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Sobre joaodealmeidasantos1

Professor universitário, escritor, poeta, pintor. Publicou várias dezenas de livros, seus e em co-autoria, de filosofia, política, comunicação, romance, poesia, estética. Foi professor nas universidades de Coimbra, Roma "La Sapienza", Complutense de Madrid e Lusófona (Lisboa e Porto). Publica semanalmente, neste site, ensaios, artigos, poesia e pintura.

Artigo

ESTUPEFACÇÃO

Por João de Almeida Santos

JÁ É A TERCEIRA VEZ que, sinceramente, fico estupefacto por atitudes de ilustres militantes do PS sobre matérias de grande sensibilidade política. A primeira foi a do célebre artigo de António Costa, Silva Pereira e José Leitão em defesa da honra supostamente ofendida pelo Presidente da Câmara de Loures e Presidente da maior Federação do PS, a de Lisboa (já aqui analisei esse artigo: https://joaodealmeidasantos.com/2024/11/12/artigo-177/ ); a segunda foi a colagem de ilustres membros do PS à manifestação “Não nos encostem à parede” contra a polícia, recusada, de resto, pelo excelente presidente da Junta de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, um conhecido e respeitado membro do PS (já aqui analisei, também criticamente, o assunto: https://joaodealmeidasantos.com/2025/01/07/artigo-185/); a terceira, de agora, foi ver uma antiga secretária-geral adjunta de António Costa e, depois, sua ministra, dizer, numa entrevista dada à Lusa, que as declarações de Pedro Nuno Santos na recente entrevista ao “Expresso” o colavam à direita e à extrema-direita. Vejamos o que disse textualmente à LUSA (e também ao “Observador”): vê “com muita preocupação este aproximar daquilo que é a agenda que a direita e a extrema-direita têm sobre a imigração”. A senhora eurodeputada não faz a coisa por menos em relação ao seu camarada e secretário-geral do PS, o seu partido. Não pediu explicações, disparou logo publicamente uma bazucada. A seu lado também terçaram armas, com argumentos estapafúrdios, José Luís Carneiro e Eurico Brilhante Dias, que, há dias publicava um sacerdotal artigo sobre imigração, não se sabendo bem se era mais um remoque indirecto a Pedro Nuno Santos. Cumpre-me, pois, também aqui comentar este assunto, com a liberdade de quem não ocupa cargos no PS ou em nome do PS, mas que militantemente segue com atenção o que acontece no seu próprio espaço político. Não há duas sem três, dir-se-ia, em jeito de compreensão, mas, pelo andar da carruagem, virão aí muitas mais e com mais frequência. Pois assim seja, embora o PS nada ganhe com isso.

1.

Li e reli a entrevista e não consegui vislumbrar argumentos de direita e muito menos de extrema-direita na argumentação do secretário-geral do PS. E voltei a ler. Nada, apesar de estar muito habituado (é a minha profissão) a ler, com atenção, textos e declarações, até mesmo quando estão escritos em alemão (se for o caso). Mas, aqui, confesso que nada encontrei que me ferisse a sensibilidade política. Ou me criasse “desconforto”. Achou Pedro Nuno Santos que nem tudo foi bem feito nesta matéria durante os governos de António Costa. Natural, ninguém faz tudo, e sempre, perfeito. Mas… “Credo”, disse a senhora eurodeputada, há trinta anos que não se ouvia nada disto no PS. Feitas as contas, a declaração remete para o início dos governos do actual secretário-geral da ONU, António Guterres, em 1995. Uma doutrina inabalável e claríssima, que não precisa de reflexão, mas que agora vem ser posta em causa, imaginem, pelo secretário-geral do PS, com nuances de direita e de extrema-direita. Nada menos. Esta senhora eurodeputada, que já foi muitas coisas, tinha sido eleita deputada e, três meses depois, voltou a candidatar-se a novas eleições, desta vez ao Parlamento Europeu, onde se encontra actualmente a desempenhar funções. Quis voar mais alto. Era e é um seu direito, apesar de certamente também ela conhecer a história de Ícaro. Não quis desempenhar funções na Assembleia da República, certamente para estar mais próxima de António Costa, o agora Presidente do Conselho Europeu. Ambos em Bruxelas. Muito bem. Mas do que eu gostaria era de a ouvir falar de assuntos da União, que bem precisa.

2.

Mas o que disse, afinal, o secretário-geral do PS que tanto incomodou as três ilustres personalidades, defensoras, também elas, do bom nome do PS (de António Costa e de si próprias), neste caso em matéria de imigração. Vejamos, em discurso directo:

  1. “Não fizemos tudo bem nos últimos anos no que diz respeito à imigração”; 2. a manifestação de interesse “tinha também efeitos negativos, porque, na realidade, não podemos ignorar que tinha um efeito de chamada” e que “acabava por desincentivar a procura por uma via regular ou legal”; 3. “não devemos regressar à figura da manifestação de interesse”; 4. “defendo a regulação da imigração de forma eficaz e humanista, com o outro lado, da integração”; 5. “quem procura Portugal para viver e trabalhar, obviamente percebe, ou tem de perceber, que há uma partilha de um modo de vida, uma cultura que deve ser respeitada”, por exemplo “a igualdade entre homem e mulher”; 6. “é importante que quem esteja a viver em Portugal aprenda a língua portuguesa”; 7. “até ao final deste mês estaremos em condições de apresentar esse diploma” que permita “a regularização de imigrantes que estão a trabalhar”.

No essencial, é isto: uma solução que incentive a imigração legal (em detrimento de outra que promova, indirectamente, a imigração ilegal), a regularização de imigrantes que tenham entrado legalmente em Portugal (incluído com visto apenas turístico) e que, entretanto, tenham conseguido emprego; uma política que promova a plena integração dos imigrantes, incluindo o conhecimento da língua portuguesa, e uma relação de respeito em relação aos princípios e valores constitucionais e culturais do nosso país. O que é que isto tem de extrema-direita? No meu entendimento nem seriam necessárias categorias políticas para avaliar o discurso, mas tão-só o bom senso.

3.

É bem conhecido o caos em que caiu o processo de regularização de imigrantes durante os governos de António Costa, em que a senhora eurodeputada participou, precisamente com responsabilidades nesta área, e não só pelo afluxo de imigrantes, o tal efeito de chamada, reconhecido, sábado passado, no “Público”, também por António Vitorino, ilustre membro do PS, ex-Comissário Europeu da Justiça e Assuntos Internos, Presidente do Conselho Nacional para as Migrações e Asilo e ex-Director Geral da OIM, mas também como consequência da enorme trapalhada (e erro, no meu entendimento) da abrupta decisão de desmantelamento do SEF. Centenas de milhar de processos pendentes. Parece, pois, ser evidente que o PS tem a obrigação de fazer algo que possa, no quadro daqueles que são os seus princípios, contribuir para uma gestão, como PNS diz, eficaz e humanista da imigração. E nem por isso lhe fica vedado o direito de, como já foi o caso, por exemplo, num dos governos de Guterres (o primeiro, e por directa responsabilidade do então MAI, Alberto Costa), de promover uma regularização extraordinária, obstando, assim, ao chamado efeito de chamada. A verdade é que o legado não foi, de facto, brilhante. Em proclamações, sim. De facto, não. E creio que António Vitorino, que conhece bem o dossier imigração, também não é um perigoso extremista de direita, ou de extrema-direita, e um conhecido xenófobo.

É claro que o tema da imigração é complexo, delicado e muito sério, mas por isso mesmo não deve ser utilizado nem para inflamadas proclamações morais nem para mesquinhas lutas de poder interno nos partidos políticos.

4.

Depois, o problema da chamada “aculturação”, de que fala a senhora eurodeputada em declarações ao “Observador” (24.01.2025): “um erro a ideia de ‘aculturação’, o artigo 15º da Constituição é muito claro quanto aos direitos e deveres dos cidadãos estrangeiros. Num Estado de direito a lei aplica-se a todos independentemente da nacionalidade”. Exactamente: “Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português (Art. 15, itálico meu). Incluído o respeito pelos valores constitucionais. Mas, em primeiro lugar, esse conceito não foi usado por PNS. E, depois, sobre o conceito é necessário dizer que ele não significa somente integração cultural forçada (embora às vezes aconteça), mas também significa “processo de interacção e integração cultural entre grupos sociais diversos”. Um processo, de resto, sociologicamente espontâneo e natural. A integração forçada não é própria das democracias e muito menos é defendida pelo PS, por este ou pelo de António Costa. Outra coisa são os valores constitucionais: estes são matriciais e devem ser aceites por toda a comunidade (nacional e migrante), porque são precisamente eles que em democracia garantem a própria livre expressão das identidades. O exemplo que PNS deu é um deles e consta da Constituição (Art. 13), da Declaração Universal dos Direitos Humanos (por ex., Art.s 1, 2, 7) e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Art. 23). De resto, parece-me ser simplesmente de bom senso que quem vem viver e trabalhar em Portugal deva respeitar os nossos valores e princípios constitucionais e culturais que, aliás, são o maior garante da preservação e da livre expressão das identidades. PNS falou de respeito por valores e não de aculturação por imposição. Mas é claro que a aculturação sempre acontece pelo efeito de natural miscigenação. Sei do que falo porque vivi num país estrangeiro durante dez anos, tendo, naturalmente, metabolizado valores próprios desse país, a começar pela língua e por tudo o que ela transporta consigo (Itália). E não me arrependo nem me queixo. Bem pelo contrário. Aconselharia, pois, a senhora eurodeputada a enquadrar a sua reflexão sobre a imigração com a leitura de um pequeno e excelente ensaio de Juergen Habermas (“Cidadania e Identidade Nacional”, de 1991), a propósito da relação entre a União Europeia e as identidades nacionais, onde fala do “patriotismo constitucional” (Verfassungspatriotismus) como a única exigência que deve ser posta às identidades porque é precisamente ela,  a matriz comum aceite por todos, que garante a livre expressão e a livre dialéctica entre as diferentes identidades (neste caso nacionais). Só os identitários multiculturalistas não aceitam uma matriz comum, considerando-a opressora (sobre “Diversidade  Cultural e Democracia” veja o meu ensaio, com este mesmo título, na Revista ResPublica, Lisboa, n.º10, pp. 97-107: https://recil.ulusofona.pt/items/8da8f919-63ad-43bb-8595-b0a9a4b9a288). Mas não sei se a senhora eurodeputada será ou não identitária, woke ou partidária do politicamente correcto. E não me interessa, a não ser porque ocupa uma importante função em nome do meu partido. Pedro Nuno Santos, como disse, foi preciso no que queria significar, ao referir-se, como exemplo, a um nosso valor constitucional (e universal) muito importante e já referido – a igualdade entre homens e mulheres. O que é que isto tem de direita ou de extrema direita? Parece estarmos numa época em que até os suspiros podem ser interpretados como densas proclamações de malévolas intenções ou mesmo um gravíssimo pecado moral. A onda que por aí anda é bem conhecida de todos.

5.

Depois, vem José Luís Carneiro dizer (“Público” de 25.01, pág. 14) que o fluxo migratório (neste caso, o efeito de chamada) é determinado pelo crescimento da economia: aumenta com o crescimento económico, diminui com o desemprego, nada tendo a ver com as políticas para a imigração. A mão invisível do mercado? A intervenção do Estado, a política de regulação dos fluxos migratórios para nada servem perante a lógica implacável da oferta e da procura? O Hayek não diria melhor: uma política autogenerativa para a imigração centrada no motor económico, na mão invisível do mercado, na oferta e na procura e na livre concorrência, como vem explicado na “Riqueza das Nações”, do Adam Smith? Prefiro pois as explicações de PNS e a prioridade da política, aquela que exprime institucional, legal e legitimamente a soberania popular, a vontade geral. Quanto a Brilhante Dias, um antigo apoiante de António José Seguro passado com armas e bagagens ao séquito de António Costa, as suas observações pouco mais são do que nada: o fenómeno migratório, segundo ele, está subsumido na “tradição constitucionalista” do PS pelo que falar dele é “um mau serviço a quem quer defender direitos iguais para todos”. O melhor seria nem falar de imigração, visto o subtil colete de forças a que hoje a linguagem política está submetida, sobretudo em matérias tão sensíveis como a da imigração. Pode ser politicamente incorrecto.

