ESTUPEFACÇÃO
Por João de Almeida Santos

JÁ É A TERCEIRA VEZ que, sinceramente, fico estupefacto por atitudes de ilustres militantes do PS sobre matérias de grande sensibilidade política. A primeira foi a do célebre artigo de António Costa, Silva Pereira e José Leitão em defesa da honra supostamente ofendida pelo Presidente da Câmara de Loures e Presidente da maior Federação do PS, a de Lisboa (já aqui analisei esse artigo: https://joaodealmeidasantos.com/2024/11/12/artigo-177/ ); a segunda foi a colagem de ilustres membros do PS à manifestação “Não nos encostem à parede” contra a polícia, recusada, de resto, pelo excelente presidente da Junta de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, um conhecido e respeitado membro do PS (já aqui analisei, também criticamente, o assunto: https://joaodealmeidasantos.com/2025/01/07/artigo-185/); a terceira, de agora, foi ver uma antiga secretária-geral adjunta de António Costa e, depois, sua ministra, dizer, numa entrevista dada à Lusa, que as declarações de Pedro Nuno Santos na recente entrevista ao “Expresso” o colavam à direita e à extrema-direita. Vejamos o que disse textualmente à LUSA (e também ao “Observador”): vê “com muita preocupação este aproximar daquilo que é a agenda que a direita e a extrema-direita têm sobre a imigração”. A senhora eurodeputada não faz a coisa por menos em relação ao seu camarada e secretário-geral do PS, o seu partido. Não pediu explicações, disparou logo publicamente uma bazucada. A seu lado também terçaram armas, com argumentos estapafúrdios, José Luís Carneiro e Eurico Brilhante Dias, que, há dias publicava um sacerdotal artigo sobre imigração, não se sabendo bem se era mais um remoque indirecto a Pedro Nuno Santos. Cumpre-me, pois, também aqui comentar este assunto, com a liberdade de quem não ocupa cargos no PS ou em nome do PS, mas que militantemente segue com atenção o que acontece no seu próprio espaço político. Não há duas sem três, dir-se-ia, em jeito de compreensão, mas, pelo andar da carruagem, virão aí muitas mais e com mais frequência. Pois assim seja, embora o PS nada ganhe com isso.
1.
Li e reli a entrevista e não consegui vislumbrar argumentos de direita e muito menos de extrema-direita na argumentação do secretário-geral do PS. E voltei a ler. Nada, apesar de estar muito habituado (é a minha profissão) a ler, com atenção, textos e declarações, até mesmo quando estão escritos em alemão (se for o caso). Mas, aqui, confesso que nada encontrei que me ferisse a sensibilidade política. Ou me criasse “desconforto”. Achou Pedro Nuno Santos que nem tudo foi bem feito nesta matéria durante os governos de António Costa. Natural, ninguém faz tudo, e sempre, perfeito. Mas… “Credo”, disse a senhora eurodeputada, há trinta anos que não se ouvia nada disto no PS. Feitas as contas, a declaração remete para o início dos governos do actual secretário-geral da ONU, António Guterres, em 1995. Uma doutrina inabalável e claríssima, que não precisa de reflexão, mas que agora vem ser posta em causa, imaginem, pelo secretário-geral do PS, com nuances de direita e de extrema-direita. Nada menos. Esta senhora eurodeputada, que já foi muitas coisas, tinha sido eleita deputada e, três meses depois, voltou a candidatar-se a novas eleições, desta vez ao Parlamento Europeu, onde se encontra actualmente a desempenhar funções. Quis voar mais alto. Era e é um seu direito, apesar de certamente também ela conhecer a história de Ícaro. Não quis desempenhar funções na Assembleia da República, certamente para estar mais próxima de António Costa, o agora Presidente do Conselho Europeu. Ambos em Bruxelas. Muito bem. Mas do que eu gostaria era de a ouvir falar de assuntos da União, que bem precisa.
2.
