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Sobre joaodealmeidasantos1

Professor universitário, escritor, poeta, pintor. Publicou várias dezenas de livros, seus e em co-autoria, de filosofia, política, comunicação, romance, poesia, estética. Foi professor nas universidades de Coimbra, Roma "La Sapienza", Complutense de Madrid e Lusófona (Lisboa e Porto). Publica semanalmente, neste site, ensaios, artigos, poesia e pintura.

Poesia-Pintura

SORRIR

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Sorriso”
JAS 2023
(49x82, papel de algodão, 
310gr, e verniz Hahnemuehle, 
Artglass AR70 em mold. de madeira)
Original de minha autoria
Outubro de 2025

“Sorriso”. JAS 2023

"Was bleibet aber, 
stiften die Dichter"
"Mas o que permanece, 
os poetas o fundam"

Hölderlin

POEMA – “SORRIR”

SE O TIVESSE
Comigo,
O mundo
De que preciso,
Trocava-o
Por um sorriso
Ou a ternura
De um olhar,
Olhos castanhos,
Olhos bonitos,
Perder-me neles,
A navegar...

MAS NÃO O TENHO
E pouco importa,
Também o mundo
Já não é meu
E não posso
Oferecê-lo
Como se fosse
O meu céu...

É GRANDE DEMAIS
Para mim,
Meu fugaz
Acontecer
Num tempo
Que não tem fim,
É maior
Que o meu querer
Porque o mundo
É assim.

AH, MAS POSSO
Oferecer
O mundo
Do meu olhar,
Posso sorrir,
Posso escrever
E pintar,
Posso esculpir
Aquele rosto
Que sempre
Quis cativar.

OFEREÇO-ME
A esse rosto
Com a minha
 Fantasia,
É um modo
De o ter
À medida
Do desejo,
Em festa,
Epifania,
Assim,
Como ainda
O vejo.

Artigo

NOTAS SOBRE A POLÍTICA

EM TEMPO DE ELEIÇÕES

João de Almeida Santos

S/Título”. JAS 2025

AS AUTÁRQUICAS

Eleições autárquicas 2025 – uma radiografia territorial da democracia portuguesa. Provavelmente, o mais significativo retrato da profunda mudança política que está a acontecer no nosso país, mas que muitos insistem em não ver. Trata-se da política em acção em todo o território nacional, repartido por 308 concelhos, num país com um sistema de partidos já muito fragmentado e alterado em relação à sua configuração tradicional. Não se sabe em que medida as autárquicas replicarão, à sua escala e à sua medida, o que aconteceu nas legislativas de Maio passado e de 2024. Provavelmente, o crescimento dos movimentos políticos autárquicos não partidários continuará a verificar-se talvez de forma mais intensa (dispõem, actualmente, se não erro, de 19 presidências de câmara), agora alavancados por dois pequenos partidos (Nós, Cidadãos e PPM) como modo de superar os constrangimentos que a lei (em certos aspectos claramente inconstitucional, por violação do princípio da igualdade) impõe a estes movimentos. Falta conhecer a consistência territorial do segundo maior partido parlamentar, o CHEGA, em particular em grandes concelhos, onde as razões do voto se aproximam mais das que explicam o voto nas legislativas. Uma incógnita também a performance autárquica daquele que é actualmente o maior partido autárquico português, o PS, com cerca de 150 presidências de câmara. Nestas eleições será possível detectar tendências muito significativas acerca do rumo político que o nosso país está a seguir.

O BLOCO, AS AUTÁRQUICAS 
E O MEDITERRÂNEO DA LIBERDADE

Eu não sei se será mesmo o FB do Pedro Nuno Santos, mas parece que sim, onde li: “Solidariedade e um profundo agradecimento à Mariana Mortágua, à Sofia Aparício e ao Miguel Duarte por nos representarem com tanta bravura”. Eu não me sinto representado por eles e, por isso, não partilho deste sentimento do PNS, que, todavia, reconheço ser legítimo. No entanto, devo dizer o seguinte: não sendo eu do Bloco, até acho que ela, deputada da nação, deveria estar em Portugal a lutar por quem a elegeu, pelo seu partido e pelas suas convicções no parlamento e pelo país fora, tentando, neste período de eleições, suster a hemorragia política que o partido de que é líder está a sofrer, com graves riscos de fatal colapso. Detida e mandada para casa, onde chegou, em festa (“recebidos em apoteose no aeroporto de Lisboa”, noticiava um site), no domingo à noite, apesar de o drama continuar em Gaza até que as negociações em curso cheguem a bom porto. A Mariana chegou, pois, e estava óptima, tendo ainda cinco dias para fazer campanha, depois de ter estado detida em Israel e de ter ganho um novo estatuto: heroína do keffiyeh. Fosse ela eurodeputada, eu teria compreendido a sua decisão, mas deputada única e líder de um partido em profunda crise e em luta na difícil campanha autárquica, é, para mim, de difícil compreensão. Veremos o que acontecerá ao Bloco no próximo domingo. Mas, acrescento, também é de difícil compreensão o abandono a que esta frente política tem votado a causa ucraniana e as centenas de milhares de mortos ucranianos e russos que a ilegítima invasão de um país independente e internacionalmente reconhecido já provocou ou o silêncio sepulcral sobre os 1200 chacinados e os 250 raptados (muito deles mortos, permanecendo ainda em cativeiro 48, vivos ou mortos) pelo Hamas. O Bloco é um partido em grave risco de extinção. Mas faz falta, desde que mude de rumo e possa, assim, contribuir para travar a ascensão política da direita radical*. Uma luta que deve ser travada em território nacional. Para ser claro, devo dizer que nem me revejo no ideologismo exacerbado e propagandístico da senhora deputada Mariana Mortágua nem no radicalismo feroz do senhor Benjamin Netanyahu e dos próceres ultra-ortodoxos de Israel.

“LA PERNACCHIA” PAR(A)LAMENTAR

Aquilo não foi um propriamente beijo, aquilo foi o que os italianos chamam “pernacchia” (“som vulgar emitido com um forte sopro com os lábios apertados em sinal de desprezo ou de troça”, Dicionário Garzanti). Visto, com olhar italiano, parece mesmo uma “pernacchia”. Um beijo é coisa séria e nunca, mas mesmo nunca, poderia gerar controvérsia parlamentar ou mesmo nacional. Um beijo é afecto, é amor. É para ser aplaudido, não contestado ou criticado. Mas, neste caso, nem ele nem ela parece poderem trocar um beijo. “Pernacchia”, sim. Beijo, não. E muito menos um beijo político. Talvez seja também por uma questão de estética. Mas eles, deputados, lá saberão. Cada um sentirá o gesto à sua maneira. O parlamento, já se sabe, é um lugar de relações intensas. E deve mesmo ser, porque ali se discute e decide a nossa vida. Não com beijos ou com “pernacchie”. Mesmo assim, esta “pernacchia” comparada com o “truca-truca” do “capado” Morgado, na lírica da poetisa-deputada Natália Correia, ou com os “corninhos” do ministro Manuel Pinho apontados a Bernardino Soares, é brincadeira de meninos. Mas não espanta que, mesmo assim, haja controvérsia, pois até já a palavra “vergonha” usada por um deputado foi objecto de escândalo e de grave censura presidencial. A política nacional navega bem é por estas irrelevâncias retóricas e gestuais e já há saudades da velha e sofisticada retórica parlamentar, fosse ela em jeito poético ou não. O Parlamento, infelizmente, não é hoje um poço de virtudes públicas. E nem sequer por motivos deste tipo.

2300

2300 é hoje o número maldito na controvérsia nacional. Nada mais importa. Nem sequer qual a solução para o gravíssimo problema da habitação – propriedade pública, expansão do mercado de arrendamento, bonificações fiscais para a recuperação de edifícios a colocar no mercado de arrendamento. Nada disto. Gritam todos: 2300 não é moderado! Esta combinação entre o número 2300 e a palavra moderado apagou tudo. Qual é afinal o problema? Simples: arrendas uma casa por valores entre 5 e 2300 euros e tens um alívio fiscal de 15% sobre o IRS. O crime foi falar de moderação num país de imoderados. E ter posto o limite máximo em 2300. E, todavia, o que, à primeira vista, parece é que o objectivo é desonerar fiscalmente quem puser casas no mercado de arrendamento, por valores situados neste intervalo. A coisa, indo na direcção certa, sabe-me a pouco. Creio mesmo que o problema só se resolve com a expansão do mercado de arrendamento. Promova-se a habitação pública, certamente, mas o que pode resolver o problema (dos valores do arrendamento e do custo das casas) é favorecer por todos os meios possíveis o mercado de arrendamento. Então, se assim for, que o Estado use todos, mesmo todos, os recursos para expandir este mercado. Para grandes males, grandes remédios. A coisa não se resolve com o Estado como arrendatário, vista a sua mais que demonstrada incapacidade como gestor. Use-se, então, de forma consistente, a alavanca fiscal para incentivar os senhorios a porem casas no mercado de arrendamento, tornando o negócio economicamente atractivo e seguro. Só que quando toca a mexer a sério nos impostos, nicles. Precisam de dinheiro para redistribuir. Algum dele pelas clientelas. Duma coisa estou eu seguro: não é incentivando a compra de casas, por exemplo, ficando o Estado como fiador, que se resolve o problema da habitação; pelo contrário, o que, segundo a lógica da relação entre a oferta e a procura, acontece é o imediato aumento do preço das casas, como tem vindo a acontecer. Mas, dirá alguém, isso agora não interessa nada, porque 2300 euros não é, de facto, um preço de arrendamento moderado, o que mostra a imensa malvadez do governo em funções. Eu não gosto muito deste governo, mas que a medida aponta um caminho correcto, lá isso aponta.

A CORPORAÇÃO

Ivo Rosa, o proscrito. Ousou contrariar os donos da corporação e do sistema. Decidiu sobre um processo maldito e foi castigado. Absolveste Sócrates, então acusamos-te a ti (e devassamos-te, durante anos, “a vida financeira, fiscal e pessoal”, “Público, 03.10, p. 21). Tudo muito correcto para o actual PGR. E assim, assim, para a Associação Sindical dos Juízes. E mais: segundo Marcelo Rebelo de Sousa, PR e constitucionalista, deve ser a corporação a reflectir sobre si própria e não o governo ou o parlamento para não afectar o princípio da separação de poderes. Estranho conceito de democracia, onde se aconselha os representantes do povo a não se pronunciarem sobre um dos pilares do sistema democrático. Mas eu, que não sou constitucionalista, tenho a convicção profunda de que o princípio da separação dos poderes não deve sobrepor-se à legitimidade de primeiro grau, ontológica, dos representantes – a dos titulares directos da soberania (o parlamento) – nem impedir a sua legítima e devida regulação do sistema.  Entretanto, pelo caminho ficou o processo de António Costa. Também aqui deve acontecer o mesmo, quando o sistema foi gravemente abalado em dimensões fundamentais com um estranho comunicado da PGR, emitido quando a PGR estava em reunião com o PR? A verdade é que já lá vão quase dois anos e duas eleições legislativas e sobre isso ninguém sabe o que quer que seja. E por onde anda a averiguação preventiva a essa estranha empresa Spinumviva, que, ao que parece, continua sedeada na residência privada do PM? Quando haverá resultados? Os 500 mil euros atribuídos a Alexandra Reis, depois de uma longa CPI, conhecem novos episódios com Pedro Nuno Santos a ser de novo investigado. Parece que o homem se tornou o bombo da festa. E sobre a legalidade de o PGR, magistrado do ministério público com mais de 70 anos, continuar em funções ninguém fala? Já ninguém controla a poderosa corporação nem ela se controla a si própria. O PR a coberto do princípio da separação de poderes lava as mãos como Pilatos e aconselha outros a fazerem o mesmo. E o Parlamento parece estar refém de uma classe política indigente. Mas não admira, visto o sistema de recrutamento dos deputados e o seu modo de eleição. De quando em quando vêm-me à memória os estudos que há muito fiz sobre a I República e acabo por ficar preocupado. Mudam os tempos, mas certas vontades nunca mudarão.

