mais profunda. Isto parece ser uma lei do comportamento humano. E ele saiu da ilha, viu-a de longe, sentiu a sua falta e teve de a contar para a resgatar do tempo e para se resgatar a si próprio. E tinha de ser assim porque as palavras têm esse poder de resgate, de “cristalizar” sentimentos fortes (como no amor de que fala o Stendhal) o que ameaça desfazer-se, acabar e desaparecer. Sobretudo em certos momentos de maior ameaça, como foi o caso da enorme e incompreensível devastação, com o fogo, durante dias e dias, a passear-se pelas suas, pelas nossas, serranias sem que mão humana o pudesse travar. Ou, então, quando as saudades do tempo que já se foi se tornam mais intensas e dolorosas, provocando melancolia, esse sentimento que os poetas registam de forma muito própria. As nossas palavras também têm ressonância ou eco em nós próprios e só por isso já valeria a pena pronunciá-las ou escrevê-las. O eco do silêncio, do que já só se conserva na memória ou daquilo que se segue à destruição, é o que melhor os poetas sabem interpretar. E nem seria necessário que fosse Shakespeare a dizê-lo. Dizê-las, sim, vale sempre a pena, quanto mais partilhá-las num livro lançado ao vento, como quem diz: aqui têm a minha Valhelhas, aqui têm o meu Paraíso!
4.
Se ousasse fazer uma comparação com a minha própria experiência, já que sou natural de Famalicão, que fica mesmo ali ao lado de Valhelhas, e migrante por largos anos em terras da Europa, atrever-me-ia a dizer que Valhelhas e a Serra foram, como para mim, o seu esteio, a sua âncora existencial, o porto seguro dessa errância que nunca se sabe onde vai dar. O pilar existencial que garante a nossa própria identidade quando ela parece estar ameaçada por excesso de uma miscigenação que pode ser descaracterizadora dessa identidade substancial que foi marcada, no tempo certo, em tenra idade, pela magia desses lugares. Querem um exemplo? A mim, a neve não me sai da cabeça. Fiquei incrédulo quando ela um dia foi ter comigo a Roma. Tenho um quadro com ela na Piazza della Rotonda, em Roma, a praça do Pantheon. E não dormi nesse dia, não fosse ela derreter-se tão depressa como chegou. A neve anda sempre por cá e, de vez em quando, lá tenho eu de a cantar, em poesia. De repor o que já parece perdido, essa brancura cintilante que funde o céu e a terra, nos engole num manto sem fronteiras e nos fascina o olhar e a alma. E quanto à água do Vale Glaciar, a da Fonte Paulo Luís Martins, essa magnífica cascata que jorra lá do alto da montanha, anda sempre comigo. E não só porque também a canto e a pinto, como se fosse neve em forma de água pura e fresca ou a própria montanha em forma líquida, mas porque é isso que esta água representa.
Mas também António de Castro Guerra (que sobre a neve sente o mesmo que eu) diz, e para que não haja dúvidas, “o meu paraíso nunca saiu da minha cabeça e do meu coração” (2025: 67). Pois, o que é que nunca lhe saiu da cabeça e do coração, além da neve? Ouçam-no: “Ao longo dos caminhos das serras, aqui saltava-me à frente um coelho ou uma lebre, além vislumbrava, de vez em quando, uma perdiz a levantar voo, ou a conduzir os seus perdigotos. Não era raro ver uma raposa matreira, ou um lobo solitário, ouvir as falas dos gaios e das pegas, comer as pútegas que cresciam junto às raízes das urgueiras, das carquejas ou das estevas, cujas flores eram de uma beleza rara: o conjunto das suas pétalas brancas formava um cálice orlado de uma cor indefinida, no fundo do qual estavam os estames cercados por uma rodilha acastanhada. A apreciação da diversidade das urzes e das suas pequenas flores multicolores eram, também, momentos de libertação das coisas mundanas. Nas minhas caminhadas ao longo das margens do rio, ouvia os chilreios dos pássaros, observava os cardumes de peixes, ouvia e via os pica-paus a bater nos troncos secos das árvores à procura de alimentos, via os pica-peixes a entrar na água do rio a pescar as refeições do dia, observava a beleza dos milheirais e falava com quem os estava a mondar ou a regar; aproximava-me dos rebanhos a pastar as tenras ervas dos campos do vale – muitas vezes ao entrar nos domínios dos cães que guardavam os rebanhos, tinha de me servir do cajado para me defender” (2025: 66). Poderia citar outras passagens, mas não resisto a citar esta: “Perseguíamos as rãs para as apanhar e as cobras-de-água para lhe pegar pelo rabo e as lançar ao ar, depois de lhes tirarmos os peixes que abocanhavam. Às rãs eram cortadas as pernas e despíamos-lhes as calças até às unhas dos pés. Junto às margens do rio brincávamos com as arestas e os girinos, que, alguns tempos depois, se transformariam em peixes graúdos ou em rãs. Perguntarão alguns porquê esta mortandade de peixes e rãs? Pelas mesmas razões, que atrás se expõem, relativamente aos pássaros, coelhos, lebres e perdizes” (2025: 64). Ou seja, não se tratava de crueldade, mas de caça ou de pesca, determinadas por razões de sobrevivência, onde pouco havia para comer. Não se ia ao supermercado comprar carne ou peixe, ia-se à natureza caçar ou pescar o que depois se haveria de comer. Lei da natureza, própria do seu Paraíso.
É disto que se trata. Não sobram dúvidas. É este o seu Paraíso. É disto que tem saudades.
5.
Naturalmente que existe sempre uma propensão natural para imergirmos na magia da natureza, muito mais frequente em quem nasce e cresce nela, mas também há factores externos que nos levam a valorizá-la mais do que os que nela sempre viveram, os que nunca saíram da “ilha”, ou seja, nunca experimentaram um sentimento intenso de alteridade, de presença existencial e enraizada do outro, de diferença substancial de lugares, de pessoas, de modos de vida, de paisagens naturais e humanas. Talvez a conjunção destes factores o tenha levado a “cristalizar” com arte e com palavras essa memória feliz em quatro livros, incluído este. E neles incluo o romance “Uma viagem no Tempo”, de 2022, onde ficou bem expressa essa sua relação idílica com a natureza, em ambiente de partilha cúmplice. Livros feitos de palavras, claro, mas também de fotografia e pintura, como acontece em “Ao sabor dos Dias & outros Escritos”, de 2024, e também neste de que aqui estou a falar. Um encanto existencial, sim, mas que, de forma inesperada, haveria de “virar” estupefacção, dor, desencanto quando foi (fomos, todos) confrontado com a devastação das serranias do seu encanto pelo incompreensível e imparável incêndio de 2022.
6.
Eu atrevo-me a dizer que este livro, embora também estimulado pelo seu Amigo António Mesquita (tens de escrever este livro, António), acabou por nascer, não como resultado de uma fria e distante decisão documental sobre a tragédia que caiu sobre o seu Paraíso, de um produto de escritor amante da arte e apenas comprometido com a beleza em si, mas como um imperativo existencial, como um exorcismo, como a libertação de alguém que viu destruídas no real as suas memórias mais quentes, já completamente metabolizadas, e que vinha acarinhando através de um comprometidíssimo e já vasto percurso literário. Não, este escritor nasceu de um imperativo existencial, à margem da sua carreira profissional (como economista e professor), de uma alma sensível à beleza natural que se exprime nesta sua terra, nesta excepcional e única convergência de vales e de montes. Trata-se, agora, neste livro, e com maior profundidade e dor – porque se trata de um autêntico grito de alma -, de resgate pela palavra. Só assim se compreende que no meio deste grito de dor em palavras ele traga ao presente, e de novo, as memórias desses tempos em que eram felizes os que por ali viviam, com a caça, com as festas comunitárias e o quotidiano rústico e matricial, com as suas antigas tradições ciclicamente repropostas, encenadas e coreografadas pelas ruas da aldeia. Tudo aqui muito bem descrito com palavras certeiras e com sentida melancolia.
7.
António de Castro Guerra inspirou-se, para escrever este livro, na sequência da Divina Comédia de Dante Alighieri, mas alterando-lhe a ordem, porque também por lá há o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, precisamente por esta ordem, diferente da sua, que começa, não com o Inferno, mas com o Paraíso, o Éden, que Dante, através da voz do poeta Virgílio, considera “il dilettoso monte, ch’è principio e cagion di tutta gioia”, onde “è l’uom felice” (Inferno, Canto I, versos 77/78).
8.
Sendo inevitável que neste livro haja, no fim, o Renascimento, como declaração de esperança, de reconhecimento de que a natureza tem uma força e um ímpeto tão intensos que sempre se impõem quer quando está zangada quer quando se quer renovar para, assim, sobreviver, isso, não lhe apagando a profunda tristeza perante o que vê, leva-o o construir uma sequência anterior que começa com o Paraíso e que termina, precisamente, com o Renascimento desse mesmo Paraíso. O livro tem, pois, quatro partes, começando, neste caso, e como é compreensível, pelo Paraíso (pp. 23-67), por um cântico à beleza natural e aos seus tempos idílicos, a que se seguem o Inferno (pp. 71-109), esse incêndio devastador, o Dilúvio (pp. 113-124), a chuva torrencial que se lhe seguiu e os efeitos desastrosos que provocou, e o Renascimento (pp. 127-139), o renascer das cinzas, e, finalmente, um pequeno Glossário (pp. 141-144). O autor começa por contar a vida do seu Paraíso terrestre e original, a beleza da imersão suave na dialéctica da natureza dos que viviam nela e dela, para depois contar o inferno de fogo que a destruiu e a que se seguiu, como sempre acontece, pois é lei da natureza, um dilúvio de consequências desastrosas por falta de suporte natural nas terras atingidas pelo fogo. Ali, ao longo das margens do Zêzere e com águas vindas lá de cima, dos montes desprotegidos, tudo foi na enxurrada, de Sameiro a Valhelhas. Mas, no fim, lá surge essa esperança no despontar da natureza para restaurar o equilíbrio perdido do seu Paraíso, bem ilustrada, na pág. 125, pela bela imagem de uma planta verdejante que renasce das cinzas, como a Fénix.
9.
E é interessante notar que o autor tem o cuidado de, em dois dos seus livros, apresentar um Glossário dos termos usados nesse tempo antigo, não vá o leitor procurá-los num dicionário, em papel ou digital, e não os encontrar. Repor o que pode estar perdido é revivificar o passado e não o deixar morrer. Repor também as palavras, neste caso. E creio até que não é o rigor e o cuidado científico – e até podia ser para um académico como ele – que o leva a fazer isso, mas sim o desejo de tornar mais viva e eficaz a sua narrativa, de trazer o leitor mais lá para dentro dela, reconstituindo a linguagem de outrora como desejo de também a revivificar, de a resgatar das chamas do esquecimento, que também tudo reduz a cinzas, de dar à narrativa uma temporalidade inscrita no passado, sim, mas tornada, deste modo, activa no presente, através da descodificação da sua fala. As palavras transportam vida consigo. E nalguns casos uma vida mais intensa e bela. Têm poder de resgate, de revivificação e de sublimação: “os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor”. Isto dizia o Bernardo Soares no Livro do Desassossego (2015: 55), chegando ao ponto de, um pouco mais à frente, dizer “vale mais para mim um adjectivo que um pranto real de alma” (2015: 57). É disso que se trata, afinal: restaurar com palavras o “verdor” perdido. Quando já nem verde há, pois resgatêmo-lo pela palavra. Foi o que Castro Guerra tentou fazer com este livro: repor o verde perdido. E parece não ter sido um acaso ter-lhe dado o título, não de Inferno, mas de “O meu Paraíso”. Sendo também eu de lá muito aprendi ao ler os seus livros e glossários, a reconhecer e a recuperar o intenso cromatismo dos campos, o seu “verdor”, agora verde em palavras, sobretudo numa fase em que as chamas os enegreceram.
10.
Há ali um narrador, José Abraão, e outros personagens que, mais uma vez, têm referentes reais na aldeia dos seus encantos. E há três amigos, de antes e de agora (já com suas esposas). Eles exprimem a felicidade da sua intensa relação com a natureza, por exemplo, na caça aos pássaros com os velhos costis, mas também o desespero de agora a verem devastada pelo fogo, com aquele sentimento pessimista que tende sempre a capturar-nos nos momentos mais difíceis, o de que já não haverá renascimento que reponha o que foi destruído, por tão profunda ter sido a destruição. Sei do que fala, porque também eu andei por lá naqueles funestos dias e com esse mesmo sentimento, com esse pessimismo, essa descrença no poder restaurador da natureza, agora felizmente desmentida, lentamente, pelo reaparecimento do verde, melhor, do “verdor”, por essas serranias fora. “Verdor” que também se torna mais verde nas palavras que compõem este livro, quando se fala do seu Paraíso.
11.
O que explica a minha cumplicidade com “O Meu Paraíso” é precisamente” isto: fomos todos avassaladoramente atingidos, fisicamente e na alma, ao vermos o Paraíso em chamas. Foi o que o autor sentiu e foi o que eu senti. E é assim que este livro nasce: como um grito de alma de alguém que viu destruído o seu paraíso por um gigantesco incêndio florestal que ceifou tudo aquilo por que passou, reduzindo-o a cinzas. Esse incêndio incompreensível que deflagrou na encosta leste da Serra da Estrela, lá para os lados da Covilhã, e que durante intermináveis dias foi progredindo, sem nada que o travasse, por ali, serranias afora, até às portas das povoações, ameaçando vidas e bens. Incluída Valhelhas. Incluído Famalicão da Serra. Uma coisa verdadeiramente incompreensível. O autor – que, pela voz de José Abraão, diz “este inferno a arder em todas as frentes só poderá ter sido inspirado pelo Diabo” (2025: 83) – sofreu esse incêndio como golpe profundo em carne viva e não hesitou em confrontar-se de imediato com essa dor através da escrita, como que tentando, pela palavra, pela narrativa, exorcizar, curar o sofrimento interior que lhe parecia não ter fim, tal a grandeza e a profundidade da devastação: “O Paraíso estava todo queimado”, diz, com incontida tristeza (2025: 87). O poder terapêutico da palavra, sim, não só porque através dela é possível esconjurar a dor, relativizá-la, controlá-la ou até mesmo metabolizá-la, para a neutralizar, mas também porque, ao partilhá-la, em forma de livro, se pode materializar a reacção interior à tragédia, como se, mostrando-a, se esteja a pedir solidariedade para remediar o que ainda se possa remediar, para além do que já ficou como dano físico inelutável. Só pela palavra isso é possível – restaurar de imediato o verde dos campos sem ter de esperar que chegue o seu “verdor” e interpelar a comunidade para que novas catástrofes sejam evitadas, ainda que, hoje, tudo se conjugue para que elas voltem a acontecer: alterações climáticas, desertificação, abandono dos campos. Tudo aquilo a que o autor dá voz, de forma expressiva, na parte sobre “O Inferno”. “Tudo contribuiu”, diz, “para levar o Inferno ao meu Paraíso”. Mas o autor, pela voz de José Abraão, o narrador, bem sabe que a pujança da natureza acabará por repor aquela exuberância perdida por tantos anos e, por isso, já no fim do livro, fala de renascimento, bem consciente de que os seres humanos são também eles natureza, não ‘donos dela’, num misto de desencanto, mas também de optimismo. “Eu acredito que o meu Paraíso vai renascer e voltará a ser belo e deslumbrante com ou sem a participação humana”, diz José Abraão, embora saiba que já não será ele, nem a sua Leia, a mulher, a assistir ao renascimento, porque já carrega muitos anos sobre si. Serão os seus amigos Samuel e Ester, Sara e Malaquias e Ezequiel e Beatriz, seus filhos e netos, a poder celebrar esse milagre que não deixará de acontecer. Mesmo assim, este livro não deixa de ser um grito de alma, um grito de dor que fica lavrado para memória futura. E sei bem do que falo, porque também eu, que nasci ali, a cinco quilómetros da sua terra, senti essa dor em directo, naqueles momentos dolorosos, sem nada poder fazer a não ser o desejo de que aquele inferno passasse rapidamente e não voltasse nunca mais. Os sentimentos nunca são iguais, é verdade, mas podem ser equivalentes em intensidade”. Uma dor colectiva que soa, singularmente, no interior de cada um de nós.