Mas o que disse, afinal, o secretário-geral do PS que tanto incomodou as três ilustres personalidades, defensoras, também elas, do bom nome do PS (de António Costa e de si próprias), neste caso em matéria de imigração. Vejamos, em discurso directo:
- “Não fizemos tudo bem nos últimos anos no que diz respeito à imigração”; 2. a manifestação de interesse “tinha também efeitos negativos, porque, na realidade, não podemos ignorar que tinha um efeito de chamada” e que “acabava por desincentivar a procura por uma via regular ou legal”; 3. “não devemos regressar à figura da manifestação de interesse”; 4. “defendo a regulação da imigração de forma eficaz e humanista, com o outro lado, da integração”; 5. “quem procura Portugal para viver e trabalhar, obviamente percebe, ou tem de perceber, que há uma partilha de um modo de vida, uma cultura que deve ser respeitada”, por exemplo “a igualdade entre homem e mulher”; 6. “é importante que quem esteja a viver em Portugal aprenda a língua portuguesa”; 7. “até ao final deste mês estaremos em condições de apresentar esse diploma” que permita “a regularização de imigrantes que estão a trabalhar”.
No essencial, é isto: uma solução que incentive a imigração legal (em detrimento de outra que promova, indirectamente, a imigração ilegal), a regularização de imigrantes que tenham entrado legalmente em Portugal (incluído com visto apenas turístico) e que, entretanto, tenham conseguido emprego; uma política que promova a plena integração dos imigrantes, incluindo o conhecimento da língua portuguesa, e uma relação de respeito em relação aos princípios e valores constitucionais e culturais do nosso país. O que é que isto tem de extrema-direita? No meu entendimento nem seriam necessárias categorias políticas para avaliar o discurso, mas tão-só o bom senso.

3.
É bem conhecido o caos em que caiu o processo de regularização de imigrantes durante os governos de António Costa, em que a senhora eurodeputada participou, precisamente com responsabilidades nesta área, e não só pelo afluxo de imigrantes, o tal efeito de chamada, reconhecido, sábado passado, no “Público”, também por António Vitorino, ilustre membro do PS, ex-Comissário Europeu da Justiça e Assuntos Internos, Presidente do Conselho Nacional para as Migrações e Asilo e ex-Director Geral da OIM, mas também como consequência da enorme trapalhada (e erro, no meu entendimento) da abrupta decisão de desmantelamento do SEF. Centenas de milhar de processos pendentes. Parece, pois, ser evidente que o PS tem a obrigação de fazer algo que possa, no quadro daqueles que são os seus princípios, contribuir para uma gestão, como PNS diz, eficaz e humanista da imigração. E nem por isso lhe fica vedado o direito de, como já foi o caso, por exemplo, num dos governos de Guterres (o primeiro, e por directa responsabilidade do então MAI, Alberto Costa), de promover uma regularização extraordinária, obstando, assim, ao chamado efeito de chamada. A verdade é que o legado não foi, de facto, brilhante. Em proclamações, sim. De facto, não. E creio que António Vitorino, que conhece bem o dossier imigração, também não é um perigoso extremista de direita, ou de extrema-direita, e um conhecido xenófobo.
É claro que o tema da imigração é complexo, delicado e muito sério, mas por isso mesmo não deve ser utilizado nem para inflamadas proclamações morais nem para mesquinhas lutas de poder interno nos partidos políticos.
4.