6.

Sinceramente, a estar-se atento às movimentações destes paladinos do costismo em diferido, que serviram obedientemente, parece ser óbvio que já estão entrincheirados para o combate com vista à conquista do poder interno. O sinal de arranque foi dado por aquele famoso artigo de António Costa, Silva Pereira e José Leitão. Aliás, são já demais os casos em que a animosidade política estratégica e pública se tem manifestado para enfraquecer a actual liderança, pelo que parece que o que está a acontecer deve ser tomado pelo que realmente é: um ataque a céu aberto à liderança de Pedro Nuno Santos. E Luís Montenegro, depois de lhe ter caído o poder no regaço,  por obra e graça de um esquisito inquérito de que, passado um ano e três meses, não se conhece o destino, a assistir deliciado ao espectáculo.

7.

Por isso, o anúncio que na mesma entrevista PNS fez de que o debate estratégico sobre a política do futuro que o PS promoverá irá começar em Abril poderá ser uma bela ocasião para uma profunda e necessária clarificação doutrinária, ideológica e programática, há tanto tempo esquecida e tão pouco levada a sério até hoje. Aliás, muitos destes conflitos devem-se precisamente a uma certa nebulosidade doutrinária em que o PS se encontra, para além das proclamações e dos clichés que vamos ouvindo de muitos seus responsáveis. Os tempos mudaram, mas as fórmulas continuam as mesmas. Por isso, a clarificação torna-se absolutamente necessária (já aqui evidenciei em vários artigos e ensaios, que ponho em link no fim deste artigo, os principais núcleos problemáticos em causa; veja também o capítulo, “Um novo paradigma para a social-democracia”,  de minha autoria, em Santos, J. A., Org., 2020, Política e Democracia na era Digital, Lisboa: Parsifal, pp. 15-47).  E será também ocasião para se conhecer as ideias destes paladinos da suposta ortodoxia socialista para responderem à profunda crise por que a social-democracia está a passar em toda a Europa. Ficar-se-á a conhecer as ideias grandiosas e a clarificação doutrinária que têm a propor, embora até aqui não se lhes tenha visto (mas será certamente por desconhecimento meu) grande alcance doutrinário alinhado com os desafios que temos pela frente na sociedade actual. Falo à vontade porque acabei de publicar um livro exactamente sobre este assunto (Política e Ideologia na Era do Algoritmo, S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, 262 pág.s).

8.

Uma coisa é certa. Estes personagens estão no interior do círculo do poder e certamente, em vez de usarem pretextos para polemizar publicamente com o secretário-geral do PS, poderiam intervir internamente (ou publicamente, com reflexões de fundo) para ajudarem a actual liderança a levar a bom porto a difícil tarefa de preparar o PS para uma profunda transformação interna que o leve a apresentar-se aos portugueses como a força mais credível de que o nosso país dispõe. Esta oportunidade, por razões compreensíveis (ma non troppo), não teve modo de ser agarrada aquando das eleições internas para secretário-geral do PS, onde as páginas dos programas dos candidatos sobre o partido foram escassas, demasiadamente escassas.

9.

António Costa voou rapidamente para Bruxelas, onde o grave motivo que o levou a entregar a maioria absoluta e o governo nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa pelos vistos não era relevante para o desempenho do cargo de Presidente do Conselho Europeu, escancarando as portas do poder ao PSD e perdendo também o controlo do partido. Os seus seguidores querem agora retomar o seu controlo interno, depois de o não terem conseguido há um ano atrás. Pois bem, as eleições para secretário-geral processam-se de dois em dois anos e, portanto, poderão, daqui a um ano candidatar-se. Entretanto, poderiam usar os cargos que ocupam, em nome do PS, para enriquecer o partido e não para o enfraquecer, usando pretextos ridículos como os que se viram neste caso ou no caso do presidente da câmara de Loures, para não referir o da rua do Benformoso, onde Pedro Nuno Santos também, e na minha perspectiva erradamente, alinhou.

10.

Para mais sobre o PS, de minha autoria, veja, entre outros artigos, no meu site:

  1. O RECOMEÇO
https://joaodealmeidasantos.com/2024/01/10/artigo-137/
  1. E AGORA, PEDRO?
https://joaodealmeidasantos.com/2023/12/20/artigo-134/
  1. CONFISSÕES DE UM MILITANTE 
    Em Sete Andamentos
https://joaodealmeidasantos.com/2023/12/13/artigo-133/
  1. AS ELEIÇÕES 
    PARA SECRETÁRIO-GERAL DO PS 
    Manual para uma boa Decisão
https://joaodealmeidasantos.com/2023/12/06/artigo-132/
  1. PS – ENTRE O PASSADO E O FUTURO
https://joaodealmeidasantos.com/2023/11/21/artigo-130/
  1. O PS E A CRISE POLÍTICA
https://joaodealmeidasantos.com/2023/11/14/artigo-129/
  1. CINQUENTA ANOS 
    E AGORA, PS?
https://joaodealmeidasantos.com/2023/04/18/artigo-98/
  1. UM NOVO PARADIGMA 
    PARA A SOCIAL-DEMOCRACIA
https://joaodealmeidasantos.com/2022/04/26/ensaio-16/
  1. FALEMOS DE POLÍTICA
    A propósito de um Artigo 
    de Pedro Nuno Santos
https://joaodealmeidasantos.com/2021/02/03/artigo-29/
  1. OPERAÇÃO CONGRESSO 
    EM QUATRO ANDAMENTOS
https://joaodealmeidasantos.com/2021/08/25/artigo-48/
  1. A RECOMPOSIÇÃO DO SISTEMA 
    DE PARTIDOS EM PORTUGAL
https://joaodealmeidasantos.com/2022/02/08/ensaio-14/
  1. MAIS DO MESMO
https://joaodealmeidasantos.com/2021/12/20/artigo-55/
  1. O ESTADO-CARITAS
https://joaodealmeidasantos.com/2023/03/21/artigo-96/
  1. O ESTADO ENRIQUECE, 
    A MIDDLE CLASS EMPOBRECE
https://joaodealmeidasantos.com/2022/03/08/artigo-63/
  1. AFINAL, O QUE É 
    O SOCIALISMO LIBERAL?
https://joaodealmeidasantos.com/2023/09/27/artigo-122/

FINALMENTE,

16. A SOCIAL-DEMOCRACIA E O FUTURO
    UM DEBATE NECESSÁRIO
    A propósito de um pequeno 
    Ensaio de Pedro Nuno Santos
https://joaodealmeidasantos.com/2018/05/11/artigo-2/

JAS@29.01.2025

NOVOS FRAGMENTOS (IX)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

“Nostalgia”. JAS 2023

IMPOSSIBILIDADE

Há quem diga que, no romance “Le Rouge et le Noir”, do Stendhal, a Matilde Viscontini (Dembowski era o apelido do marido, um general polaco, de quem se divorciara), correspondia a M.me De Rênal, apesar de a outra personagem do romance se chamar também Matilde. A Viscontini, por quem o Stendhal se apaixonou perdidamente, achava que o Stendhal era um mulherengo frívolo (e talvez fosse) e não lhe passava cartão. Isto foi tão sério que ele, a este propósito, até escreveu um ensaio sobre o amor (De l’Amour, 1822). Não sei se a mulher do poema (“Caminhos Paralelos”) corresponde à Viscontini, tal como a da ilustração, um perfil de mulher a vermelho e preto. O poeta nunca confessaria, apesar de se suspeitar que haja um referente na realidade. Há sempre. O ponto é a impossibilidade, que acabou por atingir dramaticamente o Julien. Também o poema fala de impossibilidade no jogo do amor. A palavra aparece no poema uma só vez, mas o título também alude a isso. O encontro só se pode dar no olhar e num ponto do infinito (para onde convergem as linhas paralelas).

LINHAS PARALELAS

Seguem em linhas paralelas, o poeta e a musa. Encontram-se no olhar dele, lá ao fundo, quando as linhas paralelas convergem. O olhar parece ser o da alma, capaz de reconstruir e (ainda) sentir o caminho percorrido em comum. Assimetria nos caminhos paralelos. Ele já viaja, no veículo poético, em direção a um mundo imaginário para onde leva um imenso património de afectos embalados em palavras. Ela talvez não. Talvez tenha receio do sol, do seu brilho, preferindo, não a penumbra, mas a obscuridade. Mas ele, o poeta, chama-a ao centro do palco, lá onde estão os holofotes que iluminarão, simplesmente, a sua silhueta. Silhueta iluminada, será a sua. Sem nome.

MELANCOLIA

Sim, melancólico, um poema melancólico, os “Caminhos Paralelos”, ilustrado por uma pintura com um perfil de mulher a preto e vermelho. A história de um encontro de olhar, fugaz… O único possível em percursos que só convergem no olhar de um dos protagonistas. O percurso de ambos seguia por duas linhas, mas só o poeta as via.  Ele olhou lá para o fundo e viu que, a um certo ponto, as linhas paralelas convergiam . Era um olhar interior porque centrado nos fluxos vivos memória, mas esse encontro foi suficiente para o canto.

O CANTO E O PASSADO

“Les jeux sont faits”, é verdade, quando a salvação do poeta fica, por instantes, resolvida, como dizia um amigo que comentava o poema “Caminhos Paralelos”. O passado só é possível cerzi-lo com o canto na cidade da utopia, se a memória do poeta for um magma turbulento de recordações que o atormentam e o levam a reagir. Basta o fugaz clarão de um perfil. Como se uma sombra silenciosa progrida no tempo, a seu lado, e, de forma intermitente, haja sinais que estimulam a sua sensibilidade e reavivam a memória, convocando-o para o canto libertador. Como poderia o poeta fugir a este destino tão remota e intensamente marcado. Por exemplo, esse tal dia-dos-namorados, que acende memórias quentes. Felizmente que ele frequenta a cidade da utopia, onde vivem as musas e o destino é marcado pelos deuses e pelos astros, seus amigos. O impossível pode assim ser declinado, numa fascinante transfiguração do real. A poética.

ILUMINAR O TEMPO

A poesia como salvação, como gesto que não vence o tempo, mas o ilumina. Iluminar o tempo com a palavra que resgata, porque o traz à consciência, o assume, o verbaliza, o ilumina. Iluminar: torná-lo visível, acendê-lo e elevá-lo ao sublime. Transcender o tempo é isso. Só a arte o pode fazer. A arte ilumina tudo aquilo em que toca. Por exemplo, o amor. Mesmo, ou sobretudo, aquele amor que ficou pelo caminho, que não encontrou modo de se completar. Aquele amor que acabou por ficar reduzido a desejo, a algo inacabado no tempo…  É esse que pede ao poeta que o ilumine para que não fique oculto a provocar estragos na alma. O desejo permanece como vontade. Muitas vezes comparo a poesia à psicanálise, mas mais bela e eficaz. Sonhar, verbalizar, fazer livres associações, sim, mas introduzindo a beleza, a harmonia e a melodia reparadora. Dotando o “paciente” de um activismo que faz dele o agente da própria “cura”. O poder terapêutico da poesia pelo seu poder de iluminar o passado para si e para a comunidade das almas sensíveis. E é verdade que iluminar o passado é também reconhecê-lo e, desse modo, trazê-lo à consciência, libertando-se da sua influência de natureza puramente pulsional. Reconhecê-lo não significa anulá-lo, mas sim tornar possível a sua transfiguração estética, onde o primeiro dos princípios é o princípio da liberdade. É este o sentido do resgate pela arte. Dir-se-á: o poeta atinge assim a felicidade plena? Não. Mas pode converter a sua tristeza em doce melancolia, partilhando-a com a comunidade das almas mais sensíveis. Sim, o da poesia é um caminho sempre paralelo àquele que sofre mais directamente o impacto das pulsões que animam e agitam a nossa existência.