A EXPULSÃO

Outro proscrito é o Daniel Adrião, que ousou enfrentar o candidato do PS à presidência da junta de freguesia de São Vicente (Lisboa) – depois de, sendo membro da Comissão Nacional e da Comissão Política Nacional do PS, se ter oferecido ao seu partido para aqui concorrer -, liderando um movimento não partidário nestas eleições autárquicas. Expulso. Já aqui escrevi acerca deste assunto da expulsão de militantes pelo PS a propósito da notícia da expulsão, pelas mesmas razões, de 320 militantes e do velho militante Maximino Serra (“Militância e Liberdade” – Link: https://joaodealmeidasantos.com/2022/05/09/artigo-68/ ). Volto agora ao assunto, porque não me quero ficar pela redução da política a assunto de obediência estatutária e partidária. Os casos já são muitos e, nestas eleições, muitos mais haverá. E se acontecem não será só porque a natureza humana é assim. Se isto acontece quer dizer que há má gestão dos processos e que há deficiência no método de escolha dos candidatos a eleições, sejam elas internas sejam elas externas. Sobretudo em eleições autárquicas, onde as relações de proximidade tornam os processos mais complexos e delicados. Depois, há dois aspectos a tomar em conta: a queda tendencial do chamado “sentimento de pertença”, não só devida à crise das narrativas ideológicas, mas também ao crescimento dos canais de informação à disposição da cidadania; e a crise da organicidade dos partidos. Tudo isto deveria levar os partidos, neste caso o PS, a fixarem-se mais na dimensão política do problema e menos no rigor estatutário, que, se praticado em excesso, e nos tempos que correm, pode mesmo levar ao “rigor mortis”. Mas, não, o que se vê é um exercício da política por inércia, como se nada tivesse mudado. Depois, também é verdade que, em certos casos, a militância pode tornar-se mesmo impeditiva da liberdade que é suposto promover, quando o “sentimento de pertença” se torna exclusivo, impedindo o livre exercício de uma cidadania activa. E eu nem acho que haja incompatibilidade entre uma pertença política orgânica e a plena liberdade no uso dos direitos de cidadania. O que já não faz sentido é considerar a “pertença” como bloqueadora do exercício de cidadania activa através do ferrete estatutário. E muito menos quando essa cidadania se exerce fora do âmbito partidário, como no caso vertente. Daniel Adrião foi candidato a secretário-geral, membro da CN e da CPN, líder de uma tendência interna do PS com representação nos órgãos nacionais do partido e, mesmo, assim, não foi aceite nesta batalha autárquica, não importa aqui por que motivos. Não saiu do partido nem integra uma lista partidária, mas sim um movimento de cidadãos à Assembleia de Freguesia de São Vicente. Sempre expôs os seus pontos de vita frontalmente nas reuniões dos órgãos nacionais. E isto deveria levar o PS a reflectir seriamente sobre tantos daqueles aspectos organizacionais que precisam de ser revistos e actualizados. Mário Soares foi o candidato apoiado pelo PS nas presidenciais e Manuel Alegre foi seu adversário nessas mesmas eleições, não tendo sido, por isso, expulso. A revisão da identidade organizacional deverá ser revista (o que, de resto, até já foi anunciado pelo actual secretário-geral nas recentes eleições internas) a começar pelos processos de selecção dos seus dirigentes e dos candidatos a cargos electivos institucionais, processos onde reside grande parte do problema, devido à presença difusa das chamadas “bolsas de quotas” e a um indesejável sectarismo militante (e interesseiro). E que obstam a que, por exemplo, seja promovida a selecção dos candidatos através primárias abertas. O que acontecerá se a candidatura de Daniel Adrião, mesmo assim, resultar vencedora em S. Vicente? São já demasiados os casos em que uma má gestão dos processos eleitorais deu lugar a pesadas derrotas do PS. Em tempos, analisei detalhadamente um caso paradigmático de deficiente gestão do processo autárquico: o das eleições autárquicas de 2013, na Guarda (veja a revista ResPublica, 17/2017, pp. 103-125 – http://cipes.ulusofona.pt/wp-content/uploads/sites/137/2018/07/RES-17v11.pdf ). Uma coisa é certa: não faz sentido que os estatutos sirvam, em certos casos, para bloquear o livre exercício da cidadania por parte de militantes que sempre demonstraram coerência ideológica, lealdade partidária e activismo no interior do próprio partido. Talvez Daniel Adrião devesse ter solicitado a suspensão provisória da sua condição de militante, com motivação argumentada da sua decisão. Mas a verdade é que muitas coisas mudaram e o fechamento endogâmico dos partidos também deveria acabar. Um grande partido como o PS não pode comportar-se como uma imensa federação de interesses pessoais ou intergrupais. Não é por acaso que a quebra dos partidos da tradicional alternância (governativa) tem vindo a acontecer progressivamente. Sobre este assunto há muito que aqui venho escrevendo.

NOTA

* Sobre este assunto, veja-se a posição de Francisco Mendes da Silva, “Mariana Mortágua deu-me razão”, no “Público” de 03.10.2025, p. 6, com a qual genericamente concordo. JAS@10-2025

Poesia-Pintura

SONHAR

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “S/Título”
JAS 2025
Original de minha autoria
Outubro de 2025

“S/Título”. JAS 2025

POEMA – “SONHAR”

SONHEI,
Um dia,
Que as palavras
Se gastaram,
Desataram,
Desfiaram,
Sobrando
Apenas fios
Para tecer
O silêncio
Com que ainda
Me falas.

SONHEI
Que a tinta
Perdeu cor,
Que não havia
Poemas
E que não era
Pintor.

SONHEI
Que não eras tu,
Que foi tudo
Uma ilusão,
Que no sonho
Estava nu,
Deserdado
De afeição.

SONHEI
Que não sabia
Onde estás,
O que fazes
E o que sonhas
Nas noites
Do teu luar,
O que vês
Nesses momentos
Fugazes
Em que olhas
Para ti,
Que não me ouves
Nem sentes
Porque estás
Tão longe daqui...

SONHEI
Que te procurei
No mundo
Da fantasia,
Onde as flores
Caminhavam,
Sabiam a maresia,
Tinham rostos
De mulher...
...........
Mas surdos
Ao que eu dizia.

NO SONHO
Fui à memória,
Que também
Perdeu a cor,
Ficou tudo
A preto e branco
E sonhei,
Sonhei, sim,
Que te perdi...
.................
E que da perda
Sobrou dor.

SONHANDO,
Procurei cor
Num outro
Lugar qualquer,
Mas só encontrei
O cinzento...
............
E por falta
De outras cores
Meus versos
Tão desbotados
Já nem iam
Com o vento.

FOSTE PRA ONDE
Que eu não te vejo?
Perguntei
Quando do sonho
Acordei.

SAÍSTE
De onde estavas
E agora resta
O desejo
De te cantar
Sem a cor
Com que antes
Eu te via
Pra que ouças
O silêncio
Com que ainda
Me chamas
Seja noite,
Seja dia.

GASTARAM-SE
As palavras,
Gastou-se tudo
Em meu redor,
Só ficou o teu
Cinzento,
A tinta
Com que pinto
O meu lamento
E me afundo
Na dor.

Artigo

“FRAGMENTOS – PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA”

de João de Almeida Santos
(S. João do Estoril, ACA Edições, 
2025, 228 páginas)

APRESENTAÇÃO

Centro Cultural de Cascais 
19.09.2025

Por Salvato Teles de Menezes*

O Prof. Salvato Teles de Menezes na sua intervenção no Centro Cultural de Cascais (19.09.2025)


FRAGMENTOS é um livro dividido em 15 secções, a que o autor chama capítulos,  com títulos tão sugestivos quanto díspares, como “O Pleno e o Vazio”, “A Saudade, o Poeta e a Musa”, “Amar”, “Paisagens”, “O Loureiro e a Poesia” e “Templo e Melancolia”, entre outros, contendo cada uma um incerto número de poemas, de 9 a 24, se a minha álgebra ainda funciona, versando temas que acomodam divagações sobre objectos animados e inanimados, situações, conceitos, paisagens, sensações, sentimentos, pulsões, a que entendeu chamar sábia e gregamente “fragmentos”. Não me debruçarei sobre estes aspectos mais textuais, mas não deixarei de dar algumas notas sobre o que o autor chama “processo sinestésico” e a que eu, numa manifestação de ousadia, acrescentarei a noção de Écfrase. E não entrarei em terrenos demasiado textuais por duas razões: a primeira tem que ver com o facto, melhor, os factos de eu acreditar que os consumidores de literatura, em sentido estrito, não são ignaros e também, seguindo o pensamento de Duchamps, se ao artista, ao criador, é exigido tanto esforço e aplicação para construir a sua obra, também ao leitor ou fruidor de qualquer obra de arte deve caber algum trabalho de interpretação e de identificação dos traços técnico-formais que a caracterizam; a segunda, porque não só o livro, que mostra vontade de ser teoria, mas também o prefácio e a réplica aos comentários dos internautas que com o autor dialogam, instam o apresentador a teorizar, sob pena de ficar aquém dessa provocação ou de deixar a ideia de que já se esqueceu dos tempos em que ensinou Teoria da Literatura na sua alma mater. Riscos que o apresentador não quer correr. E permita-se-me uma citação: “Da leitura deste livro resultará um conhecimento mais preciso daquilo que se designa por póetica, neste caso, da minha poética, ou seja, dos elementos estruturais e constantes que integram o núcleo de todos os poemas”: eis uma declaração de JdAS em que, para mim, ressoa aquela bela definição de Novalis:

Die Poesie ist das echt absolut 
Reelle. Das ist der Kern meine 
Philosophie. Je poetischer, 
je wahrer”,

que, curiosamente, pode ser encontrada num seu livro intitulado Fragmente. Ora, como não quero deixar de tentar responder da melhor maneira que sei e posso a essa convocação, aqui se apresentam algumas considerações que, ainda que possam parecer estar apenas obliquamente relacionadas com o livro, tem tudo, ou pelo menos muito, a ver com ele.