Poema de João de João de Almeida Santos Ilustração: “S/Título” JAS 2025 Original de minha autoria Novembro de 2025
POEMA – “TARDE DEMAIS”
TARDO A ENCONTRAR-TE Porque não sei Como procurar-te Guiado Por um poema, Pois não sei Onde o vento O levará.
NÃO É A VONTADE, Mas o destino A marcar Os passos Que eu darei Ou que nunca Ousarei Nas estreitas Veredas Da vida. Ah, mas isso Eu não sei, É certeza Proibida.
E TU SABES Que não sei, Mas sabes Por onde andei E onde Eu me perdi À procura do que Não podia ter, Até que te encontrei, No fim Desse caminho Que já nem sei Se trilhei Ou se o abandonei Antes de um qualquer Começo.... ........... Ah, isso Também não sei.
ÀS VEZES Encontrava-te, Encontros fugazes, Onde o teu brilho Me iluminava Por dentro E me cegava Por fora.
MAS NÃO SABIA Se te queria Para nunca Te ter, Sentir saudades Do perfume Da aurora Quando te reencontrasse Na memória fresca Dos afectos Inacabados... .................. Os mais perfeitos, Os mais cantados.
SIM, DEIXO-ME IR Nas mãos Do destino, Mas há sempre Um sobressalto, Repentino, Quando o real Me atropela Por dentro E tudo se torna Estranhamente Inóspito.
SE NÃO ME DEIXO IR Viajo para outros Lugares, Tenho sempre De viajar À procura de mim, De um espelho Onde me veja Por dentro A olhar-te Por fora, À espera do próximo Sobressalto... ................. Que nunca demora.
COMO ME PERTURBA Esse véu Que te cobre Quando te quero Pintar Com palavras, Ver-te nua, Com a alma A tiritar, Despida, À mercê dos Tumultos Que te marcam Como sulcos, Cicatrizes Ásperas Da vida.
MAS EU PROCURO-TE Com olhar Atento, Perscrutando A alma Que se aninha Em ti Para te proteger Do risco da beleza Exposta Como fractura, Aquela que os poetas Cantam Quando pressentem a Liberdade À beira Da ruptura.
TALVEZ A NOITE Também te sirva De véu E te cubra As cicatrizes Da vida, Luz coada Pela penumbra Que te amacia A alma Encrespada E te devolva Como sonho Intemporal Onde te reinventarei Como mulher Desejada... .......... Para além Do bem E do mal.
TARDO A encontrar-te No bulício Dos dias Até que no amanhecer De um poema Te reencontre E te diga Com o olhar, Sem mais, O que não posso Dizer Com estas palavras Já gastas... .................. Mas talvez já seja Tarde demais.
UM COMENTÁRIO A UM POEMA pode mesmo acontecer como acontece o próprio poema. O poema polariza e o comentador deixa-se ir. Passa a viajar lá dentro usando as mesmas asas do poeta, as palavras. Mas o Amigo que fez um comentário a um poema meu mostrou gostar muito de Sophia e a associação que fez com um poema da poetisa foi oportuna, pois na vida, tal como na poesia, a mudança vai acontecendo, ditada pelo tempo e seus caprichos. O meu poema era “Muda tudo, tudo muda”. O de Sophia era “Liberdade”, incluído em “O Nome das Coisas”. Mas, como na poesia (“sílaba por sílaba”, diz ela), também na vida a disciplina nos deve acompanhar, como quem pilota o acontecer nessa sua imensa imprevisibilidade. À disciplina só devemos acrescentar a luz, a cor e a música para temperar e avivar a sua austera cadência, “sílaba por sílaba”, dia-após-dia. Será como acrescentar liberdade ao ritmo implacável do tempo e também ao da toada poética.
2. ARCO-ÍRIS
Sim, é preciso trocar as voltas à mudança como quem renasce e volta a tornar-se criança. Na vida que muda as tormentas acontecem, mas quando passam surgem os arcos-íris a ligar as margens da nossa transitória felicidade. Os poetas, então, sobem lá para cima, sentam-se nas suas gotículas luminosas e coloridas e observam a vida que acontece cá em baixo. Fotografam-na com esses filtros luminosos e caleidoscópicos e depois lançam as imagens ao vento para que cheguem aos que transitam pelas ruas e pelas vielas esburacadas e tortuosas da vida.
3. A MUDANÇA, O VERDE E O VERDOR
Tudo muda e também o poeta muda porque não pode escapar ao tempo e às suas leis, mas sabe bem que o vento, às vezes, sopra numa certa direcção (o passado) e, então, lá vai ele de regresso revisitar o que não aconteceu, mas podia ter acontecido, se os deuses tivessem decidido que assim seria. Mas também aqui vai em registo de mudança porque vai com a maquinaria poética resgatar esse passado e trazê-lo ao futuro para o fazer acontecer… em palavras. A poesia é mudança permanente (durée) que é acompanhada por um veículo que tem as palavras como asas. Há sempre voo. A mudança é liberdade. E a própria poesia contém em si, na sua própria forma, a mudança. Pelo seu minimalismo, que a torna leve como pluma. Pelas cores, que são pintadas com palavras, e pelo seu poder de transfiguração e de transtemporalidade. Não era o Bernardo Soares que dizia que “os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor”? Com a poesia a cor muda e torna-se mais intensa, tão intensa que quase pode ser tocada com as mãos. A poesia, na verdade, dirige-se a todos os sentidos. É multi-sensorial. O “verdor” a ganhar luz e intensidade e a repropor-se como viçoso verde através da palavra. Com a sinestesia tudo se reforça ainda mais. O “verdor” torna-se, então, ainda mais intenso nas palavras que a pintura ilumina.
4. CICLOS
Os ciclos da vida que o tempo vai desenhando à nossa medida (porque também nós os vivemos como ciclos), mas numa escala muito maior do que nós, porque nos transcende, devem merecer a nossa maior atenção porque é nesta intersecção entre o tempo e nós próprios que a nossa vida decorre, num ritmo parecido com o das ondas do mar.
5. TAUMATURGIA
O silêncio e a ausência são fontes primárias de recriação do vivido em forma de sublimação. Provocam dor e, por isso, necessitam de cura. É habitual ver os poetas falarem do amor como de uma “doença da alma’ que provoca também aquilo a que o Stendhal chamou “cristalização”. A poesia é uma forma de “cristalização” que pode ser partilhada. Obra de arte aberta devido à natureza da sua linguagem. Cristaliza, mas não deixa de ser lava que continua a descer pelas encostas da vida. Oxímoro? Sim, mas esse é o desafio da poesia – trata-se de uma “cristalização” especial. Sublima e cristaliza em movimento. Fixa, mas em terreno movediço. É texto aberto, tão próximo da música como da prosa, do silêncio como da fala. Numa metáfora cabem muitos sentidos, tal como numa pauta musical existem muitas variações interpretativas, no tempo e na intensidade da execução. A liberdade dos intérpretes reside neste intervalo da modulação. Só por isso pode funcionar como remédio para a alma. Quem sente a poesia também como sua pode encontrar(-se) nela (como) um remédio para a alma. Plena performatividade. Reviver o que restou apenas como desejo. É voar mais alto do que a própria dor. Rarefazendo a sua densidade e a sua intensidade – a tristeza que se torna doce melancolia. As palavras e a (sua) música têm, num poema, um poder taumatúrgico. A poesia é taumaturgia.
6. COREOGRAFIA
Num domingo de sol talvez seja bom assistir a uma breve coreografia de palavras em cenário de dança na praia da meia-lua, ali, na Azarujinha, no Estoril. Pelo menos com a imaginação. O poeta-pintor tem de se reinventar para coreografar a sua própria melancolia. O palco é a praia da meia-lua, onde a maresia acontece com a melodia das ondas do mar como ambiente sonoro, onde a melancolia pode encontrar maior aconchego. Não são os poetas os mais melancólicos dos artistas? Talvez sejam. E não são eles os melhores intérpretes do silêncio, a ponto de sobre ele criarem sinfonias de palavras? Compositores, directores de orquestra e coreógrafos. A melancolia é filha do silêncio e da ausência e tem mesmo de ser musicada e coreografada para que se torne “doce melancolia” e possa, assim, embalar a alma do poeta e dos que gostam desta dança. Desta dança de palavras. Não há limites quando “chove na alta fantasia”, como gostava de dizer Dante Alighieri, e quando se gosta de andar à chuva para refrescar a alma. Sobe-se ao palco e partilha-se a coreografia e a sinfonia do silêncio escrita em pauta de palavras. Tornamo-nos directores de orquestra e coreógrafos, mesmo quando há o risco de revolta das palavras. E até de emergir o trítono ameaçador de dissonância e de instabilidade. Som do diabo? Mas o inferno dos poetas só existe para aquecer as almas solitárias…
7. BAGAS
“Vamos ao jardim e verás que anda por lá um novo azevinho que não dá mesmo bagas” – respondi a um Amigo que comentava o poema “As Bagas”. Um outro também não dava, queixei-me a um vizinho (o Leonel) e pedi-lhe um azevinho. Deu-mo, mas nem este me deu as tão desejadas bagas. Carente de bagas ficou o poeta e jardineiro. Depois, outra tentativa. Nicles. Cansado de tantas negativas, o poeta-pintor disse de si para si: “Ai é? Então verão o que são as bagas de um poeta”. Nasceu assim o poema e foi recriada a pintura. Quanto mais me faltas mais eu te partilho. Vingança? Não. É manifestação de gosto ou mesmo de afecto. Andam a viajar-me na alma estas bagas? Sim! Pois bem, vou convidar os meus Amigos para viajarem connosco. Viajar com bagas, não só no jardim, mas também no azul do céu. E no coração. Bagas, cintilas, estrelinhas? Sim, são luzes que brilham no céu da nossa fantasia. E que iluminam as nossas vidas.
8. FRUTOS VERMELHOS
A Montanha é o lugar preferencial onde o poeta vai à procura de remédios para a alma. Parece que foi assim na curta história de um poema: frutos da cor da paixão. Ao que parece não colheram os favores da musa e ele acabou por ficar prostrado. Na praia, libertou o corpo, mas não libertou a alma, que ficou para sempre presa à musa. Como a fantasia do poeta é grande e salvífica, o poeta viu nessa prisão da alma a sua própria salvação. Ficou preso nela e agora a sua missão é resgatar-se pela poesia. Resgatar-se sem sair dela. Sair, ficando. A condição de prisioneiro de alma é condição de luta permanente pela libertação, que nunca acontecerá, mas que será sempre tentada, garantindo assim a sua sobrevivência como poeta. Sísifo, sim. Estranho? Sim, mas real. Poeticamente real. Tudo isto aconteceu devido a um estranho encontro em que o poeta ofertou um cesto de mágicas cintilas (frutos vermelhinhos) à musa sem que ela lhe retribuísse a oferta (“não são o teu abrigo”). Tristeza de um poeta que, desde que a viu, pela primeira vez, ficou com a alma cativa (“presa a ela”). Resta-lhe a consolação de, assim, ficar junto dela. Amor não correspondido, quase não reconhecido, apesar de manifesto e verbalizado. Fracasso afectivo que o canto pode ajudar a atenuar. Livre o corpo, presa a alma. Só a fantasia pode ajudar. Creio que é isto. Uma pequena história contada por um poema. Um oxímoro: preso e livre ao mesmo tempo.
9. CHEGAR ÀS ESTRELAS
Talvez o poema “Sorrir” seja um hino ao poder de um sorriso ou de um olhar. Trocar o mundo por eles pode significar elevar à máxima potência a sensibilidade. Claro, isto é dito num poema e numa pintura. É dito na linguagem da arte, o que confere à ideia um sentido especial e uma particular responsabilidade. Estamos no mundo da sensibilidade e isso quer dizer tudo. Ou seja, ele convoca-nos para a delicadeza do encontro e do afecto. Eu dou-te um mundo diferente se quiseres viajar comigo lá no alto da fantasia. Não te dou o mundo que temos perante nós (já não é meu, como antes), mas dou-te o céu onde eu gosto de voar. Como quem diz: “vá, vem daí voar comigo no azul deste meu céu para tentarmos chegar às estrelas”. Creio ser esta a mensagem do poeta e também o grito de alma que se aninha num sorriso aberto ou num olhar comprometido com a linha do horizonte.
10. POSSUIR O MUNDO COM O OLHAR
O mundo parece ser todo nosso nos tempos de juventude, mas depois vai deixando de ser. Então, recriamo-lo com a fantasia para o podermos oferecer a quem nos seduz ou a quem queremos seduzir. É magnífica esta passagem: o tempo vai roubando o mundo que está ao alcance das tuas mãos e tu vai-lo transfigurando à medida do desejo e da fantasia. Um processo de sublimação. A arte permite essa passagem, ou seja, a transfiguração estética dessa vontade de voltar a possuir o mundo que já te falta apenas com um olhar (interior) e com a sua estilização. Até porque a arte nos permite viajar no tempo e dilatar o mundo que temos perante nós. A poesia pode dar-te mais mundo do que aquele que já tiveste.
11. MEMÓRIA
Há sonhos e sonhos. E sonhar é preciso. Neles se espelha a alma ao sabor das suas flutuações, que são também flutuações da memória. Há vida na nossa memória e ela exprime-se consoante os estímulos externos e internos que a provocam. É um imenso universo em ebulição. E é um mundo frequentado pelos poetas. É lá que estão registados os momentos de vida mais ou menos intensos. Sopra o vento e muitos desses registos vêm à superfície. E é então que o poeta os “cristaliza” operando com o “espírito apolíneo”. É esta a sua vigília: estar sempre pronto para registar e projectar esteticamente as flutuações da alma e da memória, dando-lhes vida num território superior.
12. SONHO
O teu sonho foi belo, com a natureza no seu máximo esplendor – disse a um amigo que tivera um belo sonho naquele dia. Felicidade. Mas a vigília ofereceu-lhe outra realidade. Desilusão. O do poeta nem por isso. Só inquietação e melancolia. Para ele não há vigília. Salta de sonho em sonho. O seu ambiente é sempre o do sonho (a olhos abertos). É a sua condição de poeta. Não creio que haja poetas realistas. O realismo equivale a uma baixa de tensão poética, que impossibilita a poesia. A poesia não descreve o real, mas projecta a sua intimidade, o invisível, o intangível, para níveis mais elevados, mais rarefeitos. E universais.