A ILUSÃO COMO REMÉDIO

Esta “Natureza Morta” (que ilustra o poema “O Passado e o Presente”) não é tão morta como à primeira vista pode parecer, pois andam por lá (o que não é comum nas “naturezas mortas”) rostos dissimulados nas formas das flores já secas, que são como que marcas deixadas pela vida que também por elas passou. Nas flores, mesmo secas, há sempre rostos impressos dos que delas cuidaram. Eles, os rostos, podem indicar o prenúncio de uma fresta por onde o passado venha a emergir como presente, como desafio da vida passada às palavras futuras do poeta e às cores e riscos do pintor. São marcas de vida cristalizada nas flores já secas pelo tempo que passou. Que passou, sim, mas deixando marcas com potencial de vida a insinuar-se. Não literais, mas marcas. Isto, claro, chegando ao poema através de uma especial “Natureza Morta”. Mas se lhe acrescentarmos a sua força performativa, o realismo induzido pela musicalidade das suas articulações significantes nesse sonho a olhos abertos que é sempre um poema, talvez possamos transformar o passado em presente, ouvi-lo ecoar, ali ao lado, como desafio para o canto e responder-lhe com as palavras encadeadas de uma ilusão onírica desenhada no estirador mental do poeta, aquela que tudo pode porque é livre. A ilusão é a condição da sua própria liberdade. Sempre de destino, de astros ou de deuses se trata, nessa matéria de que o poeta se ocupa como missão. Mas é um combate contra o tempo e as suas adversidades nos limites que o próprio destino lhe fixa. O poeta trilha essas marcas da melhor forma, aperfeiçoando-as, procurando nelas a beleza possível, cantando-as. Se, depois, as mostrar, metaforicamente, tanto melhor.

MARCAS

O tempo deixa marcas que persistem em nós. O poeta pega nelas e projecta-as para o futuro, como desejo ou como doce lamentação. O poeta é um obreiro do tempo, inspirado nas musas e num percurso que os deuses lhe traçaram. Sempre rumo ao futuro.

NAVEGAR NAS TEMPESTADES DA ALMA

Os poetas navegam no tempo levados pelo vento interior que lhes sopra na alma. Não podem subtrair-se às tempestades interiores… que os levam a poetar. Um destino.

POESIA EM PROSA

O Bernardo Soares achava que não tinha jeito para a poesia, mas dizia sobre ela, em prosa, coisas muito acertadas. Ou não vivesse ele em permanente desassossego… Ali, ele não era poeta, não era fingidor.

O PASSADO E O PRESENTE

O passado é, a partir de um certo momento, a maior fatia da nossa vida. Imaginemos, pois, o destino de quem tem pouco passado (intensamente vivido, digo). Tem pouca vida. Vegetou, não viveu. Não tem, pois, de que se lamentar por perdas que não teve. Para perder é preciso ser. Não basta ter. Se não és, não perdes. É tudo mais ou menos “igual ao litro”. Só tem futuro quem foi passado. Quem não foi, vive só no presente e o presente. Sem tempo, pois. Ser passado significa, no presente, construir esse futuro que se tornará passado. Se o presente não for um intervalo entre o passado que foi e o futuro que deseja ele será pouco mais que nada. Uma circularidade que se devora a si própria e não deixa rasto.

TEMPO

“O Passado e o Presente” é um poema sobre o tempo e a vida. E sobre o que dele sobrevive e ecoa em nós, tornando o passado… presente. Esse passado pode estar ali, por perto, ter persistido sob uma qualquer forma, por exemplo, como intensa recordação noutra memória, mas fluindo longe de nós e em silêncio. Uma história que alguém mantenha viva na sua consciência, que persiste noutro ambiente existencial e à qual já não temos acesso. Uma barreira intransponível. Resta-nos imaginar o que seria reencontrar esse passado exactamente como foi. Sonhá-lo, por exemplo. Ou desenhá-lo com palavras. E dotá-lo de melodia para o tornar mais sensível, sensorial. Para o reviver, digamos, “fisicamente”, como efeito sensível das palavras e da melodia que o recriam. Mas, mesmo assim, será sempre algo intangível, ficando somente o desejo em forma de ilusão. A ilusão de o imprevisível acontecer. A pulsão da vontade figurada em palavras com melodia. Imaginar o acaso nessa brecha do tempo como possibilidade de algo… que nunca acontecerá a não ser na imaginação. Mas imaginemos, por um momento, um reencontro com aquela mulher – nunca será um encontro com o passado, porque esse já passou. O imprevisto que se abre ao impossível. É aí – na impossibilidade – que a poesia ganha autonomia e vida própria, restando ao poeta dar-lhe força sensível para que sinta esse passado como algo vivo e ainda mais belo do que foi, ou mesmo intemporal, projectado no futuro. A eternidade de que fala a Yourcenar pela boca de Michelangelo. Depois, comunicá-lo, esse passado reconstruído e mais belo, na ilusão de que as palavras voem, com o vento que sempre passa, e sejam ouvidas, sentidas e interpretadas. O poeta funciona num plano transcendental, como se o passado estivesse a ocorrer nesse instante. Ele tem esse poder. A poesia tem, pois, também essa dimensão de partilha imediata que lhe reforça o realismo. É este complexo de elementos que tornam poderosa a poesia. JAS@01-2025

Poesia-Pintura

SONHO
ou
A PORTA DO TEMPO
Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Transparência”
Original de minha autoria
Janeiro de 2025

POEMA: “SONHO ou A PORTA DO TEMPO”

NUM DIA DE CHUVA,
Bateste levemente
À porta da minha
Memória,
Como quem chamava
Por mim,
Com aparente
 Empatia,
Soletrando
O meu nome
Em ritmo
De melodia
Com perfume
De jasmim.

ERA TRANSPARENTE,
A porta,
Reconheci
A tua boca,
O bâton púrpura
Dos teus lábios,
As linhas curvas
Do teu corpo...
E logo vi,
Com o olhar
Do desejo,
Que eras tu,
 Como se o visse
Despido,
Sensual, 
Tão inocentemente
Nu.

NÃO SEI SE
Me pressentiste,
Não sei,
A porta
Era um espelho
E através dela
Só se via
Do lado de cá,
Do lado
Da minha alma,
A que sempre
Te deseja,
Mas que nunca
Te terá.

ENTRASTE,
Por essa porta
Cheia de cor,
Que a chuva
Humedeceu,
Mas deixara-te
Com mais
Brilho...
...........
O da chuva
E o teu.

TAMBÉM TU
Eras transparente...
Olhei-te
E vi, em ti,
Um céu diferente
Que parecia
Oferecer-se
Ao desejo
Como nunca
Eu senti.

NA TRANSPARÊNCIA,
Despontou
O sol,
Subitamente,
Coado por
Neblina dourada
Que descia
Sobre mim
Pra que te visse
Brilhante,
Exaltada,
Com um brilho
De cetim.

ÀS VEZES,
O dourado
Ganhava tons de
Âmbar
E vestia-te 
O corpo nu
Na minha 
Intangível
Memória
Sempre quente...
.........
Como tu.

VIA COM NITIDEZ
Esse teu sorriso,
Belo
E cristalino,
Mas, quando te quis
Tocar,
Desceu
Sobre nós
Um vidro fino,
Baço e frio,
E eu verti
Lágrimas
De inconformada
Tristeza,
Filhas
De um profundo
Vazio.

AS LÁGRIMAS
Deslizaram
Pelo vidro
E tu tentaste
Agarrá-las
(Em vão)
Com todas
As cores
Que tinhas
Na palma
Da tua mão...

DE REPENTE,
Tornaste-te sol
E eu já só era
Um reflexo
(Eu bem sabia)
Dos teus
Raios filtrados
Por algumas
Nuvens brancas
Que iluminavam
A minha pobre
Fantasia.

MAS LOGO DESPERTEI.
Batera alguém
Levemente
À porta
Do meu quarto.
Corri a abri-la...
........
Ninguém!

REGRESSEI,
Rápido,
À minha memória
Para te reencontrar,
Mas tu já não
Estavas,
Sequer como reflexo,
A brilhar.

DEIXARA ABERTA
A porta do tempo,
Por onde tu
Desertaras,
Como sempre,
Pra parte incerta,
Para uma dessas ruas
Do destino
Que fica sempre
Deserta...

OS SONHOS
São sempre assim,
Tudo se esvai
Quando irrompe
A luz do dia,
Onde o sol
É o farol
Que sempre
Nos desperta
E nos aquece,
Mas também
Nos alumia.

Artigo

OLIVIERO TOSCANI

(1942-2025)

E A PÓS-PUBLICIDADE

Por João de Almeida Santos

Toscani2025_6

“S/Título”. JAS 2025

OLIVIERO TOSCANI partiu aos 82 anos. Faria 83 em 28 de Fevereiro. Não era só um publicitário, era também um artista. Um publicitário-artista especial: ajudou, com as suas produções, a fazer da Benetton uma marca mundial de enorme sucesso. No mundo invertido da publicidade, onde o produto adquire a natureza de «fetiche» milagroso, capaz de nos oferecer este mundo e o outro, e valioso, não por qualidades intrínsecas, mas por qualidades e «atmosferas» que subrepticiamente a publicidade lhe associa, Toscano foi mestre. Em publicidade, um produto surge sempre associado a algo que pode nada ter a ver com ele. A algo que pode fascinar, atrair, espantar, fazer sonhar e que, por essa via, induz atracção por um produto que lhe esteja associado. Também aqui se poderia falar de instrumento de ilusão programada, de inversão substitutiva do valor de uso pelo valor simbólico. De fetiche. Ao qual Marx dedicou algumas admiráveis páginas, no primeiro livro de O Capital. Diz Oliviero Toscani, o genial artista-publicitário:

«qual é o melhor slogan publicitário de todos os tempos? É a palavra publicidade. É o mais eficaz e o mais mentiroso. Evoca coisas positivas, um serviço, uma coisa útil. Bem público, coisa pública, interesse público, opinião pública, meios públicos, autodisciplina são todos eles conceitos positivos que subentendem um interesse geral. Pelo contrário, nada há de mais parcial do que o interesse da publicidade, que não é mais do que uma propaganda comercial parcial sem contraditório» (Toscani, O., Ciao Mamma. Milano, Mondadori, 1995: 40).

A publicidade não trata do interesse público ou do interesse geral, mas de interesses de parte. Pura encenação em torno de um termo em si próprio equívoco ou mesmo enganador. É ele que o diz.

A IDEOLOGIA PUBLICITÁRIA

Não deixa de ser curioso que quem isto afirma seja o promotor de campanhas declaradamente publicitárias, mas com pretensões de validade moral universal. Por isso,  falando de Toscani, exporei, em seguida, as traves mestras desta publicidade, bem mais sofisticada do que a que nos é oferecida pela televisão, para compreendermos melhor essa lógica da inversão ideológica que nela se insinua. Analisarei o caso paradigmático de uma perfeita ideologia publicitária, porque representa um plano de fronteira do processo de mediatização e, por conseguinte, da ideia de confiscação de direitos imediatos, eficazmente substituídos por direitos mediáticos, ou virtuais. A ilusão de uma vida melhor… comprando. Ideologia publicitária que, à semelhança da ideologia tradicional, associa subliminarmente grandes causas de valor moral e de interesse público a matérias da mais trivial consistência, provocando a eficaz ilusão de uma relação causa-efeito e de universalidade, lá onde se trata, afinal, da mais subjectiva escolha e do mais trivial uso: uma camisola de cromatismo exuberante, e moralmente correcto, que traz associada a si a marca do sucesso, da universalidade e da moral: United Colors of Benetton. Trata-se daquilo a que chamo pós-publicidade. A de uma empresa, a Benetton, e de um genial publicitário, Oliviero Toscani, também ele imerso, mas de forma bem original, na ideia de mediatização universal de produtos, agora através de causas e de princípios morais de grande impacto.