I.

Mas, antes disso, ainda quero dizer deux ou trois choses que je sais sobre as tais Sinestesia e Écfrase, começando por defini-las. A Sinestesia é, então, a fusão de diferentes domínios sensoriais num mesmo enunciado, criando uma percepção híbrida (visão + tacto, audição + paladar etc.), sendo, portanto, uma figura ligada à intensidade da experiência estética, com forte presença na poesia e na prosa lírica, que é o caso vertente.

Por sua vez, a Écfrase, segundo a tradição clássica (de Homero a Filóstrato, passando pela retórica antiga), é a descrição verbal de uma obra visual (um quadro, uma escultura, uma tapeçaria). Dois dos seus mais brilhantes teóricos contemporâneos, James Heffernan e W. J. T. Mitchell, definem-na assim: o primeiro, como a verbalização de uma “representação visual”, e o segundo, que lhe amplia o conceito, como um lugar de intermedialidade, onde palavra e imagem se confrontam, competem e dialogam.

Significa isto que a relação entre os dois conceitos é fecunda e pode ser pensada em três frentes:

a) Dimensão sensorial expandida

A Écfrase, em princípio, parte do visual (uma pintura, uma cena vista), mas muitos textos ecfrásticos recorrem à Sinestesia para ultrapassar a pura visão, conferindo espessura táctil, sonora, olfactiva, gustativa às imagens descritas, podendo isto ser exemplificado com uma pintura descrita não apenas pelo que mostra, mas também pelo “silêncio metálico” que sugere ou pelo “perfume ácido” das cores.

b) Intensificação da presença

Heffernan e Mitchell observam que a Écfrase tende a criar uma “ilusão de presença”, sendo a Sinestesia um dos modos de reforçar essa presença: quanto mais sentidos são convocados, mais a imagem verbal ganha corpo e densidade.

c) Transposição inter-semiótica

Se a Écfrase é já uma transposição de um meio (imagem) para outro (palavra), ou vice-versa (a chamada “écfrase invertida”), a Sinestesia pode ser vista como um paralelo interno: uma transposição entre diferentes registos sensoriais. Assim, a Sinestesia funciona como recurso estilístico que intensifica a operação ecfrástica, tornando a descrição mais vívida e multissensorial.

Em resumo: a Écfrase e a Sinestesia encontram-se na tentativa de transcender os limites da linguagem verbal, aproximando-a da experiência sensorial plena. A Écfrase faz a ponte entre artes (imagem ↔ palavra), enquanto a Sinestesia faz a ponte entre sentidos (visão ↔ tacto, audição, etc.). Ambas operam, portanto, como estratégias de “tradução” e de intensificação do real no texto literário. Aplique-se isto, por exemplo, a: “Este poema e o respectivo quadro (ambos com o mesmo nome ‘A Janela’) até poderiam equivaler à garrettiana janela e à garrettiana Joaninha, como dizia um Amigo, a propósito. E também a um Carlos…” (“A Janela”, p. 123, poema 111); ou a: “Na verdade, a sinestesia é um enlace entre duas artes…” (“Enlace”, p. 131, poema 117).

Este excurso, ou não, feito, passemos então, à teoria, para, como é sugerido pelo autor de Fragmentos, seguir a fórmula de E. A. Poe.

II.

Como a palavra poesia significa etimologicamente criação, não é incorrecto apelidar toda a produção literária de poética. Assim o faz o nosso mestre Alfonso Reyes, o teorizador cujas concepções críticas servem de base ao que vamos enunciar, por certo sem o brilho da sua perspicácia intelectual e da sua prosa elegante e clara. Reyes divide a criação literária pura (poesia) em três funções: drama, romance e lírica. Cada uma destas funções subdivide-se, ainda segundo o mestre mexicano, em géneros, isto é, diferentes tipos de drama, romance ou lírica[1].

Mas a palavra poesia tem ainda outro significado: a maneira da forma literária oposta à prosa. Em geral, pensamos que a prosa é um modo literário relati­vamente arrítmico e mais apropriado à expressão de ideias, enquanto a chamada poesia é uma forma mais re­gularmente rítmica e mais adequada à expressão de emoções. Deste modo, à medida que a prosa se torna mais rítmica e se carrega de emoção, consideramo-la mais poética. Sem a presença de um certo «peso» do rit­mo, não há efectivamente prosa artística. Entretanto, como a palavra poesia é usada noutro sentido, o de obra em verso, é importante esclarecer que, se bem que o verso seja a maneira “habitual” de certos géneros poéticos, não constitui um elemento essencial. Pode haver disser­tações em verso que não são poesia, como é o caso de certos tratados didácticos do século XVIII (Ler “Concerto”, pp. 42-43, poema 20).

Agora, quando a pre­dominância da literatura escrita ainda é quase total, reconhe­cemos que o metro, a rima e mesmo o ritmo regular não são aspectos essenciais no que à poesia respeita. O rit­mo tout court é, no entanto, absolutamente essencial. A poesia é rica em emoção e, por isso, é necessariamen­te rítmica, como acontece com todas as outras artes do movimento que se desenvolvem no tempo. A poesia é persuasiva, não argumentativa, apela mais à imaginação que ao raciocínio lógico: é por isso que emprega símbolos que são quadros ou imagens e não puras abstracções. O seu recurso principal é a intensida­de da expressão verbal: é uma luta com o logos, que alguns teorizadores e escritores comparam à luta de Jacob com o Anjo no célebre passo bíblico (Génesis, 32:25-33 e Oseias 12: 3-7). E aqui estamos, aliás, a ecoar várias intervenções teórico-poéticas de JdAS sobre a sua prática, intervenções, aliás, persistentes e pertinentes.

O poeta transforma em nova e positiva latitude o que poderia parecer limitação, não lhe podendo ser indife­rente o elemento técnico-formal, uma vez que lhe não é permiti­do confiar demasiado na poesia como «estado da alma» e deve insistir na ideia de que a poesia é sempre uma árdua vitória sobre a palavra. É neste segundo aspecto que reside o valor essencial da sua arte; o primeiro é apenas (?) emoção prévia. Veja-se o ponto “Poética” da citada réplica aos amigos internautas: na poesia, “natureza variável / das palavras, / nada se perde / ou cria, / tudo se transforma” [2], nada portanto pode ser deixa­do ao arbítrio do acaso.

A emoção poética só é poeticamente (textualmente) expressa por meio de uma forma verbal que é aquilo que legitimamente se deve apelidar de retórica. Ora, estes mé­todos e hábitos da expressão verbal estão sujeitos à evo­lução do gosto [3].Quando um sistema de expressões se es­gota no decurso do tempo (a worn out mould, como dizem alguns teóricos norte-americanos) e não porque careça em si mesmo de qualidade, podemos dizer que essa forma deixou de nos emocionar, porque é tão nova para nós como o foi para os homens da época em que surgiu, mas não é aceitável denegar o seu valor real já fixado no tempo e na verdade poética. Leia-se o ponto “Estremecimento” ainda do referido texto.

É indiscutível que existe na poesia uma comunicação de mistério, definindo-se os grandes artistas por serem capazes de captar a sua eté­rea essência. No tempo actual tenta-se rea­lizar a expressão do mistério poético procurando esca­par aos rigores lógicos, enquanto em tempos idos, os românticos, por exemplo, tentaram encerrá-lo na carga emocional que deram às palavras (foi essa a sua grande inovação) e os que cha­mamos clássicos perseguiam esse escopo de outros mo­dos. Seja qual for o tipo de poesia praticado, os poetas esforçam-se por alcançar essa capacidade de expressão do mistério. Lembremo-nos de que se hoje nos cansa o rigor lógico e o excesso sentimental, estes elementos tinham para quem os introduziu na poesia «um calor subs­tantivo de mistério» (Leia-se “O Milagre do Impossível”, p. 197, poema 190).

E é óbvio que o poeta contemporâneo nos comunica coisas idênticas às que foram comunicadas pe­los poetas seus antecessores, residindo a diferença na utilização de determinados processos técnico-formais (Leia-se “Revelação”, p. 155, poema 139).

E se há poesia difícil é porque o poeta assim o quer, poesia a que se poderia chamar hermética, que, aliás, existiu em muitas épocas, se não em todas: há, hoje em dia, como sempre houve, poesia caótica ou incoerente por debilidade ou defeito do poeta, mas há outra que resiste aos nossos es­forços interpretativos justamente por ser pertinentemente actual (Herberto Hélder). Seja como for, grande parte da poesia contemporânea parece difícil porque poucos leitores lêem poesia en­quanto tal, por quererem entendê-la sem lhe dedicarem a atenção que ela exige. São mentalmente preguiçosos, e o poeta contemporâneo necessita da colaboração inte­lectual do leitor, porque a sua poesia sugere, recusa-se a declarar: os procedimentos literários de que se serve são indirectos. JdAS é também um poeta que exige a total atenção do leitor para ser integralmente apreciado.

III.

O leitor actual necessita de ter uma preparação supe­rior ao do passado para abordar a poesia deste tempo, porque essa prática poética releva de uma longa e vasta tradição literária, filosófica e cultural: a poesia contemporânea é mais pura no sentido de que destaca mais e melhor os procedimentos característicos da arte poética: o símbolo e não a atracção, a sugestão e não a declaração explícita, a metáfora e não a linguagem li­near, directa (Leia-se “Epílogo”, p. 211).

To­da a experiência é potencialmente poética e o poeta dá ao leitor a liberdade de reagir a essa matéria de acordo com os diversos modos que estão ao seu dispor. Ao oferecer-nos a possibilidade de sen­tir e conhecer um mundo cada vez mais complexo e va­riado em todas as suas manifestações, a poesia contemporânea acaba por se tornar difícil e impor àquele que lê o exercício de to­das as suas capacidades intelectuais e não exclusivamen­te a sua sensibilidade, seja lá o que isso for. Qualquer um dos poemas do livro serve para exemplificar isto, mas “Prosa poética”, p. 201, poema 196, é suficiente.

Recapitulando: uma das razões principais da defi­ciente apreciação da poesia reside no hábito de o leitor procurar no poema as verdades poéticas que lhe são familiares, aquilo a que o acostumou a poesia de épocas anteriores, sobretudo a romântica, mais directa na sua encenação textual.

Sabemos que o tema, isto é, a ideia ou motivo básico de um poema, pode ser o mesmo em épocas diferentes e que, contudo, a atitude do poeta pode variar considera­velmente. Ora, o modo de apresentar o tema varia de um poema para outro, segundo as combinações de símbolos, imagens, ritmos e sons que o poeta utilize, sendo que, ao apresentar um tema, o poeta nunca se limita a enunciá-lo. Se assim fosse, muitos poetas poderiam ficar reduzidos aos primeiros versos das suas composições.

Um poema é, afinal, a dramatização de um tema. Qualquer poema — mesmo os mais breves cantos líricos ou os mais longos poemas descritivos ou estes que compõem Fragmentos — traz implicita uma organização dramática. Es­ta é uma característica que convém ter presente quando se lê poesia: o seu aspecto dramático.