13. OMBREIRA
Hipérbole – a verdade é que o nosso passado está cheio de deusas, tantas quantos os nossos encantamentos. Excesso? Talvez. Depois, o silêncio – a porta simboliza-o. E os poetas são (dizem os mestres) os intérpretes qualificados do silêncio. Que nunca se deixa capturar totalmente. Dele só resta o eco. Como uma porta que só pode ser entreaberta. Os poetas entreabrem-na para poderem navegar no silêncio, nessa penumbra, ou melhor, nessa neblina que não deixa ver os perfis com nitidez. O silêncio é amigo da penumbra. Só vagas silhuetas é possível vislumbrar. Por isso é que a poesia é o melhor veículo para navegar nessa neblina. Ela fala sempre de silhuetas que se esgueiram à nitidez de um olhar. É como ficar na ombreira de uma porta olhando para dentro, para a penumbra, até à profundidade possível. Nunca até à parede lá do fundo, como na caverna do Platão. Nem as sombras são definidas. Os poetas nunca querem entrar porta adentro. Se entrassem sairiam do universo poético e esbarrariam no real. Já lhes basta a relação desajeitada e originária que tiveram com ele. O exagerado do Bernardo Soares, que não se ajeitava lá muito sequer com a poesia, dizia: não toques no real sequer com a ponta dos dedos. Em parte, isso acontece com os poetas. É perigoso. Por isso ficam sempre na ombreira da porta ou, então, vão, preferencialmente, para a janela observar a vida que flui na rua circunstante. Depois acompanham-na com palavras ritmadas. A porta dos poetas está sempre iluminada, mas só por fora, com palavras multicolores e luminescentes. Foi por isso que o gémeo pintor a iluminou com as florzinhas brancas do jasmim que tem lá no jardim encantado. E foi por isso que o poeta a cantou. Mas a luz não entra porta adentro, apenas provoca alguma luminosidade superficial. Na verdade, os poetas não convivem bem com portas escancaradas nem com excesso de luz. O seu ambiente natural é a penumbra. Se tiverem de as abrir, só as entreabrem. Eles vivem sempre num intervalo entre si e o mundo. Uma espécie de ombreira, É daí que observam a vida e interagem com o mundo. Mas entre a porta e a janela escolhem sempre a janela. Se tiver de ser a porta ficam ao nível da ombreira. Relacionam-se com o mundo como com o mistério. É um mundo de neblina. Melhor: penumbra. É uma espécie de relação suspensa com o real, com o mundo. E até com eles próprios. À procura do essencial, não da superfície das coisas. E o essencial não está disponível à vista desarmada. Para o captar os poetas usam o espelho que têm na alma (dádiva de Athena). Subtraem-se assim ao fascínio do imediato e da aparência e atingem um maior nível de profundidade. E a linguagem poética é luz que ilumina.
14. PORTAS
Há portas carregadas de mistério e por isso são sedutoras. Já fiz poemas sobre janelas, o ponto de observação mais próprio dos poetas. Mas as portas são mais difíceis: dão para a rua ou para a casa. Entra-se e sai-se fisicamente. O horizonte é mais limitado, embora possa ser fisicamente mais intenso. Não há distância que proteja. O contacto directo com a rua contamina, captura. Na janela é o olhar que domina e o horizonte é mais vasto. Mas esta porta do poema (“A Porta”) é uma porta especial. É quase uma janela. Dá para um mundo que tem lá dentro muito de ancestral e por isso a penumbra é imensa e profunda. Só com a luz da fantasia a incidir sobre a memória é possível percorrer esse vasto e tão profundo território.
15. ECO VERBAL
A poesia é uma linguagem cifrada e, enquanto poesia, não pode ser sujeita à relação verdade/falsidade, porque ela não é descritiva ou denotativa. Ela é performativa, é acção em forma de palavra, é o eco verbal de uma emoção ou sentimento. Ou do silêncio, que está localizado fora e dentro do poeta. O silêncio é ubíquo. Mas o seu eco verbal é o que o poeta ouve dentro de si. Mesmo quando parece contar uma história, às vezes a história de um instante, ela não é uma narrativa que descreve o que aconteceu. Ela é esse mesmo acontecer. O real não é exterior à própria poesia porque ele cabe todo lá dentro e só existe assim. Às vezes numa só estrofe. O real poético não tem exterior. E até a musa só vive (e sobrevive) dentro do próprio poema. Sem poesia, as musas não existem. Não devemos, pois, procurar fora os referentes do discurso poético porque eles estão todos dentro dele. JAS@11-2025
Poema de João de Almeida Santos Ilustração: “S/Título” JAS 2025 Original de minha autoria Novembro de 2025
"S/Título". JAS 2025
POEMA – “VENTO DO DESERTO”
IRROMPESTE Como rosto Esculpido Com arte Pelo vento Num dia De neblina Um pouco frio E cinzento.
EM TEUS CABELOS Se reflectia A beleza Do teu rosto E tu resistias Ao vendaval De palavras Que o vento, Teimosamente, Ia soprando Sobre ti.
UM VÉU Cobria-te Levemente Como tecido De mensagem Cifrada Trazida Pelo vento, Pelo tempo Desenhada.
MAS TU FUGIAS Para dentro De ti E esculpias Com tuas mãos Outra mensagem, Pó do deserto Sobre véu Em filigrana.
VINHA DO DESERTO, O vento, E trouxe consigo A Medusa Para petrificar A tua imagem?
SIM, PORQUE TU, Sem um espelho Na alma E olhar Incerto, Ias-te Petrificando Como escultura Soprada Pelos deuses Do deserto.
ERAM RISCOS A três dimensões E desafiavam As finas letras Que eu ia Desenhando A preto e branco, Mas com cor E luz Por dentro, Para melhor Te ver E te tocar, Docemente, No fio Do horizonte, Onde, com elas, Se cristalizava O meu desejo De ti, Como lava Ardente.
AH, ESSE ROSTO Que o poema Cantará Fustigado Pelo vento Do deserto Em fuga vã Desse lugar De onde Nunca sairá...
ROSTO ESCULPIDO Por ti, Como Medusa De ti própria, Sem saber Que quanto mais Te desenhares, Petrificada, Mais te suspendes Sobre estas mãos Que, de longe, Te acariciam Com palavras E te elevam Ao Parnaso... .............. O que me sobra De ti, Inelutável Ocaso De tudo O que eu senti.
1513-2013. Quinhentos anos de Il Principe, de Maquiavel, foram uma boa ocasião para relembrar que o secretário florentino deu o pontapé de saída para o arranque da ciência política. Chamou-a à terra, procurou racionalmente encontrar um ponto de observação que lhe permitisse compreender os comportamentos dos homens em sociedade e, em particular, nas suas relações com o poder do príncipe. Partiu de uma antropologia pessimista ancorada numa natureza humana complexa, volúvel e instável e verificou que uma razão política estrategicamente orientada deve seguir com atenção as ondulações do comportamento humano se quiser atingir os seus objetivos. Também se pode dizer que tornou explícito aquilo que o realismo político há muito vinha praticando sem plena autoconsciência e sem sistematização. Carl Schmitt ancorou nele essa ideia de que a política só progride lá onde há pessimismo antropológico e onde, claro, é a política che procura administrá-lo da forma mais eficaz. Maquiavel retirou à política a ganga teológica e moral, devolvendo-a pragmaticamente aos exercícios da razão instrumental ao serviço de um governo eficaz. E foi por isso que chegou tão longe, apesar de tantos clássicos do pensamento, designadamente italiano, o terem incompreensivelmente esquecido.
1513-2013. Cinquecento anni di Il Principe, di Machiavelli, sono stati una buona opportunità per ricordare che è stato il segretario fiorentino a far nascere la scienza politica. L’ha fatta scendere dalle nuvole, cercando razionalmente di trovare un punto d’osservazione che permettesse di comprendere i comportamenti degli esseri umani in società e, sopratutto, i loro rapporti col potere del principe. Ha iniziato il suo percorso da un’antropologia pessimistica fondata su di una natura umana complessa, volubile e instabile e ha verificato che una ragione politica strategicamente orientata dovrà adeguarsi alle ondulazioni del comportamento umano se vorrà raggiungere i suoi obbiettivi. Possiamo anche dire che ha fatto diventare esplicito ciò che il realismo politico da molto esercitava senza averne autocoscienza e senza sistematizzazione. Carl Schmitt ha riconosciuto che è stato Machiavelli a fondare la politica sul pessimismo antropologico e a riconoscere che, su questo fondamento, è proprio la politica che può amministrare il potere nel modo più efficace. Machiavelli ha sottratto dalla política sia la teologia sia la morale, riconducendola prammaticamente ad una ragione strumentale al servizio di un governo efficace. Ed è stato proprio per questo che è arrivato così lontano, nonostante tanti classici, specie italiani, lo abbiano in modo incomprensibile dimenticato per tanti anni.
Parole-chiave – politica, pessimismo antropologico, natura umana, principe, popolo
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1513-2013. Five hundred years of Machiavelli’s Il Principe was a good occasion to remember that the florentine secretary gave the kick-off for the start of political science. Calling it to the ground, he tried to rationally find a vantage point that would allow him to understand the behaviour of men in society and particularly in its relations with the power of the prince. He started from a pessimistic anthropology anchored in a complex, volatile and unstable human nature and verified that, to achieve its objectives, a strategically oriented political reason must follow the ripples of human behaviour closely. One can also say that he made explicit what without full self-consciousness and without systematization political realism had long been practicing. Carl Schmitt anchored in him the idea that politics can only progress where there is anthropological pessimism and in which, of course, politics seek to manage it most effectively. Machiavelli withdrew theological and moral principles from politics, pragmatically returning it to the exercise of instrumental reason. And that is why he has gone so far, although so many thinkers, including italians, have incomprehensibly forgotten him.
Keywords: politics, anthropological pessimism, human nature, prince, people
Sommario:
1. Politica e Pessimismo Antropologico 2. Schmitt, il Politico e il Rapporto Amico-Nemico 3. Politica e Ottimismo Antropologico 4. Machiavelli e la Meccanica dei Processi Politici 5. Machiavelli e il Popolo 6. Machiavelli e la Dittatura 7. Conclusione: Machiavelli e la Natura Umana 8. Note 9. Bibliografia
«E torna l’idea antica, anzi orientale, il circolo delle cose umane, che domina in tutti gli storici del Rinascimento, e nel Machiavelli a capo di tutti: la storia è una vicenda di vite e morti, di beni e mali, di felicità e miserie, di splendori e decadenze».
Benedetto Croce (1976: 224-225).
GIORNI FA HO RIPROPOSTO un piccolo saggio su La Sinistra e la Natura Umana (Santos, 2025), dove sostenevo, tra l’altro, che per la sinistra non esiste natura umana poiché «l’uomo è ciò che può diventare» (Gramsci) o «l’esistenza precede l’essenza» (Sartre). Ossia, la natura umana è un costrutto, prodotto del processo storico-sociale. Si acquisisce, non preesiste all’esistenza, alla vita sociale, alla storia. E così, non potendo fondarsi la politica su di una preesistente antropologia, bisogna ricondurla all’esistenza, alla società, alla storia: la natura umana come processo.
Invece, pare che la storia del pensiero politico registri, in effetti, un persistente sfondo antropologico – esplicito o implicito – in cui si iscrivono le teorie e le dottrine politiche, almeno da Machiavelli in poi (giacché prima lo sfondo era teologico oppure ontologico). Sfondo antropologico che, d’altronde, rimanda agli uomini dell’umanesimo italiano dei XV e XVI secoli e alla loro rivalutazione della mondanità e dei suoi valori profani, tra cui il denaro, dei valori e dei compiti umani strettamente laici e contingenti (Leonardo Bruni, Lorenzo Valla, Leon Battista Alberti, Alessandro Piccolomini, tra altri) (1). Ce lo ricorda anche Croce: «Niccolò Machiavelli è considerato schietta espressione del Rinascimento italiano; ma converrebbe insiememente ricongiungerlo in qualche modo al movimento della riforma, a quel generale bisogno che si avvivò nell’età sua, fuori d’Italia e in Italia, a conoscere l’uomo e a ricercare il problema dell’anima» (Croce, 1973: 204-205). Che poi, nonostante tutto, alcune correnti di pensiero non accettino di ricondurre, per certi aspetti, l’analisi della realtà politico-sociale ad uno sfondo antropologico elementare, ma socialmente molto pregnante e vitale, fa si che paghino, per questo, il prezzo di non capire una parte consistente della realtà storico-sociale. Certo, l’analisi strutturale non è in nessun caso spregevole, ma anche la visione antropologica del mondo non lo è. Soprattutto quando si parla di politica.
1. Politica e Pessimismo Antropologico
Che ci sia un pensiero antropologico implicito nel Machiavelli pare non ci siano dubbi. Che questo pensiero si possa definire come pessimismo antropologico pare, sotto certi aspetti, sia anche vero: «li uomini sempre ti riusciranno tristi [cattivi], se da una necessità non sono fatti buoni», dice Machiavelli in Il Principe (1966: 115).
E in effetti egli viene regolarmente inserito nella scuola del pessimismo antropologico, per non dire nella scuola degli scellerati, degli assassini, di quelli che predicano la bontà della congiura e degli assassinati, come fa Federico II, nel suo Antimachiavelli, del 1741: «i cattivi esempi che Machiavelli propone ai principi sono di una malvagità imperdonabile» (1987: 61), «ma se Machiavelli non avesse posto come premessa la malvagità del mondo, su che cosa avrebbe basato la sua abominevole teoria»? (1987: 81) (2). «Malvagità del mondo»: la premessa di Machiavelli o il suo pessimismo antropologico, registrato da Federico II. Però, questo registro pessimistico non scaturisce dall’«intento di distruggere i principi di una sana morale», corrompendo la politica, come voleva Federico II, criticandolo subito nella Prefazione del suo Antimachiavelli (1987: 3). Questo registro pessimistico scaturisce, invece, a mio parere, più da uno sfondo realistico, da una profonda conoscenza dell’essere umano, dall’imperfetta natura umana in atto e da un freddo e puramente strumentale uso della ragione analitica, riscontrabile nei suoi scritti, che da un’intenzione malvagia o da una visione filosofica della natura umana, fondata su dei valori o su delle posizioni di principio riconducibili a fondamenti metateoretici. Le parole di Croce, che fungono da leimotiv di questo saggio, sono molto chiare a questo riguardo: «la storia è una vicenda di vite e morti, di beni e mali, di felicità e miserie, di splendori e decadenze». Registro narrativo diverso è quello dei contrattualisti (Hobbes, ad esempio), dove lo sfondo antropologico serve strumentalmente una narrativa politica che cerca di trovare un fondamento legittimo all’idea di Stato rappresentativo moderno.
Dice Carl Schmitt (1972: 143): «si potrebbero analizzare tutte le teorie dello Stato e le idee politiche in base alla loro antropologia, suddividendole a seconda che esse presuppongano, consapevolmente o inconsapevolmente, un uomo cattivo per natura o buono per natura». Distinzione che Schmitt (1972: 143) non considera morale o etica, bensì problematica, vale a dire, come risposta alla domanda «se l’uomo sia un essere pericoloso o non pericoloso, amante del rischio o innocentemente timido». Problematica: vuol dire che può servire da filo conduttore, da guida ad un percorso teoretico ed interrogativo intorno alla natura della politica. Citando Wilhelm Dilthey, Schmitt (1972: 144) chiarisce, così, la posizione del Machiavelli su questo punto: «l’uomo per Machiavelli non è cattivo per natura», dice Dilthey, però «alcuni suoi passi sembrano dire ciò… Ma egli vuol solo esprimere l’idea che l’uomo ha una inclinazione irresistibile a scivolare dalla cupidigia alla cattiveria, se nulla gli si oppone: animalità, istinti, affetti sono il nocciolo della natura umana, in primo luogo l’amore e la paura. Machiavelli è inesorabile nelle sue considerazioni psicologiche sul gioco degli affetti… Da questa tendenza di fondo della nostra natura umana egli trae la legge fondamentale di tutta la vita politica».