PUBLICIDADE – UM SECTOR ECONOMICAMENTE PODEROSO

Para quem não saiba, Oliviero Toscani é um famoso publicitário italiano, autor dos célebres e polémicos outdoors da Benetton. «Ciao Mamma» é o título de um seu sugestivo livro de carácter autobiográfico, onde poderemos seguir o riquíssimo itinerário intelectual do autor, mas onde também poderemos seguir um fio condutor unitário que exprime, das mais diversas formas, o conceito do artista-publicitário sobre o discurso da publicidade.  Discurso de altíssima actualidade e relevância, visto o universo sem limites em que o discurso publicitário intervém e os gigantescos recursos que nele são investidos. Em Itália, a despesa em publicidade era, em 2000 (quando publiquei a primeira edição do meu livro Homo Zappiens, Lisboa, Editorial Notícias, 2000), igual à despesa para a investigação industrial, maior do que os investimentos estatais destinados à educação, infinitamente superior aos investimentos na saúde pública. Ou então: empresas havia (e há) que gastam quase mais em publicidade do que na actividade empresarial propriamente dita. Mais: oitenta por cento da facturação publicitária diz respeito a poucos sectores de largo consumo, com o objectivo de produzir quase sempre sugestões de carácter artificial ou ilusório em vez de informações úteis e verdadeiras (Toscani, 1995: 40-41; veja-se também No Logo, de Naomi Klein, Milano, Baldini&Castoldi, 2001). E é aqui que reside o núcleo polémico.

A PUBLICIDADE COMO PATROCÍNIO DE CAUSAS

A questão levantada por Toscani diz respeito à filosofia espontânea da publicidade convencional, que não transcende o mínimo denominador comum dos vulgares sentimentos ou impressões estéticas, que é conformista, que se limita a induzir competição com o produto congénere, do tipo «o meu produto é melhor do que o teu», em suma, que não transcende o puro discurso mercantil. Toscani, que no mesmo registo fustiga as agências publicitárias, elas próprias em busca desesperada de autopublicidade, opera uma ruptura com o senso comum publicitário, propondo uma publicidade radical, em sintonia com a própria filologia do conceito (coisa pública, bem público, transparência, interesse público, opinião pública). Publicidade que, através de temas vitais, funcione como estímulo crítico, como discurso autónomo sobre as grandes causas, embora promovido pela United Colors of Benetton, multinacional que decidiu, após anos de campanhas convencionais, acabar com as agências publicitárias e «patrocinar», com esse orçamento e com a linguagem estética de Toscani, causas universais de grande valor moral. Foi assim que a relação da Benetton com a publicidade se remeteu à figura de simples «patrocínio» de grandes causas simbolicamente representadas em fotografias da autoria desse intelectual-publicitário e que abriu espaço àquilo que poderíamos designar por pós-publicidade. SIDA, guerra, racismo, ecossistema, sexo, religião eram os temas com que Toscani trabalhava nas suas mensagens. Temas sempre apresentados de forma esteticamente muito intensiva e radical e em suporte fotográfico. De tal forma que provocavam, sistematicamente, fortíssimas reacções provenientes dos mais variados sectores: críticas, anátemas, censuras, emoções. Quase sempre escândalo.

A FOTOGRAFIA

Poderíamos dizer que Toscani, usando um meio tradicional como a fotografia, superou a fronteira da publicidade convencional, alterou radicalmente os seus esquemas de referência, levou a sua linguagem a um ponto tal que parece tê-la catapultado decisivamente para o plano da arte politicamente empenhada. Mas sem se ter deslocado dos espaços onde a publicidade convencional vivia e convivia, do seu suporte tradicional. Sobre a fotografia, diz Toscani, em «Ciao Mamma»: «para mim, a fotografia tem a F maiúscula. Não a considero a parente pobre da pintura. E não me interessa uma evolução em direcção ao cinema. Nem sequer a televisão conseguirá fazê-la sair de cena. A fotografia permanece, e permanecerá por muito tempo, o núcleo de partida da imagem moderna» (1995:11).

 CROMATICAMENTE CORRECTO: UMA ESCOLHA DE VIDA

«Ciao Mamma» bem poderia ser, de facto, a frase «assassina» da publicidade a um par de jeans: a fotografia de um jovem, munido apenas de um par de jeans e de uma escova de dentes enfiada no bolso detrás, que parte para essa grande aventura libertária da vida, deixando atrás de si a recordação dos momentos de afectuosa protecção maternal. «Ciao Mamma!»: na companhia de um membro da Família Unida Benetton (ou de dois, se a escova de dentes também for produzida pela empresa) «parto com segurança e com valores de referência para essa grande aventura da vida, onde a comunidade certa é constituída pela equipa que veste a camisola do clube cromaticamente correcto Benetton».

A FÓRMULA: UNITED COLORS OF BENETTON

Toscani, com efeito, conduziu durante muitos anos, com enorme sucesso, à escala mundial, a publicidade da empresa italiana de vestuário, e derivados, Benetton. Com enorme sucesso, é verdade, pois em 2000 já estava presente em mais de cem países e declarava um movimento de três biliões de marcos (Doenhoff, M. D, “Toscani: i colori del declino”, “Reset”, n.º 23, 1995), mas também marcada por planetárias polémicas geradas pelo arrojo estético e moral, apesar de simples, das suas propostas publicitárias. A fórmula originária e genérica que fundava e que estava presente em todos os produtos publicitários era simplesmente fabulosa. United Colors of Benetton alude – nem sequer subliminarmente -, evoca e decalca o forte simbolismo contido na designação nacional americana, United States of America: o mesmo número de palavras, a mesma ordem, o mesmo início. A sugestão de uma mesma matriz. O mecanismo desencadeado por esta associação é o do funcionamento por analogia: sucesso, poder, liderança, afirmação.

Trata-se, logo aqui, como se vê, da mais pura ilusão ideológica: a alusão aos USA induz, subliminarmente, quem usa produtos Benetton a assumir-se como pessoa de sucesso, de poder, forte e afirmativa. Uma camisola cromaticamente correcta é índice de sucesso.

EFEITO DE ESTRANHEZA

Toscani, partindo daqui, rompe com a fórmula publicitária tradicional – que tende dominantemente a envolver a mensagem directa com ambientes de matriz sentimental, romântica ou utópica – e cria efeitos simbólicos de choque, produz imagens que questionam, com radicalidade de ruptura, os grandes temas que atravessam a vida nas sociedades modernas: um padre que beija uma freira, a farda manchada de um soldado bósnio morto (que não é de marca Benetton), um pássaro a boiar numa poça de petróleo derramado, um recém-nascido ensanguentado e ainda preso pelo cordão umbilical, inúmeros preservativos que esvoaçam, cruzes de um cemitério, «Hiv positive», etc., etc. «É claro que Toscani abala alguns tabus, mas a nudez que expõe é simplesmente humana», diz dele Thévenaz. «É exactamente esta a sua intenção: a objectividade anti-sentimental», sublinha este historiador de arte (Thévenaz, M., “Quel fotografo è solo um venditore”, “Reset”, n.º 23, 1995). O anti-sentimentalismo constitui, com efeito, a marca de ruptura com a publicidade convencional, com o efeito de adesão sentimental ao produto, com a fantasia induzida pelo mecanismo da anestesia simbólica. O que ele propõe é, pelo contrário, a distanciação crítica, uma espécie de Entfremdungseffekt, efeito de estranheza, de vaga ou longínqua inspiração brechtiana. Ou, muito simplesmente, um efeito de choque que provoque reflexão crítica induzida pela «vivacidade» da imagem proposta sob o «alto patrocínio» das Cores Unidas da Benetton. Uma marca empenhada no resgate moral da Humanidade.

PUBLICIDADE E CAUSAS MORAIS

Todas estas são mensagens de ruptura radical, de oposição em relação a ordens ou desordens provocadas pelos poderes convencionais ou naturais: o poder religioso, a guerra e a agressão ambiental (neste caso, originada pela Guerra no Golfo), a questão demográfica, a SIDA. Trata-se também de mensagens com forte apelo emocional e psicologicamente desestabilizadoras para quem está habituado a ver a realidade com as lentes policromáticas dos romances cor-de-rosa publicitários convencionais e a quem é sugerido um subreptício cromatismo de vago sabor crítico. E, todavia, estas mensagens possuem uma fortíssima valência substantiva, tocam profundamente a sensibilidade existencial e colectiva, questionam-nos. Mas, tratando-se claramente de publicidade, também é verdade que transportam consigo um «pecado» original, um indício pecaminoso, um indício de interesse privado em causa pública: o interesse na expansão comercial das Cores Unidas da Benetton, através da instrumentalização, com fins dominantemente lucrativos, de temas que tocam profundamente as sensibilidades individuais e colectivas e que possuem essencialmente uma valência pública. Não que o mercado seja pecaminoso. Mas, seguramente, porque, estando em jogo causas tão substantivas e determinantes para o futuro da Humanidade, parece ser justo exigir que estas causas se constituam como fins absolutos, assumam uma valência absoluta, isto é, não sejam referenciáveis a nenhum outro valor que não seja o que elas próprias evidenciam e exigem imperativamente. Pelo contrário, o que aqui se verifica é uma promiscuidade intolerável entre o que deveria ser moralmente absoluto e o que é comercialmente relativo. Entre o que questiona a essência do que é justo socialmente e o que se revela tão-só comercialmente lucrativo. Trata-se daquele mecanismo que identifico como ilusão e inversão ideológica: onde a causa deve ser um fim de si própria surge como simples manto ou cobertura moral de um banal produto comercial que é absolutamente estranho às causas a que alude. A causa moral surge como mero instrumento de promoção comercial de produtos moralmente neutros. Assim funcionam os mecanismos publicitários em geral, independentemente dos conteúdos.

A crítica que vale para a pós-publicidade vale, pois, para a publicidade televisiva, mais laica, mais relativa, mais comezinha, mas nem por isso menos eficaz e menos «subversiva». A primeira, mais crítico-conceptual, a segunda, mais sentimental e romântica. É que a pós-publicidade dota-se de uma armadura de combate ideológico pronta a reunir todos aqueles que se vestem de forma cromaticamente correcta. Uma lógica que funciona de forma plenamente invertida, já que é a força das causas que funciona como factor de coesão de todos os que acabam por se reconhecer no cromatismo moral e anti-sentimental da Benetton, sendo que, afinal, é essa mesma Benetton que patrocina as causas propulsoras desse cromatismo moralmente correcto. Não é a Benetton que leva às causas, mas as causas que promovem a Benetton.

A publicidade televisiva funciona de forma mais laica, mais trivial, induz analogias sentimentais, de sucesso e de eficiência. É uma publicidade mais pragmática, sem deixar de aludir a valores sociais, existenciais e instrumentais, operando sempre de acordo com o mecanismo da inversão ideológica: lembro a publicidade televisiva a um pão de longa conservação que é distribuído, regularmente, todos os dias, de manhã cedo, à hora do pequeno-almoço, como se fosse pão fresco.  Uma incongruência.

CINCO TEMAS

Toscani terá dito que foi a Guerra do Golfo que o levou a formular o novo quadro em que passaria a formular a publicidade do futuro. A publicidade social e historicamente empenhada. Logo, um momento histórico único como fonte de inspiração e de responsabilidade planetária acrescida. Ele passou a querer mostrar «o que une e separa as pessoas», através da exibição intensiva dos grandes cinco temas da existência: o sexo, a religião, a raça, a vida e a morte. Sem mediações. Com uma técnica intencional de brutalização da comunicação. Provocando emoções fortes sobre o cidadão consumidor da publicidade de larga escala, para que esse mesmo consumidor se transformasse em consumidor dos produtos Benetton, os que patrocinam as grandes e boas causas.

APOLOGIA DA MARCA, NÃO DO PRODUTO

A filosofia de Toscani revela-se, através da estética da comunicação publicitária mediante fotografia, fortemente criativa, competitiva e esteticamente revolucionária. Volta a dar à fotografia algo que ela estava a perder em face de poderosos adversários. Em particular, do adversário televisivo, assumido aqui, implicitamente, como simples extensão subalterna e residual da operação pós-publicitária, isto é, como simples sistema difusor subalterno da mensagem cromaticamente correcta de que todos falam, dentro e fora da televisão. E a verdade é que este publicitário, com a sua mágica fórmula fotográfica, tão discutida e posta em causa em todo o mundo, conseguiu ser talvez a peça fundamental do enorme empório Benetton. Uma empresa que fascinava não tanto pelas formas e pelas cores que produzia quanto pela imagem que de si mesma conseguiu criar. Como que a demonstrar que, hoje, a marca e a imagem são tudo e o produto nada. Ainda que alguns, aplicando a lógica do boomerang, tenham começado a falar, com razão ou sem ela, de crise. Uma crise que se fundaria mais na derrocada de uma determinada fórmula publicitária do que na necessidade, bem mais prosaica, de agasalho e de culto da arte de bem-vestir. Boomerang que dá bem conta deste efeito de inversão que cada vez mais assalta o nosso quotidiano: consumimos não segundo a lógica do uso, mas segundo a lógica da troca e, finalmente, a lógica das comoções induzidas pela força matricial da fotografia ou pela força trivial da televisão.