Depois, o problema da chamada “aculturação”, de que fala a senhora eurodeputada em declarações ao “Observador” (24.01.2025): “um erro a ideia de ‘aculturação’, o artigo 15º da Constituição é muito claro quanto aos direitos e deveres dos cidadãos estrangeiros. Num Estado de direito a lei aplica-se a todos independentemente da nacionalidade”. Exactamente: “Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português (Art. 15, itálico meu). Incluído o respeito pelos valores constitucionais. Mas, em primeiro lugar, esse conceito não foi usado por PNS. E, depois, sobre o conceito é necessário dizer que ele não significa somente integração cultural forçada (embora às vezes aconteça), mas também significa “processo de interacção e integração cultural entre grupos sociais diversos”. Um processo, de resto, sociologicamente espontâneo e natural. A integração forçada não é própria das democracias e muito menos é defendida pelo PS, por este ou pelo de António Costa. Outra coisa são os valores constitucionais: estes são matriciais e devem ser aceites por toda a comunidade (nacional e migrante), porque são precisamente eles que em democracia garantem a própria livre expressão das identidades. O exemplo que PNS deu é um deles e consta da Constituição (Art. 13), da Declaração Universal dos Direitos Humanos (por ex., Art.s 1, 2, 7) e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Art. 23). De resto, parece-me ser simplesmente de bom senso que quem vem viver e trabalhar em Portugal deva respeitar os nossos valores e princípios constitucionais e culturais que, aliás, são o maior garante da preservação e da livre expressão das identidades. PNS falou de respeito por valores e não de aculturação por imposição. Mas é claro que a aculturação sempre acontece pelo efeito de natural miscigenação. Sei do que falo porque vivi num país estrangeiro durante dez anos, tendo, naturalmente, metabolizado valores próprios desse país, a começar pela língua e por tudo o que ela transporta consigo (Itália). E não me arrependo nem me queixo. Bem pelo contrário. Aconselharia, pois, a senhora eurodeputada a enquadrar a sua reflexão sobre a imigração com a leitura de um pequeno e excelente ensaio de Juergen Habermas (“Cidadania e Identidade Nacional”, de 1991), a propósito da relação entre a União Europeia e as identidades nacionais, onde fala do “patriotismo constitucional” (Verfassungspatriotismus) como a única exigência que deve ser posta às identidades porque é precisamente ela, a matriz comum aceite por todos, que garante a livre expressão e a livre dialéctica entre as diferentes identidades (neste caso nacionais). Só os identitários multiculturalistas não aceitam uma matriz comum, considerando-a opressora (sobre “Diversidade Cultural e Democracia” veja o meu ensaio, com este mesmo título, na Revista ResPublica, Lisboa, n.º10, pp. 97-107: https://recil.ulusofona.pt/items/8da8f919-63ad-43bb-8595-b0a9a4b9a288). Mas não sei se a senhora eurodeputada será ou não identitária, woke ou partidária do politicamente correcto. E não me interessa, a não ser porque ocupa uma importante função em nome do meu partido. Pedro Nuno Santos, como disse, foi preciso no que queria significar, ao referir-se, como exemplo, a um nosso valor constitucional (e universal) muito importante e já referido – a igualdade entre homens e mulheres. O que é que isto tem de direita ou de extrema direita? Parece estarmos numa época em que até os suspiros podem ser interpretados como densas proclamações de malévolas intenções ou mesmo um gravíssimo pecado moral. A onda que por aí anda é bem conhecida de todos.
5.
Depois, vem José Luís Carneiro dizer (“Público” de 25.01, pág. 14) que o fluxo migratório (neste caso, o efeito de chamada) é determinado pelo crescimento da economia: aumenta com o crescimento económico, diminui com o desemprego, nada tendo a ver com as políticas para a imigração. A mão invisível do mercado? A intervenção do Estado, a política de regulação dos fluxos migratórios para nada servem perante a lógica implacável da oferta e da procura? O Hayek não diria melhor: uma política autogenerativa para a imigração centrada no motor económico, na mão invisível do mercado, na oferta e na procura e na livre concorrência, como vem explicado na “Riqueza das Nações”, do Adam Smith? Prefiro pois as explicações de PNS e a prioridade da política, aquela que exprime institucional, legal e legitimamente a soberania popular, a vontade geral. Quanto a Brilhante Dias, um antigo apoiante de António José Seguro passado com armas e bagagens ao séquito de António Costa, as suas observações pouco mais são do que nada: o fenómeno migratório, segundo ele, está subsumido na “tradição constitucionalista” do PS pelo que falar dele é “um mau serviço a quem quer defender direitos iguais para todos”. O melhor seria nem falar de imigração, visto o subtil colete de forças a que hoje a linguagem política está submetida, sobretudo em matérias tão sensíveis como a da imigração. Pode ser politicamente incorrecto.
6.
Sinceramente, a estar-se atento às movimentações destes paladinos do costismo em diferido, que serviram obedientemente, parece ser óbvio que já estão entrincheirados para o combate com vista à conquista do poder interno. O sinal de arranque foi dado por aquele famoso artigo de António Costa, Silva Pereira e José Leitão. Aliás, são já demais os casos em que a animosidade política estratégica e pública se tem manifestado para enfraquecer a actual liderança, pelo que parece que o que está a acontecer deve ser tomado pelo que realmente é: um ataque a céu aberto à liderança de Pedro Nuno Santos. E Luís Montenegro, depois de lhe ter caído o poder no regaço, por obra e graça de um esquisito inquérito de que, passado um ano e três meses, não se conhece o destino, a assistir deliciado ao espectáculo.