Uomo non cattivo per natura, però con inclinazione irresistibile che va dalla cupidigia alla cattiveria: animalità, istinti, affetti, amore, paura – tutte caratteristiche che nel discorso di Machiavelli funzionano come variabili del sistema politico. A cui si potrebbe aggiungere ancora la categoria dell’errore nel senso di una indebita sovradeterminazione (ideologica, pulsionale, passionale o emozionale) dell’uso della ragione strumentale nell’azione politica o nella gestione dei processi politici. Come dice Thierry Ménissier (2012: 61-62): «perché è alle passioni tradizionalmente intese come ciò che spinge l’uomo a compiere atti irrazionali ed egoistici che Machiavelli riconosce un ruolo fondamentale in tutta la collettività umana normale». Ossia, dice Ménissier, «Machiavelli giunge ad una rappresentazione della politica intesa come gioco delle passioni».
Le parole di Dilthey, proprio come quest’ultime, sembrano confermare l’idea di presenza nel Machiavelli di un immenso sforzo analitico di approssimazione alla complessa, volubile, impura ed imperfetta realtà umana coinvolta nei processi politici. E così direi che da questa ten- denza di fondo risulta – più che una legge fondamentale, come vuole Dilthey – un filo conduttore della sua fredda analitica in filigrana della meccanica della società e dei processi politici, dei rapporti umani, dei rapporti di società e, soprattutto, della meccanica del potere, da Il Principe (1513) ai Discorsi sopra la Prima Deca di Tito Livio (1513-1519). D’altronde, lo possiamo confermare, ancora una volta, con le parole di Benedetto Croce in Etica e Politica: «Ed è risaputo che il Machiavelli scopre la necessità e l’autonomia della politica, della politica che è di là, o piuttosto di qua, dal bene e dal male morale, che ha le sue leggi a cui è vano ribellarsi, che non si può esorcizzare e cacciare dal mondo con l’acqua benedetta. È questo il concetto che circola in tutta l’opera sua e che, quantunque non vi sia formulato con quella esattezza didascalica e scolastica che sovente si scambia per filosofia, e quantunque anche vi si presenti talvolta conturbato da idoli fantastici, da figure che oscillano tra la virtù politica e la scelleraggine per ambizione di potere, è da dire nondimeno concetto profondamente filosofico, e rappresenta la vera e propria fondazione di una filosofia della politica. Ma quel che di solito non viene osservato è l’acre amarezza con la quale il Machiavelli accompagna questa asserzione della politica e della sua intrinseca ne- cessità. Se gli uomini fossero tutti buoni (egli dice), questi precetti non sariano buoni. Ma gli uomini sono ingrati, volubili, fuggitori di pericoli, cupidi di guadagno; sicché conviene pensare piuttosto a farsi temere che amare, provvedere prima al timore e poi, se è possibile, all’amore. Bisogna imparare a essere non buoni; bisogna che tu manchi di fede quando ti giovi, perché altrimenti gli altri ne mancherebbero a te» (Croce, 1973: 205).
È questo sfondo che porta Machiavelli a delineare il percorso che la ragione tecnica deve fare tra le variabili che compongono quella natura umana che viene coinvolta nell’azione e nei processi politici.
2. Schmitt, il Politico e il Rapporto Amico-Nemico
Sappiamo che Schmitt fonda il concetto di politico sul rapporto strutturale amico-nemico (Freund-Feind), non proprio in senso antropologico, bensì in senso strettamente dialettico su sfondo ontologico o, al limite, in senso intersoggettivo (tra popoli, intesi come soggetti collettivi). Questo rapporto riguarda i popoli, le loro relazioni in tensione vitale, in quanto estranei tra di loro, non i singoli soggetti (vedasi Santos, 1999: 9-11). Ed ha, perciò, dimensione pubblica, non privata, esprimendosi come «l’estremo grado di intensità di un’unione o di una separazione, di un’associazione o di una dissociazione» (Schmitt, 1972: 109). E, tuttavia, soggiace senz’altro a questo rapporto strutturale della politica – che lo distingue dal rapporto morale (buono-cattivo), estetico (bello-brutto) o economico (utile-che nuoce) – un pessimismo antropologico evidente, peraltro riconosciuto da Schmitt: «teorici della politica come Machiavelli, Hobbes, spesso anche Fichte, con il loro pessimismo in realtà non fanno altro che presupporre la reale possibilità o concretezza della distinzione di amico e nemico. In Hobbes, un pensatore davvero grande e sistematico, la concezione pessimistica dell’uomo, la sua esatta comprensione che proprio la convinzione, presente nelle due parti antagoniste, di essere nel buono, nel giusto e nel vero provoca le ostilità più violente, e alla fine addirittura il bellum di tutti contro tutti, devono essere intese non come parti di una fantasia paurosa e sconvolta, e neanche solo come filosofia di una società borghese fondata sulla libera concorrenza (Tönnies), ma come presupposti elementari di un sistema di pensiero specificamente politico» (1972: 150).
Anche il rapporto amico-nemico, costituente del politico, che coinvolge soggetti collettivi, popoli, alla fine può anch’esso essere riconducibile ad una evidente antropologia d’ispirazione pessimistica, poiché questa pulsione radicale ed antagonistica non esisterebbe se gli uomini fossero buoni per natura e cercassero la pace invece della guerra.
Secondo Schmitt (1972: 145), viceversa, l’ottimismo antropologico è contrario alla politica, tende ad annullarla o, perlomeno, a farla diventare residuale, subordinata o surrogata. Questo ragionamento ottimistico lo vediamo in atto presso i liberali e gli anarchici: essi non costruiscono (non possono costruire) una teoria politica positiva, essendogli permessa soltanto una critica della politica e una visione dello Stato come entità subordinata alla società o, per dirla con Thomas Paine, come risultato dei nostri vizi. Una concezione, dunque, negativa dello Stato e della politica. È questo il senso della concezione negativa della libertà dei liberali. Parlando dello Stato e proprio sotto questo registro, Norberto Bobbio (1981: VII) afferma: «Hegel continuava la tradizione del giusnaturalismo moderno iniziato con Hobbes nel considerare lo stato come il momento positivo dello sviluppo storico dell’umanità, e che soltanto dopo Hegel, e in parte contro Hegel, tutte le correnti vive del pensiero politico ottocentesco, dal socialismo utopistico a quello scientifico, dall’anarchismo in tutte le sue forme al liberalismo fautore dello stato minimo, dal darwinismo sociale al vitalismo nietzscheano, avevano completamente rovesciato l’immagine tramandata del corso storico, abbassando lo stato a momento negativo di cui l’umanità avrebbe dovuto liberarsi o rendendolo sempre più innocuo o sopprimendolo o lasciandolo estinguere» (3).
E chi parla di Stato parla anche di politica. Si conferma così, in queste parole di Bobbio, quella che risulta essere la concezione di Schmitt sulla politica quando fondata su di un ottimismo antropologico, come avremo occasione di vedere più avanti. Ossia, quando lo Stato e la politica diventano momenti negativi del processo storico-sociale, alla fine dello Stato segue la fine della politica stessa, avendosi, dopo, la redenzione piena della vita comunitaria originaria oppure della vita privata in tutto il suo splendore. Fine della Storia.
3. Politica e Ottimismo Antropologico
Ed è vero, nella storia del pensiero politico troviamo ottimismi antropologici che fungono da fondamento a diverse teorie politiche: i liberali, come detto, dove la politica (lo Stato) serve soltanto a preservare la libertà civile/privata, non politica (vedasi il discorso di Benjamin Constant al Reale Ateneo di Parigi, nel 1819, sulla libertà dei moderni paragonata a quella degli antichi); gli anarchici, rappresentanti del rifiuto radicale dello Stato, fonte di tutti i mali; Rousseau, con il suo discorso sull’origine della diseguaglianza tra gli uomini e sui danni provocati alla celestiale comunità originaria dalla comparsa della proprietà privata; i marxisti che, seguendo Rousseau, vedono anche loro nella proprietà privata e nelle forme di organizzazione politica corrispondenti l’origine dell’alienazione e dello sfruttamento degli uomini, assumendo, in modo tacito, un originario stato di bontà umana da ricostruire attraverso la società comunista, dalla quale spariranno la proprietà privata, le classi, lo Stato e la politica stessa. Queste antropologie (esplicite o implicite) ottimistiche hanno avuto conseguenze politiche: per i liberali, la libertà corrispondeva all’assenza dello Stato dalla vita privata degli individui («Tout ce qui n’est pas défendu par la Loi ne peut être empeché» – art. 5 della Dichiarazione dei Diritti dell’Uomo e del Cittadino), così come per gli anarchici, in modo ancora più radicale; per Rousseau la libertà verrebbe ripresa attraverso il contratto sociale, laddove sarebbe un corpo morale e collettivo, lo Stato commissario (non veramente rappresentativo: per i liberali la politica risiedeva proprio nella rappresentanza), a garantirla (4); per i marxisti la libertà sarebbe rimessa nella società che avesse annullato la proprietà, le classi e lo Stato stesso e avesse reintrodotto la logica comunitaria (non è un caso che la società futura venga designata come comunista). L’utopia dei liberali sarebbe lo Stato minimo e suppletivo, ossia la politica minima (confinata appunto al livello della rappresentanza); quella degli anarchici la fine dello Stato e di ogni forma d’organizzazione; quella di Rousseau, un po’ più complessa: da una parte, nel Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes (1754), egli glorifica la vita comunitaria e campestre come vita felice e secondo l’ordine naturale, subito disturbata quando il primo uomo ha deciso di recintare un po’ di terra, chiamandola sua, ossia introducendo un ordine convenzionale; dall’altra, egli propone nel Contratto Sociale (1762) un superiore superamento del caos provocato da questa proprietà privata attraverso la costituzione di un nuovo corpo morale e collettivo (uno Stato commissario) dove i vizi provocati dall’introduzione della proprietà verranno risolti, ossia, dove la giustizia e la morale sostituiscono l’istinto, il dovere, l’impulso fisico, il diritto, l’appetito, la ragione, le sue inclinazioni – laddove l’uomo acquisisce una libertà che diventa anche morale e obbedisce solo alla legge che egli, collettivamente, ha dato a se stesso. Così il contratto sociale serve solo a risolvere i danni provocati dalla proprietà privata attraverso la costituzione di un corpo morale e collettivo dove la politica in senso convenzionale (come rappresentanza) è assente. In tutte queste teorie o dottrine politiche vediamo in modo palese la presenza di argomenti filosofici che fondano le posizioni sul potere sociale. Il potere come surrogato della civil society; il potere come usurpazione che bisogna, dunque, sopprimere; il potere come corpo morale e collettivo. Dietro a queste posizioni c’è un ottimismo antropologico esplicito o implicito che in qualche modo determina (o ne è conseguenza dimostrativa) il disegno (politico) generale. E, se seguiamo Carl Schmitt, verifichiamo che laddove troviamo posizioni di questo tipo non troviamo teoria o dottrina positiva sulla politica e sullo Stato, anche perché questo, nell’ottimismo antropologico, viene concepito negativamente, come qualcosa che interrompe la bontà naturale degli individui: Stato minimo e suppletivo, per i liberali; fine dello Stato per gli anarchici e marxisti; Corps morale et collectif che redime l’originario peccato proprietario, per Rousseau (5).
Schmitt dice, in effetti, che i liberali non hanno prodotto teoria politica sostanziale; neanche Marx e i marxisti, è vero, hanno prodotto una teoria dello Stato consistente e rilevante (vedasi Bobbio, 1999: 132-147; e 243-251); gli anarchici nemmeno, come pare ovvio; Rousseau neanche, avvicinandosi ad una logica da commissariato, estranea alla teoria moderna dello Stato rappresentativo. Per gli altri, si veda quel che, con Bobbio, abbiamo su riferito. Si capiscono facilmente queste conseguenze poiché lo Stato non viene compreso come entità a sé, bensì come surrogato della realtà sociale, essa sì, veramente sostanziale. Ossia, pare che in tutte queste teorie abbiamo a che fare con delle posizioni a sfondo ontologico, sì, ma dove lo Stato non supera una dimensione ontica o semplicemente strumentale. Da superare, quindi.
Altri sono, poi, gli autori ai quali, costatando il loro pessimismo antropologico, Schmitt riconosce, altresì, un effettivo contributo al pensiero politico: Machiavelli, Hobbes, Bossuet, Fichte, De Maîstre, Donoso Cortés, H. Taine e anche Hegel (dal doppio volto). Vediamo, quindi, ciò che dice Schmitt: «Perciò resta valida la constatazione stupefacente e per molti sicuramente inquietante che tutte le teorie politiche presuppongono l’uomo come cattivo, che cioè lo considerano come un essere estremamente problematico, anzi ‘pericoloso’ e dinamico». E più avanti: «In un mondo buono fra uomini buoni domina naturalmente solo la pace, la sicurezza e l’armonia di tutti con tutti; i preti e i teologi sono qui altrettanto superflui dei politici e degli uomini di Stato» (1972: 146; 149). Certo, in questo mondo, la politica (ma, a quanto pare, anche la religione istituzionale) non può essere ricondotta alla distinzione fondamentale di Schmitt, quella tra amico-nemico. E, così, nel senso in cui viene concepita dal nostro autore, la politica sparisce, svanisce nel nulla. Ovvero non può essere concepita nemmeno come dimensione strumentale, come mero surrogato. C’è poi bisogno di aggiungere che, in questo senso, l’idea di Stato come «monopolio dell’uso legittimo della forza» non ha più senso proprio perché lo Stato non sarebbe più necessario o, perlomeno, l’idea di Stato perderebbe il senso che nel tempo aveva acquisito. Sappiamo che Hegel è stato il grande accordatore (se posso usare questo verbo d’origine musicale) dell’idea di Stato. In primo luogo, per toglierle la connotazione d’interesse che la contaminava dai tempi e dai modi della narrativa giusnaturalista, come sostiene Norberto Bobbio nei suoi Studi Hegeliani. In secondo luogo, perché egli stesso vedeva il mondo empirico, la società civile, come il regno del caos in modo tale che solo l’Idea e il suo corpo organico, lo Stato, erano in grado di risolvere e di superare, diventando il suo vero fondamento, «ihr wahrhafter Grund» (Hegel, 1976: § 256, p. 397; e §§ 238-307, pp. 386-476). Ossia, Hegel, che del mondo empirico ha una visione negativa, anche quando questo mondo vieneconvertito (entgegengearbeitet) in opposizione logica – e, proprio per ciò, come negazione logica – all’interno di un processo dialettico ideale, può così sviluppare una teoria positiva dello Stato, eliminando le contaminazioni provenienti dalla società civile e potendo, così, consolidare la sua natura ideale e universale.
Senza questo intervento hegeliano e senza il presupposto su riferito non sarebbe stata possibile una vera teoria dello Stato. Anche qui siamo davanti ad una prospettiva simile al pessimismo antropologico: lo Stato funge da unificatore formale della molteplicità indiscriminata e caótica (6).
4. Machiavelli e la Meccanica dei Processi Politici
Perché, poi, tutto questo, parlando di Machiavelli? Perché è qui che risiede una delle questioni centrali della teoria politica e perché la discussione sul machiavellismo di Machiavelli (vedasi Bento, 2012a) si deve porre intorno a questo problema. Non lo ha fatto Federico II e, perciò, ha commesso troppi errori di lettura, nel suo Anti-Machiavelli (1747): una lettura sbagliata e angelica/malefica di Il Principe (1513), dalla prefazione alle ultime pagine. Ma anche il Guicciardini non lo ha fatto quando lo definisce uno «scrittore al quale sempre piacquono sopra modo e’ remedi estraordinari e violenti» (Berardi, 1984: 13).