PÓS-PUBLICIDADE

Toscani opera com uma distinção fundamental entre a publicidade convencional e aquilo a que chamo pós-publicidade: aquela idealiza e absolutiza as virtuais qualidades do produto; esta limita-se a associar, não o produto, mas a própria marca (United Colors of Benetton) às grandes causas, tal como nos são propostas pelo artista-publicitário, em suporte fotográfico e sob o pressuposto de que a fotografia se mantém como o núcleo de partida da imagem moderna. Não se comunica, pois, o produto ou os produtos, mas a marca. O que já constitui uma revolução em relação à publicidade convencional. Mas, depois, a própria comunicação publicitária é proposta de forma somente alusiva, onde a mensagem fundamental é uma grande causa social, totalmente autónoma em relação ao produto e à própria marca. Esta limita-se a aparecer associada, na medida em que se revela como simples patrocinadora. “Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”. Toscani diz que o novo modo de fazer arte no mundo tecnológico de hoje é precisamente aquele que não recusa a contaminação com a cultura de massas, da qual a publicidade é uma das expressões mais visíveis. O conceito nem parece ser muito original: lembremo-nos, por exemplo, da obra de um Andy Warhol, com quem, de resto, Toscani conviveu. Mas que a caminhada de Toscani tem um sentido profundo foi reconhecido pelo Pier Paolo Pasolini dos Scritti Corsari quando analisou o famoso slogan dos «Jeans Jesus» e o considerou como algo surpreendentemente inovador: «o seu espírito», disse então Pasolini, «é o novo espírito (muito antecipado) da segunda revolução industrial e da consequente mutação dos valores» (Pasolini, P. P., Scritti Corsari, Milano, Garzanti, 1975 1975: 17). E estávamos em 1973, em plena era do slogan, quando Toscani ainda não se tinha desprendido completamente da lógica publicitária convencional. Mas, agora, que esta comunicação publicitária se reduz à forma do patrocínio e se fixa em temas ou causas de profundo significado social, como o beijo entre um padre e uma freira, uma mulher negra que amamenta uma criança branca, uma recém-nascida (Giusy) com o cordão umbilical, um moribundo (David Kirby) de SIDA, uma nuvem de preservativos, as cruzes de um cemitério, a farda do soldado, conhecido como Marinko Gagro, ensanguentada, agora, dizia, a inovação é radical, sendo certo que Pasolini poderia ver confirmado o seu diagnóstico de então.

ALGUMAS PERGUNTAS

Num registo hiper-realista, um pouco cínico e sem pretensões de carácter conceptual, as questões que poderíamos pôr a Toscani são as seguintes:

  1. vocês fazem este tipo de publicidade porque querem limpar a consciência? Porque têm uma moral dupla? Porque querem redimir o mundo? Ou, simplesmente, porque o que pretendem é, tão-só, fazer com que falem da Benetton, para mais e melhor vender?
  2. O que vocês fazem não é pura e simples ideologia instrumental? Mas se, antes, a ideologia sempre surgia associada à nobre política, assim, não fica despudorada e directamente ao serviço de mesquinhos interesses comerciais que nada têm a ver com as causas que apregoam?
  3. Não estão vocês a instrumentalizar causas de grande valor moral? E, assim fazendo, a dignidade da vossa pós-publicidade não resvala para o cinismo?

Benetton não é um santo e a sua empresa não é uma agência de causas morais. O crítico também não é parvo. Mas o facto é que a publicidade de Toscani assume esta forma diferente. Não fala de si nem dos seus produtos. Fala de grandes causas (de resto, já em circulação nos media), provocando grandes escândalos, porque a sua linguagem em vez de estilizar e idealizar a sensibilidade comum, agride-a e fere-a, provocando reacções de carácter interactivo, isto é, acabando por transformar o destinatário num sujeito (re)activo. Reactivo, sensível à mensagem, logo potencial aderente a esse clube patrocinador de causas morais que, por acaso, se chama Benetton e que, também por acaso, vende produtos de vestuário e afins.

O CORPO

No meu entendimento, também não é por mera coincidência que Toscani trabalha com corpos (ou com objectos simbólicos que para eles remetem, preservativos que esvoaçam ou cruzes de um cemitério), procurando reconduzi-los a uma pureza originária e dando, assim, relevo a uma intimidade partilhada em comum, a do corpo. Reduz as diferenças ao mínimo, ao detalhe, fazendo sobressair aquilo que é comum, provocando uma «relação física» anterior aos hábitos, às crenças, ao vestuário. Como diz Thévenaz: «para dar consistência à ideia das Cores Unidas, era necessário inserir o corpo humano». «Os personagens de Toscani são seres humanos idealizados (…) que não têm outra individualidade senão algumas diferenças formais: o penteado, a pele, a forma ou a cor dos olhos, as linhas de um rosto ou de um seio. E, em homenagem, uma camisola vermelha ou amarela da Benetton…» (Thévenaz, 1995). Não é, pois, inocente esta opção pelo corpo, já que ele é o destinatário dominante da actividade produtiva da Benetton, independentemente de qualquer diferença formal que se verifique nesse corpo, já que a Benetton possui uma linguagem universal por todos compreensível: a linguagem da cor.

A fase em que Toscani pretende não só mostrar o que une as gentes, mas também o que as separa, recorrente depois da Guerra do Golfo, esbate um pouco este afunilamento em direcção ao corpo que veste Benneton e suscita sentimentos de compaixão e intensidades dramáticas. Com diz Thévenaz, Toscani, neste registo, vê-se ultrapassado pela necessidade de um registo que não seja tão publicitariamente correcto, tão estilizado, tão formal. Por isso, tem de recorrer a trabalhos de outros autores, por exemplo, a reportagens fotográficas, que o impedem de praticar um estilo esteticamente tão depurado.  Mas, mesmo assim, a intensidade dramática que envolve esta mensagem de Toscani é uma mensagem dramaticamente correcta, universal, por todos compreensível e com profundo significado moral. Sempre se trata de corpos, mas em situação-limite. A Benetton pode assim aproximar as gentes pelo sofrimento-limite, pelo drama de fronteira e exercer essa sua função de promotora universal de causas morais, de consciência crítica, de exemplo. Um exemplo que, como todos os exemplos, deve ser seguido… comprando.

FINALMENTE

Com esta incursão pela pós-publicidade de Toscani, na hora da sua partida, pretendo, além de o homenagear pela sua genialidade, evidenciar, com a análise de um caso concreto, a lógica ideológica da publicidade, a compreensão do mecanismo da inversão ideológica e os efeitos desejados que ela procura provocar nos sujeitos… a ela. Todos nós.

NOTA

Este texto retoma o capítulo do meu livro Homo Zappiens (Lisboa, Editorial Notícias, 2000; Lisboa, Parsifal, 2019, 2.ª Edição, pág.s 100-114) dedicado a Oliviero Toscani.       JAS@01-2025

Toscani2025_6Rec

Poesia-Pintura

O PASSADO E O PRESENTE

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Natureza Morta”
Original de minha autoria
Janeiro de 2025
NaturezaMorta2025Final

“Natureza Morta”. JAS 2025

POEMA – “O PASSADO E O PRESENTE”

QUANDO O PASSADO
É presente
E mora mesmo
A teu lado,
Quando o tempo
Se pressente,
Mas um muro
Intransponível
Te mantém
Sempre isolado,
Esse tempo
Marca
O compasso
Da vida,
Memória
De uma partida
Que nunca
Se desejou.

CRIA
Angústia,
Desespero,
Inaudível
Ecoar,
Porque é passado,
Passou,
E já não pode
Voltar.

RESTA A FRESTA
Do imprevisto,
Do acaso
Que te faz
Estremecer
E quase abalroar,
Um passado
Que flui
Ali mesmo
A teu lado,
Mas já não podes
Tocar.

É VIVO
E é morto
Esse passado,
É fluxo
Intangível,
É escuro,
Ao lado de onde
Estás,
Sem presente
Nem futuro,
Onde as sombras
Não se movem
Nem prà frente
Nem pra trás.

A LUZ ESTÁ
Lá fora
E pode encandear
Com seu forte
Clarão
E tudo então
Se mistura
Lá no fundo
De ti mesmo,
Num imenso
Caldeirão.

POR VEZES,
O tempo
É como
O nada,
Pulveriza
A memória
E tudo
Perde sentido,
Como terra
Devastada.

AH, MAS ACONTECE
O acaso,
A visão
Do teu passado
Que caminha
A teu lado
E te convida
A cantar,
Ilusão
De que te ouçam
Nas ruínas
Desse muro
Derrubado
A sonhar.

QUANTAS VEZES
Acontece
O sonho
Te libertar...
............
E como é 
Tão bom
Sonhar
Sem saber
Que é um sonho
Até ao teu
Acordar.

E SE O SONHO
Comanda a vida
Também há-de
O passado
Comandar
Pra dar forma
Ao encontro
Desejado
Entre quem
Por ele
Sempre soube
Esperar.

ESTE É O SONHO
Que, um dia,
O poeta
Fascinou:
Reconstruir
O passado
Para viver
Encantado
Como sempre
Desejou,
Em sonho
Ou acordado,
No presente,
No futuro
Ou até no seu
Passado...
..........
No tempo
A que o destino
O votou.

NaturezaMorta2025FinalRec

Artigo

POR QUE RAZÃO NÃO ADIRO À MANIFESTAÇÃO

“NÃO NOS ENCOSTEM À PAREDE”

Por João de Almeida Santos

ALinhadoHorizonteFinalExpSepia

“A Linha do Horizonte”. JAS 2025

1.

EM PRIMEIRO LUGAR, a ter em consideração o mote da manifestação (“Não nos encostem à parede”), o que logo surge como seu alvo é a Polícia de Segurança Pública. Em segundo lugar ficam aqueles que, de facto, foram objecto daquela rusga policial, um pouco aparatosa, reconheço. Portanto, uma manifestação sobretudo contra a polícia de um Estado democrático, não contra a polícia de uma ditadura. Isto deveria ser suficiente para o PS se distanciar da manifestação em vez de a ela se associar, ainda que indirecta ou informalmente, deixando a iniciativa àqueles que sempre viram na polícia a mão repressiva do capitalismo e do Estado de classe. O PS não faz parte, julgo eu, deste radicalismo nem partilha desta visão. Mas mesmo que este mote se aplicasse ao governo, mesmo assim, não creio que o PSD constitua, atendendo ao seu histórico, uma perigosa ameaça às liberdades públicas. De qualquer modo, a alusão é, efectivamente, à polícia. Foi essa que encostou pessoas à parede, durante uma rusga. Dizer que, no fundo, não é, é pura dissimulação.

2.

É preciso olhar para a natureza das funções desempenhadas pela polícia. Trata-se de funções extremamente delicadas porque envolvem o exercício da força institucional perante situações de violação da ordem pública ou de prevenção de práticas de ilícito ou da própria violência. Prevenir as infracções à lei e à ordem pública, em largo espectro, e agir para impedir que prossigam não é tarefa simples e fácil, porque ocorre sempre numa linha de fronteira entre uso da força institucional, legal e legítima, e a preservação de direitos. O uso da força institucional é sempre um fenómeno delicado, perigoso e difícil até porque tende a colidir com os direitos, as liberdades e as garantias, vindo de um agente, o Estado, que detém o monopólio do uso legítimo da força, esse que foi inventado pelos contratualistas precisamente para garantir a segurança de pessoas singulares ou colectivas – o Estado moderno. E, por isso, podem ocorrer facilmente erros (que serão sempre graves) cometidos por aqueles que estão incumbidos de a usar em nome da lei e da segurança, em nome do Estado. Por exemplo, agir em ambiente de manifesta violência é condição propícia a desvios imprevistos, não intencionais e muito menos programáveis. Isto é de senso comum e tem de ser levado devidamente em conta, antes de gritar ao vento a pureza dos princípios perante a dura realidade. A “ética da convicção” deve ser temperada pela “ética da responsabilidade”.