7.
Por isso, o anúncio que na mesma entrevista PNS fez de que o debate estratégico sobre a política do futuro que o PS promoverá irá começar em Abril poderá ser uma bela ocasião para uma profunda e necessária clarificação doutrinária, ideológica e programática, há tanto tempo esquecida e tão pouco levada a sério até hoje. Aliás, muitos destes conflitos devem-se precisamente a uma certa nebulosidade doutrinária em que o PS se encontra, para além das proclamações e dos clichés que vamos ouvindo de muitos seus responsáveis. Os tempos mudaram, mas as fórmulas continuam as mesmas. Por isso, a clarificação torna-se absolutamente necessária (já aqui evidenciei em vários artigos e ensaios, que ponho em link no fim deste artigo, os principais núcleos problemáticos em causa; veja também o capítulo, “Um novo paradigma para a social-democracia”, de minha autoria, em Santos, J. A., Org., 2020, Política e Democracia na era Digital, Lisboa: Parsifal, pp. 15-47). E será também ocasião para se conhecer as ideias destes paladinos da suposta ortodoxia socialista para responderem à profunda crise por que a social-democracia está a passar em toda a Europa. Ficar-se-á a conhecer as ideias grandiosas e a clarificação doutrinária que têm a propor, embora até aqui não se lhes tenha visto (mas será certamente por desconhecimento meu) grande alcance doutrinário alinhado com os desafios que temos pela frente na sociedade actual. Falo à vontade porque acabei de publicar um livro exactamente sobre este assunto (Política e Ideologia na Era do Algoritmo, S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, 262 pág.s).
8.
Uma coisa é certa. Estes personagens estão no interior do círculo do poder e certamente, em vez de usarem pretextos para polemizar publicamente com o secretário-geral do PS, poderiam intervir internamente (ou publicamente, com reflexões de fundo) para ajudarem a actual liderança a levar a bom porto a difícil tarefa de preparar o PS para uma profunda transformação interna que o leve a apresentar-se aos portugueses como a força mais credível de que o nosso país dispõe. Esta oportunidade, por razões compreensíveis (ma non troppo), não teve modo de ser agarrada aquando das eleições internas para secretário-geral do PS, onde as páginas dos programas dos candidatos sobre o partido foram escassas, demasiadamente escassas.
9.
António Costa voou rapidamente para Bruxelas, onde o grave motivo que o levou a entregar a maioria absoluta e o governo nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa pelos vistos não era relevante para o desempenho do cargo de Presidente do Conselho Europeu, escancarando as portas do poder ao PSD e perdendo também o controlo do partido. Os seus seguidores querem agora retomar o seu controlo interno, depois de o não terem conseguido há um ano atrás. Pois bem, as eleições para secretário-geral processam-se de dois em dois anos e, portanto, poderão, daqui a um ano candidatar-se. Entretanto, poderiam usar os cargos que ocupam, em nome do PS, para enriquecer o partido e não para o enfraquecer, usando pretextos ridículos como os que se viram neste caso ou no caso do presidente da câmara de Loures, para não referir o da rua do Benformoso, onde Pedro Nuno Santos também, e na minha perspectiva erradamente, alinhou.
10.
Para mais sobre o PS, de minha autoria, veja, entre outros artigos, no meu site:
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O RECOMEÇO
https://joaodealmeidasantos.com/2024/01/10/artigo-137/
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E AGORA, PEDRO?
https://joaodealmeidasantos.com/2023/12/20/artigo-134/
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CONFISSÕES DE UM MILITANTE
Em Sete Andamentos
https://joaodealmeidasantos.com/2023/12/13/artigo-133/
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AS ELEIÇÕES
PARA SECRETÁRIO-GERAL DO PS
Manual para uma boa Decisão
https://joaodealmeidasantos.com/2023/12/06/artigo-132/
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PS – ENTRE O PASSADO E O FUTURO
https://joaodealmeidasantos.com/2023/11/21/artigo-130/
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O PS E A CRISE POLÍTICA
https://joaodealmeidasantos.com/2023/11/14/artigo-129/
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CINQUENTA ANOS
E AGORA, PS?