In effetti, sotto l’analitica di Machiavelli c’è un pessimismo antropologico evidente, come riconosciuto dallo stesso Federico II, laddove nei suoi disegni razionali della meccanica dei processi politici adopera come variabili di questo sistema tutte le caratteristiche specificamente umane (psicologiche, istintuali, passionali, morali, fisiche, razionali, sociologiche) coinvolte in ogni azione, decisione o intenzione politica. Si può vederlo in atto leggendo Il Principe o i Discorsi Sopra la Prima Deca di Tito Livio (1513-1519). Per esempio, nel cap. VI del libro III dei Discorsi, Delle congiure, se non troviamo una parola d’incitazione a praticare la congiura, bollata qui come cattività o giudicata anche all’insegna dell’ingratitudine (1966: 318), ad ammazzare o ad avvelenare i principi, invece troviamo una fredda analitica in filigrana della meccanica della congiura, della sua organizzazione e delle variabili che bisogna prendere in considerazione se si vuole avere successo nell’operazione, tante volte usando la nota tecnica della dicotomia, per meglio spiegarsi (le congiure «si scuoprono o per relazione o per coniettura»; si fanno «o contro alla patria o contro ad uno principe»; «quegli che congiurano, o ei sono uno o ei sono più» (1966: 315, 317, 319; italico mio) (7). Svolgendo questa analitica a fini di conoscenza, Machiavelli serve, certo, gli interessi dei principi, ma serve anche l’interesse d’ogni possibile congiurato, consigliandolo ad avere timidezza o prudenza (8). Dice Machiavelli, nel Libro III, cap. VI, sempre sulle congiure, dei Discorsi: «Ei non mi è parso di lasciare indietro il ragionare delle congiure, essendo cosa tanto pericolosa ai principi ed ai privati (…). Acciò che adunque i principi imparino a guardarsi da questi pericoli, e che i privati più timidamente vi si mettino; anzi imparino ad essere contenti a vivere sotto quello imperio che dalla sorte è stato loro proposto» (1966: 315).
L’analisi punta alla conoscenza della meccanica dei processi umani e, perciò, la conclusione (il consiglio) sul coinvolgimento dei privati nelle congiure non è, anche qui, di tipo morale poiché la si deduce dal pericolo (di morte) che esse rappresentano per tutti quelli che le promuovono o eseguono: «gli uomini privati non entrano in impresa più pericolosa né più temeraria di questa: perché la è difficile e pericolosissima in ogni sua parte. Donde ne nasce che molte se ne tentano e pochissime hanno il fine desiderato» (1966: 315). Machiavelli non cerca di dissuadere gli eventuali congiurati, a difesa del principe, ma neanche a promuovere la congiura nei confronti di un principe considerato cattivo. Egli punta soprattutto al sapere, alla conoscenza, non avendo molto senso le posizioni radicali che, nel tempo, tanti intellettuali illustri (il cardinale Reginaldo Polo, Diderot, Rousseau) hanno assunto circa gli obiettivi nascosti del Machiavelli quando scrive Il Principe: insegnare al popolo la meccanica del potere per meglio conoscere chi lo governa oppure «per indicare ai tiranni la via della loro rovina». Non pare, comunque, che l’obbiettivo centrale del Machiavelli sia stato proprio rivoluzionario (su questo vedasi Santos, 2012: 140-141). Vediamo, quindi, cosa si può dire al riguardo.
5. Machiavelli e il Popolo
Ma allora si potrebbe anche dire lo stesso circa i Discorsi Sopra la Prima Deca di Tito Livio. In effetti, lo si può verificare nei suoi lunghi discorsi, nell’argomentare intorno ad ogni tema, prendendo in considerazione i vantaggi e gli svantaggi delle diverse soluzioni e analizzando tutti gli argomenti possibili intorno ad un tema. Per esempio, Machiavelli, nel Libro I, Cap. XXXIV e XXXV, arriva alla formulazione dei vantaggi della manutenzione e della separazione dei diversi poteri quando riflette sulle differenze tra la tirannia del Decemvirato e l’autorità dittatoria romana, anticipando quella che sarebbe diventata la più famosa proposta del Montesquieu di Lo Spirito delle Leggi (1748) (9); arriva anche a formulare l’idea del governo delle leggi (non degli uomini), i suoi vantaggi, in modo analitico, ossia in discorso argomentativo; ma formula anche, in modo molto sui generis, quello che soltanto più tardi sarebbe stato teorizzato dai contrattualisti, ossia la superiorità, con tutti i vantaggi politici connessi, del governo del popolo su quello del principe, della repubblica sul principato, del primato del potere ex parte populi su quello ex parte principis. Vediamo, poi, quel che dice nel Libro I, Cap. LVIII, dei Discorsi: «ci sono assai esempli, ed intra gl’imperadori romani ed intra gli altri tiranni e principi; dove si vede tanta incostanzia e tanta variazione di vita, quanta mai non si trovasse in alcuna moltitudine. Conchiudo adunque contro alla comune opinione, la quale dice come i popoli, quando sono principi [quando hanno il potere], sono varii, mutabili ed ingrati; affermando che in loro non sono altrimenti questi peccati che siano ne’ principi particulari. (…) un principe sciolto dalle leggi sarà ingrato, vario e imprudente più che un popolo» (Machiavelli, 1966: 224-225; italico mio); «Ma quanto alla prudenzia ed alla stabilità, dico come un popolo è più prudente, più stabile e di migliore giudizio che un principe. E non sanza cagione si assomiglia la voce d’un popolo a quella di Dio»; e, finalmente, «il che non può nascere da altro, se non che sono migliori governi quegli de’ popoli che quegli de’ principi» (Machiavelli, 1966: 226; italico mio).
Questa chiarissima posizione di Machiavelli pare anticipare senz’altro il discorso dei giusnaturalisti, l’emergenza del popolo come soggetto politico, ma pare altrettanto dar ragione ai suoi critici, ossia, a quelli che hanno visto nelle sue riflessioni, soprattutto, un discorso volto a favorire il potere d’impronta popolare, a insegnare ai popoli le tecniche del governo, svalutando i principati. Posizione contrastata da uno dei suoi innumerevoli critici, peraltro suo amico, Francesco Guicciardini (1984: 41): «Di male vi è, che el popolo per la ignoranzia sua non è capace di deliberare le cose importante, e però presto periclita una republica che rimette le cose a consulta del popolo».
Ma ciò che mi preme sottolineare è che Machiavelli, per via analitica, riesce ad entrare in anticipo in quei sofisticati meccanismi che i teorici del sistema rappresentativo avrebbero introdotto, più tardi, nella teoria politica. E anche che la sua è un’opera svolta soprattutto all’insegna del suo pessimismo e realismo antropologico.
6. Machiavelli e la Dittatura
Ma vediamo più da vicino ciò che dice Machiavelli su quest’«autorità dittatoria» di cui parla nel Libro I dei Discorsi (Cap. XXXIV e XXXV). Il paragone viene fatto tra i Decemviri e il Dittatore: avendo entrambi poteri eccezionali, i Decemviri, tuttavia, hanno abolito le istituzioni che potevano moderare l’uso del potere, mentre il secondo coesisteva con queste istituzioni, specie con il Senato, i Tribuni ed i Consoli, funzionando la sua magistratura in un registro di tipo checks and balances. Mentre i primi esercitavano il potere come dittatura sovrana, l’altro lo esercitava come dittatura commissaria (Schmitt). Ossia, nei primi si esauriva l’ordine costituzionale; nel secondo, l’ordine costituzionale gli sottostava poiché la figura del Dittatore era prevista in questo stesso ordine («dato secondo gli ordini pubblici», «per vie ordinarie», Machiavelli, 1966: 188), non potendo, questo, in nessun modo, cambiare quest’ordine. In effetti, il Dittatore, potremmo dire nel segno di Hans Kelsen (10), essendo previsto e regolato dall’ordine costituzionale, ricava dall’ordinamento giuridico la sua stessa legittimità. Ciò che non avviene con i Decemviri o qualsiasi dittatura sovrana, dove il principio di legittimità può solo essere fondato politicamente. D’altronde questa riflessione sui due tipi di potere eccezionale è molto interessante e significativa poiché, essendo i Decemviri eletti e il Dittatore nominato dal Senato o da un Console, si vede che Machiavelli valorizza molto di più l’ordine costituzionale e legale – che prevede i tempi e i modi di concedere l’autorità assoluta – arrivando addirittura a metterla a confronto con l’autorità data da’ suffragi liberi. Questa posizione ci porta a ripensare ciò che Machiavelli dice sul rapporto tra popolo e principe, valorizzando il primo sul secondo, poiché il suffragio, riconducendo inevitabilmente al suo fondamento popolare, può anch’esso essere valorizzato solo all’interno di un ordine costituzionale e legale razionale (bene ordinato), potendo essere deviato se l’autorità non viene data «con le debite circunstanze e ne’ debiti tempi», com’è successo con i Decemviri (1966: 190). Popolo, suffragio, ordine costituzionale-legale razionale, autorità, modalità e temporalità del potere – questi paiono essere gli elementi che fondano le basi di una repubblica ben ordinata: «e principali fondamenti che abbino tutti li stati, così nuovi come vecchi o misti, sono le buone legge e le buone arme», diceva in Il Principe (1966: 86); «talché mai sia perfetta una repubblica, se con le leggi sue no ha provisto a tutto, ed ad ogni accidente posto il rimedio e dato il modo a governarlo», diceva nei Discorsi (1966: 189; italico mio). Ossia: una repubblica che non permetta un’autorità assoluta (dittatura sovrana), poiché essa «in brevissimo tempo corrompe la materia e si fa amici e partigiani» (Machiavelli, 1966: 190).
Dalle seguenti parole di Machiavelli (1966: 190) si può confermare quanto detto: «e se si considerrà l’autorità che ebbero i Dieci e quella che avevano i Dittatori, si vedrà sanza comparazione quella de’ Dieci maggiore. Perché creato il Dittatore, rimanevano i Tribuni, i Consoli, il Senato, con la loro autorità; né il Dittatore la poteva tòrre loro: e s’egli avesse potuto privare uno dello Consolato, uno del Senato, ei non poteva annullare l’ordine senatorio e fare nuove leggi. In modo che il Senato, i Consoli, i Tribuni, restando con l’autorità loro, venivano a essere come sua guardia a farlo non uscire della via diritta. Ma nella creazione de’ Dieci occorse tutto il contrario: perché gli annullorono i Consoli ed i Tribuni, dettero loro autorità di fare legge ed ogni altra cosa, come il Popolo romano. Talché, trovandosi soli, sanza Consoli, sanza Tribuni, sanza appellagione al Popolo, e per questo non venendo ad avere chi gli osservasse, ei poterono il secondo anno, mossi dall’ambizione di Appio, diventare insolenti» (11).
È chiara qui la presenza del concetto di separazione dei poteri come condizione della limitazione del potere stesso, anche quand’esso fosse straordinario. Ma soprattutto bisogna sottolineare che il più importante di tutto questo risiede nella costituzione, nel modo come la legge prevede e regola il funzionamento del sistema politico, prendendo in considerazione la volubilità del comportamento umano, quella inclinazione irresistibile a scivolare dalla cupidigia alla cattiveria, se nulla gli si oppone, quella tendenza di fondo della natura umana di cui parlava Dilthey. Ed è proprio per rimediare a ciò che intervengono le costituzioni, le leggi, la forza istituzionale, insomma la politica e lo Stato. Come verrà ad essere formulato da Hobbes, nel Leviatano, o, in generale, nella narrativa giusnaturalistica.
7. Conclusione: Machiavelli e la Natura Umana
Se ci fossero dubbi circa lo sfondo pessimistico che sottostà alle sue riflessioni basterebbe leggere la favola Il demonio che prese moglie (1966: 845-853),e che riassumo in poche parole. Stando i demoni discutendo del perché tutti gli uomini condannati all’inferno si lamentassero del matrimonio (avere preso moglie – 1966: 847) come la principale causa dell’infelicità di quei poveri mortali, decisero di inviare uno di loro sulla terra per prendere moglie e fare la verifica di quanto detto da quelli. Cosa che capitò a Belfagor, arcidiavolo: col nome de Roderigo va a Firenze, munito di un bel po’ di soldi, e lì prende moglie. Succe- de che sua moglie, Onesta, terribile e vanitosa, gli fa spendere tutti i soldi, in modo tale che non aveva Roderigo alcuna possibilità di pagare, dovendo, poi, scappare ai creditori che lo perseguitavano. Salvato da un tale Gianmatteo, decide di ricompensarlo, dandogli il potere di salvare donne indemoniate, mediante il pagamento di somme di denaro. Come in effetti successe. Dopodiché Roderigo, essendosi liberato del debito, disse a Gianmatteo che non voleva più vederlo. Successe, tuttavia, che la fama di questi come guaritore aveva attraversato i confini ed era arrivata fino al re di Francia, che aveva sua figlia indemoniata. Chiamato Gianmatteo, non poté questi fare nulla per aver perso i suoi poteri, rischiando così la morte. In un ultimo dialogo con Roderigo, questo gli dice che lo avrebbe fatto impiccare per aver osato cercare di guarire la figlia del re. Al che Gianmatteo risponde che in quest’ultimo suo tentativo di salvarla era presente Onesta, la moglie di Roderigo. E, così, impaurito e spaventato dalla presenza della moglie, Roderigo-Belfagor decise di scappare via tornando in inferno e liberando la figlia del re di Francia, Lodovico VII.
Certo, è una favola. Prende in giro il matrimonio e soprattutto le donne, ma la radicalità della conclusione della vicenda, facendo diventare l’inferno un paradiso rispetto al matrimonio, illustra bene questo pessimismo antropologico che giustifica la necessità di dar vita agli ordinamenti costituzionali e legali e ad una politica ragionata che sia in grado di rispondere con efficacia ai corsi e ricorsi della vita in società, alle tendenze deleterie degli uomini, alle inclinazioni perverse verso la cattiveria, il potere o il denaro, insomma, all’impura esistenza degli esseri umani, che non possiedono le ali angeliche della vita celestiale, quando anch’essa sia costituita da angeli dalle ali nere. Esistenza che, in malvagità e cupidigia, supera addirittura i conosciuti protagonisti infernali dell’aldilà. Se la mia interpretazione è giusta, è proprio questo che Machiavelli vuole evidenziare: un mondo impuro ed imperfetto che bisogna conoscere in profondità per governarlo il meglio che si possa. Ed è così che in base a questo pessimismo antropologico è possibile aprire le porte ad una teoria politica moderna, libera dai vincoli teologici o morali e in grado di far fronte alle umane aspettative di autogoverno.
8. Note
(1). Vediamo, ad esempio, ciò che, a questo riguardo, dice Windelband, nella sua Storia della Filosofia Moderna (1878) sul Rinascimento: «Perciò l’Italia del Rinascimento ci dà lo spettacolo d’un rigoglio dell’individualismo; essa è la culla dell’individuo moderno». «Però anche questo individualismo sorpassò ben presto i limiti entro cui poteva dirsi giustificato. Preso dalla vertigine della libertà assoluta dell’autodecisione, l’individuo innalzò al posto della libertà l’arbitrio, e, nel rigoglio delle sue forze, si scatenò come potenza distruggitrice» (Windelband, 1925: III, 9).