3.

O PS tem um histórico que deve ser tomado na devida conta, precisamente a propósito desta questão. Foi durante o primeiro governo de António Guterres que foi criada a IGAI, Inspecção-Geral da Administração Interna, tendo como desígnio controlar institucionalmente a actividade das polícias, e por acção do Ministro Alberto Costa, que nomeou o primeiro Inspector-Geral,  Rodrigues Maximiano. Um meio legítimo e inteligente de manter dentro das boas práticas o exercício de uma missão difícil, delicada, complexa e perigosa, como é a actividade policial.  A que acresceu ainda a introdução de uma lógica de força civil na polícia, transformando o Comando-Geral de Polícia, de inspiração militar, em Direcção Nacional de Polícia, de natureza civil, tendo pela primeira vez um civil à sua frente. Deixou de ser obrigatória a nomeação de um general para o comando da PSP. Foi nessa ocasião desenvolvida a filosofia do “policiamento de proximidade”, que se traduziu, por exemplo, na criação das iniciativas “Escola Segura” e “Idosos em Segurança”, hoje reconhecidamente consideradas iniciativas de grande sucesso.  E um forte investimento na formação policial. Obra de um governo socialista chefiado pelo actual Secretário-Geral da ONU, António Guterres, dando, assim, corpo, no plano da segurança, à visão inovadora do PS para esta tão sensível área.

4.

Por isso, o PS (de que sou militante há umas décadas) não deveria transformar essa sua vocação reformadora com forte pendor institucional num agit-prop de inspiração woke cada vez mais agressivo e presente na nossa sociedade, em vez de lutar pela melhoria das condições de eficácia e de responsabilidade das forças de segurança. Não é combatendo-as na rua com manifestações nacionais, com intervenção da sua máquina partidária, que contribuirá para melhorar as condições de segurança no nosso país. Pelo contrário, o que, assim, conseguirá é promover o bloqueio da acção da polícia, tornando-a cada vez mais difícil, complexa e delicada. Mais do que já é. Há uma tendência dominante, talvez por ainda estar presente a imagem da polícia da ditadura, meio século depois, para apontar sistematicamente o dedo em riste à polícia, não só pela esquerda radical, mas também pelo mainstream jornalístico que ainda vive sob influência da sua matriz liberal, onde o Estado surge sempre como o invasor do terreno privado de exercício da liberdade. Alguns até acham, erradamente, que a função do jornalismo é ser contrapoder. É ver a Resolução 1003 do Conselho da Europa sobre Ética do Jornalismo (de 1993), onde essa ideia é explicitamente recusada. Mas é coisa antiga e também actual, facilmente comprovável por quem ainda vê televisão e a forma como é noticiada a relação entre a polícia e os cidadãos a propósito de um qualquer incidente. O facto é que, esta, não é uma polícia de ditadura. É uma polícia de um Estado democrático, que deve ser respeitada, mesmo em situações em que possam ocorrer erros. 

5.

Admitamos que a polícia tenha cometido um erro, por excesso no uso de coerção sobre cidadãos portugueses ou imigrantes que nem sequer se encontravam em situação de eventual  prática de ilícito, violando, assim, o princípio da proporcionalidade (a que está obrigada) na organização da referida rusga. Mesmo assim, o que o PS deveria fazer era desencadear uma acção parlamentar com vista ao apuramento institucional da situação e de eventuais responsabilidades (políticas ou operacionais), mas nunca participar numa batalha cívica nacional contra a instituição que tem por dever zelar pela segurança dos cidadãos sejam eles nacionais ou estrangeiros. A situação chegou ao ridículo de uma deputada do PS (a crer no relato dos jornais, também dois ex-ministros de António Costa o terão feito) assinar uma queixa junto da Provedoria da Justiça contra a PSP em vez de usar as suas prerrogativas institucionais para intervir, através do Parlamento, na situação. Mas não admira, visto o habitual pendor wokista das suas intervenções. Talvez seja um modo de sobrevivência política, quando não se tem real inserção orgânica no território partidário. O que é legítimo, sem dúvida, embora não seja aceitável que a sua acção, enquanto deputada, comprometa o partido no seu todo. Sim, porque o PS, no meu modesto entendimento, nunca deverá ser confundido com qualquer agenda woke que vagueie por aí na luta política pessoal ou de grupo. 

6.

Eu creio que em Portugal a agenda woke está em perigosa ascensão mesmo junto dos partidos que, mais do que assumi-la, a deveriam combater, não deixando que acabe por colonizar as suas agendas políticas e dando, assim, pretexto à direita radical para identificar esta agenda com o próprio sistema, com o establishment ou com o centro-esquerda e o centro-direita, que nos têm governado. Este é, de resto, assunto que eu trato detalhada e longamente, de forma muito crítica, no meu recente livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024). Quando vemos a direita radical tomar conta, através de eleições, da política internacional é confrangedor ver estes puristas da convicção e de um wokismo de importação insistirem em dar-lhes argumentos para comodamente irem conquistando consensos junto dos eleitores.

7.

O PS faz, pois, mal em alinhar nesta iniciativa pelo que ela facialmente parece representar. E nem sequer precisa de demonstrar aquilo que sempre foi: um defensor da liberdade e da democracia contra os que sempre a elas se opuseram. E já demonstrou que sabe como gerir a sua intervenção no plano da segurança sem desvirtuar a doutrina que sempre o inspirou. E por isso também não precisa de fazer da polícia democrática o seu inimigo, qual perigosa ameaça às liberdades, aos direitos e às garantias. O PS já foi governo muitas vezes e sabe bem que a polícia de um Estado democrático tem um efectivo papel a desempenhar justamente para garantir as liberdades, os direitos e a segurança daqueles que hoje a estão a combater, como se fosse ela a inimiga central de uma sã convivência democrática. Só que não é, mesmo quando possa cometer erros. Erros que, de qualquer modo, nunca será deste modo que se corrigem. Mas se o combate é contra este governo e as suas políticas para a segurança, então, o mote desta manifestação está errado. O combate deve ser político, com manifestações, no parlamento e na opinião pública e publicada… mas não contra a polícia. Se algo correr muito mal, o governo dispõe de poderes para o corrigir. E deve ser instado a fazê-lo. De resto, quem tutela a PSP é o próprio governo, através da Ministra da Administração Interna, que foi, ela própria, Inspectora-Geral, ou seja, garante de que a actividade da PSP segue as melhores práticas no exercício das suas competências. Bem se poderia lembrar-lhe essa sua antiga condição.

8.

 A carta que umas tantas personalidades de esquerda (muitas do PS, incluída a sua líder parlamentar) escreveram ao PM é, por isso, legítima e é um modo de intervenção política que, todavia, não deveria ser associada a esta manifestação e aos termos em que ocorre, tornando-se uma espécie de sua moldura conceptual, porque, se o for, então, fica criada uma “frente popular” onde só já faltará um Mélenchon para a teleguiar rumo à utopia de uma sociedade sem polícia. Mas sabemos muito bem onde levaram estas utopias. JAS@01-2025

ALinhadoHorizonteFinalExpSepiaRec

Poesia-Pintura

CAMINHOS PARALELOS

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Le Rouge et le Noir”
Original de minha autoria.
Janeiro de 2025
"Le Rouge et le Noir". JAS 2025

Le Rouge et le Noir

POEMA – “CAMINHOS PARALELOS”

VI-A UM POUCO
Triste
Naquele dia,
Eram muitos
E apressados
Os que na rua
Passavam
No dia
Dos namorados,
De minha tão leda
Memória,
Desses tempos
Já passados
Que não voltam
Nunca mais.

E TAMBÉM EU
Regressava
Por ali,
Num acaso
Circular,
Nesse dia
Luminoso
Em que eu a vi
Passar.

COINCIDÊNCIAS
Do lugar,
Tristeza
Triste,
A sua...
...........
De relance,
Vi-a passar
E fiquei
De alma
Nua
De só a poder
Abraçar,
De través,
Com o olhar,
Quando a vejo
Na rua.

O SEU DESTINO
E o meu
Seguem
Sempre por aí,
São caminhos
Paralelos
Que se encontram
No olhar
Num ponto
Do infinito,
São veredas
Impossíveis,
Caminhos
Do interdito.

OS ASTROS
Ou os deuses
Marcaram
Este meu penoso
Fado
E dele não posso
Sair,
Prisioneiro
De um passado
Que não é
Possível cerzir.

EXPIO, ASSIM,
Com dor
E tanta
Melancolia,
O fardo
Do impossível
Em forma de
Redenção:
Canto versos
Com melodia,
Poesia,
Salvação,
Na cidade
Da utopia
Para onde
Eu sempre vou
Com as estrofes
Na mão.

Le Rouge et le NoirRec

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (VIII)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

Jas_Cascata31_2021_3Sepia

"Cascata". JAS 2025
EXACTIDÃO

A QUESTÃO de alinhar (esta é mesmo a palavra) a poesia com a geometria, com a exactidão da geometria, é interessante. A exactidão é uma das seis categorias que Italo Calvino, nos anos oitenta do século passado, nas Lezioni Americane (Milano, Garzanti, 1988), propôs para a arte deste milénio em que já nos encontramos. E verifica-se que o terreno comum é precisamente o das linhas. É com elas que se formam as letras, as palavras, os versos, as estrofes e, finalmente, os poemas. Como uma partitura, uma notação semântica. Mas elas formam também as figuras geométricas: rectas, triângulos, quadrados, rectângulos, círculos. O chão é, pois, comum. A teia que suporta a formação de sentido e de som. Sinestesia matricial que facilita o alinhamento entre a poesia e a geometria. E daqui nasceu um poema (“Linhas”) e a procura, nele, da exactidão que encontramos num círculo ou num triângulo equilátero. Claro, sabendo bem que, como na vida, também há linhas tortas e sincopadas. Mas a beleza reside na evolução do que é imperfeito, logo, humano, para essa perfeição que só o espírito (ajudado por Apolo) nos pode dar. A vida, que é imperfeita, aspira à perfeição. É neste movimento ascensional que se inscreve a poesia, sem solução de continuidade. E pode gerar um autêntico poder de resgate pela força sensitiva ou sensorial que acompanha, na poesia, sobretudo através da sua componente melódica, a conversão estética. Rigor geométrico com força sensorial. No poema fala-se de milagre. E talvez seja. O poder da palavra, cifrada, mas exacta e musical. Uma espécie de confissão poética do fascinante pecado de viver. Quando se lhe acrescenta, na dinâmica sinestésica, linhas e figuras geométricas em perfeita simetria o resultado é verdadeiramente superior.

O VAGO E A EXACTIDÃO

Sobre a exactidão, cito, então, o que diz Italo Calvino, nas “Lezioni Americane”, sobre o poeta Paul Valéry, precisamente a propósito dela (a “esattezza”):

“Paul Valéry è la personalità 
del nostro secolo che meglio 
ha definito la poesia come
una tensione verso l’esattezza” 
(1988: 66).

Ou, então, referindo-se a Giacomo Leopardi:

“il poeta del vago può essere   
 solo il poeta della precisione” 
(1988: 61).

É preciso muita precisão no uso das palavras para aludir a estados de alma que são vagos e imprecisos. A sensação de uma doce melancolia, por exemplo. Depois, o geometrismo que evolui por dentro das letras a caminho das palavras, dos versos, das estrofes para que a produção de sentido seja universalmente partilhável. Desenhar rigorosamente estados de alma com letras que são compostas de linhas e de figuras geométricas. Depois, a exactidão melódica através de uma espécie de notação poética, que é feita com palavras – “melólogos”. Na verdade, a poesia exige um enorme rigor de composição. Às vezes pode parecer um amontoado de palavras, mas é exactamente o oposto. A poesia, não os exercícios de mera libertinagem linguística, de pura logorreia ou de exibicionismo linguístico e narcísico. Sentir é uma coisa, convertê-lo esteticamente é outra. Para a conversão é necessário sentir. E rigor, precisão. Trata-se de uma passagem da alma, que é vaga e imprecisa, ao espírito, que aspira à perfeição e à precisão. Alma e espírito não são a mesma coisa. E é por isso mesmo que até têm dois deuses inspiradores diferentes (Diónysos e Apólon) e que Nietzsche distingue com rigor entre “espírito dionisíaco” e “espírito apolíneo”. Referindo-se a Valéry, Calvino fala de “combater o sofrimento físico através de um exercício de abstracção geométrica”. É disto que o poema “Linhas” também fala.