https://joaodealmeidasantos.com/2023/04/18/artigo-98/
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UM NOVO PARADIGMA
PARA A SOCIAL-DEMOCRACIA
https://joaodealmeidasantos.com/2022/04/26/ensaio-16/
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FALEMOS DE POLÍTICA
A propósito de um Artigo
de Pedro Nuno Santos
https://joaodealmeidasantos.com/2021/02/03/artigo-29/
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OPERAÇÃO CONGRESSO
EM QUATRO ANDAMENTOS
https://joaodealmeidasantos.com/2021/08/25/artigo-48/
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A RECOMPOSIÇÃO DO SISTEMA
DE PARTIDOS EM PORTUGAL
https://joaodealmeidasantos.com/2022/02/08/ensaio-14/
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MAIS DO MESMO
https://joaodealmeidasantos.com/2021/12/20/artigo-55/
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O ESTADO-CARITAS
https://joaodealmeidasantos.com/2023/03/21/artigo-96/
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O ESTADO ENRIQUECE,
A MIDDLE CLASS EMPOBRECE
https://joaodealmeidasantos.com/2022/03/08/artigo-63/
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AFINAL, O QUE É
O SOCIALISMO LIBERAL?
https://joaodealmeidasantos.com/2023/09/27/artigo-122/
FINALMENTE,
16. A SOCIAL-DEMOCRACIA E O FUTURO
UM DEBATE NECESSÁRIO
A propósito de um pequeno
Ensaio de Pedro Nuno Santos
https://joaodealmeidasantos.com/2018/05/11/artigo-2/
JAS@29.01.2025

NOVOS FRAGMENTOS (IX)
Para um Discurso sobre a Poesia
Por João de Almeida Santos

“Nostalgia”. JAS 2023
IMPOSSIBILIDADE
Há quem diga que, no romance “Le Rouge et le Noir”, do Stendhal, a Matilde Viscontini (Dembowski era o apelido do marido, um general polaco, de quem se divorciara), correspondia a M.me De Rênal, apesar de a outra personagem do romance se chamar também Matilde. A Viscontini, por quem o Stendhal se apaixonou perdidamente, achava que o Stendhal era um mulherengo frívolo (e talvez fosse) e não lhe passava cartão. Isto foi tão sério que ele, a este propósito, até escreveu um ensaio sobre o amor (De l’Amour, 1822). Não sei se a mulher do poema (“Caminhos Paralelos”) corresponde à Viscontini, tal como a da ilustração, um perfil de mulher a vermelho e preto. O poeta nunca confessaria, apesar de se suspeitar que haja um referente na realidade. Há sempre. O ponto é a impossibilidade, que acabou por atingir dramaticamente o Julien. Também o poema fala de impossibilidade no jogo do amor. A palavra aparece no poema uma só vez, mas o título também alude a isso. O encontro só se pode dar no olhar e num ponto do infinito (para onde convergem as linhas paralelas).
LINHAS PARALELAS
Seguem em linhas paralelas, o poeta e a musa. Encontram-se no olhar dele, lá ao fundo, quando as linhas paralelas convergem. O olhar parece ser o da alma, capaz de reconstruir e (ainda) sentir o caminho percorrido em comum. Assimetria nos caminhos paralelos. Ele já viaja, no veículo poético, em direção a um mundo imaginário para onde leva um imenso património de afectos embalados em palavras. Ela talvez não. Talvez tenha receio do sol, do seu brilho, preferindo, não a penumbra, mas a obscuridade. Mas ele, o poeta, chama-a ao centro do palco, lá onde estão os holofotes que iluminarão, simplesmente, a sua silhueta. Silhueta iluminada, será a sua. Sem nome.
MELANCOLIA
Sim, melancólico, um poema melancólico, os “Caminhos Paralelos”, ilustrado por uma pintura com um perfil de mulher a preto e vermelho. A história de um encontro de olhar, fugaz… O único possível em percursos que só convergem no olhar de um dos protagonistas. O percurso de ambos seguia por duas linhas, mas só o poeta as via. Ele olhou lá para o fundo e viu que, a um certo ponto, as linhas paralelas convergiam . Era um olhar interior porque centrado nos fluxos vivos memória, mas esse encontro foi suficiente para o canto.