Quando dizemos que em poesia há sempre um tema básico, não queremos comisso inspirar no leitor o equívoco de que deve procurar em qualquer poema uma moralidade que aplicará ou não à sua vida. Há poemas em que realmente existe essa moral prática e muitos de­les são excelentes exercícios poéticos. Ninguém pode negar o valor moral de muitas máximas contidas em poemas, mas isso não chegaria para fazer deles obras de mérito literário. Uma ideia em si não basta para criar um poema. O facto de ela lá estar também não basta, como é evidente, para o destruir. Por isso, se o leitor não estiver de acordo com a ideia que um dado poema exprime, errará se acreditar que o poema é des­prezível. Pode ser um bom poema, a expressão acabada e perfeita de ideias que diferem das do leitor. É muito provável que poucos de nós concordem com as ideias que alguns poetas exprimem, mas isso não signi­fica que o resultado poético não seja artisticamente capaz: protestantes e ateus convictos lêem e admiram a Divina Comédia de Dante; católicos fervorosos e agnósticos podem ler e admirar Paradise Lost de Milton, sem alterar por isso as suas fidelidades ideológico-religiosas; idealistas e conservadores podem apreciar a poética materialista de Maiakóvskii. A poesia não deve ser julgada apenas do ponto de vista do tema, que pode estar em conflito directo com as nossas cren­ças pessoais. Também quem não concorde com a mundividência expressa nos textos de JdAS pode tirar gozo estético da leitura deles.

Outros leitores adoptam a perspectiva de que a poe­sia não deve encerrar ideias ou verdades, mas expressar a pura emoção, como se isso fosse possível. Um crítico também pode adoptar esta visão e dizer que um poema é a expressão de um mo­mento de pura realização do ser, que só tenta dar ao lei­tor a impressão de uma sensação ou de um momento vi­vido. Examinemos melhor esta afirmação: será que um poema exprime a pura emoção, digamos, da tristeza, com a mesma intensidade que, por exemplo, um grito? Ou será que o leitor, quando lê um poema que exprime tristeza, sente tanto essa emoção como sentiria um pesar pessoal? A resposta só pode ser negativa. No que respeita à mera intensidade emocional, o poema não pode ser igualado à experiên­cia directa: é a reacção do artista a uma experiência, seja de que tipo for, e, portanto, é uma interpretação, que por sua vez provocará no leitor uma reacção análoga, mas que não será neces­sariamente a mesma.

Outro conceito que pode confundir o leitor é aquele que afirma que a poesia «é a expressão bela de uma ver­dade elevada». Isto não passa de poesia como parte da didáctica. Nos livros infantis são por vezes utilizados poemas cuja finalidade é transmitir em forma rítmica certos preceitos ou conhecimentos e, de um ponto de vista didáctico, esse procedimento é legítimo, mas não poderá ser essa a atitude adequada à abordagem de um poema como obra de arte; porque a linguagem da poesia não se cria sepa­rada da ideia – forma e conteúdo são inseparáveis na obra artística (dentro dos limites estabelecidos por Hjelmslev). Se examinarmos exemplos de poesia ge­nuína, descobriremos que não é assim, que a poesia pode usar, com grande arte, objectos, situações, ideias, sími­les e imagens que não são conaturalmente poéticos, se por poético se entende o que é «bonito» ou «agradável». O efeito de um poema depende do modo como os seus elentos constitutivos são operados pelo poeta.

IV.

Há poemas dos finais do período romântico que se caracterizam por uma selecção muito requintada de vo­cábulos, pela elegância da forma, e que exprimem uma determidada ideia, normalmente muito delicada, com grande finura. Contudo, muitos deles não conseguem criar no leitor a poderosa impressão de outros poemas que não empregam uma única palavra ou imagem que seja em si mesma bela. Veja-se, por exemplo, o caso de alguns poemas de Federico Garcia Lorca, José Go­mes Ferreira ou João de Almeida Santos. Digamos que em certos poemas se nota uma discrepância fundamental entre forma e ideia, que os seus autores se deixam do­minar por uma tendência preciosista, ofus­cando a ideia sob o manto aveludado de um esplendor desnecessário.

No segundo tipo de poema pode não haver palavras preciosas, pode não haver imagens que sejam intrinseca­mente belas. Muitas vezes é o oposto que acontece: grande número de vocábulos e imagens, que podem chegar a ser chocantes, preci­pitam-se sobre o nosso espírito e adquirem um valor inusitado. A força desses poemas, o seu alto valor poéti­co, reside na perfeita unidade que o poeta soube cons­truir entre expressão e ideia.

Um poema, portanto, não pode ser apenas consi­derado uma sequência de objectos e ideais poéticos em si mesmos, por mais beleza individual que possam pos­suir. Também não é apenas um grupo de elementos em combinação mecânica — metro, rima, linguagem figura­da, etc. —, reunidos como os tijolos de uma parede. É a relação entre estes ou aqueles elementos do poema que importa, e essa relação tem um carácter íntimo e fundamental: um poema constitui um todo orgânico. Quando consideramos os elementos de um poema — ritmo, ima­gens, vocabulário, métrica — de nada servirá analisá-los separadamente, devendo ser avaliados em relação com a intenção global e a forma de organização (a composi­ção) do poema no seu todo (Leia-se “O Milagre da Poesia”, p. 121, poema 108).

V.

As qualidades que distinguem o modo de tratar poeticamente um assunto, se comparadas com a maneira de o fazer em prosa, são essencialmente duas: concentração e intensidade; e este aspecto é importante para perceber por que se entende que os textos de Fragmentos são, como atrás se referiu, prosa lírica. É que a forma da poesia apresenta uma organização mais complexa do que a da prosa, requerendo um pro­cesso de selecção mais rigoroso, com a sugestão a predominar como meio de expressão. Com isto não queremos dizer que este tipo de orga­nização esteja fatalmente fora do âmbito da prosa, mas que é predominante em poesia.

Veja-se este belo exemplo de prosa poética (ou poe­sia em prosa), que poderá ser colocado ao lado dos que preenchem Fragmentos, sem desprimor para nenhum dos autores:

Poiso a mão vagarosa no capô dos carros como se afagasse a crina dum cavalo. Vêm mortos de sede. Julgo que se perderam no deserto e o seu destino é apenas terem pressa. Neste emprego, ouço o ruído da engrenagem, o suave movimen­to do mundo a acelerar-se pouco a pouco. Quem sou eu, no entanto, que balança tenho para pesar sem erro a minha vida e os sonhos de quem passa?

(Carlos de Oliveira, “Posto de Gasolina”)

O ritmo, já o dissemos, não é exclusivo da poesia: a diferença en­tre poesia e prosa quanto ao ritmo é unicamente de grau. Mas esta diferença de grau é central. A poesia tende a empregar o ritmo com regularidade, se bem que haja inúmeros matizes que vão da prosa rítmica ao ritmo regular do verso. A versificação é uma ordenação sistemática do ritmo, daí que o verso seja uma maneira da forma primordialmente utilizada pela poesia.

A propósito do ver­so livre convém referir que a frequência de uma versificação sistemática como forma da poesia em geral pode fazer com que se tenda a confundir versifica­ção com poesia, levando a esquecer que o verso não é senão um dos instrumentos que o poeta tem à sua dispo­sição para transmitir uma mensagem. Ninguém pensará que várias pa­lavras sem relação ou sentido possam ser consideradas poesia só porque apresentam uma forma versificada. Para que haja poesia é necessário que as palavras se re­lacionem entre si de modo a construir um sentido poéti­co, se bem que às vezes não pareça lógico. A poesia é justamente o re­sultado da interrelação de diversos elementos e não é inerente a nenhum deles isoladamente, sendo a forma da disposição desses vários factores de acordo com uma finalidade artística (Leia-se “Voar sobre o silêncio”, p. 116, poema 104).

Outro modo de utilizar o efeito expressivo dos sons é a rima, ou igualdade das letras finais da palavra, a partir da última vogal acentuada, mas a rima pode existir dentro do verso ou linha: a aliteração pode ser considerada uma manifestação de rima interna. A finalidade da rima é, portanto, de ordem estrutural, além de que possui a qualidade de ser agradável, repetitiva e musical, mas todos os re­cursos da versificação, por mais fundamentais que se­jam, não deixam de também ser limitações. Os poetas que trabalharam em períodos nos quais esses procedi­mentos foram considerados regras que era “obrigatório” respeitar viram-se muitas vezes forçados a alterar as palavras para que pudessem caber num metro determinado ou a empregar vocábulos que diminuíam o rigor da expressão. A tanto obrigava a necessidade de terminar uma rima. Não foi por acaso que Verlaine se revoltou contra a rima — «ce bijou d’un sou» (essa jóia de pacotilha), que não é o caso, diga-se, deste belo e rimado poema “ILUSÃO”:

A MUSA  
Nunca existiu, 
 Dizia  
O poeta  
Fingidor,  
Era apenas 
Artifício  
Pra simular  
O amor.  

E O POEMA  
Também não,  
São palavras  
Ritmadas  
Pra criar  
A ilusão  
De vidas  
Que são  
Criadas  
Com alguma  
Inspiração.  
 
NADA EXISTE  
A não ser  
Como desejo  
Que não se torna  
Real,  
Só nuvens  
Que o vento  
Leva  
E já não voltam  
Ao céu  
Onde o poeta  
Navega  
E desenha  
Com palavras  
Tudo aquilo  
Que perdeu. 

O VENTO 
É seu amigo  
Leva palavras  
Consigo  
Pra simular  
A vontade  
D’estar sempre  
Ao pé dela  
Evitando  
O castigo  
De só a ver  
Da janela.

É TUDO  
Piedosa  
Ilusão  
De quem nunca  
Partiu  
Do lugar  
Que habitou  
Onde o amor  
Mais não era  
Do que aquilo  
Que sonhou.
(João de Almeida Santos, “Ilusão”.
Link para o poema: 
https://joaodealmeidasantos.com/2025/08/09/poesia-pintura-275/
VI.

Por outro lado, a poesia contemporânea também desenvolveu no mais alto grau a função do símbolo e da imagem e o uso da linguagem figurada.

A representação, em poesia, de uma experiência dos sentidos chama-se imagem. O poeta transmite as suas experiências por meio de comparações e daquilo a que chamamos linguagem figurada, cujas formas mais habituais são o símile e a metáfora, sendo que o símile, como todos sabemos, emprega os termos comparados e o com­parativo (a sua face fresca como uma rosa) e a metá­fora suprime o termo comparativo, identificando os termos comparados directamente um com o outro (a rosa da sua face). É claro que a metáfora sugere muitas in­terpretações que não cabem no símile, mas o que importa sublinhar é que a imagem não é um ornamento da poesia: é uma forma de comunica­ção, como já afirmámos. Os modos de funcionamento da imagem são demasiado numerosos e complexos pa­ra serem apresentados aqui, mas convém sublinhar que nunca a devemos encarar como uma simples ilus­tração (Leia-se “O Eco do Silêncio”, pp. 110-111, poema 94).