POESIA E MELODIA

Um amigo que comentava um poema, citou uma interessante frase de Ludwig van Beethoven. Ela tinha sido dita por ele a Bettina Brentano, para que fosse referida a Goethe e tem a ver com as relações entre ambos os génios da poesia e da música. Ela refere-a numa carta a Goethe, de 28 de Maio de 1810. Beethoven queria compor sobre poesia de Goethe: “As poesias de Goethe têm sempre um grande poder sobre mim, não só pelo seu conteúdo, mas também pelo ritmo. Sinto-me induzido e estimulado a compor a partir desta língua que, como por obra de espíritos, se eleva a uma ordem superior e contém já em si o segredo da harmonia” (Braun, F. – a cura di -, Incontri con Beethoven, Milano, Il Saggiattore, 2020, pág. 34). Eles encontraram-se em Teplitz. Na carta, Bettina diz textualmente o que lhe foi referido por Beethoven:

“Sim, a música é precisamente a 
mediação entre a vida do espírito 
e a dos sentidos. Gostaria de 
discorrer com Goethe sobre isto” 
(...) “a melodia é a vida sensível 
da poesia. E o conteúdo espiritual 
de uma composição poética 
não se torna, talvez, sentimento 
palpável através da melodia?” 
(2020: 34-35).

Interessante, a relação da música com a poesia e com os sentidos, através do que dela diz Beethoven. A música confere poder sensorial à poesia, a melodia converte o conteúdo espiritual em sentimento palpável. Atinge os sentidos e gera efeitos físicos, corpóreos, em quem ouve. Ou a música (de Beethoven) como “uma nova base sensível para a vida do espírito” (2020: 32). Na visão de Beethoven, a música parece entrelaçar-se com a poesia, num efeito sinestésico, exactamente como acontece com a pintura, dando-lhe fisicidade melódica tal como a pintura o faz com a cor e a representação, tornando-se próteses para que outros sentidos a captem como totalidade expressiva. Sem dúvida, uma cooperação que dá poder sensorial ou sensitivo à poesia.

A SEMÂNTICA E A MELODIA

Pois bem, é isto mesmo que eu penso e tento concretizar na minha poesia, sem dúvida, mas não acoplando, do exterior, a música, antes incorporando-a no interior do próprio poema. Algo um pouco diferente do que acontece com a pintura, que uso sobretudo no interior de um processo sinestésico, embora também procure incorporar a cor no interior do poema, usando as palavras. Com a música é diferente pois ela percorre todo o poema como um manto acústico interno que a faz vibrar, a electriza. É a melodia inscrita num poema que lhe confere o poder de atingir directa e autonomamente a sensibilidade de quem o lê, o sente e o ouve. O poder sensitivo da poesia deve-se sobretudo à incorporação da melodia (e do ritmo) no seu interior. Afinal, o que dizia Aristóteles, na sua Poética?

“Há algumas artes que se servem de 
todos os meios mencionados, a saber, 
o ritmo, a melodia e o metro, 
tal como a poesia dos ditirambos 
e nomos” (Lisboa, FCG, 2018: 39).

Não é, pois, coisa recente esta ideia de incorporar a musica no interior da poesia.

UMA OPÇÃO INCONTORNÁVEL

No meu exercício poético, a componente melódica é sempre trabalhada especialmente na fase final do poema e se uma palavra, semanticamente perfeita, não é melodicamente tão adequada como outra que seja, todavia, semanticamente menos pregnante, adopto sem hesitação esta última devido precisamente à exigência melódica, que para mim é incontornável. A força de um poema deve-se em grande parte à sua melodia e ao seu ritmo sonoro, à sua toada. Depois, se a poesia é levitação, porque retira peso à existência, é leveza, como a dança, com os seus momentos “ballon”, a verdade é que a melodia lhe confere corporeidade, fisicidade, pois fala directamente à sensibilidade, aos sentidos de quem a lê, a sente e a ouve. Melodia que percorre todo o poema, do primeiro ao último verso. Na minha concepção, a relação entre a poesia e a melodia dá-se sobretudo internamente, o que confere grande autonomia e poder sensorial directo à poesia. Falando com um amigo sobre este assunto, ele dizia-me que sem melodia a poesia fica diminuída ou até desaparece. Concordei. Numa palavra, a poesia não é somente semântica, ela é, e talvez no mesmo grau, também melodia.

HIPPOCRENE

Pode ser “Voz em Silêncio” o título que um amigo me propôs para uma pintura ilustrativa de um poema a que dera o título “S/Título”. E até poderia ser “Grito em Silêncio” se só tomássemos em consideração a pintura e a criança que emerge do ventre de sua mãe. Na verdade, o que eu pretendi com o poema “As Fontes de Tivoli” foi fazer a passagem das Cem Fontes de Tivoli para a água da Fonte da Poesia, a de Hippocrene. O sujeito poético, Gianni della Rovere, saía de Roma e subia até Tivoli para dar voz ao seu desejo de libertação do amor, pela magia da água pura, de que ficara cativo. Sim, lá, na Villa D’Este, há uma escultura de Pégaso que, naturalmente, alude a Hippocrene, à sua água, às musas e à poesia. E ao desígnio dos deuses. A paixão de Gianni por Paola Valenzi exigia cura e talvez na água das Cem Fontes estivesse, por analogia com a de Hippocrene, a solução. Conjugadas, a primeira estrofe e a última são a chave do poema “As Fontes de Tivoli”. Em Roma, ficara a perdição. De resto, o Tibre, a que o poema também alude, é objecto de algumas canções dramáticas. “Er Barcarolo”, por exemplo, com o fim trágico de Ninetta… por amor. Uma vez mais, a poesia, associada à água pura das fontes e ao desígnio dos deuses, como resgate.

A fonte original é, pois, a de Hippocrene, a da inspiração poética, no Monte Hélicon, na Grécia. A inquietação do poeta leva-o até lá, onde vivem as musas e onde jorra água pura. Água pura que pode transformar a tristeza em doce melancolia. Claro, desde que seja água desta Fonte. Os poetas vão sempre bebê-la lá, no lugar onde habitam as musas. Para isso, devem levitar com a fantasia e voar até lá com a imaginação. Mas, para que a poesia aconteça, é preciso que se conjuguem algumas variáveis num súbito e preciso instante: Eksaíphnes.

A FONTE, O POETA E AS MUSAS

Viajar com os poetas em torno das raízes da sua inspiração pode ajudar a compreendê-los melhor. Durante anos, todos os dias, à hora de jantar, eu passava em frente da Fontana di Trevi, um privilégio, mas foram as fontes de Tivoli que mais me inspiraram. Claro, fontes, em Roma, há tantas quanto igrejas. Centenas. E há as que definem Roma. A “Fontana dei Quattro Fiumi”, do Bernini, na Piazza Navona, a sala de visitas de Roma, por exemplo. Aqui vivi dez anos, mesmo ali ao lado. Mas a água, ali, em Tivoli, é diferente e convoca-nos a poetar, sobretudo se levarmos connosco, na subida ao monte, a dor original do poeta, o desencontro, o fracasso amoroso, o silêncio, a ausência. Lá, nas Cem Fontes, acederemos à origem da poesia, porque esse é o seu ambiente de culto, desde as origens da Grécia antiga. Está lá a água, abundante e pura, e a escultura de Pégaso que nos lembra a origem de tudo: Hippocrene, a fonte que inspira os poetas e dá de beber às musas. Um poeta procura resolver, com a poesia, as dores de uma sensibilidade extrema, como é a sua, afinada que foi pela dor que o estimulou. E é junto da água abençoada pelos deuses e pelas musas que ele se realiza. Aqui, nestes jardins, vivem muitas musas. E é nos jardins que, por vontade dos deuses, acontece a poesia, como, creio, se diz no “Symposion” de Platão. De resto, sempre me inspirei na mitologia grega. Ela diz tudo. E ajuda a evoluir poeticamente até chegar à fonte mágica da poesia, que faz milagres na sensibilidade de quem nela bebe. E os poetas bebem nela. E povoam, desde sempre, a mitologia. Neste poema, “As Fontes de Tivoli”, evoco, muito superficialmente, uma história de amor contada no meu romance “Via dei Portoghesi”. Roma, Tivoli e a Grécia antiga, com a sua mitologia entrelaçada.

A CAMINHO DE TIVOLI

Sim, claro, compreendo que na subida de Roma para Tivoli alguém acabe por ficar ali, já perto de Tivoli, na Villa Adriana. A grande Yourcenar revigorou, com esse extraordinário romance, “Memórias de Adriano”, o interesse desta famosa Villa do Imperador Adriano. Mas Villa D’Este, com as suas Cem Fontes, é fascinante, não só pela beleza da avenida das fontes, mas também pelas obras de engenharia que lhe estiveram na base. Eu subi várias vezes de bicicleta (de corrida) de Roma até Tivoli. E sempre me fascinaram aquelas fontes. E lá está o Pégaso. E, por isso, a mitologia grega, onde gosto de me inspirar. Não sei, mas talvez seja devido à minha velha paixão pelo grego clássico, que, de certo modo, condicionou a minha vida profissional (comecei como monitor de filosofia antiga, ainda estudante devido ao domínio do grego). Aqui, neste poema um pouco introspectivo, interessou-me a ligação a Roma e à mitologia grega sobre a poesia, através das fontes de Tivoli e da presença alusiva de uma escultura de Pégaso que faz a ligação com a Fonte de Hippocrene, a fonte dos poetas e das musas. Depois, a alusão à história de amor entre Gianni e Paola no romance “Via dei Portoghesi”. Uma autêntica teia de relações num poema sobre a poesia. JAS@01-01-2025

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Poesia-Pintura

AS FONTES DE TIVOLI

Poema de João de Almeida Santos, 
inspirado no romance
"Via dei Portoghesi".
Ilustração: “S/Título”, JAS 2024.
Original de minha autoria.
Dezembro de 2024.
O ECO2022

“S/Título”. JAS 2024

POEMA – “AS FONTES DE TIVOLI”

FOI NAS CEM FONTES
De Tivoli,
Nos jardins
De Villa D’Este,
Que bebeu
Da água pura
E com ela
Transformou
Sua vida
Atormentada
Numa bela
Aventura.

SEDUZIDO
E abandonado
Por musa bela
E forte
Que o tornara
Cativo,
Sem saber
Por que razão,
Perdeu o rumo,
Perdeu o norte,
Seu castigo,
E caiu
Em profunda
Solidão.

NÃO FOI SONHO
De amante
Perder-se
Em fantasia,
Foi fogo
Vivo e cortante
Onde viver
Não podia.

PARTIU, POIS,
Pra encontrar
Novo rumo,
Nova via,
Palavras,
Versos,
Estrofes,
Essa bela
Alquimia...
.............
Mas esse era
Percurso
Que nem ele
Bem conhecia.

PÔS-SE, CONTUDO,
A caminho,
Subiu logo
Ao monte,
Bebeu cem vezes
Da água,
Vagueando
Por ali
Para afogar
Sua mágoa
Nas fontes
De Tivoli.

NO LUNGOTEVERE,
Onde vivia,
Só via as pontes
Por onde ela
Passava
Ao encontro
Do destino
No outro lado
Do rio,
Como quem já
Não tem rumo
E vive
Em desvario.

SALVOU-O
A água pura
Que tinha sempre
Consigo,
Bebia quando
A via
Pra se resgatar
Do castigo,
Do fogo
Que o consumia,
Era água
De poeta,
A que vem
De Hippocrene,
Que alimenta 
As musas
E liberta
 A fantasia.

O ECO2022Rec

Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (VII)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

MagiaPublicado06_2021

“Magia”. JAS 2022, 77×90, em papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Arglass AR70 em mold. de madeira (Colecção privada).