O CANTO E O PASSADO
“Les jeux sont faits”, é verdade, quando a salvação do poeta fica, por instantes, resolvida, como dizia um amigo que comentava o poema “Caminhos Paralelos”. O passado só é possível cerzi-lo com o canto na cidade da utopia, se a memória do poeta for um magma turbulento de recordações que o atormentam e o levam a reagir. Basta o fugaz clarão de um perfil. Como se uma sombra silenciosa progrida no tempo, a seu lado, e, de forma intermitente, haja sinais que estimulam a sua sensibilidade e reavivam a memória, convocando-o para o canto libertador. Como poderia o poeta fugir a este destino tão remota e intensamente marcado. Por exemplo, esse tal dia-dos-namorados, que acende memórias quentes. Felizmente que ele frequenta a cidade da utopia, onde vivem as musas e o destino é marcado pelos deuses e pelos astros, seus amigos. O impossível pode assim ser declinado, numa fascinante transfiguração do real. A poética.
ILUMINAR O TEMPO
A poesia como salvação, como gesto que não vence o tempo, mas o ilumina. Iluminar o tempo com a palavra que resgata, porque o traz à consciência, o assume, o verbaliza, o ilumina. Iluminar: torná-lo visível, acendê-lo e elevá-lo ao sublime. Transcender o tempo é isso. Só a arte o pode fazer. A arte ilumina tudo aquilo em que toca. Por exemplo, o amor. Mesmo, ou sobretudo, aquele amor que ficou pelo caminho, que não encontrou modo de se completar. Aquele amor que acabou por ficar reduzido a desejo, a algo inacabado no tempo… É esse que pede ao poeta que o ilumine para que não fique oculto a provocar estragos na alma. O desejo permanece como vontade. Muitas vezes comparo a poesia à psicanálise, mas mais bela e eficaz. Sonhar, verbalizar, fazer livres associações, sim, mas introduzindo a beleza, a harmonia e a melodia reparadora. Dotando o “paciente” de um activismo que faz dele o agente da própria “cura”. O poder terapêutico da poesia pelo seu poder de iluminar o passado para si e para a comunidade das almas sensíveis. E é verdade que iluminar o passado é também reconhecê-lo e, desse modo, trazê-lo à consciência, libertando-se da sua influência de natureza puramente pulsional. Reconhecê-lo não significa anulá-lo, mas sim tornar possível a sua transfiguração estética, onde o primeiro dos princípios é o princípio da liberdade. É este o sentido do resgate pela arte. Dir-se-á: o poeta atinge assim a felicidade plena? Não. Mas pode converter a sua tristeza em doce melancolia, partilhando-a com a comunidade das almas mais sensíveis. Sim, o da poesia é um caminho sempre paralelo àquele que sofre mais directamente o impacto das pulsões que animam e agitam a nossa existência.
A ILUSÃO COMO REMÉDIO
Esta “Natureza Morta” (que ilustra o poema “O Passado e o Presente”) não é tão morta como à primeira vista pode parecer, pois andam por lá (o que não é comum nas “naturezas mortas”) rostos dissimulados nas formas das flores já secas, que são como que marcas deixadas pela vida que também por elas passou. Nas flores, mesmo secas, há sempre rostos impressos dos que delas cuidaram. Eles, os rostos, podem indicar o prenúncio de uma fresta por onde o passado venha a emergir como presente, como desafio da vida passada às palavras futuras do poeta e às cores e riscos do pintor. São marcas de vida cristalizada nas flores já secas pelo tempo que passou. Que passou, sim, mas deixando marcas com potencial de vida a insinuar-se. Não literais, mas marcas. Isto, claro, chegando ao poema através de uma especial “Natureza Morta”. Mas se lhe acrescentarmos a sua força performativa, o realismo induzido pela musicalidade das suas articulações significantes nesse sonho a olhos abertos que é sempre um poema, talvez possamos transformar o passado em presente, ouvi-lo ecoar, ali ao lado, como desafio para o canto e responder-lhe com as palavras encadeadas de uma ilusão onírica desenhada no estirador mental do poeta, aquela que tudo pode porque é livre. A ilusão é a condição da sua própria liberdade. Sempre de destino, de astros ou de deuses se trata, nessa matéria de que o poeta se ocupa como missão. Mas é um combate contra o tempo e as suas adversidades nos limites que o próprio destino lhe fixa. O poeta trilha essas marcas da melhor forma, aperfeiçoando-as, procurando nelas a beleza possível, cantando-as. Se, depois, as mostrar, metaforicamente, tanto melhor.