Um processo que está relacionado com o espaço me­tafórico é o da criação e uso do símbolo em poesia. O símbolo é uma espécie de metáfora em que se omite um dos termos. Se um poeta nos diz que uma mulher é «a rosa do Abril das almas», construiu uma metáfo­ra, mas quando escreve sobre um poema «nunca a to­ques; assim é a rosa», sugerindo com esta palavra a qualidade do poema, então converteu a rosa num sím­bolo. Os poetas chegam, aliás, a ser identificados pe­los seus símbolos característicos, pois cada um costu­ma criar alguns muito pessoais: quem não recorda a lua de Garcia Lorca, o cisne de Rubén Dario, a cal de Carlos de Oliveira, o loureiro de João de Almeida Santos? A relação do símbolo com o seu significado não é de carácter lógico — «é demasiado subtil para o intelecto», disse Yeats —, mas tem poder e intensidade ilimitados.

Sabe-se que desde sempre a poesia dá expressão ao mito. A poesia dramática, por exemplo, limitou-se (?) durante muito tempo a ser representação do mito em forma de acção directa; a poesia épica, por seu lado, representou-o em forma de narração, e mesmo a poe­sia lírica, mais pessoal na sua expressão, lhe empres­tou voz musical. Se bem que agora essas três funções da poesia abordem temas muito diferentes e afastados dos antigos mitos, não podem todavia desenraizar-se deles e frequentemente fazem com que eles revivam em novas interpretações (como, por exemplo, o mito de Narciso e o de Orfeu) ou baseiem neles novas construções míticas (Leia-se “Sísifo”, p. 94, poema 77).

VII.

Para (quase) terminar, queremos tocar num ponto que nos parece de particular interesse. A poe­sia, como sabemos, tem um valor sonoro: não é feita apenas para ser lida, também existe para ser ouvida. O leitor que não seja capaz de ouvir a poesia não po­derá apreciá-la devidamente. Quando lê, deve reproduzir mentalmente os sons e a entoação sem os quais não pode apreciar o poema na sua inteireza. Será conveniente, pelo menos nas primeiras vezes, ler os poemas em voz alta até apren­der a ouvi-los mentalmente. O poeta dirige-se sempre ao leitor na expectativa de que este o «ouça com os olhos».

Veja-se, por exemplo, a musicalidade deste soneto:

Vocábulos de sílica, aspereza
Chuva nas dunas, tojos, animais
Caçados entre névoas matinais,
A beleza que têm se é beleza.

O trabalho da plaina portuguesa,
As ondas de madeira artesanais
Deixando o seu fulgor nos areais,
A solidão coalhada sobre a mesa.

As sílabas de cedro, de papel,
A espuma vegetal, o selo de água,
Caindo-me das mãos desde o início.

O abat-jour, o seu luar fiel,
Insinuando sem amor nem mágoa
A noite que cercou o meu ofício.
 (Carlos de Oliveira, “Soneto Fiel”)

Ou deste poema, que é diferente e igualmente intenso:

EU CANTO
E pinto
O meu destino,
Sonhos velados,
A minha vida,
Sonhos marcados
Por tudo aquilo
Que imagino
Nas noites frias
Da despedida.

PERDI A CHAVE
Do meu futuro
Já só me resta
A partida,
Por isso canto
E, como as aves,
Voo mais longe
E com mais cor
Porque no céu
Há mais azul
E nos meus sonhos
Já não há dor.

MAS HÁ SEGREDO
Não revelado
E se o dissesse
Não deveria,
Como poeta
E fingidor
Eu certamente
Até mentia.

E NÃO O DISSE,
Mas eu pequei
Com murmúrios
D’enamorado
Em poemas
Inocentes
Onde cantava
Esse meu fado
Com palavras
Luminescentes.

POR ISSO VOO
Sempre mais alto,
Trepo nas cores
Pra lá chegar,
O céu azul
Dá-me alento
Pra meus segredos
Nele guardar.

LEVO PALAVRAS
Comigo,
Procuro inspiração.
Levo cor,
O meu abrigo,
Levo a musa
E tudo o mais
E quando parto
Lá para cima
É sempre festa
Nesse meu cais.

LEVO-TE A TI
E desse jeito
Eu sou feliz
Lá bem no alto,
No azul do céu,
Onde respiro
Esse ar puro
E rarefeito,
Lá onde o mundo
É todo meu.

EU CANTO
E pinto
Pra exaltar
Esse teu rosto,
Iluminar
Em aguarela
Esse enleio
Do meu olhar
Pois se te vejo
Logo me vem
Esta vontade
De te pintar.

POR ISSO, CANTO
Por isso, voo,
Por isso subo
Lá para o alto
E dou-te asas
E o infinito,
Voar contigo
No céu azul
É um prazer...
................
E é bonito!
João de Almeida Santos, “Voar”.
Link para o poema:
https://joaodealmeidasantos.com/2025/08/16/poesia-pintura-276/
VIII.

E termino, retribuindo uma vez mais a provocação a que me referi no início, com uma citação de Alfonso Reyes, extraída de El deslinde, que JdAS entenderá cabalmente: “Si Aristóteles nos entusiasma en su defensa de los poetas, no nos entusiasma menos Platón en su heroica lucha – por desgracia algo confusa en sus libros – por emancipar la poesia de los fraudes sentimentales, llevándola a la zona austera y difícil, neumática en cierto modo, en que ella reivindique su jerarquia.” Muito obrigado pela vossa atenção.

Cascais, 19 de setembro de 2025
NOTAS

1) O género literário define-se habitualmente como um conjunto de re­gras e restrições que regem a produção de um texto. Cf. Costanzo di Girolamo, Para uma crítica da teoria literária (Lisboa, Livros Horizonte, 1985), que tive o gosto de traduzir. As obras de Reyes consultadas são El deslinde, Cuestiones de estética e La experiencia literaria (Ciudad de Mexico, Fondo de Cultura Económica, 1944, 1955 e 1962).

2) Carlos Oliveira, “Lavoisier”, Sobre o lado esquerdo (Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1968).

3) Galvano della Volpe, Critica del Gusto (Milano, Feltrinelli, 1966).

* NOTA BIOGRÁFICA 
SOBRE SALVATO TELES DE MENEZES

Licenciado em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1973, instituição de que se torna professor assistente no Departamento de Estudos Anglísticos (1974), ocupando-se das cadeiras de Literatura Inglesa, Literatura Norte-Americana e Teoria da Literatura. É Vogal do Conselho Directivo entre 1978 e 1988. Lecciona Literatura Portuguesa e Brasileira e Teoria da Tradução em Boston (NE University), doutorando-se em English Studies, com uma dissertação sobre o romance histórico norte-americano (1993).

Director Editorial de Livros Horizonte (1977-1980), membro da Comissão Executiva do I Congresso de Escritores de Língua Portuguesa (1998), co-fundador e Director de Programação do Festival Internacional de Cinema de Troia (1984-1991), Vice-Presidente e Presidente do Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual (1993-1995), representando Portugal no Programa Eurimages. Membro do Conselho de Opinião da Radiotelevisão Portuguesa (2002-2007). Membro do Consejo Asesor da Fundación Duques de Soria (2019), passando a integrar o Patronato em 2023.

Administrador-Delegado da Fundação D. Luís I (1996), tornando-se também Presidente do Conselho Directivo a partir de 2013. Director Municipal de Cultura (2022-) da Câmara Municipal de Cascais.

Fez ainda parte do Júri do Grande Prémio do Romance e da Novela (1996), do Grande Prémio de Conto (Camilo Castelo Branco) (1999), do Grande Prémio do Romance (2017, 2019 e 2023) e do Grande Prémio de Literatura Biográfica Miguel Torga (2025) da Associação Portuguesa de Escritores, e, no plano cinematográfico, foi membro do Júri Internacional do Festival de Cinema de Istambul (1987), do Festival de Cinema Jove de Valência (1986 e 1988), do Festival de Cinema Latino de Chicago (1992).

Autor de vários ensaios sobre literatura e cinema, bem como de dois livros de poesia, é reconhecido o seu labor no campo da tradução, tendo vertido para português obras de J. L. Borges, C. José Cela, M. Vargas Llosa, Fernando del Paso, A. Muñoz Molina, Elmer Mendoza, Mário Benedetti, J. D. Salinger, Chester Himes, Javier Marías, Javier Tomeo, William Shakespeare, Peter Wollen, Woody Allen, Ralph Ellison, Thomas Pynchon, R. B. Parker, Vladimir Nabokov, John Dos Passos, William Burroughs, Raymond Chandler, Peter Bogdanovich, Nancy Rubin, James Anderson, Laurence Dermott, Manuel Puig, Guillermo Cabrera Infante, D. Foster Wallace (em colaboração), Saul Bellow, Melvin Kelley, Julian Barnes, Paul Schrader, Hari Kunzru, Richard Zenith (em colaboração), Tan Twan Eng e Gerald Murnane.

Poesia-Pintura

A PORTA

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “A Porta”
JAS 2025
Original de minha autoria
Setembro de 2025

“A Porta”. JAS 2025

¡Qué trabajo nos cuesta  
traspasar los umbrales 
de todas las puertas!  
Vemos dentro una lámpara 
ciega  
o una niña que teme
las tormentas.  

La puerta es siempre la clave  
de la leyenda.  
Rosa de dos pétalos
 que el viento abre  
y cierra.

Federico García Lorca,
“Puerta Abierta”, 1921

POEMA – “A PORTA”

BATI LEVE,
Levemente,
A uma porta
Com a luz
Do meu jasmim,
Silêncio,
Foi o que ouvi,
Do princípio
Até ao fim.

ILUMINADA
Por jasmim
Numa cascata
De luz,
Esta porta
É mistério
Pra quem
O mistério
Seduz.

TALVEZ SEJA
Porta
De sacrário
Que guarde
Corpo
Intangível
De deusa
Do meu passado,
Entrada
De templo
Encantado,
Esse lugar
De mistério,
Esse lugar
Do sagrado.

SÓ SILÊNCIO
De catedral
Se ouve
Com seu eco
Em surdina
Que desafia
O poeta
A cantar
O que o eco
Ilumina.

AH, A VERTIGEM
Do oculto,
Celebrado
Por uma porta
Vestida
 De luz
Pelo imponente
Jasmim
Com essa cascata
Brilhante
Que brota
Do meu jardim
E que tanto
Me seduz.

FOSSE A PORTA
Transparente
E raios de sol
E de luz
Entrassem nela,
Vítrea
Como janela,
Dissipava-se
O mistério
Que a porta
Não revela.

MAS EU QUERO
Apenas pintar
Essa porta,
Ombreira
D’inspiração,
Porque não ouso
Passar
A fronteira
Que desvela
O mistério
Que há nela
Com esta minha
Canção.