(2). Interessante, a questo rispetto, l’osservazione, del tutto diversa, di Gramsci nei Quaderni del Carcere: «Lo Schopenhauer avvicina l’insegnamento di scienza politica del Machiavelli a quello impartito dal maestro di scherma che insegna l’arte di ammazzare (ma anche di non farsi ammazzare) ma non perciò insegna a diventare sicari e assassini» (Gramsci, 1975: III, 1568, §<9>).
(3). Ma è lo stesso Bobbio (1981: 12) a sottolineare la rottura tra Hegel e il giusnaturalismo: «non c’è opera giuridico-politica di Hegel in cui la teoria contrattualistica (con particolare riferimento a Rousseau) non venga confutata». «Hegel non disconosce la categoria del contratto [sociale], ma le riconosce validità solo nella sfera del diritto privato: la teoria del contratto sociale è un’indebita trasposizione di un istituto proprio del diritto privato alla sfera del diritto pubblico (trasposizione che, per Hegel, è uno degli errori caratteristici di tutta la tradizione del diritto naturale). Con estrema energia, già nel saggio del 1802, deplora che la forma di un siffatto rapporto privato subordinato si sia introdotta nell’assoluta maestà della totalità etica», facendo dipendere «la volontà oggettiva della costituzione statale» dalla «volontà soggettiva dei singoli» (1981: 13-14).
(4). «La souveraineté ne peut être représentée, par la même raison qu’elle ne peut être aliénée; elle consiste essentiellement dans la volonté générale, et la volonté ne se représente point: elle est la même, ou elle est autre; il n’y a point de milieu. Les députés du peuple ne sont donc ni ne peuvent être ses représentants, ils ne sont que ses commissaires» (Rousseau, 1762: III, Cap. XV; vedasi anche Della Volpe, 1974: 45-60).
(5). In una lettura volutamente coerente e conseguente: dal Discorso (1754) al Contratto (1762).
(6). Interessante a questo riguardo la critica di Marx, in Kritik des Hegelschen Staatsrechts, del 1843 (Marx-Engels Werke, I, Berlin, Dietz Verlag, 1981), ai Grundlinien der Philosophie des Rechts, del 1821 (Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1976), di Hegel, proprio per avere sviluppato questa formalizzazione del concetto di Stato.
(7). Sulle congiure vedasi il saggio di Bento (2013).
(8). Sulla discussione intorno a chi si rivolgeva il Machiavelli, chi conosceva o non conosceva la meccanica del potere, si veda Gramsci (1975).
(9). Dice Gramsci (1975: III, 1572, §<13>) a questo riguardo: «In Machiavelli si può sco- prire in nuce la separazione dei poteri e il parlamentarismo (il regime rappresentativo): la sua ferocia è rivolta contro i residui del mondo feudale, non contro le classi progressive».
(10). Si veda Kelsen (1984: 118-119): Il principio di legittimità.
(11). Vedasi anche quest’importante brano dei Discorsi: «Oltra di questo, il Dittatore era fatto a tempo e non in perpetuo, e per ovviare solamente a quella cagione mediante la quale era creato; e la sua autorità si estendeva in potere diliberare per se stesso circa i rimedi di quello urgente pericolo, e fare ogni cosa sanza consulta e punire ciascuno sanza appellagione: ma non poteva fare cosa che fussi in diminuzione dello stato; come sarebbe tòrre autorità al Senato o al Popolo, disfare gli ordini vecchi della città e farne de’ nuovi» (Machiavelli, 1966: 188).
9. Bibliografia
Bento, A. (org.) (2012a). Maquiavel e o Maquiavelismo. Coimbra: Almedina.
Bento, A. (org.) (2012b). Razão de Estado e Democracia. Coimbra: Almedina.
Bento, A. (2013). “«Das Conjuras». Análise de um Capítulo de «Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio»”. ResPublica, n.º 13, pp. 63-78.
Berardi, G.F. (1984). “Introduzione”. In: Guicciardini, F. (1984).
Bobbio, n. (1981). Studi Hegeliani. Diritto, Società Civile, Stato. Torino: Einaudi.
Bobbio, n. (1999). Ni con Marx ni Contra Marx. México: Fondo de Cultura Económica.
Poema de João de Almeida Santos Ilustração: “Encruzilhada” JAS 2025 Original de minha autoria Novembro de 2025
POEMA – “MUDA TUDO, TUDO MUDA”
MUDA O VENTO E mudam também As palavras, O poeta O dizia. Sobre sinais Era sábio, Mas de vento, Isso não, Sobre o vento Pouco sabia.
MUDA TAMBÉM A vontade E muda De direcção, Mudam As cores Com que a pinto Pra temperar A ambição.
O QUE CONTA São os ciclos Desta vida, Os que o tempo Desenhar Pra cada nova Partida Num eterno Movimento Como o das ondas Do mar.
HÁ ENCRUZILHADAS, É preciso Escolher Para logo decidir, Mas às vezes Não podemos E, então, Ah, então, O que fazemos? Temos mesmo De fingir.
MAS NÃO HÁ Muito a fazer Porque o vento, Sempre o vento, Sopra às vezes Numa certa direcção Para levar As palavras A voarem De feição.
MUDAM OS TEMPOS Muda o vento, Muda a vontade E a ambição E até muda A verdade Quando é forte A ilusão.
MAS AS CORES Do arco-íris (Essas, que belas Que são) Viajam sempre Comigo, Voam leves, De feição, Mesmo que alguém, Por castigo, Possa dizer-me Que não.
AS CORES Animam A vida E o desejo De mudança Pois transformam O incerto Em horizonte D’esperança.
SE É POSSÍVEL LER O CÓDIGO GENÉTICO DA ESQUERDA, não será difícil constatar que ela tem de desenvolver uma nova ontologia da relação entre os elementos constituintes do tecido social, propondo novas leituras sobre a sociedade e sobre si própria, em linha com o seu código genético, mas também com as formas organizativas das sociedades e com as tendências estruturais que se exprimem num mundo em profunda transformação. Trata-se de reconstruir uma filosofia em linha com os tempos, sem cedências aos novos ideologismos de duvidosa inspiração que têm alimentado o discurso triunfante da direita radical.
Sumário
“Ética da Convicção” e “Ética da Responsabilidade”.
Uma nova «Ontologia da Relação».
Fracturas e Interrogações.
A Esquerda e a Natureza Humana – uma Questão de Fundo.
Repensar a Esquerda, repensando a Sociedade.
Uma visão «espacial» da política.
A Esquerda e o Estado Social.
A Esquerda e os Intelectuais.
Conclusão.
1. Ética da Convicção e Ética da Responsabilidade
Num tempo em que da política já só restam, aparentemente, técnicas de marketing para rostos de líderes, tem sentido reflectir sobre as identidades que esses rostos de algum modo representam ou dizem representar. Ocupo-me, hoje, da esquerda.
Afinal, que questões se põem hoje a uma esquerda em profunda crise? A uma esquerda que, em linha com o seu código genético, se mantenha radical nos seus pressupostos filosóficos, valores, princípios e ideais, na sua utopia,no seu élanpropulsivo (ética da convicção) quanto moderada nos programas com que se propõe governar – compromisso e pragmatismo (ética da responsabilidade). Creio que é desta combinação que resulta parte importante da sua identidade: a justa combinação entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade. Porque se a esquerda tem inscrita no seu código genético a palavra «utopia», ela própria, inspirando-se em valores projectados no futuro e numa forte ética da convicção, cruza inevitavelmente o seu destino com o da democracia representativa, um espaço social de compromisso. Mas um espaço político que, afinal, também ele próprio se revela utópico porque exige, como seu fundamento radical, uma cidadania plenamente informada, esclarecida, movida por valores e por uma consistente ética pública. Em linha com o velho imperativo categórico de Kant: age como se a máxima da tua vontade pudesse valer sempre, e ao mesmo tempo, como princípio de uma legislação universal. Responsabilidade máxima para a acção individual que seja determinada por critérios morais. E também porque, ao contrário do que pensam os decisionistas e os absolutistas da ética da convicção, a democracia implica, em si mesma, compromisso, diálogo, interacção, isto é, uma ética da responsabilidade que modere, oriente e regule a força propulsora das convicções. Liberdade, sim, mas também responsabilidade. A esquerda deve, pois, procurar harmonizar a ética da convicção com a ética da responsabilidade.
2. Uma nova Ontologia da Relação
A esquerda e a democracia têm também inscrita na sua matriz a palavra igualdade. Alexis de Tocqueville, liberal, viu isso como ninguém no sistema político americano. A sua era a «igualdade de condições» no território social em que se moviam os americanos. Curioso é que os primeiros liberais (na altura, os progressistas) eram antidemocráticos («democráticos e quase comunistas», foi uma frase usada pelo liberal Croce para falar de democracia) porque anti-igualitários e avessos ao sufrágio universal (censitários: veja-se a constituição francesa de 1791, os escritos de Kant ou de Constant) e cedo (e muitos) toleraram (em Itália, por exemplo) soluções políticas autoritárias. Ao princípio, em Itália, o próprio Benedetto Croce, esse «Papa laico» italiano, como lhe chamou Antonio Gramsci, e outros eminentes intelectuais italianos. De resto, os valores matriciais da direita são a ordem, a diferença (a desigualdade) e a hierarquia (Ernst Nolte). Dizendo-o, com o Bobbio de Destra e Sinistra, a esquerda, no signo de Rousseau, afirma que, à partida, todos são iguais, sendo a sociedade (e os seus mecanismos) a fomentar, quando mal organizada, as desigualdades (a propriedade privada, a que se refere no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdades entre os Homens). Que, por isso mesmo, são sociais, não naturais. Pelo contrário, a direita, no signo de Nietzsche, afirma que, à partida, todos são desiguais, sendo a sociedade que, indevidamente, torna igual o que igual não é, tornando-se, assim, necessário o aprofundamento das singularidades e a minimização dos mecanismos sociais ou públicos de integração igualitária. É por isso que uma esquerda que se preze tem de sublinhar esta diferença matricial entre a esquerda e a direita, mas sem estigmatizar a ideia contrária porque também ela tem algum fundamento, tratando-se, no fundo, de diferenças de grau, de maior valorização de um princípio ou de outro. O que não deve é limitar-se a cantar e a glorificar os seus velhos valores de referência ou a exercer a função exclusiva de eterno sindicato dos deserdados, dos desiguais. O que deve, isso sim, é colocar os valores da liberdade e da igualdade no seu devido lugar, assumindo a complexidade da natureza humana e da sua organização societária. Porque foi o uso arbitrário destes valores que levou, por um lado, ao totalitarismo (o igualitarismo) e, por outro, ao utilitarismo mais desbragado: igualitarismo da miséria e darwinismo social. E se é possível ler o código genético da esquerda, também é verdade que a leitura desse código não é suficiente para uma sua afirmação política: ela tem de fazer uma fenomenologia crítica do existente ou, melhor, uma ontologia do presente, ou melhor, ainda, uma ontologia da relação, propondo novas leituras em linha com o seu código genético. O que é uma ontologia da relação? O reconhecimento de que o modelo de relação social centrado no sujeito e no objecto, no emissor e no receptor, no produtor e no consumidor ou, ainda, no actor e no espectador cedeu o seu lugar a um modelo de relação centrado no espaço intermédio, a um modelo relacional onde os sujeitos se comportam como variáveis num sistema horizontal sem perderem, ao mesmo tempo, a sua dimensão subjectiva ou substancial. E a Rede é o melhor modelo para relançar a reflexão porque ela é um espaço intermédio, uma realidade que já está a estruturar – e para além das fronteiras territoriais nacionais – novos tipos de relação que nada têm a ver com o módulo moderno e espacial de relação e de representação. É neste espaço intermédio e nesta lógica relacional que se pode identificar uma esquerda que queira superar uma filosofia do sujeito, meramente instrumental, própria da sociedade de massas, da «democracia do público», da era do «spinning» e de uma visão meramente utilitarista da própria natureza. Neste modelo, a igualdade é um valor central porque nele não há hierarquia e é horizontal (e não vertical). Neste espaço, que poderíamos identificar como um espaço reticular, pode emergir finalmente um indivíduo moderno livre de vínculosorgânicos e capaz de irromper directamente, sem mediadores e «gatekeepers», no espaço público, graças exclusivamente à sua competência social. Ou seja, estamos perante um espaço comunitário de novo tipo que não só não anula a individualidade como ainda a reforça. Mas para isso é necessário que o princípio da igualdade, garantido pelo Estado, torne possível a emergência dessa competência social. Este, como se vê, não é o espaço de uma esquerda que ainda se move por módulos comunitaristas e antilibertários, centrados exclusivamente na ética da convicção e numa visão comunitarista da sociedade. Bem sei que neste novo espaço comunitário há distorções que sobrevieram e que existe um poder administrativo que gere a rede e que a pode administrar ao sabor dos seus próprios interesses, como se tem verificado na mudança da sua relação com os utilizadores, transformando-os em matéria-prima em vez de clientes directos e na gestão dos processos através de algoritmos programados exclusivamente para fins de interesse empresarial e não de serviço e de responsabilidade social. Mesmo assim, o modelo é o que referi e pode exprimir uma nova filosofia social que a esquerda deveria já ter compreendido e metabolizado em vez de o diabolizar (sobretudo a esquerda radical) como o novo imperialismo digital, como puro “capitalismo da vigilância”. O que está em causa é, todavia, a superação do velho modelo orgânico e territorial de relação. A ontologia da relação corresponde ao reconhecimento de que a assimetria presente na relação entre sujeito e objecto no plano das relações sociais, a relação vertical e hierárquica expressa na chamada filosofia do sujeito, pode ser superada por um novo conceito de igualdade na esfera do espaço intermédio, ou seja pela equivalência recíproca entre os sujeitos do sistema. Por exemplo, a ideia de igualdade no consumo: tal como todos os produtores são ao mesmo tempo consumidores, assim todos os consumidores são ao mesmo tempo produtores. Na ideia igualitária de consumidor verifica-se esta correspondência num mesmo terreno social comum.
3. Fracturas e Interrogações
Poderíamos, pois, perguntar: as fracturas sociais da sociedade pós-industrial – aquela que foi inaugurada pela revolução da microelectrónica – são as mesmas da velha sociedade industrial, com as grandes concentrações operárias, o fordismo e o taylorismo? Não, deveria ser a resposta. Que efeitos sociais produziu a generalização das, humanamente desérticas, linhas de «robots» de comportamento não determinístico, vigiadas pelos poucos e novos «operários» de bata branca, os «condutores», ou já geridos pela inteligência artificial? Que soluções tem a esquerda para responder aos desafios das grandes plataformas digitais e para os profundos desvios, inclusivamente políticos e empresariais, que têm vindo a conhecer? O novo conceito de «middle class», não patrimonial, profissionalmente instável e culturalmente nómada, que lugar ocupa na reflexão estratégica da esquerda? Que balanço e soluções há para um Estado social cuja crise se tornou praticamente crónica? A responsabilidade da sua crise reside, ou não, no excesso de procura e nas fragilidades da oferta,mesmo quando é a esquerda a governar? Ou seja, a sua crise resulta, ou não, de uma contradição interna, e genética, que o pode levar a uma espiral autodestrutiva? Qual o papel dos «media» e dos “new media” na nova hierarquia dos poderes? A partidocracia e a endogamia não continuam a afectar gravemente a democracia, confiscando ilegitimamente direitos à cidadania? Qual é a solução para estes dois graves desvios? Que papel têm os meios de comunicação, clássicos e novos, na erosão da democracia representativa e na queda tendencial do valor de uso do voto? Como se transforma a «cidadania passiva» em «cidadania activa» numa época de crescimento da abstenção eleitoral? Como libertar o cidadão da nova «gaiola electrónica» que substituiu essa «gaiola de aço» de que falava Max Weber? A esquerda incorporou de forma consistente na sua matriz o individualismo moderno ou pretende superá-lo promovendo novas expressões de sociabilidade comunitária? Que relação tem a esquerda com a tradição liberal clássica? Há nisso uma incompatibilidade insuperável? A esquerda moderada e de governo assume definitivamente causas electivas ou mantém-se prisioneira de um frio pragmatismo de governo? Que lugar ocupa o consumidor na acção reguladora e de controlo do Estado perante o enorme poder dos grandes e inúmeros oligopólios (banca, telecomunicações, energia, centrais de distribuição, etc.)?