MARCAS
O tempo deixa marcas que persistem em nós. O poeta pega nelas e projecta-as para o futuro, como desejo ou como doce lamentação. O poeta é um obreiro do tempo, inspirado nas musas e num percurso que os deuses lhe traçaram. Sempre rumo ao futuro.
NAVEGAR NAS TEMPESTADES DA ALMA
Os poetas navegam no tempo levados pelo vento interior que lhes sopra na alma. Não podem subtrair-se às tempestades interiores… que os levam a poetar. Um destino.
POESIA EM PROSA
O Bernardo Soares achava que não tinha jeito para a poesia, mas dizia sobre ela, em prosa, coisas muito acertadas. Ou não vivesse ele em permanente desassossego… Ali, ele não era poeta, não era fingidor.
O PASSADO E O PRESENTE
O passado é, a partir de um certo momento, a maior fatia da nossa vida. Imaginemos, pois, o destino de quem tem pouco passado (intensamente vivido, digo). Tem pouca vida. Vegetou, não viveu. Não tem, pois, de que se lamentar por perdas que não teve. Para perder é preciso ser. Não basta ter. Se não és, não perdes. É tudo mais ou menos “igual ao litro”. Só tem futuro quem foi passado. Quem não foi, vive só no presente e o presente. Sem tempo, pois. Ser passado significa, no presente, construir esse futuro que se tornará passado. Se o presente não for um intervalo entre o passado que foi e o futuro que deseja ele será pouco mais que nada. Uma circularidade que se devora a si própria e não deixa rasto.
TEMPO
“O Passado e o Presente” é um poema sobre o tempo e a vida. E sobre o que dele sobrevive e ecoa em nós, tornando o passado… presente. Esse passado pode estar ali, por perto, ter persistido sob uma qualquer forma, por exemplo, como intensa recordação noutra memória, mas fluindo longe de nós e em silêncio. Uma história que alguém mantenha viva na sua consciência, que persiste noutro ambiente existencial e à qual já não temos acesso. Uma barreira intransponível. Resta-nos imaginar o que seria reencontrar esse passado exactamente como foi. Sonhá-lo, por exemplo. Ou desenhá-lo com palavras. E dotá-lo de melodia para o tornar mais sensível, sensorial. Para o reviver, digamos, “fisicamente”, como efeito sensível das palavras e da melodia que o recriam. Mas, mesmo assim, será sempre algo intangível, ficando somente o desejo em forma de ilusão. A ilusão de o imprevisível acontecer. A pulsão da vontade figurada em palavras com melodia. Imaginar o acaso nessa brecha do tempo como possibilidade de algo… que nunca acontecerá a não ser na imaginação. Mas imaginemos, por um momento, um reencontro com aquela mulher – nunca será um encontro com o passado, porque esse já passou. O imprevisto que se abre ao impossível. É aí – na impossibilidade – que a poesia ganha autonomia e vida própria, restando ao poeta dar-lhe força sensível para que sinta esse passado como algo vivo e ainda mais belo do que foi, ou mesmo intemporal, projectado no futuro. A eternidade de que fala a Yourcenar pela boca de Michelangelo. Depois, comunicá-lo, esse passado reconstruído e mais belo, na ilusão de que as palavras voem, com o vento que sempre passa, e sejam ouvidas, sentidas e interpretadas. O poeta funciona num plano transcendental, como se o passado estivesse a ocorrer nesse instante. Ele tem esse poder. A poesia tem, pois, também essa dimensão de partilha imediata que lhe reforça o realismo. É este complexo de elementos que tornam poderosa a poesia. JAS@01-2025