Artigo

ENCONTRO COM NOVALIS

A PROPÓSITO DO LIVRO FRAGMENTOS
(S.JOÃO DO ESTORIL, 
ACA EDIÇÕES, 2025)

João de Almeida Santos

JAS, na Intervenção no Centro Cultural de Cascais, 19.09.2025

NA SESSÃO DE APRESENTAÇÃO do meu novo livro FRAGMENTOS – Para um Discurso sobre a Poesia (S. João do Estoril, ACA Edições, 2025) no Centro Cultural de Cascais, na passada Sexta-Feira, para além dos devidos agradecimentos à Fundação D. Luís I, ao Professor Salvato Teles de Menezes, na dupla condição de Presidente da Fundação e de qualificado apresentador do livro, à Editora ACA Edições, na pessoa de Ricardo de Almeida Santos, e a todos os presentes, quis sublinhar esta faceta mais criativa e livre do meu percurso intelectual relativamente àquela outra que desenvolvi durante décadas por exigências de natureza profissional e académica. Nesta outra relação espiritual com a vida e com o mundo, através da arte, a liberdade não conhece limites. Os únicos que conhece são os da própria alma e da fantasia, aqueles que desafiamos com a fantástica maquinaria poética, se me é permitido usar esta expressão. Voar da alma para o espírito através de palavras ritmadas, asas da alma e da fantasia, é o estimulante desafio que se põe ao poeta sempre que inicia a viagem.

1.

Iniciei este tipo de publicação em 2021, no meu Livro de Poesia, dedicando-lhe cerca de 70 páginas (Lisboa, Buy The Book, 2021, pp. 351-420), mas transcrevendo também os comentários que, por diversas razões, considerei mais significativos. Em 2025, este livro já não transcreve os comentários, mas unicamente as minhas respostas, reconstruídas para dar a cada fragmento a necessária autonomia de sentido, evitando também tornar o livro demasiado extenso e complexo. Em 2026, publicarei um novo livro de fragmentos, seguindo a mesmo lógica deste. Livro já pronto e apenas a aguardar publicação. Publicarei também um novo livro de Poesia (POESIA II) que incluirá os poemas que foram objecto dos comentários que integram este livro. Poderão assim os fragmentos ser confrontados com os poemas que lhes deram origem.

2.

Que razões explicam a publicação deste tipo de livro?

  • Preservar o meu trabalho de reflexão, em forma de diálogo com os leitores, sobre a minha própria poesia, vista a possibilidade do seu desaparecimento digital (os diálogos estão, sobretudo, no Facebook).
  • Propor uma reflexão mais aprofundada sobre a minha poesia, essa, sim, a minha actividade principal, da qual, afinal, acabou por nascer, há oito anos, outra actividade, a da pintura digital, para que pudesse manter o processo sinestésico que há muito anos venho desenvolvendo entre a poesia e a pintura.
  • Aperfeiçoar a minha própria poesia, ao reflectir, em diálogo, sobre ela a propósito de cada um dos poemas que vou publicando.
  • Dar público conhecimento do que penso sobre o que faço e sobre o que considero ser a poesia e os ambientes em que ela nasce, acontece e se desenvolve.
  • Reflectir demoradamente sobre o que julgo estar na origem da poesia.
  • Reflectir sobre a relação da poesia com a ideia de tempo.
  • Reflectir sobre a relação da poesia com a música, que considero essencial no processo de relacionamento com a sensibilidade de quem a partilha.
  • E, finalmente, reflectir sobre o processo de sinestesia entre a poesia e a pintura que desenvolvo sistematicamente como forma de enriquecimento mútuo ou até de “visualização” de uma certa interpretação dos poemas.
3.

Tudo isto está presente no livro em prosa híbrida, mas que tende a funcionar mais como linguagem poética do que propriamente como prosa. Quando se escreve sobre poesia, a tendência a poetar é inevitável. Este aspecto foi muito bem evidenciado na intervenção do Prof. Salvato Teles de Menezes (cuja publicação, aqui, está prevista para a próxima semana) e corresponde, de facto, à colocação do autor numa posição de total liberdade de escrita e, naturalmente, à propensão para o fazer em linguagem dominantemente poética. Linguagem que acaba por se impor a quem se dedica intensamente ao exercício poético. Uma leitura interna com a própria linguagem da poesia, feita também a partir da própria condição de poeta. O resultado acabou por ser aquele que foi evidenciado na apresentação do livro pelo Professor Salvato.

4.

Neste livro registam-se intertextualidades que não foram que intencionais e onde a convergência de posições não foi, portanto, motivada por um qualquer nexo de causalidade, tendo apenas acontecido devido à natureza especial do exercício poético, tal como eu o entendo. Limito-me a referir, como exemplo, um caso, o de Novalis (1772-1801) – que revisitei depois de uma referência que o Prof. Salvato me fez -, nessa obra que tem o mesmo título da minha, Fragmentos (cuja primeira publicação é de 1798), onde é possível registar, nos vinte curtos fragmentos que irei transcrever e comentar, uma grande coincidência de ideias sobre a poesia e que pode ser constatada através de uma leitura atenta destes meus “Fragmentos”. Passo a reproduzir textualmente o que diz Novalis, usando a excelente edição bilingue (alemão-português) da Assírio&Alvim, com selecção, tradução e introdução do escultor Rui Chafes, Fragmentos de Novalis (Porto, 2024, 3.ª edição), com curtos comentários meus a cada fragmento:

  1. “Poesia, a arte de excitar a alma” (2024:135) de quem frui, digo eu. Rui Chafes traduz, e correctamente, Gemüt por ânimo, mas eu prefiro traduzir por alma. Mas acrescento ainda o seguinte: no poeta talvez seja a alma em desassossego a precipitar a poesia. Eu sinto que é mesmo assim. Mas estamos no mesmo terreno.
  2. “O espírito nasce da alma – ele é a alma cristalizada” (2024: 127) em forma de poesia. O fenómeno da “cristalização” foi referido por Stendhal, em De l’Amour (1822), em relação ao amor: uma “operação do espírito” tendente a projectar beleza no ser amado: “uma vez iniciada a cristalização, apreciamos com delícia cada nova beleza que se descobre no ser amado” (Do Amor, Lisboa, Relógio d’Agua, 2009, p. 35). Também na poesia é assim.
  3. “O lugar da alma está no ponto onde o mundo interior e o mundo exterior se tocam” (2024: 31). O poeta vive num intervalo, que o mesmo é dizer no lugar de intersecção entre o mundo interior e o mundo exterior. Diz o Bernardo Soares, no Livro do Desassossego (Porto, Assírio&Alvim, 2015): “saber interpor-se constantemente entre si próprio e as coisas é o mais alto grau de sabedoria e prudência”; ou “sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero” (2015: 409; 206 ). É neste intervalo que o poeta se situa.
  4. “Deveríamos estar orgulhosos da dor” (2024:125). Reconheço a dor como fonte primordial de onde nasce a poesia. “Em tempos felizes são raros os sonhadores”, dizia Hölderlin em “Esboço de uma Poética” (Todos os Poemas, seguido de Esboço de uma Poética, Porto, Assírio&Alvim, 2021, p. 610)
  5. “A poesia é a grande arte de construção da saúde transcendental. O poeta é, portanto, o médico transcendental. A poesia põe e dispõe da dor e do prurido – da vontade e da falta de vontade – erro e verdade – saúde e doença. – Ela mistura tudo para a sua suprema finalidade – a elevação do Homem acima de si mesmo” (2024: 47). Poderíamos dizer: o poeta é mais do que psicanalista de si próprio, porque a sua é uma missão superior a si próprio.
  6. “Não deverá, eventualmente, a poesia exterminar o desprazer – tal como a moral o faz com o mal?” (2024: 121). O poder de resgate da poesia – a passagem da tristeza à melancolia e desta à “doce melancolia”.
  7. “Toda a poesia repousa sobre uma activa associação de ideias” (2024:125). Frequentemente eu falo da poesia como uma espécie de divã psicanalítico, e julgo que com alguma razão, com a diferença de o resultado ser de natureza estética e performativo, embora Novalis também diga que “a estética é completamente independente da poesia” (2024: 135). Julgo que ele se refere à dimensão interior da poesia – só pode ser fruída se for sentida. O “espírito dionisíaco” é independente do “espírito apolíneo”, se quisermos usar a linguagem do Nietzsche de “A Origem da Tragédia”. A poesia nasce da emoção e o espírito cristaliza-a, eleva-a, sublima-a. A experiência poética não pode acontecer como se o poema estivesse numa posição exterior à de quem o frui. A identidade exigida na relação poema/fruidor retira exterioridade à relação estética. A estética implica uma certa relação sensorial na óptica do observador. Na poesia, a relação interna é dominante. Talvez seja neste sentido que se pode compreender a afirmação de Novalis.
  8. “A linguagem é um instrumento musical das ideias” (2024: 117). O poder sensitivo da toada poética, do ritmo e da melodia como forma de exteriorização da palavra e do sentido. A música é não só irmã gémea da poesia, mas é-lhe indissociável – é através da música que a poesia ganha uma forte performatividade. A semântica precisa da música como seu alimento. Diz o Bernardo Soares: “considero o verso como uma coisa intermédia, uma passagem da música para a prosa” (2015: 206). A poesia situa-se entre a música e a prosa. Duma tem a toada e a melodia, da outra tem a semântica.
  9. “Do produzido nasce de novo o produtor” (2024: 87). Assim acontece com a poesia – o poeta não existe fora da poesia que produz. Na produção poética o poeta renasce. A poesia só se completa quando é comunicada e partilhada (veja-se Bernardo Soares, na citação infra, ponto 19.)
  10. “Só podemos tornar-nos no caso de já sermos” (2024: 81). Para fazer e para compreender a poesia, é preciso senti-la, vivê-la por dentro, pressenti-la.
  11. “A imaginação é esse sentido prodigioso que pode substituir todos os nossos sentidos” (2024: 79). Daqui advém a força global e a alta performatividade da poesia. A poesia atinge todos os sentidos. Até o palato. Não era a Natália Correia que dizia aos esfomeados do sonho que a poesia é para comer?
  12. “A filosofia é a teoria da poesia“ (2024: 59). Se fracassares poeticamente refugia-te no hospital da filosofia, dizia Hölderlin (contemporâneo de Novalis – 2021: 613).
  13. “O verdadeiro poeta é omnisciente. Ele é um mundo real em pequeno” (2024: 59). O passado, o presente e o futuro num só poema.
  14. “Apenas um artista é capaz de adivinhar o sentido da vida” (2024: 53). A poesia é o meio mais eficaz e completo para captar o sentido da existência humana.
  15. “Todo o verdadeiro segredo deve excluir os profanos espontaneamente. Quem o compreender é, por si mesmo, de pleno direito, um iniciado” (2024: 43). A poesia é mistério e é cifrada, ou seja, é para iniciados. Não é um lugar de turismo, de férias existenciais, de divertissement, de prazer – é um espaço para habitar e viver.
  16. “Nada é mais poético do que a lembrança e o pressentimento ou ideia do futuro. (…) Por isso, toda a recordação é melancólica  – todo o pressentimento é alegre. Aquela modera toda a vivacidade demasiado grande – este eleva uma vida demasiado fraca” (2024: 41). A poesia viaja entre o passado e o futuro e o seu ambiente preferido é o da melancolia, visando a sua transformação numa mais suportável  “doce melancolia”.
  17. “A pura linguagem poética deve ser, porém, organicamente viva” (2024: 37). Ou seja, não é uma linguagem conceptual e não está sujeita ao teste da verdade/falsidade. Só se entende se for sentida.
  18. “Desejos e apetites são asas” (2024: 25). As asas da poesia são as palavras e a propulsão é a que resulta dos desejos e dos apetites. E da dor.
  19. “É na alegria de manifestar no Mundo”, através da linguagem, “o que lhe é exterior que reside a origem da Poesia. A recordação é o mais seguro terreno do amor” (2024: 17). E o amor é sentimento dominante na poesia.  A poesia expõe ao mundo o que vai na alma do poeta. “A arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles”, diz o Bernardo Soares (2015: 231).
  20. “Em que consiste, verdadeiramente, a essência (das Wesen) da poesia não se pode pura e simplesmente determinar. (…) Belo, romântico, harmónico são apenas expressões parciais do poético” (2024: 147). A poesia, no seu minimalismo formal, encerra um mundo nela. Só por isso Novalis pode dizer que o poeta é “omnisciente”. Determinar a sua essência seria amarrá-la a uma concreta caracterização, limitando, assim, a sua esfera (ilimitada) de intervenção e de comunicação.
5.