ABALOS TELÚRICOS

Abalos telúricos. O poder da paixão – treme a terra, treme o corpo, estremece o poeta. Assim nasce a poesia: abalos telúricos. O estremecimento original, potente como aquele clarão que quase cega e incendeia, permanece inscrito na alma. E as réplicas não param. E a poesia também não.

"QUE ME IMPORTA, SEI CANTAR!"

Ah, esta mulher, com este perfil  tão belo, mas austero, faz mesmo tremer o chão do poeta. Ao vê-la, o chão foge-lhe dos pés e ele estremece. Este perfil  (o de “Perfil de Mulher”) acompanha-o sempre (perguntei-lhe e, excepcionalmente, ele confirmou). Não me disse, confesso, se foi ela própria a causa do estremecimento original. Isso não disse. Mas até podia ter sido. Se é verdade – e parece ser – que é na ausência que a posse se dá pela arte tudo fica explicado. Junta-se um poema a um perfil e a tristeza pode mesmo dar lugar à doce melancolia, num melódico poema. A vida também tem destas coisas: a uma perda, o poeta responde com a posse da alma através da arte. Ele aguenta o embate da única forma que pode: cantando (e animando o canto com a pintura). Dizia o Liolà  (personagem central da “commedia campestre in tre atti”, Liolà, considerada por Gramsci a “obra-prima” de Pirandello,) para o tio Simone:

“Io, questa notte, 
ho dormito al sereno;/ 
Solo le stelle 
m’han fatto riparo; (…)/ 
Angustie, fame, 
sete, crepacuore?/ 
Non m’importa di nulla: 
so cantare!”. 

Ecco. Sei cantar, dirá. É assim que o poeta se salva do silêncio da musa e acalma o espirito e a alma. E assim impede que o edifício possa ruir pela violência do abalo telúrico. O poeta como arquitecto de edifícios contra os tremores… de alma. Crepacuore? Que me importa! Felizmente, sei cantar e sei pintar. Por isso, digo (em nome do poeta): “sofrer por amor é poético e sadio”.

OLHAR

“Tensão erótica de um desejo insatisfeito” em forma de poema, como não poderia deixar de ser. E até poderia acrescentar: tensão erótica perfeita. Olhar a musa da janela sem lhe poder tocar. Mas o simples olhar tem força física e, assim, ele capta-a no poema, convertendo o olhar em palavras. Não importa se é um olhar interior ou um olhar exterior.  O que tem de ser é um olhar da alma. Dádiva do céu. Eu penso que o amor, quando é autêntico, é uma dádiva (do céu) que nem todos recebem. Predestinação? Não sei. Ele permite ver coisas no real que outros olhares não captam.  E nem falo do seu poder criativo. Só de a ver passar ele fica enredado num círculo de fios e de fogo que o aprisionam e do qual só a poesia o pode libertar. Eu acho que a poesia nasce do estremecimento: treme a terra para ele e treme ele perante ela. Eu acho que é por isso que o poeta é mesmo um arquitecto que constrói casas preparadas para os terramotos da alma, para os abalos telúricos. As palavras são as estacas que resistem aos abalos existenciais. Ele não desiste. Um poeta, de resto, nunca desiste por maior que seja a dor. Melhor, quanto maior for a dor mais ele é convidado a resistir. Ou seja, a poetar.

O “CHIP” DO AFECTO

Uma dádiva do céu é ter o “chip” do sentimento e usá-lo. Não há poetas sem este “chip”. Mas há quem não o possua. Às vezes – aqui está – a carga eléctrica é tão forte que o poeta estremece. E tem de poetar para aliviar a tensão. Ele tem uma sensibilidade muito apurada. A sua força, mas também a sua fraqueza.

SÓ PERDEMOS O QUE NUNCA TIVEMOS

Ritualizar e densificar os diálogos em torno da poesia e do que ela representa é tarefa gratificante para quem gosta de poesia. O poeta vai construindo o poema ao longo da semana para o oferecer à musa e aos amigos, ao domingo, muitas vezes com pinturas executadas com esse fim, outras, já existentes, mas que funcionam como sinestésica ilustração.

O José Régio, sobre perder o que nunca se teve, foi-me lembrado por um Amigo que comentava um poema meu. Sim, mas também o Bernardo Soares falava de intensa saudade do que nunca aconteceu. Ter ou  não ter, esta é a questão, que se segue à de ser ou não ser do grande Shakespeare.  O Régio falava de amigos. Tê-los, perdê-los?

“Nós julgamos perder
Mal se nos abre a mão;/
Mal a fechamos 
que julgamos ter./
Somos bem débil gente!
Dificilmente /
Podemos encarar 
a nossa solidão,/
Ou ver que só perdemos
O que jamais tivemos.”

Os amigos não se têm, logo, não se perdem. Eles são, não se possuem, não se têm e, por isso, a perda é outra coisa. Perdê-los porque partiram, por exemplo.  A perda de amigos não corresponde à perda de coisas. Será isso? Talvez, porque os amigos estão cá dentro. Verdadeiramente nunca se perdem. Há mudança de estado, isso pode haver.  Os amigos são. É como amar. Pertence à esfera do ser, não do ter. Ou à esfera do acontecer. Acontece por obra do destino ou por alinhamento dos astros. A posse não é coisa de amizade nem de amor. Ela só é possível pela arte. “Só perdemos o que jamais tivemos”. Partir é outra coisa. Partir é deixar de caminhar juntos, de um modo ou de outro. Perde-se, com a partida. Mas também é verdade que é a partida que move o poeta a conservar em si aquele que partiu, cantando-o e elevando-o ao sublime. Só assim se pode possuir. Mas há muitas formas de partir. Por exemplo, partir antes de chegarmos, juntos, a um determinado ponto do percurso que iniciámos. Caminhada interrompida. “Só perdemos o que jamais tivemos”. Outra versão: saudades do que não aconteceu, nem podia acontecer. Mas, muitas vezes, podia ter acontecido. E muitas vezes desejávamos intensamente que acontecesse. Chegar juntos a uma meta, por exemplo. E festejar a chegada. Por vezes, é a própria intensidade do desejo que nos inibe e nos impede de chegar juntos. Um estremecimento inibidor. E assim fica apenas como desejo. E é por isso que dói. Os desejos intensos não concretizados doem muito. E por isso há que encontrar uma cura para essa dor: a poesia. Saudade do que ficou por viver. Um vazio pleno e, por isso, doloroso. A saudade é como uma moinha que fica ali a moer sem poder ser removida, ou melhor, que nem sequer se deseja remover na esperança de que aconteça um milagre que a transforme em luz que ilumine o passado em direcção ao futuro. Os poetas não a removem porque ela, tal como a melancolia, inspira e ajuda a reviver de forma luminosa esse passado não vivido e sofrido por ausência. É por isso que a poesia faz bem, é remédio para o amor, como diria o Ovídio. É a única forma possível de posse. E ilumina o caminho do futuro, acende a tocha do tempo.

GOSTO AMARGO DE ACERBO ESPINHO

“Saudade! Gosto amargo de infelizes. / Delicioso pungir de acerbo espinho”. Como gosto desta forma de a traduzir, a saudade. Gosto amargo, sim. E acerbo espinho. Coisa de infelizes. Pois foi isso que o poeta sentiu quando se cruzou com ela num dia cinzento, característica própria da saudade, que é sempre um pouco cinzenta e amarga. Regressar ao passado e à interrupção da caminhada que haveria de conduzir à meta e à festa de júbilo que se seguiria. Regressa, pois, poderosa, a saudade. E logo se tem de a cantar para a afagar, a acarinhar e dulcificar o seu gosto amargo. Vem-me à mente a imagem do chocolate negro (é o chocolate de que mais gosto), que é um pouco amargo, mas não é de acerbo espinho, porque já pertence ao universo do gosto, como a poesia. “Dor que tem prazeres”. Ele é mais rijo do que os outros. Resiste melhor do que os outros, talvez também porque é amargo. Como a saudade no tempo, que é seu cúmplice. A saudade como o chocolate negro? Talvez só para os poetas, que vivem em ambiente sempre amargo e prisioneiros do tempo, mas sempre com sabor agridoce, acre e doce. O tempo é como uma estufa: ajuda a maturar os sentimentos. O tempo é cúmplice dos sentimentos que, no passado, não chegaram a maturar suficientemente. Depois, devolve-os ao futuro e ao poeta, que vagueia por aí. Neste vaguear acaba sempre por se cruzar com eles. Estremece e dá-se o início do processo criativo. É assim. Um qualquer sinal é suficiente para o pôr em estado de estremecimento visto que ele tem a sensibilidade à flor da pele, melhor, da alma.

A MUSA

“Põe-a com dono. Só te faz sofrer”, poeta! Ah, mas os poetas não controlam as musas. São elas que os encantam, os põem a cantar. Elas são como as sereias e não há quem possa tapar os ouvidos aos navegadores de palavras para que não fiquem enfeitiçados pelo seu (en)canto. Os deuses são seus cúmplices e os poetas, mortais, são seus súbditos. Nada a fazer. Sofrer: mas haveria poesia sem sofrimento, sem dor? E a dor é manipulável? Há remédios para esta dor, esta “maladie”, a não ser o poético? Bem insisto em ler o Ovídio, mas não funciona. Se calhar nem o poeta quer sair deste estado, dizendo ao passarinho “some daqui!”, já não há poeta nem poesia porque sou feliz (o poeta era o Vinicius). Não é possível pôr as musas com dono, simplesmente porque elas não são capturáveis. Bem sei que é uma “frase idiomática”, mas o poeta nem sequer consegue resistir-lhes. Aliás, quando esvoaçam para outros lugares, o poeta sofre e fica com dolorosos ciúmes. Não, ele nunca quererá “pô-la com dono”. Não pode nem quer. Elas são leves e rápidas como as fadas e só obedecem à sua própria fantasia. Estão sempre alinhadas com os deuses e com o vento que passa. E voltam a seduzir sempre que querem. JAS@12-2024.

MagiaPublicado06_2021Rec

Poesia-Pintura

LINHAS

Poema de João de Almeida Santos
Ilustração: “Linhas”, JAS 2020
Original de minha autoria
Dezembro de 2024
GeometriaFinal26

“Linhas”. JAS. 2020

POEMA – “LINHAS”

PROCURO,
Com apego,
A perfeição
Em cada verso
Que escrevo,
Movido
Por comoção.

E PERSIGO
A utopia,
Dando asas
Ao desejo
De plena
Harmonia
Nas palavras
Que escrevo
Com a minha
Fantasia.

É COMO A VIDA,
A poesia,
É incerto
Percurso
De linhas
Curvas,
Tortas
Ou sincopadas,
É procura
De formas
Que falem,
Com exactidão
De cristal,
Das mágoas
Sofridas
Em mágoas
Cantadas
Por inquieto
Jogral.

AS ESTROFES
São círculos
Que o poeta
Desenha
Com a alma,
Onde as letras
São linhas
À procura
De sentido
E em forma
De palavra.

MAS, POR VEZES,
Elas são
Emaranhados
Confusos
Que depressa
Se deslaçam,
Quais novelos
De fiar...

É CONSTANTE
Entretecer,
Um constante
Caminhar
Por linhas
Desencontradas,
Um luminoso
Viver
Em palavras
Inventadas.

E, ENTÃO,
Já no final,
Surge
O círculo
Perfeito
Que não se pode
Deslaçar,
É um eterno 
Retorno
Onde o fim
É sempre novo,
Mas um novo
Começar.

A POESIA
(Está bem
De ver)
Não é redonda
Como o círculo,
Não é...
..............
Mas é composta
Por linhas
Em movimento,
Já sopradas
Pelo vento
Em busca
D’exactidão,
Dom
Concedido
Somente
A quem sente
A sua dor
Como porta
De saída
Pra poética 
Evasão.

PALAVRAS
São linhas
Que se enlaçam
E deslaçam,
Frequente
Compulsão,
Sentimentos
Escritos
E desenhados
Com a alma
Em alvoroço
E com força
De vulcão.

ASSIM É A POESIA,
Levitação,
Almas inquietas
Em intensa
Propulsão,
Linhas
Que são palavras
Que resgatam
Os que sofrem
De perpétua
Comoção,
Os que as procuram
Em busca
De um milagre,
Em busca
De redenção.

Linhas