O espaço intermédio (o espaço social constitucionalmente regulado) onde hoje ocorrem as relações sociais não exige que a esquerda formule uma nova ontologia da relação, para além da relação sujeito-objecto, emissor-receptor, meio-fim, produtor-consumidor, actor-espectador e de qualquer conceito vertical e instrumental das relações humanas? Há muito que se fala de crise de representação e ninguém responde a esta crise. Agora até já se fala de democracia pós-representativa e poucos são os que se preocupam com a mudança de paradigma político que já estamos a viver. Que pensa a esquerda do novo constitucionalismo democrático que a direita radical parece estar já a esboçar, designadamente em Itália? E do constitucionalismo digital que enquadre a nova sociedade digital e em rede ou a sociedade algorítmica? Bastará este constitucionalismo para regular o espaço digital ou deverão ser criadas outras plataformas que limitem o poder e o alcance das já existentes, quase todas elas nos EUA ou na China? O protagonismo político dos «media» e o mais sofisticado protagonismo das plataformas digitais rivalizam hoje com o dos partidos tradicionais, mas ninguém os confronta com a questão da legitimidade. As novas “constituencies” financeira e digital não merecem uma resposta articulada da esquerda? A verdade é que a esquerda está em crise generalizada e por alguma razão será. Falta-lhe hoje uma filosofia integrada que sustente uma nova cartografia cognitiva da esquerda.
4. A Esquerda e a Natureza Humana – uma Questão de Fundo
A esquerda sempre se confrontou com um desafio a que nunca foi capaz de responder claramente: o desafio de assumir uma ideia complexa de natureza humana. Por uma razão essencial: esta ideia era considerada incompatível com a dinâmica transformadora do processo histórico-social. Porque a esquerda sempre viu o processo humano como processo histórico-social em devir, onde a componente natural ocupava sempre uma posição subalterna. Outra coisa era atribuir-lhe leis de desenvolvimento de tipo determinístico, como viria a fazer o marxismo ortodoxo. Se tivesse de falar de natureza humana, a esquerda clássica diria sempre que ela é o resultado de um processo, não havendo predeterminação digna de registo. O que enquadrava esta visão era uma filosofia do sujeito (por exemplo, uma classe axialmente centrada no devir histórico, como queria o Lukács de História e Consciência de Classe). Os existencialistas traduziram esta ideia através daquela conhecida fórmula de que «a existência precede a essência». E, antes, Gramsci traduziu-a por aquela outra feliz expressão de que o homem é aquilo em que se torna («è ciò che può diventare»). Mas a verdade é que há, em Marx, páginas muito interessantes, nos Manuscritos de 1844, onde a dimensão natural da vida em comunidade é muito valorizada e onde a natureza é considerada como «corpo inorgânico do homem». De qualquer modo, a ideia de que existem no ser humano determinadas características estruturais comuns que, na sua aleatoriedade, tendem a manifestar-se recorrentemente na vida em sociedade, sendo reconduzíveis aos próprios indivíduos singulares, nunca foi muito acarinhada conceptualmente pela esquerda. As características comuns, naturais e morais, eram tendencialmente distribuídas por classes sociais, tendo, depois, uma sua expressão política. A ideia genérica de que o «homem é o lobo do homem» («homo hominis lupus») tem, na visão da esquerda clássica, uma concreta tradução de classe: o homem-lobo e o homem-cordeiro representam classes antagónicas. A natureza humana, que aqui surge como aleatória e transversal a todos os indivíduos, na lógica da esquerda fracturava-se em função das classes. A esquerda sempre assumiu um optimismo antropológico que um dia haveria de prescindir da política, ao restabelecer a inocência natural do ser humano (Rousseau), corrompida pela sociedade e pelo triunfo provisório das pulsões negativas do ser humano (veja-se a este respeito o meu ensaio “Da Carl Schmitt à Niccolò Machiavelli. La Politica o il Pessimismo Antropologico”, em ResPublica, 13/2013, pp. 43-61: https://recil.ulusofona.pt/collections/0cb22049-801b-43c0-9fc2-c6371ba40ac4). Se, no utilitarismo, a pulsão egoísta orientada para o útil podia converter-se em benefício colectivo, à esquerda este só podia ser obtido por intervenção da «razão pública» que a corrigisse. A esquerda sempre acreditou na capacidade de a sociedade corrigir os desvios por ela mesma provocados. Sempre acreditou na ideia de um progresso contínuo. Sempre professou um optimismo antropológico conducente ao fim da política. Esta crença no valor taumatúrgico da dinâmica social levou-a, contudo, a desvalorizar a força das pulsões estruturais que sempre persistem e condicionam o processo social, para além do princípio da razão. E o sábio princípio da lei viquiana dos “corsi e ricorsi”, de épocas de avanço progressivo e de épocas de regressão. O resultado tem sido a adopção do construtivismo social e dos seus derivados hoje tão presentes e perturbadores. Lá onde a esquerda tem procurado usar a razão para canalizar um processo histórico-social considerado progressivo, muitas vezes tem esquecido o papel resistente dessas pulsões estruturais que também determinam o curso histórico (na fase dos “ricorsi”) e que fundamentam a ideia de pessimismo antropológico, de que falo longamente no ensaio que acima citei. Alguém (Althusser, por exemplo) dizia que a ideologia é eterna e que, mesmo quando parece que morre, sempre há-de ressurgir, de novo vigorosa, em tempos futuros. Também Jürgen Habermas, nos chamados «Seminários de Istambul», parece ter revalorizado o papel das religiões nas chamadas sociedades pós-seculares. Ou seja, de algo que a esquerda sempre tendeu a remeter para o domínio da pura alienação, não admitindo que essa possa ser uma componente estrutural da natureza humana, ligada à ideia de finitude. Nem de outro modo se compreende o poder das religiões. Mas é claro que a esquerda muito ganharia em compreensão do mundo se incorporasse estes dados rejeitados na sua rede conceptual e procurasse integrá-los numa lógica racional superior, sem qualquer veleidade construtivista, projectando e inscrevendo idealmente esse «corpo inorgânico» de que falava Marx sem o esmagar com a força do puro voluntarismo ético–político. Toda esta lógica está, afinal, envolvida por um voluntarismo moral («ética da convicção») que dificulta o reconhecimento das reais fracturas sociais e das persistentes pulsões sociais que, de tempos a tempos, acabam por determinar soluções regressivas (“ricorsi”) e, por isso, uma sua correcta interpretação e superação. Por outro lado, a “ética da responsabilidade” não pode ser descartada porque é ela que permite a descida à terra das altas convicções. Na verdade, o reconhecimento de que as sociedades humanas estão também elas condicionadas por pulsões de tipo estrutural torna-se decisivo. É neste reconhecimento que reside a capacidade de progredir de forma sustentada, reconduzindo o exercício da vontade política ao equilíbrio social. Conjugando optimismo da vontade com pessimismo da razão, num quadro onde a ética pública se funde com a política. A esquerda deve reconciliar-se com a ideia de natureza humana e até com a ideia de pessimismo antropológico, renunciando à ideia de que a regressão histórica é somente fruto de um livre e ocasional exercício da vontade humana ou societária. Existem no ser humano e, portanto, também nas sociedades humanas, persistentes pulsões negativas que em determinadas circunstâncias se impõem ao processo histórico provocando formas regressivas de sociabilidade (“ricorsi”).
5. Repensar a Esquerda, repensando a Sociedade
Mas a tendência a repensar a esquerda continua a ser mais crítica do que propositiva, afirmando-se mais como proclamação de intenções do que como concreta reflexão analítica sobre a sociedade. Repensar a esquerda ou repensar a sociedade? Eu creio que para repensar a esquerda é preciso, antes, repensar a sociedade. E é preciso também abandonar as proclamações morais, indo directamente ao assunto. E, para ir ao assunto, é preciso reflectir sobre as mutações profundas que estão a revolucionar a democracia, o novo espaço público, os novos modelos de desenvolvimento, a emergência da inteligência artificial para além da mecânica produtiva e do respectivo hardware, avançando para o domínio da linguagem, as novas formas pós-orgânicas de reorganização política da sociedade, a vertiginosa mobilidade social pós-nacional (imigração/emigração), o papel do indivíduo no conjunto orgânico de uma sociedade onde parece ser o intangível a ditar as regras essenciais. Eu diria que sem uma fenomenologia rigorosa da sociedade moderna não é possível compreender o lugar da esquerda na sociedade. É certo que muitos dizem que a distinção esquerda-direita já não faz sentido. Outros dizem que quem assim pensa é de direita. Uma coisa é certa: não é possível repensar a esquerda como se esta fosse uma condição. Sobretudo a condição dos deserdados, mas também dos seus apóstolos. Todos sabemos que não é assim. Todos sabemos que o conservadorismo atravessa todos os grupos sociais, sendo transversal. Tal como o progressismo. Mas, aqui como ali, há sempre apóstolos vocacionados para as grandes proclamações morais, assumindo-se como eleitos e como depositários da justiça histórica dos povos. À direita e à esquerda. Como todos os apóstolos, eles pertencem ao reino do imaterial e preocupam-se pouco com as coisas concretas e muito com os grandes princípios. Sacerdotes. E como entre o material e o espiritual sempre foi difícil encontrar a justa adequação, o seu papel está garantido até ao fim dos tempos. Outra coisa é o esforço analítico de descrição e de explicação dos mecanismos sociais e a tentativa de os aperfeiçoar, melhorando a sua «performance». Por exemplo, que modelo de desenvolvimento terão de adoptar as sociedades modernas para se adaptarem às novas exigências globais e desiguais da competitividade e das assimetrias tecnológicas? O «suor do rosto» continua a ser a principal força produtiva ou já foi substituído pela ciência e pela tecnologia, como principais forças produtivas? A resposta implica consequências impressionantes no modelo de organização social, empresarial e do trabalho. Outra questão, de resto, ligada com esta: as sociedades modernas estão estruturadas em grandes blocos sociais, as ditas classes, ou a sua organização é cada vez mais de tipo superestrutural, uma vez que elas estão fragmentadas, sendo constituídas por indivíduos, em particular por todos os que integram a nova e gigantesca “middle class”, hoje maioritária nas sociedades desenvolvidas? Ou seja,a velha componente orgânica não cedeu definitivamente a sua centralidade a uma nova recomposição das relações sociais? Nova questão: o modelo de organização democrática das sociedades não pressupõe precisamente esta desestruturação das sociedades orgânicas e a sua recomposição a partir da soberania individual, onde o indivíduo singular já exibe várias pertenças (culturais, civilizacionais, políticas, sociais) e maior complexidade? Que implicações tem a frase «um homem, um voto»? Neste contexto, que democracia e que sociedade? A democracia representativa, tal como a temos vindo a viver ainda continua a manter validade plena ou já estamos a evoluir para um novo tipo de organização democrática, pós-representativa, onde cada vez mais começam a exprimir-se mecanismos de democracia directa de novo tipo? Ou seja, mantendo-se como seu fundamento a nova identidade da singularidade individual, não estão alteradas radicalmente as condições da sua participação na produção da decisão política colectiva? Ou melhor: não se está a verificar uma alteração radical nas formas de expressão política do cidadão quando os partidos políticos cedem cada vez mais o terreno aos meios de comunicação, desde a televisão até às formas mais avançadas de «comunicação individualizada de massas», na Rede (Castells)? Não é por acaso que já se fala de “partidos-plataforma” ou de plataformas digitais que mobilizam milhões de cidadãos e também de “democracia deliberativa”. E o Estado como se comporta perante tal evolução? Não terá de se transformar para responder às novas exigências emergentes? De certo modo, o «e-government» constitui uma primeira resposta, embora muito limitada no seu alcance porque funciona sobretudo no plano administrativo. Mas outra resposta deverá consistir na determinação da sua natureza reguladora, nem maximalista nem minimalista, em condições de garantir uma relação justa entre o indivíduo singular (o consumidor) e as corporações e oligopólios, relação que aquele não pode controlar. Finalmente, como é que os partidos políticos podem responder a estas transformações, garantindo uma efectiva autonomia, capacidade de agenda e relação, orgânica e inorgânica, com a sociedade ao mesmo tempo que resolvem o bloqueio burocrático interno, as suas tendências endogâmicas?A solução não passará pelo aperfeiçoamento dos métodos de selecção e de legitimação interna, eventualmente com uma maior exigência constitucional relativa à sua gestão interna, enquanto forem eles os detentores do monopólio de propositura das candidaturas aos parlamentos nacionais? É confrontando-se com estes temas que se pode responder às perguntas sobre a esquerda. Na verdade, a esquerda deve reconstruir a sua identidade a partir do reconhecimento das novas fracturas sociais e agir para as resolver no quadro de uma ética da convicção (os valores) temperada com a ética da responsabilidade (o compromisso).