Estas são palavras de Novalis, um autor alemão de finais do século XVIII, reforçadas com algumas outras de Bernardo Soares, Stendhal e Hölderlin, que coincidem com o discurso que neste livro desenvolvo, mas que não nasceu por influência deste grande escritor. Trata-se, simplesmente, de um encontro ditado, talvez, por um alinhamento favorável dos astros ou, então, por um mesmo sentimento experimentado durante o voo poético lá no alto, no azul do céu. Um discurso, e disso tenho a certeza, que, no meu caso, nasceu como resultado da minha própria prática poética. O mesmo me acontecera quando escrevia o meu romance “Via dei Portoghesi” relativamente ao “Livro do Desassossego”, do Bernardo Soares. Não deixa de ser curiosa esta afinidade que, ainda por cima, não acontece como resultado de uma relação de causa-efeito, mas por se viajar no mesmo território e se procurar atingir a inatingível essencialidade (Wesenheit) da poesia.

6.

O que é certo é que eu devo este livro, isso sim, a muitos amigos que foram comentando, e de forma muito estruturada, certeira e erudita, todos os domingos os meus poemas. Foi a partir dos seus comentários que pude desenvolver uma longa e diversificada reflexão não só sobre a minha poesia, mas também sobre a poesia em geral, ajudando-me a aperfeiçoar o meu pensamento sobre a arte e, em particular, sobre a poesia. Sobre essa outra dimensão da nossa relação com a vida e com o mundo. A todos eles o meu muito obrigado. JAS@09-2025

Poesia-Pintura

LIVIDEZ

DIÁLOGO COM O PASSADO
Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Lividez”
JAS 2025
(Variante de “La Cortigiana”,
de 2023)
Original de minha autoria
Setembro de 2023

“Lividez”, JAS 2025 (variante de “La Cortigiana, de 2023)

POEMA – “LIVIDEZ – DIÁLOGO COM O PASSADO”

ESTAVA
Um pouco
Lívido
Esse teu rosto
(Pintado),
Caía tristeza
Sobre ti
Quando te via
Ao sol-posto
(A meu lado),
Na rua
Onde eu
Te conheci.

ERA TRISTE
Altivez?
Talvez fosse,
Talvez,
Porque olhavas
E não me vias
Quando passava
A teu lado,
Com a minha
Timidez,
Na rua
Do desencontro,
Já um pouco
Desolado...
........
Pela tua
Lividez.

TUAS MÃOS,
Ah, essas mãos,
Desenharam-te
Como pecado
Em porcelana,
Alma em fuga
Desta vida
Para um mundo
Onde parecias
Perdida.

SENTIAS-TE
Gueixa,
Lá dentro
De ti,
Na cidade
Proibida,
No dia
Em que perdi
O que me
Sobrara
Dessa tua
Incessante
Despedida?

PORQUE ESTAVA
Lívido
E triste
O teu rosto?
Não eras tu.
Inventaste
Esse perfil
Onde te revias
Na cidade
Proibida
Como eco
Sensual
Do meu remoto
Desejo
De te ter
Na minha vida?

PECADO
De quem ama,
Culpa
Mortal
Quando a divina
Beleza
 É sensualmente
Rasgada
E ferida
Por volúpia
Carnal?

COM QUE BÂTON
Pintaste
Essa alma
Inquieta
E incerta
Que aflora,
Intensa,
Como desafio,
Nessa boca
Sensual?

EMPUNHASTE-O,
Esse bâton,
Para desafiar,
Certeira,
Uma pulsão
Que não ousas
Depor
E que cobres
Com as cores
Vivas
De uma alma
Em sobressalto...
..............
Talvez ferida
De amor?

VEJO-TE, AGORA,
A fumar,
Lânguida,
Com esse bâton
Já gasto
A transbordar
De teus lábios
Carnudos,
Ao rubro,
Em preguiça
Abandonada,
Pronta
Para te dares,
Não a mim,
Mas sempre,
Sempre,
Ao olhar mágico
De tuas mãos
E da grafite
Com que desenhas
Milagres íntimos
Sobre rostos
Múltiplos
E fugidios.

ENTÃO PINTA-ME
Também
Com esse bâton
E leva-me
Contigo,
Livres,
Os dois,
A quebrar
Em mil pedaços
Essa porcelana
Do pecado
Com a beleza
Singela
Desse teu
Rosto doce
E meigo
Que acaricio
Com as palavras
Deste difícil
Poema
De reencontro
Com o passado.

NOTÍCIA

“FRAGMENTOS” NO CENTRO CULTURAL DE CASCAIS

João de Almeida Santos

Vista geral da Apresentação do livro “Fragmentos” no Centro Cultural de Cascais

OCORREU ONTEM, 19 de Setembro, no Centro Cultural de Cascais, a apresentação do meu novo livro “FRAGMENTOS – Para um Discurso sobre a Poesia” (S. João do Estoril, ACA Edições, 2025). O livro foi apresentado pelo Prof. Salvato Teles de Menezes, numa belíssima lição sobre Poesia que, em breve, será publicada integralmente no meu site. A sessão foi aberta por Ricardo de Almeida Santos, em nome da Editora ACA Edições. No final, usei da palavra não só para agradecer a presença dos cerca de 50 convidados, mas também para falar deste livro, evidenciando, por uma feliz referência que me fora feita pelo Prof. Salvato, a singular convergência de pontos de vista sobre a poesia entre o livro “Fragmentos”, de Novalis, e o discurso que desenvolvo neste meu livro, também ele de fragmentos sobre a poesia, sem que, afinal, se tenha verificado uma relação intertextual de causa-efeito. Referi 19 curtos fragmentos de Novalis como demonstração desta feliz coincidência com os pontos de vista deste grande escritor alemão (usei para o efeito a edição de Fragmentos de Novalis, bilingue, alemão-português, da Assírio&Alvim, ao cuidado do escultor Rui Chafes). Terei ocasião de publicar, em breve, no meu site, esta parte da minha intervenção. Quero agradecer à Fundação D. Luís I, na pessoa do seu Presidente, Prof. Salvato Teles de Menezes, ter acolhido, pela terceira vez, minhas iniciativas: esta, a Exposição individual de 32 obras de pintura e a apresentação do meu livro Poesia (Lisboa, Buy The Book, 2021), em 2022. A Editora ACA Edições detém hoje os direitos de publicação de todas as minhas obras e em breve será publicado um novo livro.

A intervenção de João de Almeida Santos

A Intervenção do Prof. Salvato Teles de Menezes

A intervenção do Editor,
Ricardo de Almeida Santos

Artigo

“FRAGMENTOS – PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA” 

de João de Almeida Santos
(S. João do Estoril, ACA Edições,
2025, 228 páginas)

APRESENTAÇÃO

Auditório do Museu da Guarda 
12.09.2025

Por António José Dias de Almeida*

António José Dias de Almeida

SÃO FRAGMENTOS plenos de significado e de sentido poético que, para este local, para este acolhedor e simpático Auditório do Museu da Guarda, nos convocam. Cabe-me o privilégio, por convite do autor, o meu amigo João de Almeida Santos, de vos apresentar, caros Amigos, a sua mais recente obra no domínio da POESIA e das suas afinidades textuais e contextuais.

1.

Se o título FRAGMENTOS não for (e não é) suficientemente elucidativo, o subtítulo (chamemos-lhe assim), esse, elucida-nos perfeitamente para bem sabermos o terreno que pisamos – PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA. Esta é, pois, a contribuição, mais uma, que o autor nos oferece para nos envolvermos reciprocamente com um tema tão cativante quanto sedutor.

2.

Este excelente volume da ACA Edições, publicado já este ano (2025), é ilustrado na capa com a Pintura Solidão do poeta-pintor (JAS 2023), que assim mesmo se autocaracteriza e se reconhece, como brevemente explicarei. Dono de um currículo brilhante em várias áreas, João de Almeida Santos é natural de Famalicão, deste concelho da Guarda, de cuja Assembleia Municipal foi Presidente, locais a que se sente umbilicalmente ligado e que, através das suas obras e da sua participação cívica e política, tem sabido honrar e dignificar.

3.

Explicitar discriminadamente o seu currículo creio que, aqui e agora, seria supérfluo, pois estou convencido de que a maioria dos presentes o conhece e reconhece. Direi apenas que a Filosofia (licenciado pela Universidade de Coimbra) lhe deu asas para dimensões de maior vulto, tendo sido Professor nas Universidades de Coimbra, La Sapienza, de Roma, e Complutense, de Madrid. Aposentou-se como Professor na Universidade Lusófona, onde desempenhou as funções de Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração. Se me permitem, dispenso-me de referir altos cargos e funções que desempenhou na vida pública, nomeadamente nos domínios político, social e cultural. A sua bibliografia activa é vasta e multifacetada. Direi simplesmente que vai do Ensaio em diversas áreas até à Poesia, passando pela ficção, com a publicação do romance Via dei Portoghesi (Lisboa, Parsifal, 2019).

4.

Finda esta breve deambulação, regressemos à obra que hoje aqui nos traz, FRAGMENTOS, cujo Índice, logo no início da obra, nos dá uma perfeita percepção da sua estrutura fragmentária, composta por quinze capítulos que tenho gosto em enunciar:

I. O PLENO E O VAZIO; II. FANTASIA; 
III. ENCANTAMENTO; IV. A SAUDADE, 
O POETA E A MUSA; 
V. SILÊNCIO; VI. AMAR; VII. O ECO 
DO SILÊNCIO;  VIII. PAISAGENS; 
IX. SONHAR; X. RAÍZES; 
XI. A FONTE; XII. O LOUREIRO 
E A POESIA; XIII. SENTIR; 
XIV. O BEIJO; XV. TEMPO E MELANCOLIA.
5.

Na abertura, o PREFÁCIO, da responsabilidade do autor, abre perspectivas que elucidam o leitor sobre o carácter da obra, a sua hipotética afinidade com obras congéneres, como, por exemplo, Pensées, de Pascal, e nele são dadas indicações sobre os temas objecto de reflexão nos 206 fragmentos, que foram (palavras do autor) sempre suscitados “pelos comentários dos leitores da minha poesia”. Também no Prefácio, o autor nos remete para a sua obra anterior A Dor e o Sublime. Ensaios Sobre a Arte (S. João do Estoril, ACA Edições, 2023), sublinhando o seu exercício reflexivo com o objectivo de confrontar “o que faço com o que fizeram os grandes poetas, não para os seguir como escola, mas simplesmente para testar e amadurecer a minha própria experiência poética”.

6.

Rematam-se os FRAGMENTOS com o EPÍLOGO, composto por dezoito pontos, constando no último, no décimo oitavo, as referências dos autores e das obras de quem e das quais o autor fez breves e ocasionais citações.

7.

Para um discurso sobre a poesia, fundamentais e essenciais são as palavras e, por isso, recorro ao fragmento 63. O SILÊNCIO E O TEMPO, que se inicia com esta frase significativa: “A poesia acolhe com palavras e nas palavras o tempo que já se foi”. Também o fragmento 85. PALAVRAS remete para o peso que elas têm “quando procuram tocar o real” e nessa situação “chegam a deslaçar-se” – “na poesia acontece esse deslaçamento”. É com palavras que os poetas conseguem voar sobre o silêncio e, de acordo com Pablo Neruda, “as palavras são asas especiais” com as quais os poetas voam até às Musas inspiradoras, figuras recorrentes nestes magníficos FRAGMENTOS durante os quais “o poeta metaboliza a dor para, depois, a converter em palavras ordenadas segundo critérios semânticos, melódicos e rítmicos” (Fragmento 102. METABOLIZAR).

8.

Se há palavra que muitas vezes se repete, logicamente, essa palavra é POESIA, palavra e conceito que, nos vários fragmentos, metafórica e figuradamente, assume diversas qualidades. Assim, algumas vezes a poesia é “um pulsar de alma”, outras “um veículo mágico” e, de forma bem enfática, JAS questiona-se, implicando nessa questão o leitor. Lapidarmente: “E o que é a poesia senão utopia em construção infinda?”

9.

O leitor, pelo menos este que vos fala, concorda em absoluto. Ele próprio sente-se pessoa sensível e, por isso, aceita que a poesia seja “sinfonia para almas sensíveis” e também aceita, de bom grado, os conceitos que o autor lhe vai propondo – por exemplo, que “a poesia é pura alquimia” e, por vezes, ele, o leitor, imbuído do “humor menencorico” de que falava D. Duarte, concede que “a melancolia é irmã gémea da poesia”.

10.

Porém, no fragmento 81. IDENTIDADE, o autor, João de Almeida Santos, comunica-nos que “o exercício poético torna-se menos complexo quando o poeta tem um sorriso perante si. E pode ser o sorriso que ele próprio, enquanto poeta-pintor, pintou. Com palavras e com cores.” Cá está ele! E “vai-se deixando seduzir pelo sorriso que se vai desenhando”. Um pouco mais à frente, assumindo essa dupla qualidade, diz-nos : “o poeta-pintor vive numa teia que é maior que ele. Só tem que sintonizar e deixar-se ir. É por isso que se diz que a poesia acontece ao poeta.” Retomo o que atrás foi referido: “o poeta-pintor vive numa teia”. Para cada um, seu instrumento de trabalho e, por essa razão, aqui se encaixa na perfeição o fragmento 79. CANETA-PINCEL, que cito integralmente:

79. CANETA-PINCEL

“Procuro sempre transpor para dentro do próprio poema a sinestesia concreta que proponho com a convergência total entre pintura e poesia, lembrando-me sempre do grande Cesário Verde: “Pinto quadros por letras”. Caneta-pincel, portanto. Mas também pincel-caneta. Pintar com palavras e escrever com riscos e cores. E o poema torna-se também pauta de uma melodia colorida. Sinfonia de cores e letras”. Indiscutivelmente, este fragmento é um óptimo exemplo de sinestesia, tal como o é o fragmento 117. ENLACE.

11.

Mas regressemos a FRAGMENTOS – PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA, para vos ler integralmente, sem comentários, o Fragmento 196. PROSA POÉTICA:

196. PROSA POÉTICA

“Prosa poética, a tua, dizia-me um Amigo. Talvez porque na minha poesia, respondi, a semântica assuma uma forma especial: quase sempre conto uma história ou, então, como neste poema, “O Poeta e o Tempo”, proponho uma reflexão. Mas é claro que são sempre confissões de estados de alma sofridos. Mas é mesmo só poesia. Teimosamente poesia. Procuro não misturar estilos. Como se sabe, há poesia com forma explícita de prosa. E sem musicalidade aparente. Não é o caso. Até porque não gosto desse tipo de poesia. Para mim, componente obrigatória é a musicalidade do poema, a melodia, a toada, o ritmo. Os versos breves, às vezes de uma só palavra, ajudam a compor a toada. Quanto ao título, normalmente uso títulos curtos e que não procurem traduzir a semântica do poema. Há sempre o risco de estar a impor uma certa descodificação do poema, com prejuízo do incontornável mistério. O ideal, para mim, seria sempre um título de uma só palavra. Por sua vez, os versos de uma só palavra significam que essa palavra tem peso específico no tecido poético, seja musical seja semântico. Digamos que esta opção faz parte da minha poética. Eu procuro sempre a harmonia entre o sentido e a musicalidade (a toada, o ritmo, a rima). E isso tem consequências no processo de construção do poema”.

12.

Normalmente, as epígrafes acontecem/surgem no início. Perdoem-me que, aqui e agora, me sirva de O Livro de Cesário Verde e, à laia de uma pré-conclusão, cite a célebre quadra da II Parte do conhecido poema NÓS:

Pinto quadras por letras, 
por sinais,/
Tão luminosas como os 
do Levante,/
Nas horas em que a calma 
é mais queimante /
Na quadra em que o Verão 
aperta mais.

Cesário Verde, obrigatoriamente, nesta ocasião e neste espaço, tinha que estar connosco. É uma evidência que não precisa de ser realçada.

13.

O poema que escolho para terminar esta minha participação, intitula-se O POETA QUE SE FEZ PINTOR:

O POETA QUE SE FEZ PINTOR
O POETA BRINCAVA
Com suas palavras,
Cantava o amor
Porque a desejava.

ERA UM POETA,
Era fingidor,
Não a desenhava,
Cantava-lhe
A cor.

SUAS CORES
Eram palavras,
Fazia pincel
Da sua caneta,
O poeta riscava,
Mas sua tinta
Já não era preta.

POR ISSO COMPROU
Um belo pincel
E pintava,
Pintava...
................
Era a granel...
............
E a sua tela
Deixou de ser
O velho papel.

DESCOBRIU A COR,
Que o fascinou:
Azul, vermelho
E tanto amarelo...
...............
Tudo ele pintou,
Procurando sempre
O que era belo.

ATÉ QUE O ENCONTROU
Na cor dos seus
Olhos,
Era luz da pura
Que iluminava
O novo papel
Onde desenhou
O seu fino rosto
Com o seu pincel.

DESCOBRIU AS CORES
Com que a dizia,
As suas palavras
Tornaram-se riscos...
.................
Mais que poesia.

PINTAVA ASSIM
E os seus poemas
Já não lhe chegavam,
Pintor de palavras,
De cor as compunha
E versos voavam
No azul do céu...
.................
“E o que tu fazias
Faço agora eu
(Dissera-lhe um dia),
Porque sou poeta
Mas também pintor".

"DEIXASTE-ME SÓ,
Entregue à palavra,
E eu,
Tão pobre de ti,
Pintei-me de dor".

"MAS EU FAÇO DELA
O meu arco-íris
Pra subir ao céu
A ver se t’encontro
Atrás duma cor
Pintando o teu rosto
Para um poema
Que vou escrever
Com todas as cores
Que trago comigo
Enquanto viver”.

O POETA BRINCAVA
Mas era séria
Essa brincadeira,
Perdido em palavras
Encontrou a cor
E nos seus poemas
Dela fez bandeira.

(Santos, J. A., 2021, Poesia,
Lisboa: Buy The Book, pág. 72)
14.

João de Almeida Santos, tal como Sísifo, está condenado a empurrar palavras e mais palavras até ao cume da montanha. Daí, continuamente, elas rolam até ao “Vale Encantado” de Famalicão. De novo as levará até ao cume e assim, sucessivamente, acontecerá. Nós, leitores, satisfeitos com esse “pesadelo” do autor, continuamos à espera de mais poemas e de mais reflexões poéticas porque há muito para dizer e escrever.

15.

O resto, a Poesia que o diga”, como nos ensinou o poeta Nuno Júdice.

NOTA*

António José Dias de Almeida é professor aposentado do Ensino Secundário. Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, exerceu funções docentes na cidade da Guarda. Em 2005 foi agraciado com o grau de comendador da Ordem de Instrução Pública pelo Presidente da República, Jorge Sampaio. Foi membro da Comissão Executiva do Centro de Estudos Ibéricos (Guarda).

António José Dias de Almeida, João de Almeida Santos, Ricardo de Almeida Santos

No início da Sessão, a intervenção do Presidente da Câmara Municipal de Guarda, Sérgio Costa

 

Poesia-Pintura

LUZ

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Paraíso”
JAS 2022 (68x84, em papel de algodão,
310gr, e verniz Hahnemuehle,
Artglass AR70, em moldura de madeira)
Setembro de 2025

“LUZ”. JAS 2022

POEMA – “LUZ”

TANTA LUZ,
Meu Deus,
Esse teu céu,
Imenso mar,
Espelho
De todos
Os sonhos
Que dão asas
Pra voar.

O CÉU É BRANCO,
Cintilante,
Para te iluminar
E os teus olhos
Logo brilham,
Em viagem,
No meu mundo,
A voar.

QUANDO
Nos sonhos
Eu te vejo
Iluminada
Entro sempre
Numa porta
Branca
Que me leva
Ao paraíso,
Guiado
Por uma fada.

E, ENTÃO, VOO,
Deixando
Para trás
 O meu Jardim
Encantado,
Os bailéus
Da casa-mãe,
Desenhados
A rigor,
A quelha da minha
Infância
Que já anuncia
A viagem
De uma vida
D'errância
E tantas vezes
Com dor.

NOS SONHOS,
(Em todos eles)
Caio das nuvens
Brancas,
Como Ícaro,
Quase cego
De tanta luz,
No jardim
Onde tu vives
Sempre vestida
De cores
Como um manto
Que seduz.

É ESSA TUA LUZ
Cintilante
Que ilumina
O que me sobra
De ti,
Nos sonhos
Escritos,
Pintados,
Onde sempre
Eu te vi
E onde te vou
Visitando
Quando as saudades
Apertam
Por aquilo
Que perdi.

ETERNO RETORNO
Na vida
De um poeta
Sonhador,
Uma luz
Que se acende
Lá bem no alto
Do céu,
E o regresso
Ao jardim,
Esse céu
Que é só meu.