6. Uma visão «espacial» da política
A análise que circula continua excessivamente apoiada numa visão «espacial» ou «geométrica» da política: esquerda, direita, centro, centro-direita, centro-esquerda, extrema-esquerda, extrema-direita. É certo que os conceitos de esquerda e de direita possuem já um património analítico tal que estão em condições de designar algo bem preciso. Mas há um conceito que é tanto mais usado quanto menos é definido: o conceito de centro. Centro geométrico, centro sociológico, centro político? Mas, afinal, o que é o centro? Eu creio que quando hoje se fala de centro se está a falar necessariamente da nova «middle class». Na linguagem marxista clássica, o centro nem sequer tinha dignidade conceptual, espartilhado que estava por aquela contradição fundamental que determinava a vida social: a contradição entre os proprietários dos meios de produção e os assalariados. Mas a tradição sociológica passou a definir os grupos sociais não só em termos de relações de produção, mas também com critérios, digamos, de tipo superestrutural: estilos de vida, influência, capacidade de consumo, mobilidade profissional, etc. Em particular, a sociedade pós-industrial provocou o crescimento de um sector social intermédio que possui características comuns a ambos os lados, a proprietários e a assalariados. A democracia, com a laicização integral das funções sociais, cresce, aliás, com o crescimento deste sector. E, este, reforça-se com a democracia. A própria democracia é o regime mais congenial a este sector, isto é, à «middle class». Mas a classe média já existia na chamada civilização industrial. Só que, antes, as suas características eram bem diferentes da actual. Tratava-se de uma classe patrimonial, de profissão e rendimentos estáveis, com uma mundividência estruturada e global, culturalmente sedimentada, com valores morais bem definidos e uniformes, com clara afirmação e reconhecimento social de tipo territorial, não sendo maioritária na sociedade. A nova classe média da era pós-industrial define-se mais por critérios de tipo superestrutural, por estilos de vida, capacidades e hábitos de consumo, mobilidade profissional e territorial. É existencialmente nómada e culturalmente precária, massificada, anónima e socialmente dominante. Como diz Giddens: «a velha economia industrial foi inexoravelmente substituída por um novo modelo económico baseado no saber, e a classe média tornou-se já o grupo socialmente dominante». Uma classe média centrada no terciário e nos novos sectores de negócio que têm origem na nova economia do conhecimento. É por isso que a esquerda de hoje não pode, pois, construir o seu quadro de referência político-ideal a partir daquela que era a sua base social de apoio tradicional, de sectores sociais que a história tem vindo a tornar cada vez mais subalternos. A ideia de que a esquerda deve propor à vastíssima e heterogénea classe média um discurso feito à medida de grupos sociais que já são historicamente minoritários – porque se recusa a reconhecer como dominante uma economia de tipo pós-industrial e uma sociedade onde os processos informacional e comunicacional já transformaram completamente as relações sociais e os comportamentos individuais – significa agir no presente com os olhos postos no passado, quando, afinal, o horizonte próprio da esquerda sempre se situou no futuro. É certo que os valores da esquerda persistem no tempo e são transversais aos vários grupos sociais. Mas os seus conteúdos mudam com os tempos. Exercer a liberdade em democracia não é o mesmo que exercê-la durante a ditadura: as formas da opressão deixaram de ser físicas para passarem a ser simbólicas. E a opressão simbólica tem de combater-se com instrumentos mais sofisticados do que a resistência física. Em democracia, a universalização dos direitos formais, aliada ao igualitarismo do consumo, produz uma imagem do mundo igualitária, precisamente quando se insinuam cada vez mais novas formas de discriminação. Sob o manto formal da democracia também a luta pela igualdade (e pelo direito à diferença) exige novos e mais sofisticados instrumentos. Mas também o cidadão se tornou mais complexo nas modernas sociedades democráticas. Ele exibe hoje dimensões que outrora estavam mitigadas. Por exemplo, na moderna sociedade de serviços, o cidadão-consumidor emerge como sujeito central de direitos a tutelar. Uma esquerda com futuro não pode deixar de o integrar como elemento central do seu quadro de referência político-ideal e para além das tradicionais fracturas de classe. Numa palavra, uma esquerda moderna não olha para o futuro com os olhos do passado. A ideia de centro deve ser, para a esquerda, materializada na nova “middle class”, socialmente maioritária, vista a sua composição social e a heterogeneidade da sua composição. Ela representa o referente social que mais pode corresponder à verdadeira essência da democracia representativa e que, por isso, melhor pode induzir políticas compatíveis com ela. Pela sua dimensão, ela contém em si o essencial da heterogeneidade social, exigindo respostas complexas que a linguagem binária da velha esquerda não consegue exprimir.
7. A Esquerda e o Estado Social
Um artigo de Rui Ramos, publicado no longínquo ano de 2008, no «Público» (23.07) e intitulado «Os pobres de Estado», fez-me, então, e também agora, regressar a um tema central na discussão em torno da identidade da esquerda: o tema do Estado Social. Ressalvo, em relação a tudo o que a seguir direi, que não me parece feliz o título do artigo, pela carga depreciativa que encerra. Mas não deixo de reconhecer pertinência à crítica de Rui Ramos. Porque ele põe em evidência um paradoxo muito comum numa certa esquerda: reivindica tão radicalmente os direitos sociais que o resultado acaba por ser oposto ao que proclama – a permanente dependência do Estado Social (exemplo meu: Francisco Louçã que «sente uma revolta enorme», porque «se possa impor a uma pessoa que tem subsídio de desemprego a obrigação de ir trabalhar por um pouco mais do que o subsídio que recebia», DN, 28.03.2010, p. 9). Mas Rui Ramos critica também uma certa ideia de construtivismo social: uma lógica auto-referencial que vê os necessitados como laboratório social das suas próprias concepções do mundo. E conclui dizendo que a luta pela libertação social dos necessitados acaba por resultar num novo tipo de opressão de Estado. Por isso lhes chama «pobres de Estado». Há, neste interessante artigo de Rui Ramos, mais retórica e menos substância do que, à primeira vista, pode parecer. Mas há também a sinalização de problemas ligados ao modelo persistente de Estado Social. Sobretudo ao modelo maximalista, aquele modelo que adoptou a cultura dos direitos como matriz exclusiva das suas políticas. E que vive do garantismo como seu alimento político exclusivo e quotidiano. Um modelo onde a pobreza representa o principal capital político, sendo o seu volume directamente proporcional à depressão económica e social dos países. Um modelo que, à força de reivindicar, ao sistema, sempre direitos acaba por legitimar a irresponsabilidade, a ausência de sentido do dever, de empenho e de luta individual por uma vida melhor e mais livre. Compreende-se. Esta é, aliás, uma visão organicista da sociedade, onde a responsabilidade individual se dilui sempre na responsabilidade colectiva. “A culpa é do sistema”. Mas se, depois, a responsabilidade colectiva acaba por se esgotar sempre na luta pelos direitos orgânicos das comunidades, a responsabilidade individual esvai-se e anula-se. De resto, esta lógica não decorre directamente da estrutura nuclear da democracia representativa, cujo fundamento, digamos, ontológico, é o indivíduo singular: «um homem, um voto». Diria mesmo que ela representa a tábua de salvação para os que sempre mantiveram reservas mentais em relação à democracia representativa. Constitui o enxerto político necessário para poderem agir com boa consciência no interior daquela que sempre rotularam como democracia burguesa. Toda a gente entende o que quero dizer. Ora, na lógica a que se refere criticamente Rui Ramos, os indivíduos singulares são sempre tutelados pelo Estado Social e, por isso, na sua perspectiva, ela acaba por induzir um processo de permanente submissão à vontade do Estado e da sua máquina protectora, com a consequente anulação do princípio da liberdade, que só a responsabilidade individual pode gerar. É por tudo isto que se torna necessário clarificar a natureza do Estado Social e a relação da esquerda com este conceito. Em primeiro lugar, recusando as leituras maximalistas. É claro que as sociedades têm o dever de garantir os «bens públicos» essenciais, bem mais vastos do que as funções estritamente vitais do Estado. Mas nenhum Estado Social pode sobreviver a uma lógica construtivista e a uma filosofia maximalista dos direitos sociais. Por uma razão muito simples: uma e outra convergem para o agigantamento de um Estado que tende a atrofiar a sociedade civil, acabando ele mesmo por implodir, fruto de um excesso de procura para o qual acaba por não ter resposta. Na verdade, aquilo que a esquerda radical ainda não compreendeu foi que a uma cultura de direitos, essencial à democracia representativa, deve corresponder uma outra cultura de deverese de responsabilidade tão intensa como aquela. Só que esta não pode emergir no interior de um pensamento que ainda não superou, a não ser numa óptica puramente instrumental, uma cultura política organicista, hoje absolutamente superada pelas democracias modernas. A vocação organicista e moralista da esquerda radical acaba sempre por produzir o atrofiamento da emancipação individual e por contrariar aquela que é a vocação originária da própria democracia representativa. De resto, o Estado Social tem uma origem que nem sequer se identifica exclusivamente com a própria esquerda. Exemplos: Bismarck, a encíclica Rerum Novarum ou o “Beveridge Report”, precisamente de um liberal, William Beveridge. Sendo absolutamente necessário, o Estado Social não deve, todavia, ser identificado com a ideia de um Estado-Caritas (veja o meu artigo sobre este tema : https://joaodealmeidasantos.com/2023/03/21/artigo-96/ ).
8. A Esquerda e os Intelectuais
Finalmente, a questão dos intelectuais. E começo por referir uma entrevista do filósofo francês Alain Badiou a «Le Monde» (de Julho de 2007) que, na altura, deu que falar. Nela, ele declarava o fim – desejado – do «intelectual de esquerda». A coisa pareceu ganhar mais sentido após a debandada geral de ilustres figuras do PS francês para o projecto sarkoziano. De qualquer modo, o caso intelectualmente mais flagrante, depois de algumas viragens já verificadas durante a corrida presidencial de Ségolène Royal e do caso Kouchner, foi a transmigração do pós-moderno ex-ministro socialista da cultura Jack Lang. Dizia Badiou: “esta adesão a M. Sarkozy simboliza a possibilidade, para intelectuais e filósofos, de serem, doravante, reaccionários clássicos ‘sans hésitation ni murmure’, como diz o regulamento militar”. (…) “Nós vamos assistir – ao que eu anseio – à morte do intelectual de esquerda, que vai soçobrar ao mesmo tempo que toda a esquerda, antes de renascer das suas cinzas como a fénix”. Aqui, a verdadeira questão consistiria em saber o que é a esquerda, não antes de saber em que consistiria o ser-intelectual. Um pouco por todo o lado, o problema é complexo, reconheçamos. Mas, em boa verdade, há muito que estamos a assistir à morte do «intelectual», do «filósofo», do «maître-à-penser». Que, na verdade, tem o seu ADN à esquerda, apesar do(s) excelente(s) Aron(s). Permitam-me recordar que, disto, muito falei no meu livro de 1999, Os intelectuais e o Poder (Lisboa, Fenda): que acabaram os Sartres. E que Sartre foi, talvez, o último dos «maîtres-à-penser». Que estes acabaram ao mesmo tempo que as «grandes narrativas» e a emergência do pós-modernismo. Que acabaram quando acabou a densificação do tempo vivido, a identificação territorial dos percursos de vida, a exaltação da memória e subentrou o triunfo do plano, da superfície, do presente sobre a profundidade e a temporalidade diacrónica. E quando o princípio da esperança se desligou do futuro. Quando o presente se impôs como ditadura e as ideologias se diluíram, sendo substituídas por fugazes e superficiais estilos de vida. A verdade é que os intelectuais não eram simplesmente autores de livros ou de ensaios. Eram, isso sim, autores de ideologias, de mundividências, de concepções do mundo. Demiurgos. Eram artífices de ideias projectadas no futuro, mas com capacidade propulsiva sobre o presente, como se fossem forças materiais, físicas, sujeitas à lei da gravidade. Substituíam-se, com eficácia, às religiões e projectavam a laicidade à categoria de concepção do mundo. Construíam vastas redes de pertença, onde se reconheciam inteiros grupos sociais. O pensamento tornava-se norma de comportamento, atitude, ética, sentido. E eles emprestavam um certo heroísmo de atitude à esquerda, uma certa nobreza, para não dizer uma certa superioridade moral. Nada disto subsiste. Tudo se fragmentou. Até as causas, que passaram a ser especialidades de uns tantos profissionais. O fim das grandes narrativas, a ditadura do presente, o triunfo do inorgânico, a velocidade, o tempo como sucessão de instantes absolutos, o indivíduo como função do inorgânico, o império do simulacro, tudo isto gerou uma nova rede social onde não há lugar para os velhos intelectuais. O novo intelectual é o «fast-thinker». O «Lucky Luke» do pensamento e da palavra. O velho «maître-à-penser» deu lugar ao novo «prêt-à-penser», que ocupa os interfaces da comunicação como seu ambiente natural. Está por todo o lado e ao mesmo tempo. É um clone de si próprio. Fala de tudo como se de tudo fosse especialista. E ao ritmo da comunicação electrónica. O «sound bite» é a medida do seu discurso. Ele é uma espécie de centauro: meio intelectual, meio publicitário. Assume o meio onde comunica como «púlpito» onde exerce o poder da palavra, olhos nos olhos com o público, essa «multidão solitária» que se une em torno do terminal electrónico onde ele pontifica. Este é o novo intelectual «tout court». Já nem de esquerda nem de direita. Mais do que de esquerda ou de direita, o novo intelectual é orgânico do inorgânico, do simulacro, da velocidade, da emoção curta e eficaz, do discurso binário, da urgência do presente, do negativo. Não cria nem representa ideologias ou concepções do mundo. Representa-se a si próprio e age como se fosse o umbigo do mundo. Ora, quando a política começa a exibir excessivas afinidades com este universo discursivo dos novos intelectuais do vídeo, podendo ser definida como “política tablóide”, torna-se necessário reivindicar o regresso em força do orgânico, contra os cavaleiros do simulacro. O que em si poderia representar uma eventual regressão da própria esquerda. Mas eu diria, à esquerda, que o regresso do orgânico só pode ser hoje representado pela irrupção do indivíduo, fisicamente determinado, complexo e livre de vínculos orgânicos no seu mandato de cidadania, de múltiplas pertenças, na nova cena comunitária global. A esquerda deve, pois, recuperar a função da elite intelectual – e não de “fast-thinkers” – como propulsora de visões do mundo orientadas para o futuro, em vez de sucumbir à retórica, à propaganda e ao marketing político como instrumentos de acesso e de conservação do poder de Estado.
9. Conclusão
A esquerda, toda ela, incluído o centro-esquerda, está em crise profunda e para sair dela deve fazer as contas com todas estas questões que tenho vindo a enumerar. Questões que estão a montante dos concretos programas políticos e que têm a ver com a visão do mundo que sustenta as opções de política concretas. Mas não é isso que se vê. Os partidos políticos dispensam bem estas questões preocupados que andam com a conquista imediata do consenso para o poder, usando outsourcing com empresas especializadas em propaganda, em marketing político. Nem sequer apostam em promover a reflexão a partir das suas próprias exigências, da sua identidade, do seu próprio corpo organizado, das suas elites, dos seus próprios “intelectuais orgânicos”, para usar a feliz expressão de Gramsci. Transformaram-se em puros comités eleitorais sem gravitas histórica. Leves como plumas ao vento. Guiados por personagens sem densidade nem consequência porque se preocupam apenas em criar as máscaras adequadas aos ciclos eleitorais, na esperança de aceder ao maravilhoso mundo do poder è as suas ilimitadas benesses. JAS@11-2025
Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Penché”
JAS 2025
Original de minha autoria
Novembro de 2025
“Penché”. JAS 2025
POEMA – “O COREÓGRAFO”
SOU COREÓGRAFO
Da minha alma,
Desenho-me
No espaço
Com a suave
Melodia do teu
Silêncio,
Sempre embalado
Por essa música
Inaudível
Que soa sempre
Desse teu lado...
IMAGINO-TE,
Às vezes,
Num solo,
Em palco,
Numa noite
De luar,
Na praia
Da meia-lua,
Bailando
Ao som
Dos murmúrios
Intermitentes
Do mar.
MAS O SILÊNCIO
É a tua
Sinfonia,
O teu canto
De sereia,
A melodia
Que ressoa
Nesse mar
Murmurejante
De linóleo
Onde te desenho
Em suave
Bailado,
A despedida
Que nunca
Terá fim...
..............
Esse meu fado.
GOSTO DESTA DANÇA,
Contraponto
Dos sinais
Invisíveis
Com que pontuas
A tua assinalada
Ausência,
Um bailado
A solo
Com o som
Dos murmúrios
Do mar
E da minha poesia
Na praia
Da meia-lua,
Numa noite
De luar
E perfume
De maresia.
E EU CANTO-TE,
Mas neste meu
Canto
Eu conto-me
Como espelho
Onde podes
Rever
O passado
Desse futuro
Que nunca
Existirá.
AGORA, SOZINHO
Na praia
Da meia-lua,
Acendo um sol
Com as minhas mãos
E procuro
O que nunca
Encontrarei,
A não ser
Sombras
De mim próprio,
A cantar,
Como se as notas
Musicais
Estivessem
Gravadas
Na areia branca
Da baixa-mar.
ESTE,
O que te celebra
Em arte,
Com poesia,
Já não é ele,
Mas o coreógrafo
Da sua melancolia.